quinta-feira, 2 de novembro de 2017

João Damasceno - A Fé Ortodoxa - Livro IV



74 (IV, 1)
Os eventos posteriores à Ressurreição

Depois da ressurreição de entre os mortos, Cristo se despojou de todas as paixões, vale dizer a corrupção, a fome, a sede, o sono, a fadiga e todo o resto. Mesmo que ele tenha tomado alimento depois da ressurreição[1], não o fez por uma lei da natureza (pois ele não tinha fome) mas por um modo de economia, para creditar a verdade da ressurreição, o fato de que era a mesma carne que havia sofrido e a que ressuscitara. Ele não se despojou de nenhuma das partes de nossa natureza, nem do corpo nem da alma, ele possuiu tanto o corpo como a alma racional e intelectiva, dotada de vontade e de operação; é assim que ele subiu aos céus e assim ele se sentou à direita do Pai[2], desejando e operando divina e humanamente a nossa salvação, divinamente pela Providência, a conservação e o governo universais, humanamente lembrando-se dos dias passados sobre a terra, vendo e sabendo que toda criatura racional o adora. Pois sua alma santa sabe, por estar unida segundo a hipóstase ao Deus Verbo, e por ser adorada conjuntamente com ele como alma de Deus e não como alma ordinária. Enfim, subir da terra aos céus e descer novamente são ainda operações de um corpo circunscrito. “Pois ele voltará para vocês da mesma maneira como vocês o viram subir aos céus[3]”.


75 (IV, 2)
O assento à direita do Pai

Nós dizemos que Cristo está sentado à direita de Deus Pai de modo corporal, mas não pretendemos localizar a direita do Pai. Como poderia ter uma direita localizável aquele que não é circunscrito? Pois direita e esquerda são características dos seres circunscritos. Como ‘direita do Pai’ queremos nos referir à glória e à honra da divindade, na qual o Filho de Deus existia antes dos séculos, enquanto Deus consubstancial ao Pai. Depois de haver tomado a carne nos últimos tempos, ele assentou-se também corporalmente, porque sua carne foi conjuntamente glorificada. Com efeito, ele é adorado com sua carne, numa adoração simples, por toda a criação.


76 (IV, 3)
Contra os que dizem: “Se Cristo tem duas naturezas, ou bem vocês prestam culto à criatura, adorando uma natureza criada, ou bem vocês dizem que existe uma natureza que pede adoração e outra que não”.

Nós adoramos o Filho de Deus ao mesmo tempo que o Pai e o Espírito Santo, em estado incorpóreo antes da encarnação e depois de encarnado, o mesmo, e tornado homem ao mesmo tempo em que é Deus. Por conseguinte sua carne, tomada em sua própria natureza, se separarmos por meio de considerações sutis o visível do inteligível, não demanda nenhuma adoração, pois ela é criada; mas, unida ao Deus Verbo, nós a adoramos por causa dele e nele. O mesmo acontece com um imperador, que é adorado nu ou vestido, e com a púrpura[4], que pisoteamos e jogamos fora enquanto simples púrpura, mas que honramos e glorificamos quando se torna a veste imperial; e se alguém vier a tratá-la indignamente, quase sempre será condenado à morte. Da mesma forma, a madeira ordinária não é inacessível ao toque, mas uma vez aproximada do fogo e feita em brasas, torna-se intocável, não por si mesma, mas por causa do fogo unido a ela; não é a natureza da madeira que se tornou intocável, mas a brasa, ou seja, a madeira inflamada. Da mesma forma a carne, segundo sua própria natureza, não é objeto de adoração, mas nós a adoramos no Deus Verbo encarnado, não por si mesma, mas por causa do Deus Verbo que se uniu a ela segundo a hipóstase; e nós afirmamos que não adoramos uma simples carne, mas a carne de Deus, ou seja, o Deus encarnado.


77 (IV, 4)
Por que o Filho se fez homem, e não o Pai, nem o Espírito?
O que ele restaurou com sua encarnação?

O Pai é o Pai e não é o Filho, o Filho é Filho e não é o Pai, o Espírito Santo é Espírito e não é nem o Pai nem o Filho; pois a propriedade é inamovível. Como poderia ser uma propriedade, se pudesse ser movida e transformada em outra? Eis porque o Filho de Deus se tornou filho do homem: era preciso resguardar a propriedade inamovível; e efetivamente, ele que era Filho de Deus tornou-se filho do homem tomando a carne da santa virgem sem se demitir de sua propriedade característica.

