segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - VIII. O Sacramento do Pentecostes







A Igreja é uma. Isso não significa simplesmente que existe apenas uma Igreja, mas também que a Igreja é uma unidade. Nela a humanidade é transportada a um novo plano de existência, de modo a que possa aperfeiçoar-se como unidade na imagem da vida da Trindade. A Igreja é uma no Espírito Santo e o Espírito a “constrói” no Corpo perfeito e completo de Cristo. A Igreja é predominantemente uma na irmandade dos sacramentos. Colocando de outra maneira, a Igreja é uma no Pentecostes, que foi o dia da misteriosa fundação e consagração da Igreja, quando todas profecias a ser respeito se cumpriram. Nessa “celebração temível e desconhecida”, o Espírito Consolador descer e entrou no mundo no qual nunca estivera antes presente do mesmo modo como Ele então passou a habitar. Ele então entrou no mundo para morar nele e para se tornar a fonte onipotente da transfiguração e da deificação. A concessão e descida do Espírito consistiu numa única e irrepetível Revelação. Naquele dia, naquele momento, uma fonte inexaurível de água viva e Vida Eterna se abriu aqui na terra.

O Pentecostes, assim, constitui a plenitude e a fonte de todos os sacramentos e de todas as ações sacramentais, a fonte única e inexaurível para toda a misteriosa e espiritual vida da Igreja. Habitar ou viver na Igreja implica a participação no Pentecostes. Mais do que isso, o Pentecostes se torna eterno na Sucessão Apostólica, na ordenação hierárquica ininterrupta na qual todas as partes da Igreja estão, a todo momento, organicamente unidas à sua fonte primária. As linhas do poder procedem da Câmara Alta. A Sucessão Apostólica não é meramente uma espécie de esqueleto canônico da Igreja. Falando de modo geral, a hierarquia é, em primeiro lugar, um princípio carismático, ou seja, um “ministério dos sacramentos”, ou uma “economia divina”. E é precisamente nessa capacitação que a hierarquia constitui um órgão da unidade Católica da Igreja. Essa é a unidade da graça. Ela é para a Igreja aquilo que a circulação do sangue é para o corpo humano. A Sucessão Apostólica não e tanto uma fundação mística e canônica da unidade da Igreja. Ela está mais associada ao lado divino do que ao lado humano da Igreja. Do ponto de vista histórico a Igreja se mantém uma no seu sacerdócio. É pela ininterruptibilidade das ordenações sucessivas que a totalidade da Igreja é conectada a uma unidade de corpo a partir de uma unidade de Espírito. E aí só existe um caminho e uma perspectiva: aproximar-se e beber da fonte única da vida, agora revelada.

A função específica dos bispos é de serem o órgão da Sucessão Apostólica. Os bispos diferem dos padres por seu poder de ordenar, e somente por isso. Isso sequer constitui um privilégio canônico, mas apenas um poder de jurisdição. Trata-se de um poder de ação sacramental que está além daquele que o padre possui. Na celebração da Eucaristia o bispo não tem nenhuma precedência sobre o padre, nem pode ter, pois o padre tem pleno poder para celebrar, sendo seu propósito primário exatamente o de oferecer o Sacrifício Eucarístico. É enquanto celebrante da divina Eucaristia que o padre é ministro e construtor da unidade da Igreja. A unidade do Corpo de Cristo se derrama a partir da unidade do alimento Eucarístico. Mas adicionalmente a isso o bispo tem sua função particular na construção da unidade da Igreja, não como aquele que oferece o Sacrifício Incruento, mas como aquele que o ordena. A Última Ceia e o Pentecostes estão inseparavelmente ligados um ao outro. O Consolador desce quando o Filho é glorificado em Sua morte na Cruz. Mas eles permanecem sendo dois sacramentos que não podem ser mesclados um ao outro.

O mesmo se aplica aos dois graus em ordem: o bispo está acima do padre e é através do episcopado que o Pentecostes se torna universal e eterno. Mais do que isso, toda Igreja em particular, através de seu bispo – ou melhor, em seu bispo – se vê incluída na plenitude Católica da Igreja como um todo. Através de seu bispo ela se liga com o passado e com a antiguidade. Através de seu bispo ela toma parte do organismo vivo do Corpo da Igreja Universal. Pois todo bispo é ordenado por muitos bispos em nome do episcopado indiviso. Em seu bispo toda Igreja particular cresce e transcende seus próprios limites, entre em contato e se mistura às demais Igrejas, não meramente num amor fraterno ou numa lembrança comum, mas na unidade de uma misteriosa vida na graça.

Assim é que cada Igreja local encontra seu centro e sua unidade no bispo, não tanto por ser ele o cabeça e o pastor local, mas porque é através dele que ela está incluída na misteriosa sobornost (“catolicidade”) da Igreja-corpo por todos os tempos. “Afirmamos que a ordem dos bispos é tão necessária à Igreja que, sem ela, a Igreja não é a Igreja e um Cristão não é um Cristão, e sequer podem receber esse nome. Pois o bispo é um sucessor dos Apóstolos por meio da imposição das mãos e da invocação do Espírito Santo, recebendo sucessivamente o poder concedido por Deus ligar e desligar. Ele é uma imagem viva de Deus sobre a terra, e devido à atividade divina e ao poder do Espírito Santo ele se torna a fonte abundante de todos os sacramentos da Igreja Universal por meio dos quais a salvação pode ser obtida. Consideramos que o bispo é essencial à Igreja, como a respiração o é para o homem, e o sol para o mundo[1]”.

No Dia de Pentecostes o Espírito desceu não apenas sobre os Apóstolos, como também sobre todos os que estavam ali presentes com eles: não só sobre os Doze, mas sobre uma quase multidão (compare-se com os Discursos de Crisóstomo e sua interpretação dos Atos). Isso significa que o Espírito desceu sobre toda a Igreja Primitiva então presente em Jerusalém. Mas, embora o Espírito seja um, os dons e os ministérios da Igreja são muitos e variados, de modo que, no Sacramento de Pentecostes, o Espírito desceu sobre todos, mas apenas aos Doze ele concedeu o poder e o grau do sacerdócio prometido a eles por nosso Senhor nos dias de Sua carne. As qualidades distintivas do sacerdócio não foram ofuscadas pela plenitude abarcante do Pentecostes. Mas a simultaneidade dessa aspersão Católica do Espírito sobre toda a Igreja testemunha o fato de que o sacerdócio foi fundado dentro da sobornost da Igreja. 

É com isso que se relaciona especificamente a proibição direta da ordenação num sentido “geral” ou “abastrato” (por exemplo, sem a nomeação definida para uma Igreja ou congregação), conforme a Regra No. 6 do IV Concílio Ecumênico. Também é proibida a ordenação secreta. Ela deve ser sempre pública e aberta, na própria Igreja, diante do povo e com o povo. Mais do que isso, a participação do “povo” é requerida na própria ordenação, e não apenas como espectadores reverentes que acompanham as orações. O “aksios” ou “amém” obrigatórios não constituem um mero acompanhamento, mas também um testemunho e uma aceitação. O poder de ordenar é concedido aos bispos, e somente a eles, mas foi concedido a eles dentro da Igreja, enquanto pastores de um rebanho definido. E eles podem e devem realizar esse poder apenas na sobornost da Igreja, e em acordo com todo o Corpo – vale dizer, os sacerdotes e o povo – e não “em geral” ou de modo “abstrato” isso implica que o bispo deve habitar a Igreja, e a Igreja deve habitar o bispo.

