Sofrimento
Eu sofro, portanto, existo. Isso é mais profundo e mais verdadeiro do
que o cogito de Descartes. O sofrimento está ligado à própria existência
da personalidade e da consciência pessoal. Qual, Quelle, Qualität,[1]
é a fonte da criação das coisas. O sofrimento está associado não apenas à
desesperançada condição animal do homem, ou seja, com sua natureza inferior,
mas também com sua espiritualidade, sua liberdade, sua personalidade, vale
dizer, com sua natureza superior. A recusa da espiritualidade e da liberdade, a
recusa da personalidade pode mitigar o sofrimento e diminuir a dor, mas isso
equivale a uma recusa da dignidade do homem. E, de fato, a precipitação do homem
ao estado animal inferior não o salva de nada, porque a vida nesse mundo não se
importa com ele, nem o protege. A perda de vidas nesse mundo é apavorante,
assim como o extermínio sem sentido de inúmeras vidas, que estão condenadas a
sustentar uma torturante luta pela existência. Não existe salvação alguma em
relação ao sofrimento, apenas por se mergulhar na esfera biológica da
existência. O sofrimento é um elemento básico da existência humana. Nesse
mundo, o destino de todas as vidas que alcançaram a individualidade é o
sofrimento. O homem nasce com dor, e com dor morre, e assim o sofrimento
acompanha os dois mais notáveis eventos da vida humana. A doença, talvez o
maior dos males, está sempre aguardando o homem.
Não é sem uma boa base, que a psicanálise fala do traumático processo
do nascimento, do medo e da angústia que o homem experimenta assim que chega a
este mundo. Buda pensava que todo desejo origina sofrimento; mas a vida é
desejo; a aceitação da vida constitui a aceitação do sofrimento. A inquietude
que anda de mãos dadas com a vida, ou a simpatia, não devem se limitar apenas
ao mundo humano. O medo dos animais é horrível e eles são ainda mais
desesperançados do que 0os seres humanos. Não existe nada mais absurdo do que a
ideia Cartesiana de que os animais são meros autômatos. A responsabilidade do
homem perante o mundo animal não foi adequadamente esclarecida pelo
Cristianismo. A esse respeito, o Budismo atingiu um patamar superior. O homem
tem uma obrigação para com a vida cósmica; a culpa bate à sua porta. Quando
Muri, meu querido gato, morreu, eu chorei com a agonia de sua morte, eu senti o
sofrimento do mundo, o sofrimento de todas as coisas vivas, e partilhei desse
sofrimento. Todos deviam partilhar ou tentar partilhar do sofrimento dos outros
e de todo o mundo.
O sofrimento é um tema fundamental em todas as religiões de redenção,
e, de fato, trata-se de um rema religioso básico em geral. No sofrimento o
homem para por momentos de abandono de Deus. Por outro lado, através do
sofrimento ele alcança a comunhão com Deus. O sofrimento pode se transformar em
alegria. O homem é terrivelmente infeliz nessa terra, terrivelmente
aterrorizado; ele experimenta o terror e a agonia; e todas as coisas vivas
estão na mesma condição. Mas o homem possui o poder de criar, de obter heroicas
aquisições, de experimentar o êxtase. Ele é a um tempo uma criatura degradada e
uma criatura exaltada. Pascal entendeu isso melhor do que ninguém. A
impossibilidade do entusiasmo e do êxtase é uma fonte de sofrimento, um estado
de divisão, um enfraquecimento da vida criativa. A infelicidade é, acima de
tudo, um estado de rompimento e de divisão. A questão mais séria e fundamental
da existência humana é saber como superar o sofrimento, como suportar o
sofrimento, como evitar ser destruído por ele, e como diminuir a quantidade de
sofrimento que se abate sobre todos os homens e sobre toda a vida. Antes do
Cristianismo já existiam religiões de deuses sofredores, como as religiões de
Osíris, de Dionísio e outras. Os próprios deuses sofriam e esse sofrimento era
salvador. O mistério do Cristianismo nasceu daí. Mas as doutrinas teológicas
sempre tiveram medo de reconhecer o sofrimento em Deus, e condenaram aquilo que
ficou conhecido como “patripassionismo”. Mas também aqui, assim como em todos
os casos que nos colocam em contato com o mistério, tudo se passa no fio da
navalha, pois o sofrimento do Filho de Deus, do Deus-homem, é bem conhecido.
Aqui todas as coisas se voltam para a união do sofrimento do humano com o
sofrimento do divino, pois é aqui que se supera o rompimento e a alienação
entre o humano e o divino.
Por que tanto sofre o homem nesse mundo? E como justificar a Deus,
tendo em vista todo o sofrimento que existe? Essa é a questão que Dostoievski
colocou dolorosamente para si mesmo. Radishchev, o pai da intelligentsia
Russa, foi profundamente chocado pelo sofrimento humano. Trata-se de um tema
verdadeiramente Russo. A misericórdia pelos que sofrem, a simpatia em relação
aos que sofrem injustamente, é sentida a princípio como um abandono de Deus, e
conduz a uma luta contra Deus. A questão fundamental aqui é o tema do
sofrimento imerecido. Ele está colocado no Livro de Jó, e Deus nos proíbe que
sejamos como os que consolaram Jó[2].