O Filho de Deus entrou na condição humana a fim de levar ao home por meio de sua graça aquilo pelo que ele havia sido criado: ele o havia feito à sua imagem intelectiva e dotado de livre arbítrio, e à sua semelhança[5], ou seja, na perfeição das virtudes, tanto quanto lhe permitia a natureza humana. Pois as virtudes existem na medida em que são marcas da natureza divina: serenidade, tranquilidade e pureza, bondade, sabedoria, justiça, independência em relação a todos os vícios. Assim, de uma parte ele estabelecera o homem em comunhão consigo (“ele o criou na incorruptibilidade[6]”), e, de outra parte, graças a essa comunhão consigo, ele o elevou ao estado de incorruptibilidade. Mas porque, devido à transgressão de seu mandamento, nós obscurecemos e perturbamos as marcas da imagem divina, e porque, caídos no vício, nos despojamos da comunhão com Deus (“Que parte pode ter a luz com as trevas?[7]”), porque, saídos da vida, sucumbimos à corrupção da morte, porque ele nos havia feito participar do melhor, o qual não guardamos, então ele tomou sua parte do pior, ou seja, de nossa natureza. Para renovar por si mesmo e em si mesmo o que era à imagem e semelhança, nos ensinar um modo virtuoso de vida e para nos tornar fácil o acesso a este, nos libertar da corrupção pela comunhão com a vida, e para se tornar as primícias da nossa ressurreição[8], renovar o vaso inutilizável e quebrado, para nos libertar da tirania do diabo por meio de uma chamado ao conhecimento de Deus, nos fortalecer e nos educar enfim, pela paciência e a humildade em vista da luta contra o tirano.

Da mesma forma o culto aos demônios teve fim, a criação foi santificada pelo sangue de Deus, os altares e os templos dos ídolos foram suprimidos, foi plantado o conhecimento de Deus, e a Trindade consubstancial, a divindade incriada foi adorada, um Deus único e verdadeiro, criador e senhor do universo. As virtudes são cultivadas, e a esperança da ressurreição, graças à ressurreição de Cristo, nos foi dada; os demônios tremem diante dos homens que antes estavam submissos a eles, e a maravilha é que tudo isso foi realizado graças à cruz, aos sofrimentos e à morte de Cristo. Sobre toda a terra o Evangelho do conhecimento de Deus foi anunciado, derrotando os inimigos não pela guerra, as armas e os exércitos, mas por uns poucos pobres iletrados, perseguidos, maltratados, condenados à morte, que, com o anúncio de um crucificado em sua carne e condenado à morte, o colocaram acima dos sábios e poderosos. Pois o poder onipotente do crucificado os acompanhava. A morte, antes mais temida do que tudo, fora vencida; ela, que antes era odiada e detestada, se tornou preferível à vida. Tais são as façanhas devidas à vinda de Cristo, tais são os signos de seu poder. Com efeito, não foi apenas um povo que ele salvou, como fez Moisés, do Egito e da escravidão do faraó, dividindo as águas do mar[9], mas a humanidade inteira, que ele subtraiu à corrupção da morte e à amarga tirania do pecado; não que ele obrigasse os pecadores à virtude, os enterrasse debaixo da terra[10], os consumisse pelo fogo[11], prescrevesse sua lapidação[12]: mas com doçura e paciência ele persuadiu os homens a escolher a virtude e a caminhar nela, nela encontrando sua alegria nos combates por ela. Outrora, quando se pecava, eram estabelecidas penas e mesmo assim permanecia-se ligado ao pecado, até considerá-lo como um deus. Mas no presente, é pela piedade e a virtude que escolhemos as penas, as torturas e a morte.

Obrigado, ó Cristo, Verbo, Sabedoria e Poder de Deus, Deus onipotente! Que poderemos lhe dar em troca de tudo isso, nós que somos tão pobres? Pois tudo lhe pertence e você só nos pede que nos deixamos salvar, e é você que nos concedeu esse dom; na sua indizível bondade, você o concede aos que o tomam. Graças a você, que nos deu a existência e que nos gratificou com a existência feliz; pois quando estávamos decaídos, você nos resgatou em sua indizível condescendência.


78 (IV, 5)
Àqueles que perguntam se a hipóstase de Cristo é criada ou incriada

A hipóstase de Deus o Verbo, antes da Encarnação, era simples, sem composição, incorpórea e incriada. Depois da Encarnação, ela se tornou hipóstase também para a carne e hipóstase composta da divindade, que ela sempre possuíra, e da carne, que ela acrescentou a si própria. Ela trazia as propriedades das duas naturezas, fazendo-se conhecer nessas duas naturezas, de tal maneira que a mesma e única hipóstase é incriada por sua divindade e criada por sua humanidade, visível e invisível. Senão, seremos obrigados a dividir o Cristo único falando de duas hipóstases, ou negar a diferença das naturezas e introduzir aí uma mudança e uma confusão.