A antiga determinação de que um bispo deve ser ordenado por dois ou três bispos é especialmente significativa. A implicação desse requisito é quase óbvia[2]. Mas o que estão testemunhando os bispos que ordenam? Na ordenação de um bispo, nenhum bispo isoladamente pode agir por si como bispo de uma Igreja local específica e definida, pois nesse caso ele permaneceria como um estranho tanto quanto como em relação a qualquer outra diocese ou bispado. Ele age como representante da sobornost dos demais bispos, como um membro e um participante dessa sobornost. Ademais, está implícito que esses bispos pertencem a alguma diocese particular, e como bispos dirigentes eles não estão separados, nem podem ser separados de seus rebanhos. Cada bispo que ordena age em nome da sobornost e da plenitude Católica, conforme o I Sínodo Ecumênico, regra 4: “é mais digno para um bispo ser indicado por todos os bispos de sua região; mas se isso for inconveniente por alguma razão especifica, ou devido à distância, que pelo menos três se reúnam num lugar, e que os ausentes expressem sua aquiescência por carta, permitindo que se prossiga com a ordenação”.

Mais uma vez, essas não são medidas canônicas, administrativas ou disciplinares. Existe uma profundidade mística aqui. Nenhuma realização ou extensão da Sucessão Apostólica é possível de outra forma, que não dentro da inquebrantável sobornost de toda a Igreja. A Sucessão Apostólica não pode ser prejudicada ou divorciada do contexto orgânico da vida de toda a Igreja, embora possuindo sua própria raiz divina. No rito Romano apenas um bispo ordena, mas a presença de “testemunhas” ou “assistentes” é necessária, de modo a confirmar a plenitude e a sobornost do ato sacramental. O ponto principal reside aqui na cooperação de toda a Igreja, ainda que isso seja concedido e representado simbolicamente. Sob condições normais da vida da Igreja a Sucessão Apostólica jamais pode ser reduzida a uma enumeração abstrata de ordenadores sucessivos. Nos tempos antigos, a Sucessão Apostólica usualmente implicava, antes de tudo, a sucessão a uma cátedra definida, a uma sobornost específica e local. A Sucessão Apostólica não representa uma cadeia autossuficiente, nem uma lista ordenada de bispos. Ela é um órgão e um sistema da unicidade singular da Igreja. Mais do que isso, não apenas as “santas ordens” (ordo), como também o “poder sacerdotal” (jurisdictio) são congruentes na graça. A “jurisdição” significa a concretude do poder e da dignidade do bispo, e ela se mantém precisamente pela sobornost, vale dizer, pela unidade orgânica com o corpo específico do povo de uma Igreja. Dessa maneira, fora da “jurisdição”, ou seja, na mera autossuficiência do grau episcopal, o poder de ordenar não pode ser praticado. Se uma ordenação “abstrata” não pode ser reconhecida como válida, ela será ainda não apenas “ilegal (ilícita), como também será misticamente deficiente. Pois toda ruptura dos limites canônicos implica simultaneamente uma certa perda da graça, a saber: o isolamento, a separação, o abandono, o esquecimento místico, a limitação da vigilância da Igreja, e uma diminuição do amor. Pois a Sucessão Apostólica foi estabelecida para a garantia da unidade e da sobornost, e jamais deve se tornar um veículo de exclusivismo e divisão.

A Apostolicidade da Igreja não se esgota pelo caráter ininterrupto da sucessão sacerdotal a partir dos Apóstolos. A Sucessão Apostólica não deve ser separada da Tradição Apostólica, e, de fato, não pode. A Tradição Apostólica não constitui uma reminiscência histórica, e tampouco a fidelidade à Tradição significa apenas uma obstinada insistência no que é antigo, nem exige uma adaptação arcaica do presente aos modos e costumes do passado. A Tradição não é uma arqueologia da Igreja, mas uma vida espiritual. Ela é a memória da Igreja. Ela é, em primeiro lugar, uma corrente de vida espiritual ininterrupta que procede desde a Câmara Alta. Tampouco a fidelidade à Tradição Apostólica uma fidelidade restrita apenas à antiguidade, mas uma ligação viva com a plenitude da vida da Igreja. A fidelidade à Tradição é, similarmente, uma participação no Pentecostes, e a Tradição representa a realização do Pentecostes: “Quando vier o Espírito da Verdade, ele encaminhará vocês para toda a verdade[3]”. Falando de modo geral, a Tradição não é tanto uma salvaguarda e um princípio conservador, quanto um princípio progressista e condutor, o começo da vida, a renovação e o crescimento. Os tempos Apostólicos não constituem apenas um exemplo exterior a serem imitados ou repetidos, mas uma fonte eternamente renovada, uma experiência da vida na graça. A Tradição é o poder de ensinar, confessar, testemunhar e proclamar a profundidade da experiência da Igreja, que permanece sempre a mesma e incomparável. E esse “poder de ensinar” (potestas magisterii) está incluído na Sucessão Apostólica e se baseia nela. O poder de ensinar é conferido exatamente no episcopado – ele é o “poder” mais apostólico de todos.

Mas esse “poder” é uma função da plenitude Católica da Igreja. “De omnium fidelium ore pendeamus, quia in omnem fidelem Spiritus Dei spirat”. Podemos dizer que a hierarquia, em sua capacidade de ensinar, representa os lábios da Igreja. Isso não significa que a hierarquia adquire do povo da Igreja sua credencial para ensinar, pois ela a recebe do Espírito Santo, como uma “unção de verdade” (charisma veritatis certum), de acordo com a expressão de Santo Irineu de Lyon, no sacramento da ordenação. Esse é o direito, ou o poder, de expressar e dar testemunho da fé e da experiência da Igreja. A hierarquia ensina enquanto órgão da Igreja. Por isso ela é limitada pelo “consenso da Igreja” (consensu ecclesiae), e mais uma vez não tanto na ordem dos cânones quanto na vida e na evidência espiritual. Somente à hierarquia é concedido o direito de ensinar e testemunhar na Igreja. Mas a hierarquia não constitui um “corpo de ensinamento” completo e autossuficiente na Igreja. A hierarquia só ensina de modo Católico quando deveras tem e contém a Igreja dentro de si. Toda Igreja local tem direito a uma “voz que ensina” na exclusiva pessoa de seu bispo, o que, naturalmente, não exclui o direito à liberdade de opinião. Por outro lado, o bispo possui seu “poder de ensinar” somente dentro da Igreja, somente dentro da verdadeira sobornost de seu povo e de seu rebanho. O bispo recebe esse poder e essa capacidade de ensinar, não de seu rebanho, mas do próprio Cristo, de cujo ministério de ensinamento ele participa através da graça da Sucessão Apostólica. Mas o poder de ser uma espécie de coração de seu povo é conferido a ele, e desse modo o povo também tem um direito e uma obrigação de dar testemunho, de consentir, e de recusar seu consentimento, na busca pela total unanimidade e plenitude da sobornost.

O poder de ensinar está. Portanto, baseado numa dupla continuidade. Primeiramente, no caráter ininterrupto da vida espiritual da Igreja, enquanto “plenitude Daquele que plenifica tudo[4]”. Todo o sentido e a grandeza da vida Cristã consiste em receber o Espírito. Entramos em comunhão com o Espírito por intermédio dos sacramentos, e devemos nos esforçar para estarmos cheios do Espírito nas orações e nas ações. Nisso consiste o mistério de nossa vida interior. Mas, mesmo nessa vida interior, é pressuposto que pertençamos à Igreja e que sejamos parte de sua própria textura. Cada maneira de vida individual está incluída na sobornost, e isso significa que ela é condicionada e limitada pela Sucessão Apostólica. Em segundo lugar, a comunhão universal por todo o tempo ou a união nos sacramentos só é possível mediante a não interrupção da sucessão sacerdotal. O desenvolvimento histórico da Igreja, sua integridade orgânica em revelar o “depositum fidei” fundamental é, da mesma forma, baseada na Sucessão Apostólica. A plenitude Católica do ensinamento da Igreja só é possível para nós mediante a Sucessão Apostólica, que ultrapassa a relatividade histórica das eras separadas, e que ainda age como um verificador interno entre o que é variável e o que é permanente. A liberdade de investigação teológica e de opinião encontra suporte e fundamento para si na “unção de verdade” hierárquica. É precisamente a Sucessão Apostólica que nos permite, em nossa teologia, nos erguermos acima e além do espírito de nosso tempo e penetrar na plenitude da verdade.