Existem sofrimentos no mundo que não constituem punição dos pecados. O
sofrimento mais obvio é o que está conectado com o corpo, esse corpo que limita
a infinita aspiração do homem, e que fica doente, que envelhece, que morre, e
ao qual está associada toda a dolorosa luta pela existência. O homem carrega
consigo a maldição do corpo, que promete prazeres ilusórios e passageiros, e é
a causa de muitos sofrimentos. O homem nasce porque existe o sexo, e morre pela
mesma razão. Existem momentos de alegria, mas o pano de fundo fundamental da
vida é feito de ansiedade e sofrimento. Os Gregos, que são considerados como
desfrutadores da vida, deixaram escrito através de sua maior obra criativa, na
voz da tragédia Grega, que teria sido melhor para o homem não nascer. Goethe e
Tolstoy foram, dentre os gênios, dos mais afortunados e externamente felizes,
mas sabemos que ao longo de suas vidas os momentos felizes foram poucos, sendo
que o último tentou colocar um fim à própria vida.
Mas de que forma se pode explicar o sofrimento? O filósofo Indiano
contemporâneo, Aurobindo, diz que o sofrimento é a réplica do Todo à vã
tentativa do ego de colocar o universal dentro dos limites possíveis de uma
alegria puramente individual. Max Scheler diz que o sofrimento é a experiência
do sacrifício da parte pela salvação do todo, o sacrifício dos valores
inferiores pela salvação dos superiores; ele liga o sofrimento ao sacrifício. A
possibilidade do sofrimento está conectada também com o desencontro entre as
partes independentes e sua posição funcional dentro do todo. Essas soluções não
podem satisfazer a personalidade humana colocada face a face com seu próprio
destino individual. Elas estão baseadas na completa subjugação do
individual-pessoal pelo universal-comum. O pensamento de Kierkegaard vai mais
fundo quando ele diz que o sofrimento do homem está ligado com o fato de que ele
é solitário. É como se os seres humanos fossem divididos em duas classes.
Existem aqueles que estão dolorosamente conscientes dos sofrimentos do mundo e
dos homens, e aqueles que são comparativamente indiferentes a eles. Na história
do homem Europeu através dos séculos, a sensibilidade diante do sofrimento e o
sentimento de que ele é intolerável cresceu muito. Isso é verdade, no mínimo,
com relação a um setor mais sofisticado da humanidade. Foi preciso um grande
lapso de tempo para que o homem se tornasse consciente de que a tortura, a
execução e o tratamento cruel de criminosos eram coisas que não deviam ser
permitidas. Mas, ao mesmo tempo, vivemos um período que é muito cruel, uma
época de sofrimentos sem precedentes.
Devemos ver a fonte do sofrimento na ausência de correspondência entre
a natureza do homem e o objeto “mundo” que o rodeia, e no qual ele se viu
atirado; é preciso ver isso no incessante embate entre o ego e o não-ego – que
é estranho e indiferente a ele –, com a oposição da objetividade; vale dizer, é
preciso ver isso na objetificação da existência humana. Se podemos falar na
distinção entre tipos e estados humanos harmônicos e desarmônicos, o fato de
que o homem, por sua posição no mundo se encontra num estado de desarmonia, vai
ainda mais fundo. A dolorosa autocontradição no homem, que é a causa do
sofrimento, consiste nisso, em que ele é, nas suas profundezas ocultas, um ser
infinito e que se esforça para alcançar o infinito; um ser que busca o infinito
e que está condenado a essa busca; e, ao mesmo tempo, pela própria condição de
sua existência, um ser que é finito, limitado, temporal e mortal. O homem se
choca contra um muro que não permite passagem. Nas profundezas do sofrimento
humano está a experiência da insuperabilidade, da inevitabilidade e da
irrevocabilidade.
O dualismo no qual o homem vive nesse mundo é também fonte de
incalculável sofrimento. A experiência do sofrimento é a antítese da
experiência da integridade. A violação da integridade e da harmonia também
conduz ao sofrimento. Mas isso acontece porque o homem encontra um mundo de objetos,
e apenas raramente consegue superá-lo e avançar para o mundo das subsistências.
Dentro de mim existem muitas coisas que são estranhas a mim, que não são minhas
(o Es de Freud[3]),
e esses elementos dentro de mim e que me são estranhos são fonte de sofrimento.
A luta pela realização da personalidade é uma luta contra esse estranho que
existe em mim, que faz de mim seu escravo. Em mim deveria estar presente a
totalidade do mundo de Deus, mas ao invés disso encontro esse não-ego, essa
objetificação mortal. A fonte do sofrimento no homem é dupla: ela reside num
muro insuperável fora dele, e em outro muro insuperável dentro dele; na
degradante escravidão imposta a ele pela natureza estranha do mundo, e pela
mais degradante ainda escravidão imposta a ele por esse não-ego, que nele
adquire a aparência de, e se torna, seu ego. Podemos aceitar fora de dúvida que
uma grande quantidade de sofrimento e infelicidade se deve ao fato do homem ser
engolido pelo seu ego, pelo egoísmo. No limite, isso conduz à loucura, que
consiste sempre num estado em que se é engolido pelo ego, em que se é incapaz
de sair dele. A capacidade de escapar ao ego, de fugir a ser engolido por ele,
é uma condição para a realização da personalidade. O ego não é a personalidade.
Pascal diz que “le moi est haïssable” – “o eu é detestável. Isso não
pode ser dito da personalidade.