79 (IV, 6)
A partir de quando podemos falar em Cristo?

Não, apesar da afirmação mentirosa de alguns, o intelecto não esteve unido ao Deus Verbo antes da encarnação de uma virgem, e não se pode, nesse tempo, falar de Cristo. Isso faz parte das absurdas alegações de Orígenes quando ele professava a preexistência das almas. Para nós, o Filho e Verbo de Deus se tornou Cristo e podemos falar dele como tal, nós o afirmamos, a partir do momento em que ele fez sua morada no seio da sempre e santa virgem, onde ele se tornou carne sem mudança e onde a carne foi ungida pela divindade. “Tal foi a unção da humanidade[13]”, como disse Gregório o Teólogo. E o mui santo Cirilo de Alexandria escreveu o seguinte ao imperador Teodósio: “Em minha opinião, nem o Verbo saído de Deus à parte de sua humanidade, nem o templo gerado por uma mulher fora de sua união com o Verbo, devem ser chamados de Cristo Jesus. É o Verbo saído de Deus unido a uma humanidade segundo uma união de economia que devemos entender como Cristo[14]”. E dirigindo-se às rainhas, ele diz o seguinte: “De acordo com alguns, o nome de Cristo convém ao Verbo gerado de Deus Pai, concebido e existente por si à parte. Mas não é isso que nós aprendemos a pensar e dizer. Quando o Verbo se tornou carne, somente então, diremos nós, ele tomou o nome de Cristo Jesus. Com efeito, uma vez que ele foi ungido com o azeite da felicidade[15], também chamado de Espírito Santo, por Deus Pai, ele recebeu o nome de Cristo. Que a unção diz respeito à humanidade, ninguém poderá contestar, por pouco que costume pensar corretamente[16]”. E Atanásio, digno de todos os elogios, disse em seu tratado sobre a manifestação salutar: “Deus, preexistente antes da vinda à carne, não era homem; ele era Deus tornado Deus, invisível e impassível. Tampouco o nome de Cristo, por conseguinte, se aplica sem a carne, porque o sofrimento e a morte acompanham esse nome[17]”.

Agora, quando a santa Escritura diz: “Porque Deus, o teu Deus, te ungiu[18]”, é preciso saber que muitas vezes a santa Escritura emprega o passado no lugar do futuro. Como na frase: “Depois disso ele foi visto sobre a terra e viveu em meio aos homens[19]”, Deus ainda não havia sido visto sobre a terra, nem havia vivido entre os homens quando isso foi dito. E a frase: “Junto aos rios da Babilônia nos sentamos e choramos[20]”, isso ainda não havia acontecido.


80 (IV, 7)
Aos que perguntam se a santa mãe de Deus gerou duas naturezas
e se essas duas naturezas foram suspensas à cruz.

Quando escritos com um só nu, os termos agenêton e genêton referem-se à natureza e significam ‘incriado’ e ‘criado’. Agennêton e gennêton, por sua vez, ‘não ser gerado’ e ‘ser gerado’, referem-se não à natureza, mas à hipóstase: isso é expresso pelos dois nu. Assim sendo, a natureza divina é agenêtos, ou seja, incriada, mas tudo o que vem depois dela é genêtos, ou seja, criado. Assim é que contemplamos nessa natureza divina e incriada o agennêton no Pai, que não foi gerado, o gennêton no Filho, que foi eternamente gerado pelo Pai, e o procedente no Espírito Santo. De cada espécie animal, os primeiros são agennêta, mas não agenêta: eles receberam seu devir por causa do Criador, mas não foram gerados pelos seus semelhantes. O devir é algo criado, enquanto que a geração, no caso de Deus, é uma processão do Filho consubstancial a partir somente do Pai; no caso das criaturas, a geração é a processão de uma hipóstase consubstancial a partir da conjunção entre macho e fêmea. A partir daí, podemos reconhecer que o ser gerado provém não de uma natureza, mas de uma hipóstase. Se ele for proveniente de uma natureza, não será possível perceber na mesma natureza o gerado e o não gerado. Por conseguinte, a santa mãe de Deus gerou uma hipóstase que se deu a conhecer nas duas naturezas, sendo a da divindade gerada pelo Pai fora do tempo, encarnada e parida por essa mãe na carne ao final dos tempos.