Genericamente falando, a eficácia e a realidade dos sacramentos não dependem da fé daqueles que deles participam. Pois os sacramentos são cumpridos pelo poder de Deus, e não do homem, e a fragilidade e imperfeição de um sacerdote individualmente são tornadas boas pela misteriosa participação de toda a Igreja em suas ações – da mesma Igreja que o escolheu e autorizou a realizar o “ministério dos Sacramentos”. De qualquer forma, independentemente disso, é quase impossível isolar por completo o momento objetivo em que a graça se manifesta nos sacramentos. Por exemplo, como pode a Sucessão Apostólica ser preservada quando a Tradição Apostólica foi rompida juntamente com a continuidade da vida espiritual? Em nenhum caso uma injúria à fé deixa de se refletir de alguma maneira na hierarquia dessas comunidades nas quais o “depósito de fé” Apostólico não foi preservado, e onde a plenitude da Tradição foi diminuída pelas brechas na continuidade histórica. Isso se aplica especialmente aos casos em que a injúria atinge os motivos básicos da própria “sucessão”, quando a fé Eucarística se torna turva, e quando a ideia de sacerdócio se torna vaga e imprecisa. Podemos acrescentar que em tais casos a ligação empírica com a plenitude da vida da Igreja, tanto passada quanto presente, costuma ser rompida, e a comunidade se torna contida em si mesma e isolada, de modo que surge aí uma separação empírica – um cisma. Esse desejo de isolamento e, podemos dizer, essa solidão, não pode deixar de afetar esse ministério da Igreja, cujo sentido total reside na preservação e na expressão da unidade. Mais uma vez, não se trata apenas de uma questão de legalidade ou “jurisdição”. Não é tanto canonicamente, quanto misticamente, que cada sacerdote age em favor e em nome de toda a Igreja – e somente então seu ministério Divino se enche de valor místico. A Eucaristia é uma e indivisível, e só pode ser celebrada dentro dos limites místicos da Igreja Católica. Como poderia um “dissidente” celebrar a Eucaristia?

Ainda mais equivocada é a continuidade da Sucessão Apostólica nos corpos cismáticos, em especial se ela foi continuada, ou mesmo “restabelecida” com o objetivo de tornar a separação permanente. Como pode uma corrente hierárquica persistir na divisão, quando sua própria razão de ser é a unidade? Como podem hierarcas cismáticos agir em favor ou em nome da Igreja Católica? Ainda assim, a vida da Igreja na prática testemunha o fato de que isso é possível, e que a vida na graça dentro dos corpos cismáticos não se extingue nem se esgota, a qualquer custo, pelo menos não imediatamente. Entretanto, não podemos pensar que seja possível que isso prossiga inalterado, precisamente pela razão de que não se pode isolar diferentes aspectos do todo orgânico da vida da Igreja. O isolamento humano e histórico, ainda que juntos não cheguem a romper com a Sucessão Apostólica, devem, de um modo ou de outro, enfraquece-la misticamente. Pois a unidade na graça só pode ser revelada no “mistério da liberdade”, e apenas por meio de um retorno à plenitude e à comunhão Católica, cada corpo hierárquico separado pode recobrar todo seu significado místico. Simultaneamente a esse retorno, acontece a aceitação do “depósito de fé” Apostólico na sua totalidade. A Sucessão Apostólica só pode ser fortalecida pela fidelidade e a realização da Tradição Apostólica. Nessa inseparabilidade reside a plenitude do Pentecostes.

CONSENSUS ECCLESIAE, Nov. 24, 1934

[Duas notas explicativas ao artigo do Professor Florovsky sobre “O Sacramento do Pentecostes”]

I.        “Somente à hierarquia é dado o direito de ensinar e testemunhar na Igreja”. Isso não significa que o clero e os leigos estejam destinados simplesmente a uma obediência formal e incondicional do episcopado. Similarmente, isso não implica que o “direito de ensinar” seja conferido aos bispos, independentemente do povo. Ao contrário, não existe espaço para o exclusivismo dentro da Igreja. Dessa forma, o agudo contraste que existe na Igreja Romana entre as Igrejas “que ensinam” e “que aprendem” é abandonado. É mais correto falar em coordenação entre os estratos, ou elementos, dentro da Igreja. Mais uma vez, enfatizo que “o bispo tem o poder de ensinar” apenas dentro da Igreja, apenas dentro da sobornost de seu povo e de seu rebanho. Todos na Igreja são chamados não somente à obediência, como também ao entendimento. Precisamente em questões de fé e dogma, todos são compelidos a uma responsabilidade pessoal. É preferível não falar em “responsabilidade” – o termo é demasiado formal – e é melhor dizer que todos devem residir na verdade. O rebanho deve não apenas ouvir, como também aquiescer. Não é tanto a autoridade que decide, quanto uma evidência interior de vida espiritual. Dentro dos limites da sobornost intacta existe uma atribuição de atividades e de tarefas. Para todos os efeitos, todos são chamados a ser um exemplo vivo e um testemunho de sua fé e de sua verdade, para ensinar e ajudar qualquer pessoa. Essa questão não se coloca aqui, como também não se coloca um problema de busca teológica, que formalmente não pode ser delimitada por nenhuma posição da Igreja. A questão é como relação ao direito ao testemunho dogmático a favor da Igreja.

Mais uma vez, o poder da hierarquia não implica que a verdade seja como que revelada ao bispo automaticamente, por força de sua ordenação e dignidade, ou que ele possa descobri-la sem consulta ou comunhão com a Igreja, fora da qual ele perde todo seu “poder”. Porém, apenas a ele é dado o poder de falar de maneira Católica. Não se trata apenas de um direito ou privilégio canônico. Isso está vinculado ao fato de que o bispo enquanto tal constitui um centro místico de seu rebanho, unindo em si a unicidade da agremiação sacramental. O fato de que com muita frequência os bispos não sejam bons teólogos não contradiz essa determinação. Nesses casos eles são forçados a encontrar apoio em outros sacerdotes mais instruídos do que eles. Isso aconteceu desde os tempos mais antigos: basta lembrar Eusébio de Cesareia, cujo conselheiro principal era Basílio o Grande. Não se trata de uma contradição maior do que o simples fato de que existem bispos indignos, tanto quanto existem Cristãos indignos. Mesmo os leigos podem e devem estudar, discutir, pregar, escrever e argumentar; e eles podem ainda discordar dos bispos. Mas testemunhar em favor da Igreja, somente os bispos podem fazê-lo. Podemos também colocar as coisas da seguinte maneira: o direito de opinião e aconselhamento é dado a todos, mas o “poder de ensinar” é concedido apenas à hierarquia – naturalmente, dentro da agremiação intacta da sobornost. A falta de bispos instruídos dentro da Igreja Ortodoxa nos tempos recente é lamentável, mas de modo algum está ligado a esse postulado.

Com relação aos “teólogos leigos” na Rússia, não se pode dizer que eles tenham o poder de ensinar em favor de toda a Igreja – o que, de modo algum, limita seu grande significado histórico. Pois a voz dos leigos deve ser ouvida no coro Ortodoxo. O líder do coro, naturalmente, só pode ser um bispo. Existem inúmeros dons, e todos os dons são necessários. Porém, somente um é apontado como pastor, e o cajado é confiado a ele. “E o rebanho o segue, pois conhece a Sua voz[5]”.  