O organismo físico e psíquico do homem está apenas parcialmente
adaptado ao meio, que para ele representa sempre uma ameaça. De fato, é
incrível como o homem adquiriu a possibilidade de uma existência estável no
mundo fenomênico, no qual ele encontra tão poucos pontos de apoio, e encontra
tão poucos a quem pode chamar de vizinhos. Quando ele experimenta todo o cosmo
como sendo seu vizinho, como algo divino, ele então encontra, não um mundo de
objetos, esse mundo que é estranho para ele, mas outro mundo, que está para
além desse. E a dissociação do homem em relação à fonte primária da vida, em
relação aos outros seres humanos, à vida cósmica, faz nascer nele o sofrimento.
Ao mesmo tempo, a comunhão, o encontro da vizinhança e da fraternidade, são o
reverso do sofrimento. A morte é o maior sofrimento, provavelmente porque ela
consiste em passar por um momento de, por assim dizer, absoluta dissociação,
ruptura e isolamento. Um estado de harmonia, ou seja, a descoberta da
proximidade e da comunhão, são a antítese do sofrimento. O maior sacramento é o
sacramento da Comunhão, que não é apenas humano, mas também cósmico. O destino
do homem, do nascimento até a morte é incompreensível para nós, assim como
incompreensíveis são os sofrimentos que dele nos advêm. Mas existem apenas uns
poucos fragmentos do destino humano na eternidade, de sua jornada através de
tantos mundos. Se tomarmos um único dia da vida humana, separadamente em relação
aos dias precedentes e seguintes, pouquíssimo poderemos entender do que
acontece ao homem. Mas toda a vida do homem, do nascimento até a morte, é como
se fosse um curto dia em seu destino, do ponto de vista da eternidade.
Hegel possui algumas ideias notáveis a respeito da “consciência
infeliz”. Essa consciência infeliz e a separação, a divisão. Ela deve ser
superada para que seja possível alcançar uma consciência mais elevada. Mas não
será toda forma de consciência, infeliz? A consciência sempre pressupõe a
divisão, a separação entre sujeito e objeto e uma dolorosa dependência em
relação ao objeto. Dostoievsky considerava o sofrimento como a única causa do
despertar da consciência. Ele, Kierkegaard e Nietsche são de grande interesse
nessa conexão. A luta de Nietsche contra
o sofrimento, contra sua doença e solidão terríveis, sua resistência a elas, é
a coisa mais notável em sua vida, e que confere a ela um caráter heroico. A
ética da antiguidade e, em especial, a ética clássica de Aristóteles, via no
homem um ser que busca a felicidade, a bendição, a harmonia, e que é capaz de
encontrá-las. essa visão permaneceu em São Tomás de Aquino e na teologia
oficial da Igreja Católica. Mas na verdade o Cristianismo abriu brechas nessa
concepção. A esse respeito, os
testemunhos de Kant, Schopenhauer, Dostoievski, Kierkegaard e Nietsche são
importantes. Não é por acaso que o homem, para mitigar a dor e extinguir o
sofrimento, procura esquecer-se de si mesmo e recusa a consciência, para cegar
seu gume. Ele tenta fazer isso, seja afundando no subconsciente, por exemplo,
com o uso de narcóticos, seja através do êxtase que obtém pela imersão no
animal elemental; ou então, elevando-se ao superconsciente, ao êxtase
espiritual, à fusão com o divino. Existe um limite à capacidade de suportar o
sofrimento. Além desse limite o homem perde a consciência, como que salvando-se
por esse meio.
Não são as piores pessoas as que mais sofrem; os que mais sofrem são
os bons. A capacidade de sofrer pode ser um sinal de grande profundidade. O
desenvolvimento do pensamento e o refinamento da alma vão de mãos dadas com a
intensificação do sofrimento, com a grande sensibilidade à dor, não apenas
espiritual como física. A infelicidade, o sofrimento, o mal, não são causas
diretas do despertar da força no homem, nem do seu crescimento espiritual, mas são
fatores que podem contribuir para o surgimento de sua força interior. Sem a dor
e o sofrimento nesse mundo, o homem iria amolecer e o animal que nele existe
seria vitorioso. Isso nos obriga a pensar que o sofrimento nesse mundo não é
meramente um mal, nem o resultado do mal, nem a expressão do mal. É
inteiramente errado supor que o sofrimento cai sobre o destino do homem na
proporção de sua culpa ou de seu pecado, embora esse seja o tema de inúmeros
sermões. Quando pensamos assim, somos como aqueles que queriam consolar a Jó;
mas Deus justificou Jó, não os que tentavam consolá-lo. O Livro de Jó é o
grande testemunho da existência de sofrimento não merecido, do sofredor
inocente. A tragédia Grega também nos fornece testemunhos disso. Édipo não era
culpado, ele foi uma vítima do destino. Mas o mais importante de todos foi o
sofrimento sem culpa do Filho de Deus, do homem justo, Jesus. O sofrimento
divino existe, e esse sofrimento divino é evocado pela falta de congruência
entre Deus e a condição do mundo e do homem. Existe um sofrimento obscuro que
conduz à ruína, e um sofrimento brilhante que conduz à salvação. O Cristianismo
muda o caminho do sofrimento em caminho de salvação. Trata-se de um sofrimento
divino-humano, e isso responde à tormentosa questão da teodiceia. A vida humana
está cheia da dialética existencial do sofrimento e da alegria, da infelicidade
e da felicidade.