Se nossos inquiridores insinuarem que aquele que foi gerado pela santa mãe de Deus possui duas naturezas, nós diremos sim, ele possui, “pois o mesmo é Deus e homem”. Do mesmo modo, quanto à crucificação, à ressurreição e à ascensão, estas não provêm da natureza, mas da hipóstase. Aquele que sofreu foi, portanto Cristo, que existe em duas naturezas; e ele foi crucificado em sua natureza passiva: ele foi suspenso à cruz pela carne, não pela divindade. Eles que respondam às nossas questões! As duas naturezas foram mortas? Não, dirão eles. Mas nem por isso as duas naturezas deixaram de ser crucificadas; foi o Cristo gerado, também chamado de Deus Verbo encarnado; ele foi gerado pela carne, for crucificado pela carne, ele sofreu pela carne, enquanto que a divindade permaneceu impassível.


81 (IV, 8)
Como pôde o Filho unigênito de Deus ser chamado de primogênito?

O primogênito é aquele que foi gerado primeiro, seja ele unigênito ou precedendo a outros irmãos. Assim, se chamamos de primogênito ao Filho de Deus sem chamá-lo também de unigênito, poderemos nos perguntar se não seria ele o primogênito das criaturas, sendo ele próprio criatura. Mas como o chamamos de primogênito e de unigênito, é preciso salvaguardar nele tanto uma como o outra condição. Nós afirmamos, por um lado, que ele é o primogênito de toda a criação[21], porque também ele nasceu do Pai, de quem a criação igualmente nasceu. Mas sendo ele o único gerado da essência de Deus Pai fora do tempo, será legitimamente chamado de unigênito e primogênito, e não de primeiro a ser criado; a criação, de fato, foi trazido do nada à existência, não a partir da essência do Pai, mas em virtude de sua vontade. Por outro lado, ele é chamado de primogênito de uma multitude de irmãos[22]; e ele de fato o é, embora seja unigênito também por parte de sua mãe, porque participou[23] como nós da carne e do sangue, e se tornou homem. E de nossa parte, por causa dele nos tornamos filhos de Deus por adoção do batismo. O Filho de Deus em pessoa se tornou primogênito dentre nós, que nos tornamos filhos de Deus por adoção e pela graça, e recebemos o nome de irmãos em relação a ele. Por isso foi dito: “Eu subo para o meu Pai e vosso Pai[24]”. Ele não disse ‘nosso Pai’, mas ‘meu Pai’ – entenda-se, por natureza – e ‘vosso Pai’ pela graça, ou seja, ‘meu Deus’ e ‘vosso Deus’. Ele não disse ‘nosso Deus’, mas ‘meu Deus’, se quisermos distinguir o visível do inteligível por meio de considerações sutis, e ‘vosso Deus’ no sentido de criador e Senhor.

81b
Para aqueles que perguntam se as duas naturezas se referem à quantidade contínua ou à quantidade descontínua.

As naturezas do Senhor não são nem um corpo único, nem uma superfície, nem uma linha, nem um lugar, nem um tempo, para que sejam reduzidas à quantidade contínua. Pois essas são coisas que contamos de modo contínuo. As naturezas do Senhor são unidas sem confusão segundo a hipóstase, mas se distinguem sem separação segundo a relação e o modo de diferença. Sob o modo da união, elas não podem ser contadas: nós não dizemos que as naturezas de Cristo são duas hipóstases ou que são duas segundo a hipóstase. Mas sob o modo de sua distinção elas podem ser contadas: as naturezas de Cristo são duas segundo o modo e a relação de sua diferença. Unidas segundo a hipóstase, com efeito, e estando em pericorese uma no interior da outra, elas se encontram unidas sem confusão; elas não admitem nenhuma transformação de uma em outra, e cada qual salvaguarda sua diferença natural própria mesmo depois da união, permanecendo o criado, criado, e o incriado, incriado. Eis porque, enumerados segundo o modo da diferença, e apenas sob este modo, elas podem ser relacionadas à quantidade descontínua. Com efeito, é impossível enumerar coisas que não diferem em nada uma da outra; mas quando são diferentes, podemos enumerá-las, como por exemplo, Pedro e Paulo que, segundo aquilo que os une (unidos que estão pela razão de sua essência, não são assim duas naturezas, e não se pode falar deles como tais) não são enumeráveis, mas, sendo diferentes segundo a hipóstase, podemos falar deles como duas hipóstases. Assim, a diferença é a causa do número.