II.      A desunião dentre os Cristão implica, naturalmente, uma fraqueza mística, e aqui nada é muito claro. Eu gostaria apenas de enfatizar um ponto. O simples fato de que exista uma divisão na Igreja é um paradoxo e uma antinomia. Um abandono da Igreja é mais compreensível do que uma divisão na Igreja, na medida em que, num cisma, a própria eficácia dos sacramentos em si não elimina o fato indubitável de que o espírito de divisão constitui um sintoma de falta de saúde. Não é fácil desenvolver esse ponto de vista, pois se trata precisamente de um paradoxo. Porém, creio que foi o Ocidente que se separou do Oriente, e que a culpa do Ocidente é maior. Toda a história do desvio Romano dá testemunho disso, e ainda sobrecarrega a Igreja Anglicana tanto quanto. Mas isso nos levaria a um novo e complicado tema, a saber, a divisão entre as Igrejas, e é mais aconselhável voltar em separado a ele em outra ocasião.


[1] Epistola dos Patriarcas do Oriente aos Bispos da Grã-Bretanha, 1723, §10.
[2] “...tome com você mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas” (Mateus 18: 16).
[3] João 16: 13.
[4] Efésios 1: 23.
[5] João 10: 14.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - VII. A Sempre Virgem Mãe de Deus






O autor está plenamente consciente do quanto é inadequada essa exposição. Não se trata aqui de um ensaio teológico em senso estrito. Essa é apenas uma mensagem ocasional escrita apressadamente algum tempo depois de ter sido improvisada. A única intenção do autor foi a de sugerir uma maneira pela qual o objeto poderia ser enfocado, de modo a abrir uma discussão. O principal objetivo desse estudo foi o de provar que a Mariologia pertence ao próprio corpo da doutrina Cristã, ou, se podemos nos expressar assim, a um consenso doutrinal minimamente essencial, fora do qual nenhuma verdadeira unidade de fé poderá ser reclamada.
(Georges Florovsky)


Todo o ensinamento dogmático a respeito de nossa Senhora pode ser condensado nesses dois nomes atribuídos a ela: Mãe de Deus e Sempre Virgemqeotokos e aeiparqenos. Ambos os nomes possuem a autoridade formal da Igreja Universal, bem como uma autoridade ecumênica. O Nascimento Virginal está claramente atestado no Novo Testamento e constitui uma parte integra da tradição Católica desde então. “Encarnou-se pelo Espírito Santo e a Virgem Maria” (ou “nascido da Virgem Maria”) é uma frase do Credo. Não é apenas uma afirmação de um fato histórico. Trata-se precisamente de uma afirmação do Credo, uma solene profissão de fé. O termo “Sempre Virgem” foi formalmente adotado pelo Quinto Concílio Ecumênico (553). E Theotokos é mais do que um nome ou título honorífico. Trata-se antes de uma definição doutrinal – numa única palavra. Ele foi a pedra de toque da fé verdadeira e uma marca distintiva da Ortodoxia mesmo antes do Concílio de Éfeso (432). Já São Gregório de Nazianze alertava Cledonius: “se alguém não reconhece Maria como Theotokos, está distanciado de Deus[1]”. De fato, o nome foi amplamente empregado pelos Padres do século IV, e possivelmente também do século III[2]. Ele já era tradicional quando foi contestado e repudiado por Nestorius e seu grupo. A palavra não aparece nas Escrituras, assim como o termo omoousios também não aparece. Mas, certamente, nem em Nicéia, nem em Éfeso, a Igreja estava inovando ou impondo um novo artigo de fé. Uma palavra “não escriturária[3]” foi escolhida e utilizada, precisamente para vocalizar e salvaguardar a crença tradicional e a convicção comum às eras. É verdade, sem dúvida, que o Terceiro Concílio Ecumênico se referia primariamente ao dogma Cristológico, e que não formulou nenhuma doutrina Mariológica em especial. Mas, exatamente por essa razão, é verdadeiramente notável que um termo Mariológico tenha sido selecionado e estabelecido como o teste último da ortodoxia Cristológica, para ser utilizado, digamos, como uma “palavra de ordem”, uma “senha” ou “jargão[4]” na discussão Cristológica. Tratava-se realmente de uma palavra-chave para toda a Cristologia. “Esse nome, dizia São João Damasceno, contém todo o mistério da Encarnação[5]”. Como habilmente colocou Petavius: Quem in Trinitatis explicando dogmate omoousiou vox, eundem hoc in nostro Incarnationis usum ac principatum obtinet Qeotokou nomen[6]. O motivo e propósito dessa escolha é óbvio. A doutrina Cristológica não pode ser correta e adequadamente estabelecida sem incluir um ensinamento cabal a respeito da Mãe de Cristo. De fato, todas as dúvidas e todos os erros Mariológicos dos tempos modernos dependem em última precisamente de uma absoluta confusão Cristológica. Eles revelam um irremediável “conflito em Cristologia”. Não existe espaço para a Mãe de Deus numa “Cristologia reduzida”. A teologia Protestante simplesmente não tem nada a dizer a respeito dela. Mas ignorar a Mãe implica interpretar erroneamente o Filho. Por outro lado, a pessoa da Bendita Virgem pode ser propriamente entendida e corretamente descrita apenas num contexto Cristológico estabelecido. A Mariologia consiste em adicionar um capítulo no tratado da Encarnação, jamais em estabelecer um “tratado” independente. Claro, não será um capítulo casual, nem um apêndice. Ela pertence ao próprio corpo da doutrina. O Mistério da Encarnação inclui a Mãe do Encarnado. Algumas vezes, entretanto, a perspectiva Cristológica foi obscurecida por um exagero devocional, por um pietismo desbalanceado. A piedade deve ser sempre guiada e verificada pelo dogma. Mais uma vez, deve haver um capítulo Mariológico no tratado sobre a Igreja. Mas a doutrina da Igreja em si não passa de uma “Cristologia estendida”, a doutrina do “Cristo total”, totus Christus, caput et corpus.

O nome Theotokos enfatiza o fato de que a Criança a quem Maria deu à luz não era um “simples homem”, não era uma pessoa humana, mas o Filho Unigênito de Deus, “Um da Santíssima Trindade”, ainda que Encarnado. Essa é obviamente a pedra de ângulo da fé Ortodoxa. Vamos relembrar a fórmula de Calcedônia: “Seguindo assim os santos Padres, confessamos um único e mesmo Filho (ena kai ton auton), nosso Senhor Jesus Cristo (...) gerado pelo Pai como Divindade antes de todos os séculos, mas que nos últimos dias, por nós e para nossa salvação, o mesmíssimo (ton auton), nascido de Maria, a Virgem Mãe de Deus, como Humanidade”. Toda a ênfase está na absoluta identidade da Pessoa: o Mesmo, o Mesmíssimo, unus identique segundo São Leão. Isso implica uma dupla geração do Verbo divino (mas enfaticamente não uma dupla Filiação; essa seria precisamente a perversão Nestoriana). Não existe senão um Filho: Aquele que nasceu da Virgem Maria é, em sentido pleno, o Filho de Deus. Como disse São João Damasceno, a Santa Virgem não gerou “um homem comum, mas o verdadeiro Deus[7]”, “não nu, mas encarnado[8]”. O Mesmo, nascido do Pai desde toda eternidade, “nos últimos dias” nasceu da Virgem “sem nenhuma alteração[9]”. Não existe confusão de naturezas. A “segunda genhsis” é de fato a Encarnação. Nenhuma nova pessoa veio à existência quando o Filho de Maria engravidou e deu à luz: apenas o Eterno Filho de Deus se tornou homem. É nisso que consiste o mistério da divina Maternidade da Virgem Maria. Pois, de fato, a Maternidade constitui uma relação pessoal, uma relação entre pessoas. Porém, o Filho de Maria era em verdade uma Pessoa divina. O nome Theotokos é uma consequência inevitável do nome Theantropos, o Deus-Homem. Ambos se afirmaram e nasceram juntos. A doutrina da União Hipostática implica e solicita a concepção da divina Maternidade. Infelizmente, o mistério da Encarnação foi tratado modernamente com frequência de modo demasiado abstrato, como se não passasse de um problema metafísico, ou mesmo de um enigma dialético. É fácil entregar-se à dialética do Finito e do Infinito, do Temporal e do Eterno, etc., como se esses fossem termos de alguma relação lógica ou metafísica. Corre-se o risco de passar por cima, ou de perder de vista, o ponto essencial: a Encarnação foi precisamente uma ação poderosa do Deus Vivo, sua intervenção mais pessoal na existência criada, de fato uma “descida” da pessoa Divina, de Deus em pessoa. Mais uma vez, existe aqui um sabor docético[10] sutil, mas real, nas tentativas mais recentes de reescrever a fé tradicional em termos modernos. Existe uma tendência a enfatizar excessivamente a iniciativa divina na Encarnação, a tal ponto que que a própria existência histórica do Encarnado desaparece num “Incógnito Filho de Deus”. A identidade direta do Jesus histórico de do Filho de Deus é negada explicitamente. Todo o impacto da Encarnação é reduzido a símbolos: o Senhor Encarnado é visto mais como um expoente de algum nobre princípio ou ideia (seja a Ira de Deus ou o Amor, a Cólera ou a Misericórdia, o Julgamento ou o Perdão), do que como uma Pessoa viva. Em ambos os casos as implicações pessoais da Encarnação são passadas por alto ou negligenciadas – falo de nossa adoção na verdadeira filiação de Deus no Senhor Encarnado. Ora, algo de muito real e definitivo aconteceu com o homem e para o homem quando o Verbo de Deus “se fez carne e habitou entre nós”, ou antes, “fez sua morada em nosso meio” – de fato, uma transformação pictórica, eskhnwsen em hmin[11].