Em todo esse questionamento humano sobre o sofrimento, o maior
interesse está no Budismo, no Estoicismo e no Cristianismo, e as três respostas
dadas por eles são fundamentais hoje em dia. O conflito Estoico com o
sofrimento pode ser encontrado na experiência de alguém que não saiba nada a
respeito dos Estoicos. O Budismo e o Estoicismo não aceitam o sofrimento: eles
procuram livrar-se dele e garantir assim um alívio. O Cristianismo aceita o
sofrimento; ele aceita a Cruz e busca a libertação e a salvação suportando esclarecidamente
o sofrimento. O Budismo não aceita o mundo. Ele pretende conquistar o desejo
que amarra a pessoa ao mundo e tenta atingir o Nirvana, que não consiste no
não-ser, como os Ocidentais costumam imaginar, mas que se coloca além do ser e
do não-ser: ele não é nem a existência, nem a não-existência. O Budismo
Japonês, o Zen, expõe os ensinamentos de Buda não como o repúdio ao desejo, mas
como iluminação, vale dizer, acima de tudo, como uma vitória sobre o
egocentrismo. Ele pode ser chamado de modernismo. O Budismo possui algumas
vantagens sobre o Brahmanismo, na medida em que envolve a simpatia, por
exemplo, como uma sensação do mal no mundo; existe uma forte ausência de
ritualismo nele, e desse intolerável orgulho que é a hierarquia Brahmânica. Mas
o Budismo se move fora da vida dos homens e do mundo; ele não quer que no homem
sobre si tome seu fardo e carregue sua cruz. O Estoicismo aceita o mundo e
busca reconciliar a vida do homem com a lei da mente cósmica. Mas ele tenta
alcançar uma libertação interior do sofrimento através de uma mudança de
atitude em relação a todas as coisas que provêm da vida no mundo e que podem
trazer sofrimento ao homem; ele busca alcançar a “apatia”. Nem o Budismo, nem o
Estoicismo procuram mudar o mundo, ou transformá-lo. Eles o aceitam como ele é,
e tratam o sofrimento pela mudança de atitude em relação ao mundo, seja
repudiando-o, seja atingindo um estado de indiferença em relação a ele. a
filosofia moral Estoica foi uma coisa nobre, mas a “apatia” do Estoicismo e
não-criativa e decadente em seu caráter.
Tanto o Budismo quanto os elementos Estoicos podem ser igualmente
encontrados na filosofia moral inteiramente diversa do Cristianismo e na
atitude Cristã diante do sofrimento. Cristo nos ensinou a suportar a cruz da
vida. Significaria isso que devemos aumentar o sofrimento, e sair à procura
dele? Com certeza, esse não é o significado de suportar a cruz. Suportar a cruz
que nos cabe implica uma experiência esclarecida do sofrimento, e isso
significa uma diminuição do sofrimento em comparação com a experiência não
esclarecida, sombria e lúgubre do sofrer.
Elementos de sadismo e de masoquismo desempenham uma parte
significativa na vida religiosa, e essa é uma das razões por que a história do
Cristianismo é tão complicada. Cristo transformou o sofrimento num caminho de
salvação. Tudo o que é verdadeiro e justo é crucificado no mundo. O único Homem
justo e sem pecado foi crucificado. Mas isso não significa que o sofrimento
deva ser buscado, que devamos nos torturar; tampouco significa que devamos
infligir sofrimento aos demais visando a sua salvação. Mesmo assim, numerosos
Cristãos convictos foram, em seu tempo, muito cruéis, precisamente como
resultado de sua fé e de sua crença nisso. A Inquisição, o emprego da tortura,
a justificação da pena de morte, as punições cruéis, tudo isso esteve baseado
nessa crença da natureza salvífica do sofrimento. São Domingos de Gusmão foi um
inquisidor cruel, Santa Tereza comportava-se cruelmente, Joseph Volotskoy foi
muito cruel e pedia a tortura e a execução. Theophan Zatvornik propagou uma
politica de crueldade na qual os Cristãos buscavam o sofrimento, a doença, a
autotortura e a tortura dos demais. Tudo isso foi devido a um sentido
distorcido do pecado e do medo. Nos inquisidores, uma compaixão pessoal e
individual podia se combinar com o sadismo. A fonte primária desse terrível e
fúnebre erro residia na convicção de que o sofrimento do homem era agradável e
aceitável a Deus, ou seja, havia uma transferência dos sentimentos sádicos para
Deus. As almas Cristãs dos primeiros dias sofreram menos agudamente do que
aquelas dos dias de hoje. Elas estavam mais cônscias do significado do pecado;
dessa forma, elas eram menos sensíveis ao sofrimento. Mas a vida humana não
depende apenas da necessidade; ela depende mais de mudanças que não podem ser
explicadas, daquilo que podemos chamar de coincidência perversa de
circunstâncias. O problema que o homem enfrenta não reside em encontrar uma
explicação para o sofrimento da vida, do acaso inexplicável, da necessidade
devastadora, nem no fato de seus pecados, nem em ver em tudo isso uma punição
para eles. Trata-se do problema espiritual de suportar o sofrimento
condignamente e de transformar o escura e lúgubre sofrimento que conduz à
perdição, num sofrimento esclarecido que leve à salvação.