82 (IV, 9)
A fé e o batismo

Nós confessamos um só batismo para o perdão dos pecados e para a vida eterna; o batismo, com efeito, significa a morte do Senhor. Efetivamente, como o disse o divino apóstolo, somos sepultados com o Senhor pelo batismo[25]. Portanto, assim como a morte do Senhor aconteceu uma única vez, também só se pode ser batizado uma única vez; mas ser batizado, conforme a palavra do Senhor[26], em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, uma vez que somos ensinados a confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Dessa forma, todos os que foram batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que aprenderam a unicidade em três hipóstases da natureza divina e que reiteram o batismo, esses crucificam novamente a Cristo, como diz o divino apóstolo: “Pois é impossível para aqueles que foram iluminados uma vez (...) serem renovados uma segunda vez pelo arrependimento, pois por sua própria conta eles crucificam novamente a Cristo e o ultrajam publicamente[27]”.

Por outro lado, todos os que não foram batizados em nome da santa Trindade devem ser batizados de novo. Pois bem diz o Apóstolo que “em Cristo e em sua morte fomos batizados[28]”; mas ele não quer dizer com isso que tal deve ser a invocação batismal, mas que o batismo é uma figuração da morte de Cristo; com efeito, a tripla imersão batismal significa os três dias do Senhor no túmulo. Portanto, ser batizado em nome de Cristo significa que somos batizados quando cremos nele. Ora, é impossível crer em Cristo se não aprendemos a confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo[29]. Cristo é, com efeito, o Filho do Deus vivo, que o Pai ungiu com o Espírito Santo[30], segundo a palavra do divino Davi: “Porque Deus, o teu Deus, te ungiu com o azeite da alegria de preferência aos teus companheiros[31]”. E Isaías, assumindo o papel que Deus lhe confiou, disse: “O Espírito santo está sobre mim, eis porque ele me ungiu[32]”. De resto, o Senhor, ensinando a invocação aos seus discípulos, disse: “Vocês os batizarão em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo[33]”.

Pois Deus nos criou para a incorruptibilidade[34], mas como transgredimos seu mandamento salutar, ele nos condenou à corrupção e à morte, a fim de que o mal não fosse imortal. Cheio de condescendência, por causa de sua misericórdia para com seus servidores, tornando-se igual a nós, ele nos resgatou da corrupção por meio de sua própria paixão, e fez jorrar sobre nós de seu santo e puro flanco uma fonte de perdão: a água[35], para a regeneração e a ablução do pecado e da corrupção, e o sangue[36], bebida que concede a vida eterna; por nós ele editou suas instruções, para que nos regenerássemos pela água e pelo Espírito[37], esse Espírito que viria sobre a água graças à prece e à invocação. Pois sendo o homem duplo, feito de alma e corpo, ele nos deu uma purificação igualmente dupla, pela água e pelo Espírito. O Espírito, de um lado, renovaria em nós a conformidade com a imagem e a semelhança[38]; e a água, por sua vez, pela graça do Espírito, purificaria o corpo do pecado, desembaraçando-o da corrupção. E, se a água expressava uma imagem da morte, o Espírito[39] oferecia o penhor da vida.

Com efeito, desde o princípio “o Espírito de Deus planava sobre as águas[40]”. Ademais, a Escritura testemunha a respeito da água que ela é purificadora. Na época de Noé[41], Deus submergiu o pecado do mundo por meio da água. Pela água[42] todo ser impuro é purificado segundo a lei; também as vestes das pessoas impuras eram lavadas com água. Elias[43] mostrou a graça do Espírito misturada à água, fazendo com que o holocausto fosse consumido com água. Quase tudo é purificado pela água, segundo a lei; sendo as realidades visíveis símbolos das inteligíveis, daí provém a regeneração da alma. De fato, a lei é capaz de nos tornar pelo Espírito filhos adotivos de Deus, embora sejamos criaturas, e de nos conduzir à felicidade primitiva.

Assim sendo, o perdão dos pecados é concedido a todos igualmente por meio do batismo; a graça do Espírito, por sua vez, é concedida na proporção da fé e da prévia purificação. Presentemente, recebemos as primícias do Espírito Santo[44] por meio do batismo; e esse novo nascimento é para nós princípio da outra vida, selo, guarda e iluminação[45].

Precisamos, com todas as forças e sem esmorecer[46], nos mantermos puros dos atos que mancham, a fim de não retornar como o cão ao seu vômito[47], o que nos tornaria novamente escravos do pecado. “Pois a fé sem obras é morta[48]”, assim como as obras sem a fé; enquanto que a fé verdadeira é demonstrada pelas obras.