“Mas quando veio a plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de uma mulher[12]”. Essa é uma afirmação escriturária a respeito do mesmo mistério pelo qual os Padres disputaram em Calcedônia. Mas qual é o sentido pleno e o propósito da expressão “nascido de uma mulher”? A Maternidade, em geral, n]ao se esgota no mero fato da procriação física. Seria de uma cegueira lamentável se ignorássemos esse aspecto espiritual. De fato, a procriação em si estabelece uma relação espiritual íntima entre a mãe e a criança. Essa relação é única e recíproca, e sua essência consiste na afeição ou amor. Podemos nós ignorar essa implicação do fato de que nosso Senhor “nasceu da Virgem Maria”? Certamente, nenhuma redução docética é permissível nesse caso, assim como deve também ser evitada em qualquer outro aspecto da Cristologia. Jesus era (e é) o Deus Eterno, e também Encarnado, e Maria era Sua Mãe em sentido pleno. De outra forma, a Encarnação não teria sido genuína. Mas isso significa precisamente que para o Senhor Encarnado existe uma pessoa humana específica em relação à qual Ele possui uma relação especial – em termos precisos, uma pessoa em relação à qual Ele não é apenas o Senhor e Salvador, mas também o Filho. Por outro lado, Maria era a verdadeira mãe de seu Filho – a verdade de sua maternidade humana não é menos relevante e importante do que o mistério de sua maternidade divina. Mas a Criança era divina. Ainda assim, as implicações espirituais de sua maternidade não poderiam ser diminuídas pelo caráter excepcional do caso, nem poderia Jesus deixar de ser verdadeiramente humano em sua resposta filial ao afeto materno daquela de quem Ele nascera. Isso não é uma especulação vã. De fato, seria uma impertinência violar o sagrado campo dessa intimidade sem paralelo entre a Mãe e seu divino Filho. Mas seria não menos impertinente ignorar o mistério. Em qualquer caso, equivaleria a um empobrecimento da ideia se víssemos a Virgem Mãe apenas como um instrumento físico para que o Senhor tomasse a carne. Ademais, tal erro de interpretação é formalmente excluído pelo ensinamento explícito da Igreja, atestado desde os primeiros tempos: ela nunca foi um “canal” através do qual veio o Senhor Celestial, mas, realmente, a mãe de quem Ele obteve Sua humanidade. São João Damasceno resume precisamente com essas palavras o ensinamento Católico: Ele não veio como “através de um conduto” (ws dia swlhnos), mas assumiu dela (ex auths) uma natureza humana consubstancial à nossa[13].

Maria “encontrou favor em Deus[14]”. Ela foi escolhida e foi-lhe ordenado que servisse ao Mistério da Encarnação. E, por causa dessa eleição eterna ou predestinação, ela foi, de certo modo, colocada à parte e recebeu um privilégio e uma posição únicos em toda a humanidade, e mesmo em toda a criação. É como se ela tivesse recebido um grau transcendente. Em primeiro lugar, ela era representativa da raça humana, e foi assim colocada à parte. Existe uma antinomia aqui, implicada na divina eleição. Ela foi colocada à parte. Ela foi colocada numa posição única e sem paralelo com Deus e com a Santíssima Trindade, mesmo antes da Encarnação, em sua condição prospectiva de Mãe do Senhor Encarnado, exatamente porque isso não iria constituir um acontecimento histórico ordinário, mas a importante consumação do decreto eterno de Deus. Ela ocupava uma posição única, mesmo dentro do plano divino da salvação. Através da Encarnação, a natureza humana foi restaurada novamente à amizade com Deus, que havia sido destruída e ab-rogada depois da Queda. A humanidade sagrada de Jesus foi a ponte que superou o abismo do pecado. E essa humanidade foi recebida da Virgem Maria. A própria Encarnação constituiu um novo começo no destino do homem, o começo de uma nova humanidade. Na Encarnação nasceu o “homem novo”, o “Último Adão”: Ele era verdadeiramente humano, mas era também mais do que homem: “o segundo homem é o Senhor dos céus[15]”. Enquanto Mãe desse “Segundo Homem”, a própria Maria estava participando do mistério da recriação redentora do mundo. Certamente, ela deve ser contada entre os redimidos. Ela evidentemente necessitava a salvação, Seu Filho é seu Redentor e Salvador, assim como é o Redentor do mundo. Sim, ela é o único ser humano para quem o Redentor foi também um filho, seu verdadeiro filho, a quem ela gerou. Jesus realmente nasceu “não da vontade da carne, nem da vontade humana, mas de Deus[16]”, mas, ao mesmo tempo, ele é o “fruto do ventre” de Maria. Seu nascimento sobrenatural constitui o modelo e a fonte da nova existência, do novo e espiritual nascimento de todos os fiéis, que não é outra coisa do que a participação em sua santa humanidade, uma adoção à filiação de Deus – no “segundo homem”, no “último Adão”. A Mãe do “segundo homem” necessariamente deveria ter seu caminho específico e peculiar nessa nova vida. Não é demasiado dizer que, para ela, a Redenção foi, em certo sentido, antecipada no próprio fato da Encarnação em si – e antecipada de um modo peculiar e pessoal. “O Espírito Santo desceu sobre ela, e o poder do Altíssimo ocultou-a com Sua sombra[17]”.  Isso constituiu uma verdadeira “presença teofânica” – na plenitude da graça e do Espírito. A “sombra” é precisamente um símbolo teofânico. E Maria estava realmente “cheia de graça”, gratia plena, kecaritwmenh. A Anunciação foi para ela uma espécie de Pentecoste antecipado. Somos compelidos a arriscar esse ousado paralelismo pela inescrutável lógica da eleição divina. Pois, de fato, não podemos encarar a Encarnação apenas como um milagre metafísico sem qualquer relação com o destino pessoal e a existência das pessoas envolvidas. O homem jamais lidou com Deus como se não passasse de uma ferramenta nas mãos do mestre. Pois o homem é uma pessoa viva. De modo algum pode ter havido uma graça “instrumental”, quando a Virgem foi “coberta pela sombra” do poder do Altíssimo. A posição única da Virgem Maria não foi obviamente uma aquisição sua, não uma mera “recompensa” por seus “méritos” – nem mesmo foi a plenitude da graça dada a ela em “previsão” de seus méritos e virtudes. Tratou-se acima de tudo de um dom gratuito de Deus, em sentido estrito – gratia grátis data. Foi uma eleição eterna e absoluta, embora não incondicional – pois estava condicionada e relacionada ao mistério da Encarnação. Maria obteve sua posição única e constituiu-se numa “própria categoria”, não como mera Virgem, mas como Virgem-Mãe, parqenomhthr, como a Mãe predestinada do Senhor. Ela possuiu uma dupla função na Encarnação. De um lado, ela assegurou a continuidade da raça humana. Seu Filho foi, em virtude de seu “segundo nascimento”, o Filho de Davi, de Abrahão e de todos os “antepassados” (o que é enfatizado nas duas versões da genealogia de Jesus). Na frase de Santo Irineu, Ele “recapitulou em si o longo registro da humanidade[18]”, “reunindo em si todas as nações, que estavam dispersas desde Adão[19]”, e “tomou sobre si o caminho antigo da criação[20]”. Mas, por outro lado, Ele” manifestou um novo tipo de geração[21]”. Ele era o Novo Adão. Esse foi a mais drástica solução de continuidade, a verdadeira reversão do processo anterior. E essa “reversão” começa precisamente com a Encarnação, com o Nascimento do “Segundo Homem”. Santo Irineu fala de recirculação – de Maria a Eva[22]. Enquanto Mãe do Novo Homem, Maria teve antecipada sua participação nessa novidade. Naturalmente, Jesus Cristo é o único Senhor e Redentor. Mas Maria é Sua mãe. Ela é a estrela da manhã que anuncia o nascer do sol, o nascimento do verdadeiro Sol salutis: asthr emjainwn ton Hlion. Ela é a “aurora do dia místico”, augh mustikhs hmeras (ambas as frases são do Hino Akathisto). E, em certo sentido, mesmo o nascimento de nossa Senhora pertence ao mistério da salvação. “Teu nascimento, ó Mãe de Deus e Virgem, encheu de alegria todo o universo – pois de ti nasceu o Sol de Justiça, Cristo nosso Deus[23]”. O pensamento Cristão se move sempre na dimensão das personalidades, não no domínio de ideias gerais. Ele apreende o mistério da Encarnação enquanto mistério da Mãe e da Criança. Essa é uma salvaguarda definitiva contra qualquer docetismo abstrato, uma salvaguarda contra a concretude evangélica. O ícone tradicional da Bendita Virgem, na tradição Oriental, é precisamente um ícone da Encarnação: a Virgem está sempre com o Menino. E, certamente, nenhum ícone, isso é, nenhuma imagem da Encarnação, será jamais possível sem a Virgem Mãe.