O homem é uma criatura inconscientemente sonsa e furtiva e um mau
entendedor, e que possui um sofrível entendimento a respeito de si próprio. Ele
pode intensificar seu sofrimento, de modo a que possa sofrer menos – trata-se
de um paradoxo psicológico. Essa é a dialética existencial do sofrimento: ao
mesmo tempo em que o homem sofre por uma razão qualquer, ele se consola
sofrendo por outra. Ele é capaz de realizar feitos heroicos, de modo a sofrer
menos. Ele vai para a guerra, e realiza milagres de bravura; ele se torna monge
e desempenha grandes feitos de ascetismo, para encontrar distração do
sofrimento que teve por um caso de amor infeliz, ou causado pela morte de
alguém próximo e querido. Ou ele pode atormentar o local da dor, intensificando
a dor para aliviar a dor. Ele não apenas foge daquilo que lhe causa dor, mas
também é atraído pela dor e se concentra nela. O masoquismo é quase que inerente
ao homem, e, como o sadismo, ele é uma perversão que nasce do sofrimento. E tudo
isso possui uma misteriosa conexão com o sexo, que é também algo que fere o ser
humano.
O homem é uma criatura enferma, e a isso se deve o fato de terem sido
as maiores descobertas psicológicas todas feitas no campo da psicopatologia. A
um tempo ele é facilmente disposto tanto à mania persecutória quanto à mania de
grandeza; essas duas manias estão ligadas de tal maneira que um homem possuído pela
mania de perseguição acaba por perseguir os outros. O conflito humano com o
sofrimento possui reiteradamente um caráter patológico. A loucura pode ser as
vezes um caminho para escapar dos conflitos irresolvidos da vida, e ela pode
trazer alívio. A coisa mais horrível na vida do homem é a autonomia e o isolamento
das diferentes esferas da vida e da alma, a ruptura com o centro que lhes daria
um sentido mais elevado, e a formação de mundos isolados. Dessa forma a
autonomia e o isolamento da vida sexual conduz ao mundo monstruoso representado
pelo Marquês de Sade. Na opinião de Sade, o homem é essencialmente mau, cruel e
sensual. Ele pensava que o vício e a virtude eram indiferentes do ponto de
vista da Providência. Mas a formação de outros mundos espirituais, autônomos e
isolados, é tão horrível, por exemplo, como o mundo da ambição e do amor pelo
poder, o mundo do ganho e do enriquecimento, ou o mundo do ódio. O homem que, presa
da paixão, formou em si seu próprio mundo autônomo, sofre e causa sofrimento aos
demais. Uma paixão isolada e desespiritualizada evoca uma avidez interminável e
intolerável: é o surgimento de uma ruptura com o centro espiritual do homem e
uma ruptura entre esse próprio centro e a força primária da vida no mundo, ou
seja, algo que, ao final, conduzirá à ruptura com o próprio Deus-homem.
O medo da morte é o medo do mais intenso dos sofrimentos. Morrer é
passar pela separação da alma e do corpo, do mundo e do homem, e pelo
rompimento com Deus. O sofrimento que provém da partida e da separação é do tipo
mais intenso. Porém, maior ainda é o sofrimento do remorso da consciência e do
sentido acusador da culpa, o sofrimento que nasce do irrevogável e do
irreparável. Esse constitui, por assim dizer, uma antecipação das dores do
inferno. O homem busca a restauração e a preservação na memória das experiências
do passado, e muitas memórias são doces para ele. Mas, em maior grau, ele busca
esquecer, afastar da memória o que é mau e degradante; se a memória retivesse
intacto todo o passado, o homem não seria capaz de suportá-la. Do mesmo modo,
ele não seria capaz de suportar o conhecimento e a previsão do futuro, os
sofrimentos por vir, e a hora da morte. O homem e o mundo passarão
inevitavelmente pela crucificação e a morte, e isso deve ser aceito de uma
maneira esclarecida. A morte existe não apenas por ser o homem uma criatura
mortal nesse mundo, mas também porque ele é um ser imortal que não pode, dentro
das condições desse mundo, realizar agora a plenitude da eternidade da vida.
A ideia da punição dos pecados através do sofrimento é meramente exotérica.
As perversões demoníacas do Cristianismo foram resultado da persuasão de que o
sofrimento e uma consequência merecida do pecado, de que ele é uma punição da
parte de Deus. A partir daí segue-se a conclusão de que é preciso causar o maior
sofrimento possível. Na França e na Inglaterra medievais era recusada ao
condenado qualquer oportunidade de confissão sacramental, para assegurar que as
penas infernais eternas se somassem às dores da morte. A sublimidade dos Ofícios
Cristãos para os mortos e dos ritos funerários Cristãos mostram um contraste
absoluto com essa perversão do Cristianismo que é cruel e desprovida de
piedade.