Somos assim batizados na santa Trindade porque as realidades do batismo exigem, precisamente, a santa Trindade para dela receber consistência e permanência, e porque é impossível que as três hipóstases não estejam presentes e juntas; pois a santa Trindade é indivisível.

O primeiro batismo foi o do dilúvio[49], para a supressão dos pecados. O segundo foi o batismo pelo mar e a nuvem: a nuvem era o símbolo do Espírito, e o mar, da água[50]. O terceiro, foi o da lei: todos os que estavam impuros se banharam na água, lavaram suas vestes e puderam assim entrar no acampamento[51]. O quarto foi o de João, que serviu de iniciação e que conduziu os batizados à conversão, para que cressem em Cristo. Pois, disse João, “eu os batizo com água; mas aquele que vem depois de mim, ele os batizará no Espírito Santo e no fogo[52]”. João assim opera uma purificação preliminar em vista do Espírito por meio da água. O quinto batismo é o do Senhor, aquele com o qual ele próprio foi batizado. Não que ele tivesse necessidade de purificação, mas para se apropriar de nossa própria purificação. Para destruir as cabeças das serpentes sobre a água[53], para lavar o pecado e enterrar totalmente na água o velho Adão, para santificar o Batismo[54], para cumprir a lei, para revelar o mistério da Trindade, para ser um modelo para nós e o exemplo para nosso batismo. Quanto a nós, é nesse batismo perfeito, do Senhor, que teve lugar na água e no Espírito, que somos batizados. É dito em outra parte, em relação a Cristo, que ele batiza pelo fogo; com efeito, ele derramou a graça do Espírito sobre os santos apóstolos sob a forma de línguas de fogo; foi o próprio Senhor que disse: “João batizou na água, mas quanto a vocês, será no Espírito e no fogo que vocês serão batizados em poucos dias[55]”. Ou isso pode se referir ao batismo de fogo que virá com o castigo. O sexto batismo é aquele, realmente doloroso, que acontece pelo arrependimento e pelas lágrimas. O sétimo é o batismo pelo sangue e o martírio, aquele que Cristo se fez batizar a si mesmo por nós; este é especialmente sagrado e bendito[56], ainda mais por não ser marcado por faltas posteriores. O oitavo e último batismo não é salvador, mas por um lado ele suprime o vício (pois a partir daí vício e pecado não são mais admitidos) e, por outro, ele castiga indefinidamente[57].

O Espírito Santo desceu sobre o Senhor sob uma forma corporal semelhante a uma pomba[58], mostrando as primícias de nosso batismo e honrando o corpo, porque também esse corpo era Deus por divinização; e talvez a pomba fosse costumeira, tendo ela anunciado do alto o fim do dilúvio[59]. Mas sobre os santos apóstolos ele desceu sob a forma de fogo[60], porque ele é Deus; ora, “Deus é um fogo devorador[61]”.

O azeite é empregado no batismo para significar a unção, para nos tornar ungidos e nos prometer a misericórdia de Deus transmitida pelo Espírito Santo; pois a pomba trouxe um ramos de oliveira àqueles que haviam escapado do dilúvio[62].

João, que pousara sua mão sobre a divina cabeça do mestre foi também batizado com seu próprio sangue[63].

Não se deve postergar o batismo quando a fé dos que o desejam é atestada pelas obras. Aquele que se apresenta para o batismo por meio de uma fraude receberá antes uma condenação do que um benefício.


83 (IV, 10)
Sobre a fé

Quanto à fé, ela é dupla: “Existe uma fé que provém da escuta[64]”. Quando escutamos as divinas Escrituras, cremos no ensinamento do Espírito. Essa fé se aperfeiçoa dando credibilidade, por sua ação, a todas as leis instituídas por Cristo, por meio de uma vida de piedade e na execução dos mandamentos daquele que nos renovou. Com efeito, aquele que não crê em conformidade com a tradição da Igreja católica, ou que se associa ao diabo em suas obras absurdas é um infiel.

“Existe também uma fé que e a substância das coisas que esperamos, a demonstração daquilo que não vemos[65]”, a esperança sem dúvida nem ambiguidade naquilo que nos foi anunciado e no atendimento de nossas demandas. A primeira depende de nossa decisão pessoal, a segunda, dos dons do Espírito.

Devemos saber que pelo batismo somos circuncisos[66] de tudo o que nos recobre desde o nascimento, ou seja, do pecado, e que ali recebemos a denominação de israelitas espirituais e de povo de Deus.


84 (IV, 11)
Sobre a cruz e ainda sobre a questão da fé.