Mais uma vez, a Anunciação é “o começo de nossa salvação e a revelação do mistério que existe desde a eternidade: o Filho de Deus se tornou Filho da Virgem, e Gabriel proclamou as boas novas da graça[24]”. A vontade divina foi proclamada e declarada pelo arcanjo. Mas a Virgem não permaneceu em silêncio. Ela respondeu ao chamado divino, respondeu com humildade e fé. “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a Sua vontade”. A vontade divina foi aceita e recebeu sua resposta. A obediência de Maria contrabalança a desobediência de Eva. Nesse sentido, a Virgem Maria é a Segunda Eva, assim como seu Filho é o Segundo Adão. Esse paralelo foi estabelecido desde muito cedo. O mais antigo testemunho foi dado por São Justino[25], e em Santo Irineu encontramos uma concepção elaborada, organicamente conectada com a ideia básica da recapitulação. “Assim como Eva foi seduzida pela fala de um anjo, também Maria recebeu as boas novas por meio da fala de um anjo, para que carregasse a Deus em seu seio, sendo obediente a essas palavras. E, embora a primeira tenha desobedecido a Deus, a outra foi atraída no sentido de obedecer a Deus; assim, a Virgem Maria se tornou a advogada de Eva. E assim como a raça humana foi levada à morte por uma virgem, por uma virgem foi salva, e assim o equilíbrio foi preservado, entre a desobediência de uma virgem e a obediência de outra[26]”. E ainda: “Assim o nó que constituiu a desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e o que foi amarrado pela incredulidade de Eva, soltou-se pela fé de Maria[27]”. Essa concepção era tradicional, especialmente no ensinamento catequético, tanto no Leste como o Oeste. “Trata-se de um grande sacramento (magnum sacramentum) que, por causa de uma mulher, a morte tenha se tornado nosso fado, e que a vida tenha nascido de uma mulher”, diz Santo Agostinho[28]. “A morte veio por Eva, a vida por Maria”, declara São Jerônimo[29]. Permitam-me citar ainda uma passagem admirável e concisa de um dos sermões do Metropolita Filarete de Moscou (1782-1867), no dia da Anunciação: “Durante os dias da criação do mundo, quando Deus proclamou suas palavras vivas e poderosas: “Faça-se...”, Suas palavras trouxeram as criaturas à existência. Mas no dia, único na existência do mundo, em que a Santíssima Maria expressou seu humilde e obediente “faça-se”, eu não ouso expressar o que se passou então – a palavra da criatura causou a descida do Criador ao mundo. Também Deus proclamou sua palavra então: “Você irã conceber em seu seio e gestar um filho (...) Ele será grande (...) Ele reinará sobre a casa de Jacó para sempre[30]”. E mais uma vez acontece aquilo que é divino e incompreensível – a própria palavra de Deus posterga sua ação, permitindo-se ser recusada pela palavra de Maria: “Como pode ser isso?”. Seu humilde “faça-se” era necessário para a realização do poderoso “Faça-se” de Deus. Que secreto poder está contido nessas simples palavras: “Eis aqui a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a Sua vontade” – para produzir um efeito tão extraordinário? Esse poder maravilhoso é a pura e perfeita autodedicação de Maria a Deus, a dedicação de sua vontade, de seu pensamento, de sua alma, de todo o seu ser, de todas as suas faculdades, de todas as suas ações, de todas as suas esperanças e expectativas[31]”. A Encarnação foi de fato um ato soberano de Deus, mas foi uma revelação não só de seu poder onipotente, como, acima de tudo, de seu amor e compaixão paternais. Ali estava implicado mais uma vez um chamado à liberdade humana, assim como um apelo à liberdade esteve implicado no próprio ato da criação, especificamente na criação dos seres racionais. Naturalmente, a iniciativa era divina. Porém, como os meios de salvação escolhidos por Deus consistiam numa verdadeira assumpção da verdadeira natureza humana pela Pessoa divina, era preciso que o homem tivesse uma participação ativa no mistério. Maria estava vocalizando a resposta obediente do homem ao decreto redentor do amor divino, e dessa maneira ela se tornou representativa de toda a raça humana. É como se ela exemplificasse em sua pessoa toda a humanidade. Sua aceitação obediente e alegre do propósito redentor de Deus, tão belamente expresso no Magnificat, foi um ato de liberdade. De fato, foi uma liberdade de obediência, não de iniciativa – mas ainda assim uma verdadeira liberdade, uma liberdade de amor e adoração, de humildade e crença – e uma liberdade de cooperação[32]. É isso que significa a liberdade humana. A graça de Deus jamais pode ser acrescentada, como que mecanicamente. Ela precisa ser recebida em livre obediência e submissão.