Existem dois tipos de sofrimento. Existem sofrimentos que podem ser
removidos e sobrepujados por mudanças na ordem social e por desenvolvimentos do
conhecimento científico; é uma coisa necessária permanecer lutando contra as
causas sociais do sofrimento e contra aqueles que se devem à rude ignorância do
homem. A abolição da escravidão social (à qual pertence a escravidão que
persiste n capitalismo), a garantia do direito ao trabalho e a uma vida digna,
a difusão da educação e dos conhecimentos técnicos e médicos, a vitória sobre as
forças elementares da natureza – tudo isso diminui o sofrimento. Mas não é
possível organizar a oferta de felicidade, assim como não é possível organizar
a verdade. A felicidade é concedida apenas como um momento benigno. O dom da
verdade só aparece como resultado de uma busca e de uma aspiração ao infinito;
ele é dado como um caminho e como uma vida, e sempre é passível de discussão. É
somente o inferior, nunca o superior, que pode ser organizado. Os momentos em
que se experimenta a felicidade possuem algo de estranho em si, eles são como
reminiscências do paraíso, ou um pressentimento dele.
Mas existe um tipo de sofrimento que está conectado com a base trágica
da vida e que possui uma origem profundamente enraizada. Não se trata da irrupção
de uma ordem social perversa, e não pode ser removido com a melhoria desta. Trata-se
do sofrimento que constitui nosso fardo trágico no mundo: é o nosso destino, e
esse destino não podemos superar apenas vencendo esse mundo. Um grande número
de Marxistas e Comunistas estão chegando a um novo humanismo e alegando uma vitória
final sobre o destino, sem terem recorrido aos mitos (pois, em sua opinião, o
Cristianismo vence o destino por meio de mitos). Eles teriam conquistado a
fonte do sofrimento e organizado a felicidade universal da humanidade. É um
erro imaginar que o Marxismo é uma utopia social. Existem muitos desejos dentro
do Marxismo que são possíveis de serem socialmente realizados, e eles devem ser
realizados. Mas o Marxismo é uma utopia espiritual, porque se baseia numa falha
do entendimento da condição espiritual da existência humana. É impossível, por
meios sociais, subjugar esse trágico conflito fundamental que nasce do fato de
que o homem é um ser espiritual que possui em si aspirações ao infinito e ao
eterno, e que ao mesmo tempo se vê colocado nas restritas condições de
existência desse mundo. O sofrimento da morte, o que deriva do amor, o que vem
do conflito entre o amor e as convicções políticas e religiosas, da natureza
enigmática da vida, da inabilidade em compreender o próprio destino, o sofrimento
que provém de um desejo maligno por poder e violência, o que nasce da inveja,
do amor próprio, da cobiça, de sentimentos feridos por não conseguir o que se pensa
ser seu de direito, da perda de posição social, o sofrimento que provém do medo
quando o homem tem que encarar a vida e a morte, o que é devido a acidentes
inexplicáveis, às desilusões em relação às pessoas, à perfídia dos amigos, ao
temperamento melancólico, e muitas outras formas de sofrimento, nenhuma dessas
pode ser afastada por mudanças na ordem social. Ainda que os problemas sociais
tenham sido resolvidos, que todos os homens tenham sido elevados a condições
dignas de vida, quando já não existir o sofrimento devido à perda da garantia
de uma posição estável da sociedade, ou devido à fome, ao frio, ao
analfabetismo, à doença, à injustiça, nesse momento, o sentimento e a consciência
da inumerável natureza trágica da vida serão intensificados. Será precisamente
nesse momento que uma angústia agonizante colocará suas mãos, não apenas sobre
os poucos escolhidos, mas sobre todos. O conflito social que envolve sofrimento
fornece uma resposta ao tema do sofrimento em termos gerais, mas não à questão
do sofrimento das criaturas concretas. As leis da sociedade pode ser uma
garantia contra as manifestações sociais de crueldade, mas elas são incapazes
de destruir a crueldade dentro dos corações humanos, e essa sempre conseguirá
encontrar meios que não são sociais em seu modo de expressão. Do mesmo modo, o
estabelecimento de uma ordem social garantidora da liberdade do homem e da
cidadania, não será capaz de libertar o homem de todas as outras possibilidades
de escravidão.
Disso não se deduz que não haja necessidade de promover radicais mudanças
sociais para a redução do sofrimento humano e da escravização do homem. Ao contrário,
é preciso fazer de tudo para alcançar esses objetivos, e os problemas
espirituais do homem devem ser liberados das influências sociais distorcidas. A
teoria otimista do progresso que surgiu no século XIX estava permeada pela crença na possibilidade de abolição
do sofrimento e do progressivo aumento da felicidade. Essa crença foi abalada
por eventos mundiais catastróficos. A velha ideia de progresso é inadmissível. Mas
nisso havia também uma verdade Cristã, uma imperceptível aspiração ao Reino de Deus.
A existência de um princípio irracional na vida do mundo tinha que ser admitida,
algo que não era passível de racionalização e que não cabia em nenhuma espécie
de progresso. Nenhuma forma de progresso, ou de reconstrução social, é capaz de
vencer a morte, a principal fonte do sofrimento, ou abolir o medo do futuro. Nikolai
Fiodorov entendeu isso melhor do que ninguém.