“A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que se salvam, para nós, ela é o poder de Deus[67]”. “Pois o homem espiritual julga a respeito de tudo, mas o homem psíquico[68] não recebe o que provém do Espírito[69]”. Loucura sim, com efeito, para aquele que, em lugar de receber com fé e considerar a bondade e a onipotência de Deus, a transformam em objeto de raciocínios humanos e naturais e em inquirição sobre o divino. Pois tudo o que é de Deus ultrapassa a natureza, a razão e o pensamento. Com efeito, se alguém busca pelo raciocínio como e em vista de que Deus trouxe todas as coisas do nada à existência, pretendendo alcançar a resposta por meio de raciocínios naturais, nada compreenderá: pois esse é um conhecimento psíquico e demoníaco. Ao contrário, se alguém se deixa guiar pela fé e daí chega à bondade, à onipotência, à veracidade, à sabedoria e à justiça de Deus, essa pessoa encontrará tudo plano e aplainado e um caminho direito. Sem a fé, não é possível salvar-se[70]; pela fé, tudo ganha consistência, tanto humana como espiritual. Sem a fé, nem o camponês ara a terra, nem o mercador confia sua vida a um barquinho sobre as ondas do mar enfurecido, nem os casamentos são contratados, nem empresa alguma é realizada nessa existência. Pela fé, concebemos que o poder de Deus trouxe todas as coisas do nada à existência. Nós realizamos tudo, tanto no domínio do divino como no do humano, pela fé. A fé, de resto, constitui um assentimento sem uma pesquisa interminável.

 Assim é que toda ação, todo milagre de Cristo é grande, divino e admirável, mas mais admirável do que tudo é sua cruz preciosa. Pois por nenhuma outra razão foi a morte abolida, foi apagado o pecado do primeiro pai, foi o inferno esvaziado, a ressurreição concedida; o poder de desprezar os eventos atuais, inclusive a morte, a realização do retorno à felicidade original, a abertura das portas do paraíso, a instalação de nossa natureza à direita de Deus, a concessão da filiação e da herança de Deus[71], são coisas que nos vieram por nada de outro senão da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Sim, pela cruz, tudo foi realizado com sucesso. “Todos nós fomos batizados em Cristo, diz o Apóstolo, em sua morte fomos batizados[72]”. Ora, todos nós que fomos batizados em Cristo, nos revestimos de Cristo[73]. Ora, Cristo é poder e sabedoria de Deus[74]. Eis então que a morte de Cristo, vale dizer, a cruz, nos envolveu na sabedoria e no poder hipostasiados de Deus. A linguagem da cruz é poder de Deus, seja porque o poder de Deus – sua vitória sobre a morte – nos foi manifestado por ele, seja porque, assim como os quatro braços da cruz se apoiam e se ligam na parte central, também pelo poder de Deus a profundidade, a altura, o comprimento e a largura – ou seja, toda a criação visível e invisível – é mantida coesa.

Essa cruz nos foi dada como um sinal sobre a fronte em substituição à circuncisão de Israel; por meio desse sinal, nós os fiéis nos distinguimos dos infiéis e nos reconhecemos. Ela é um escudo, uma arma, um troféu contra o diabo. Ela é um selo que nos protege dos atentados do exterminador[75], segundo a palavra da Escritura. Ela é a ressurreição dos que jazem, o sustento daqueles que estão em pé, a muleta dos fracos, o bastão dos pastores[76], o guia daqueles que se convertem, a perfeição dos que progridem, a salvação da alma e do corpo, o talismã contra todos os males, o autor de todos os bens, a destruição do pecado, a planta da ressurreição, a árvore da vida eterna.

Essa é, portanto, a árvore preciosa em verdade e augusta sobre a Cristo se ofereceu por nós em sacrifício; ela tem um direito estrito a que nos prosternemos diante dela, porque ela foi santificada pelo contato com o corpo e o sangue sagrados. Da mesma forma os pregos, a lança, as vestes, as santas moradas que são o presépio, a gruta, o Gólgota salutar, o túmulo vivificante, Sion a metrópole das igrejas e outros locais semelhantes. Como disse Davi, ancestral de Deus: “Nós entraremos em tuas moradas, nos prosternaremos no lugar onde pisaram teus pés[77]”. E a passagem seguinte demonstra que ele fala aí da cruz: “Levanta-te, Senhor, para ires ao teu lugar de repouso[78]”. Com efeito, à cruz sucede a ressurreição. Se a casa, o leito, as vestes dos seres animados nos são caras, quanto mais do Deus e salvador, graças aos quais fomos salvos!