Maria foi escolhida e eleita para ser a Mãe do Senhor Encarnado. Devemos assumir que ela foi moldada para esse ofício temível, que ela foi preparada para esse chamado excepcional – e preparada por Deus. Podemos definir com propriedade a natureza e o caráter dessa preparação? Estamos aqui diante de uma antinomia crucial (de que já falamos acima). A Virgem Abençoada era representativa da raça, isso é, da raça humana decaída, do “velho Adão”. Ela foi colocada à parte pelo plano eterno de Deus, mas essa “separação” não tinha como objetivo destruir sua solidariedade essencial para com o resto da humanidade. Será possível resolvermos esse mistério antinômico por meio de algum esquema lógico? O dogma Católico Romano da Imaculada Concepção da Virgem Maria constitui uma nobre tentativa de sugerir uma solução. Mas essa solução só é válida no contexto de uma doutrina específica e altamente irregular a respeito do pecado original, e não funciona fora desse quadro particular. Estritamente falando, esse “dogma” consiste numa complicação desnecessária, e sua terminologia infeliz só obscurece a indiscutível verdade da crença Católica. Os privilégios da divina Maternidade não dependem de uma “libertação do pecado original”. A plenitude da graça foi verdadeiramente concedida à Virgem Maria, e sua pureza pessoal foi preservada pela assistência perpétua do Espírito. Mas isso não implicou a abolição do pecado. O pecado só foi destruído no lenho da Cruz, e nenhuma isenção era possível, simplesmente pelo fato de que ele constituía a condição geral e comum a toda a existência humana. Ele não foi destruído nem mesmo aquando da Encarnação, embora a Encarnação tenha sido a inauguração da Nova Criação. A Encarnação não foi outra coisa que a base e o ponto de partida da obra redentora do Senhor. E o próprio “Segundo Homem” entrou em Sua plena glória pela porta da morte. A Redenção constituiu um ato complexo, e é preciso distinguir cuidadosamente seus diversos momentos, embora eles fossem supremamente integrados no único e eterno plano de Deus. Estando integrados no plano eterno, esses momentos se refletem em cada representação temporal, e sua consumação final está prefigurada e antecipada desde os primeiros estágios. Existiu de fato um progresso real na história da Redenção. Maria recebeu a graça da Encarnação, enquanto Mãe do Encarnado, mas essa não foi ainda a graça total, uma vez que a Redenção ainda não havia se realizado. Ainda assim, sua pureza pessoal era possível mesmo num mundo não redimido, ou melhor – num mundo que estava em processo de Redenção. A verdadeira questão teológica é a da eleição divina. A Mãe e o Menino estão inseparavelmente ligados no decreto único da Encarnação. Enquanto evento, a Encarnação constitui o ponto de mutação da história – e esse ponto de mutação é inevitavelmente antinômico: ele pertence ao mesmo tempo ao Velho e ao Novo. O resto é silêncio. Devemos permanecer em tremor e temor no limiar do mistério.

A experiência íntima da Mãe do Senhor está oculta a nós. Ninguém jamais esteve apto a partilhar dessa experiência única, pela própria natureza do caso. Trata-se do mistério da pessoa. Isso explica a reticência dogmática da Igreja em relação à doutrina Mariológica. A Igreja fala dela mais numa linguagem de poesia devocional, numa linguagem de metáforas e imagens antinômicas. Não existe necessidade, nem motivo, para assumir que a Virgem Abençoada tenha realizado desde o início toda a plenitude e todas as implicações desse privilégio único concedido a ela pela graça de Deus. Não existe necessidade, nem motivo, para interpretar a “plenitude” da graça num sentido literal, incluindo aí todas as perfeições possíveis e toda a variedade dos dons espirituais particulares. A plenitude era para ela, ela estava cheia de graça. E, inclusive, tratava-se de uma plenitude “especializada”, a graça da Mãe de Deus, da Virgem Mãe, da “Noiva sem noivo”, Numjh anumjeuth. De fato, ela tinha seu próprio caminho espiritual, seu próprio crescimento na graça. O significado completo do mistério da salvação foi apreendido por ela gradativamente. E ela teve sua própria parte no sacrifício da Cruz: “Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma[33]”. Somente na Ressurreição a luz brilhou com toda sua intensidade. Até esse momento, o próprio Jesus ainda não havia sido glorificado. É depois da Ascensão que encontramos a Virgem Abençoada entre os Doze, no centro da Igreja crescente. Um ponto está fora de dúvida. A Virgem Abençoada ficou para sempre marcada, se podemos nos exprimir assim, pela saudação angélica, pela anunciação e pelo surpreendente mistério do nascimento virginal. Como poderia ela não ter sido marcada? Mais uma vez, o mistério de sua experiência se oculta a nós. Mas podemos nos esquivar a essa piedosa suposição sem trair o próprio mistério? “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração[34]”. Sua vida interior estava concentrada nesse evento crucial de sua história. Pois, de fato, o mistério da Encarnação foi para ela também o mistério de sua própria existência. Sua situação existencial era única e peculiar. Ela tinha que se adequar à dignidade sem precedentes dessa situação. Talvez seja aí que reside a essência de sua dignidade particular, que é descrita como “Sempre Virgem”. Ela é a Virgem. Ora, a virgindade não consiste simplesmente numa condição corpórea ou numa configuração física em si. Acima de tudo está uma atitude espiritual e interior, e, fora dessa, a condição corporal seria totalmente desprovida de sentido. O título de Sempre Virgem significa certamente mais do que uma afirmação “fisiológica”. Ele não se refere apenas ao nascimento virginal. Ele não implica apenas uma exclusão de qualquer intercurso marital posterior (que, aliás, seria por completo inconcebível se de fato crermos no nascimento virginal e na Divindade de Jesus). Em primeiro lugar, ele exclui todo e qualquer envolvimento “erótico”, todo e qualquer desejo ou paixão egoísta e sensual, toda e qualquer dissipação do coração e da mente. A integridade corporal, ou a incorrupção, não passam de um sinal exterior de uma pureza interior. O ponto em questão é precisamente a pureza de seu coração, essa condição indispensável para “ver a Deus”. Trata-se da libertação em relação às paixões, da verdadeira apaqeia, que sempre foi descrita como a essência da vida espiritual. A liberdade em relação às paixões e desejos constitui a epiqumia, a impermeabilidade aos maus pensamentos, conforme São João Damasceno coloca. Sua alma era governada apenas por Deus (Qeogubernhton), ela estava supremamente ligada a Ele. Todo seu desejo estava voltado para dignas de desejo e afeição – São João diz tetammenh, atraída, inclinada. Ela não tinha paixões, qumon. Ela preservou para sempre a virgindade ne mente, na alma e no corpo[35]. Tratava-se de uma orientação imperturbável de toda sua vida pessoal para Deus, uma autodedicação completa. Ser verdadeiramente a “serva do Senhor” significa exatamente ser sempre-virgem, e não possuir nenhuma preocupação carnal. A virgindade espiritual é imaculada, sem pecado, mas ainda não consiste na “perfeição”, e não liberta das tentações. Mesmo o Senhor esteve, nesse sentido, sujeito às tentações, e foi realmente tentado por Satanás no deserto. Talvez nossa Senhora tenha também tido suas tentações, mas ela as superou com sua firma confiança no chamado de Deus. Mesmo o amor materno comum culmina numa identificação espiritual com a criança, que tantas vezes implica o sacrifício e a autonegação. Nada menos do que isso deve ser entendido no caso de Maria: seu Filho seria grande e iria ser chamado de Filho do Altíssimo[36]. Obviamente, Ele era “o que estava por vir”, o Messias[37]. Isso é especificamente professado por Maria no Magnificat, um hino de louvor e ação de graças. Maria não poderia ter deixado de se dar conta disso, ainda que fracamente, por algum tempo, e gradualmente, na medida em que ela ponderava todas as gloriosas promessas em seu coração. Esse era o único caminho concebível para ela. Ela teve que ser absorvida por esse pensamento único, numa confiança obediente ao Senhor “que viu a baixeza de Sua serva” e “fez grandes coisas [por ela]”. É exatamente assim que São Paulo descreve o estado e o privilégio da virgindade: “a mulher solteira e a virgem meditam nas coisas do Senhor, a fim de serem santas de corpo e espírito[38]”. O clímax dessa aspiração virginal constitui a santidade da Virgem Mãe puríssima e imaculada.