A intensidade do sofrimento está ligada à intensidade da vida, à
expressão da personalidade. Recusar a intensidade da vida, recusar a
personalidade, pode mitigar a dor. Nesse caso, o homem se afasta do mundo para
dentro de si mesmo, ele se afasta de um mundo cheio de sofrimento e que o faz
sofrer, mas ao fugir e isolar-se dentro de si ele começa a experimentar um novo
sofrimento, e a sentir a necessidade de fugir mais além, de escapar do torturante
sufocamento de si próprio. O homem que sofre procura superar seu sofrimento, e
encontra alívio de diversas formas, e nem sempre volta sua atenção para o mais
alto, nem sempre, nessas tentativas, ele percebe a elevada estatura que é ser
homem. A vitória sobre o sofrimento é tentada por meio de uma fusão com o grupo
social, com a vida coletiva. Alguns homens tentam obtê-la por meio da
indiferença e da apatia. Pode-se tentá-la por meio da regulamentação da vida,
ou submergindo a si próprio na monotonia, no trivial e no banal. Pode-se tentá-la
pelo esquecimento dos momentos. Os homens tentam vencer o sofrimento desgastando
o fio da lâmina da consciência, por meio de um retorno ao subconsciente, e
rarissimamente eles buscam alívio e libertação no impulso ascensional em
direção ao superconsciente e ao supra-humano. Seu sofrimento pessoal é aliviado
quando ele experimenta a simpatia de alguém outro. Mas, acima de tudo, o
sofrimento é superado pela contemplação da Cruz.
Mas o homem é uma criatura tão estranha, que ele não apenas busca a
libertação do sofrimento: ele também busca sofrer, e está sempre pronto a se
torturar e a torturar os demais. Dostoievski entendeu isso melhor do que
ninguém. Mesmo na vida religiosa, em sua forma mais elevada, na vida Cristã, os
homens contemplam não só a libertação do sofrimento que foi prometida ao homem,
como também uma intensificação do sofrimento, pregando a autotortura e a
tortura dos outros. Existe nos seres humanos como que uma necessidade de matar
e torturar em nome de uma ideia ou de uma fé. Uma nova consciência Cristã terá
que libertar o homem desses pesadelos. Não são apenas as torturas externas e
físicas que são repulsivas, mas as torturas interiores e espirituais também o são.
Trata-se, acima de tudo, de uma questão de libertar o conhecimento de Deus e a
apreensão de Deus dos instintos sádicos e vingativos que foram transferidos
para Ele. As formas mais sádicas de crueldade são vistas nas pessoas que exercem
o poder, de qualquer espécie que seja – religioso, nacional, político,
econômico, familiar – e elas são estabelecidas como uma base de apoio no domínio
das ideias. O poder torna loucos os homens, constituindo-se como um
interminável desejo. Alguns imperadores Romanos chegaram a loucuras de
crueldade. Existem regimes que representam a cristalização da crueldade sádica.
O homem experimenta o sofrimento de diferentes maneiras na medida em
que ele o aceita para o bem de sua fé ou de suas ideias, e então ele é capaz de
suportar torturas; ou ele pode sofrer por conta de circunstâncias perversas e
da crueldade sem sentido das pessoas que o rodeiam, ou do regime sob o qual ele
vive. Existe uma diferença entre o sofrimento no qual o homem se considera culpado,
ou rebaixado, ou envilecido, e o sofrimento no qual ele suporta heroicamente a
pressão e a perseguição. O sofrimento não pode ser medido e comparado, assim
como não se pode comparar e medir a alegria e a felicidade. O sofrimento é
sentido de maneira diferente pelas mulheres, por pessoas que trabalham
intelectual e criativamente, pelas pessoas simples do povo, e assim por diante.
É difícil para o homem contemporâneo, complicado, refinado, fisicamente fraco,
entender como é possível suportar um sofrimento como o que suportaram o
Protopresbítero Avvakum[4]
ou Stenka Razin[5]. Mesmo
no homem civilizado subsiste, dos tempos antigos, uma sede por sangue, uma “saudade”
dos espetáculos cruéis, das lutas de gladiadores, das touradas, etc. Mefistófeles
disse: Blut ist ein ganz besonderer Saft[6].
Existe um elemento de mistério no sangue. Os antigos situavam a alma no sangue;
a cessação da vida estava conectada com isso. Foi um enorme passo, em termos
morais, quando se superou a convicção dos povos primitivos de que os
desafortunados eram esquecidos pelos deuses e que deviam, portanto, ser banidos
pelos homens. O sofrimento pode ser vencido pelo amor, mas ao mesmo tempo o
amor pode ser a causa do sofrimento. Não estou falando do amor enquanto eros,
mas do amor caritativo, daquele que é feito de piedade e de simpatia. É muito
difícil para um homem atravessar o sofrimento sozinho e sem manifestar isso
exteriormente. A solidão é uma das fontes do sofrimento. Podemos dizer, em
certo sentido, que o criador está sempre só e que ele sempre passa pelo
sofrimento. A necessidade de partilhar o sofrimento com outros é expressado nas
lamentações, nas lágrimas e no pranto. É desse modo, podemos dizer, que o homem
pede por socorro. Mas existem pessoas reservadas que orgulhosamente carregam seu
sofrimento consigo, que procuram não o revelar de modo algum. Por essa razão
podemos sempre pensar que as pessoas são infelizes e que sofrem, embora não possamos
perceber diretamente esse fato. Por isso deveríamos nos comportar perante os
demais como se cada homem estivesse morrendo. Não existe nada mais doloroso do
que ver o vigor, o florescimento, a alegria de uma vida exuberante lado a lado
com o enfraquecimento da vida, com o desvanecimento que acompanha o processo da
morte. Mas esse é o destino da vida, o destino de cada individualidade. O sofrimento
e a morte estão ligados ao amor, que deve ser conquistado, seja pelo
sofrimento, seja pela morte, ou por ambos.
A felicidade não é um objetivo consciente da vida humana, e eu já
disse que a felicidade não pode ser administrada. A beatitude pode ser vista
como o atingimento da plenitude da perfeição, mas ela não pode ser alcançada sobre
a terra. Aqui, apenas momentos esparsos desse sentimento podem ser alcançados. Mas
podemos nos esforçar para diminuir a quantidade de sofrimento, e devemos fazê-lo.
A compaixão é um mandamento absoluto. Ninguém precisa aumentar seu próprio
sofrimento, nem infligir sofrimento sobre si mesmo, mas devemos suportar o
sofrimento que nos sobrevém desde fora com uma mente esclarecida, recebendo-o
como algo que possui um sentido em nosso destino. O tormentoso problema do
sofrimento não pode ter sua solução final dentro dos confins desse mundo
fenomênico. A contradição entre as necessidades do homem e as condições de sua
existência finita dentro do mundo natural é insolúvel e pressupõe a necessidade
de um ato de transcendência, e de um fim. É possível ao Bem salvar do
sofrimento? Ele não salva, nem pode salvar, e por isso mesmo é necessária a
Redenção; é o amor divino, e não apenas o humano, que é necessário. Existe uma
impotência do homem face ao mal e ao sofrimento. Mas mesmo para o próprio Deus,
enquanto Poder Criador, essa impotência existe. Somente o Deus que se fez Homem
e que tomou sobre Si o sofrimento do homem e de toda a criação pode vencer a
fonte do mal que dá origem ao sofrimento. Nenhum sistema teológico, nenhuma
autoridade, pode dar fim ao sofrimento humano e ao tormento. Somente as
realidades primárias da religião, somente a ligação divino-humana, somente o
amor divino-humano, podem dar-lhes fim. O homem, que acabou por romper essa
ligação divino-humana, vê-se diante o abismo do não-ser, e seu sofrimento se
torna assim insuportável.
Todo amor traz consigo novos sofrimentos, e ao mesmo tempo somente o
amor pode vencer o sofrimento. Mas é o amor divino-humano que pode fazer isso. O
amor-eros carrega em si um sofrimento interminável, pois nele existe um
elemento de insaciabilidade. O amor-ágape, que vem de cima para baixo, não de
baixo para cima, não inclui em si esse desejo infinito. Por essa razão os dois
tipos de amor precisam ser combinados, pois, de outra maneira, a plenitude não
pode ser atingida. O poder criativo do homem também pode vencer o sofrimento,
embora a criatividade tenha seu próprio sofrimento. O sentido do sofrimento
precisa ser encontrado onde está sua causa. Se, dadas as condições de disparidade
entre o aspecto mais elevado da natureza humana e as circunstâncias de sua
existência nesse mundo, não houvesse o sofrimento, o homem poderia sucumbir a
uma condição desventurada. Seja lá o que for que se diga, o sofrimento
permanece sendo um mistério para nós. De fato, ele é o mistério da redenção.
A própria palavra redenção está demasiadamente associada a um conceito
antropomórfico e sociomórfico de resgate. Para entender a redenção como o
pagamento de um resgate a Deus, a fim de aplacar Sua ira, equivale a degradar
tanto a Deus, como o homem; significa assumir que os sofrimentos de todos os
seres vivos do mundo são agradáveis e aceitáveis a Deus. Mas uma concepção mais
profunda e digna do que essa é possível. O sofrimento testa o homem, avalia sua
força espiritual enquanto ele caminha pelas vias da liberdade. O que agrada a
Deus não é o sofrimento humano, mas a transfiguração dos poderes espirituais
pelas provas geradas pelo sofrimento, pelos resultados inevitáveis da liberdade
direcionada para essa ou aquela direção, de uma liberdade cujas origens são
pré-mundanas. Toda a ênfase deve sempre ser colocada na iluminação e na transfiguração.
[1]
Jacob Boehme, interpreta o termo Quelle (em Alemão), Qualität (em
Latim), como semanticamente relacionados. Na sua obra Aurora, ele define
a “qualidade” como sendo “a mobilidade, o surgimento, aquilo que impele uma
coisa”, exemplificando com o fogo. Mas também a cor, o calor, o frio, a
harmonia, a ressonância, a solidez e a impenetrabilidade são por ele
consideradas dinâmicas, e não estáticas. É como se fossem manifestações do
impulso e do fluxo das coisas, que emanam e se misturam com outras forças para
produzir os perpétuos nascimentos e renascimentos da natureza.
[2] Jó
42: 11.
[3]
Cf. manuscrito inédito comparativo de O Ego e o Id, cap. II, Das Ich
und das Es (O Eu e o isso). In Manuscritos freudianos inéditos: das ich
und das es*, por Juan Carlos Cosentino, UFRJ, 2011.
[4]
Avvakum Petrov (1620-1681), Protopresbítero de Moscou, opôs-se às reformas do
Patriarca Thikon, e, por conta disso, passou mais de 40 anos encerrado num
cubículo da prisão de Pustozyorsk, próxima ao círculo Ártico, terminando por
ser queimado amarrado a uma estaca.
[5]
Stephan Razin (1630-1671), rebelde cossaco que liderou uma campanha contra a
burocracia do Czar, foi preso e executado, sendo cortado em pedaços até a
morte.
[6] Goethe,
Fausto: “O sangue e um suco precioso”.
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