O Cardeal Newman, em seu admirável “Carta ao Ver. E. B. Pusey, D. D., por ocasião de seu Eirenicon[39]” (1865), diz com acerto: “A Teologia se ocupa de assuntos sobrenaturais, e está sempre caminhando entre mistérios que a razão não é capaz de explicar nem resolver. Suas linhas de pensamento chegam a um fim abrupto, e tentar prosseguir com elas equivale a mergulhar no abismo. Santo Agostinho nos alerta a esse respeito, dizendo que se tentarmos unir as pontas de duas linhas que se estendem ao infinito, só entraremos em contradição conosco mesmos”. É de geral acordo que as considerações definitivas que determinam uma verdadeira avaliação de quaisquer pontos específicos da tradição Cristã, são doutrinais. Nenhum argumento puramente histórico, seja da antiguidade, seja esquecido, poderá ser decisivo. São sempre objeto de escrutínios teológicos ulteriores e de revisão segundo a perspectiva da fé Cristã tomada em sua totalidade. A questão definitiva é simplesmente essa: somos realmente capazes de conservar a fé na Bíblia e na Igreja, aceitamos e recitamos o Credo Católico exatamente no sentido em que ele foi desenhado e no qual se supõe seja entendido, realmente acreditamos na verdade da Encarnação? Permitam-me citar Newman mais uma vez: “Eu já disse antes, quando trabalhamos essa ideia, que Maria gerou, amamentou e carregou nos braços o Eterno em forma de um menino, e assim, qual é o limite concebível para o dilúvio de pensamentos que essa doutrina envolve? Quanto espanto e surpresa devemos esperar desse conhecimento, do fato de que uma criatura tenha chegado tão perto da Essência Divina?[40]”. Felizmente, o teólogo Católico não está abandonado à lógica e à erudição. Ele é conduzido pela fé: credo ut intelligam. A fé ilumina a razão. E a erudição, a memória do passado, é impulsionada pela experiência contínua da Igreja. O teólogo Católico é guiado pelo ensinamento sob a autoridade da Igreja, por sua tradição viva. Mas, acima de tudo, ele próprio vive na Igreja, que é o Corpo de Cristo. O mistério da Encarnação, podemos dizer, continua a ser representado na Igreja, e suas “implicações” são reveladas e abertas à experiência devocional e à participação sacramental. Na Comunhão dos Santos, que é verdadeiramente a Igreja Católica e Universal, o mistério da Nova Humanidade é revelado como uma nova situação existencial. E nessa perspectiva e nesse contexto vivo do Corpo Místico de Cristo a pessoa da Abençoada Virgem e Mãe aparece em sua plena luz e glória. A Igreja a contempla agora num estado de perfeição. Ela agora é vista inseparavelmente unida ao seu Filho, que “está sentado à direita do Pai”. Para ela, a consumação da vida já chegou, como uma antecipação. “Foste além da Vida, tu que és a Mãe da Vida”, reconhece a Igreja, “nenhum sepulcro ou morte teve poder sobre a Mãe de Deus (...) pois a Mãe da Vida veio à Vida por Aquele que habitou em seu seio eternamente virgem[41]”. Mais uma vez, não se trata tanto de uma recompensa celestial por sua pureza e virtude, mas de uma “implicação” por seu ofício sublime, por ser a Mãe de Deus, Theotokos. A Igreja Triunfante é, acima de tudo, a Igreja de adoração, e sua existência constitui uma participação no ofício de intercessão de Cristo e no Seu amor redentor. A incorporação a Cristo, que constitui a essência da Igreja e de toda a existência Cristã, é, antes de qualquer coisa, uma incorporação ao seu amor sacrificial pela humanidade. E existe aqui um lugar especial para aquela que está unida ao Redentor pela íntima e única afeição e devoção maternal. A Mãe de Deus é verdadeiramente a mãe comum a todos os vivos, a toda a raça Cristã, nascida ou renascida no Espírito e verdade. Uma identidade afetiva com a criança, consuma-se aqui em sua perfeição última. A Igreja não dogmatiza muito respeito desses mistérios de sua própria existência. Pois o mistério de Maria é precisamente o mistério da Igreja. Mater Ecclesia e Virgo Mater, ambas deram nascimento à Nova Vida. E ambas são orantes. A Igreja convida o fiel e o ajuda a crescer espiritualmente nesses mistérios da fé que são também os mistérios de sua própria existência e de seu destino espiritual. Na Igreja o fiel aprende a contemplar e a adorar o Cristo vivo, junto com toda a assembleia e a Igreja do Primogênito, que está inscrita no céu[42]. E nessa assembleia gloriosa ele distingue a eminente pessoa da Virgem Mãe do Senhor e Redentor, cheia de graça e amor, de caridade e compaixão – “Mais venerável que os Querubins, e mais gloriosa que os Serafins, que ilibadamente deste à luz o Verbo de Deus”. À luz dessa contemplação e no espírito de fé, o teólogo deve realizar seu ofício de interpretar aos fiéis e aos que buscam a verdade, o mistério insuperável da Encarnação. Esse mistério continua a ser simbolizado, como o era no tempo dos Padres, por um nome simples e glorioso: Maria, Theotokos, a Mãe do Deus Encarnado.



[1] Epístola 101.
[2] Por Orígenes, por exemplo, cf. Sócrates, Hist. Eccl., VII, 32, e nos textos preservados em séries, como In Lucam Hom. 6-7, ed. Rauer, 44. 10 e 50. 9.
[3]  (inglês) Unscriptural word.
[4] (inglês) Shibbollet.
[5] De Fide Orth., III, 12.
[6] De Incarnatione, liv. V, cap. 15.
[7] Ou gar anqrwpon yilon ... ala Qeon alhqinon.
[8] Ou gumnon, ala sesapkwmenon.
[9] De Fide Orth. III, 12.
[10] Docetismo (do grego δοκέω, "para parecer") é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente.
[11] “...e habitou entre nós” (João 1: 14).
[12] Gálatas 4: 4.
[13] De Fide Orth. III, 12.
[14] Lucas 1: 30.
[15] I Coríntios 15: 47.
[16] João 1: 13. Esse versículo se refere tanto à Encarnação quanto à regeneração batismal.
[17] Lucas 1: 35.
[18] Adv. Haeres, III, 18, 1: longam hominum expositionem in se ipso recapitulavit.
[19] III, 22, 3.
[20] IV, 23, 4.
[21] V, 1, 3.
[22] III, 22, 4.
[23] Tropário da Festa da Natividade de nossa Senhora.
[24] Tropário da Festa da Anunciação.
[25] Diálogos, 100.
[26] V, 19, 1.
[27] III, 22, 34.
[28] De Agone Christ., 24.
[29] Epist. 22.
[30] Lucas 1: 30-33.
[31] Coletânea de Sermões e Discursos do Metropolita Filarete de Moscou, pg. 187, Paris, 1866.
[32] Cf. Santo Irineu, Adv. Haeres., III, 21, 8: “Maria cooperou com a economia”.
[33] Lucas 2: 35.
[34] Lucas 2: 19.
[35] Kai nw, kai yuch, kai swmati aeiparweneuousan (Homil. 1, in Nativitatem B.V. Mariae 9 e 5, Migne, Ser. Ger. XCVI 676A e 668C.
[36] Lucas 1: 32.
[37] Lucas 7: 19.
[38] I Coríntios 7: 34.
[39] Difficulties felt by Anglicans in Catholic Teaching, 5th ed., page 430.
[40] Op. cit., pg 431.
[41] Tropário e Kondakion para a festa da Assunção da Virgem Maria, koimhsis.
[42] CF. Hebreus 12: 23.