Nós nos prosternamos também diante da representação da cruz preciosa, mesmo quando é feita de outro material: nós não honramos a matéria – que Deus nos livre! – mas a representação, porque ela é um símbolo de Cristo. De fato, ele disse aos seus discípulos à guisa de testamento: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem[79]”, falando da cruz. Eis porque também o anjo da ressurreição disse às mulheres: “Vocês buscam a Jesus o nazareno, aquele que foi crucificado[80]”. E o Apóstolo: “Quanto a nós, nós lhes anunciamos um Cristo crucificado[81]”. Pois existem muitos cristos e muitos Jesus, mas somente um foi crucificado. Ele não disse “varado por uma lança”, mas crucificado. Devemos nos prosternar diante do sinal de Cristo, porque onde estiver seu sinal, ali estará ele. Quanto à matéria da qual é constituída a representação da cruz, embora ouro e pedras sejam coisas preciosas, se a representação for destruída, não há porque se prosternar. Nós nos prosternamos diante do q eu é consagrado a Deus, prestando a ele nossa homenagem.

Essa cruz preciosa foi prefigurada pela árvore da vida que Deus plantou no centro do paraíso[82] (pois, já que a morte foi trazida pela madeira, era preciso que pela madeira fossem dadas a vida e a ressurreição). Jacó, depois de se haver prosternado diante da extremidade de seu bastão[83], cruzou as mãos para abençoar os filhos de José[84], traçando distintamente o sinal da cruz. O bastão de Moisés, como sinal de que era ele a cruz, fustigou o mar, salvou Israel e afogou o Faraó[85]; suas mãos estendidas, sinal da cruz, colocaram em fuga a Amalec[86]; uma vara acalmou o mar em fúria[87], rompeu o rochedo[88], fez brotar cursos d’água; uma vara concretizou para Aarão a dignidade sacerdotal[89]; uma serpente foi exposta como troféu sobre uma estaca de madeira (do mesmo modo como essa serpente foi morta quando a madeira salvou os fiéis dentre os que olharam o inimigo morto, também Cristo foi crucificado numa carne de pecado[90], que nada tinha com o pecado); o grande Moisés clamou: “Vocês verão suas vidas suspensas na madeira diante de seus olhos[91]”; e Isaías: “Todos os dias eu estendi minhas mãos para um povo rebelde e contestador[92]”. Nós que nos prosternamos diante desse lenho, possamos ter nossa parte no Cristo crucificado. Amém.


85 (IV, 12)
Da adoração voltada para o Oriente

Não é por ingenuidade ou por acaso que nos prosternamos face ao Oriente; mas como nossa natureza foi formada do visível e do invisível, ou seja, de inteligência e de sensibilidade, oferecemos também ao Criador uma dupla prosternação, assim como cantamos hinos tanto com nossa inteligência como com nossos lábios de carne, assim como somos batizados pela água e pelo Espírito, assim como estamos unidos ao Senhor por um duplo aspecto: pela participação nos sacramentos e pela graça do Espírito.

Assim é que, como “Deus é luz[93]” inteligível, como Cristo, nas Escrituras, é chamado de “sol de justiça[94]” e de “Oriente[95]”, devemos consagrar o Oriente para nos prosternar. Pois tudo o que é bom deve ser consagrado a Deus, de quem tudo o que é bom extrai sua bondade. Também o divino Davi disse: “Reinos da terra, cantem a Deus, dancem para o Senhor, que cavalga nos céus do céus em direção do Oriente[96]”. E a Escritura diz ainda: “Deus plantou um jardim no Éden, a Oriente, e nele colocou o homem que havia modelado[97]”. Depois da transgressão, ele o exilou do jardim de delícias e o fez morar oposto ao jardim, no Ocidente, portanto[98]. É, assim, buscando nossa antiga pátria e com os olhos fixados nela que nós nos prosternamos diante de Deus. E a tenda de Moisés tinha seu véu[99] e seu local de oferenda[100] voltados para o Oriente. E a tribo de Judá, por ser a mais honrada, acampava do lado do Oriente[101]. E no célebre templo de Salomão, a porta do Senhor ficava voltada para o Oriente[102]. De resto, o Senhor sobre a cruz mirava o Ocidente, e por isso nos prosternamos voltados para ele[103]. Quando de sua ascensão, ele subiu na direção do Oriente; para lá se prosternaram os apóstolos[104], e de lá ele há de vir, do mesmo modo como eles o contemplaram subindo aos céus. Assim é que o Próprio Senhor declarou: “Como o raio parte do Oriente e vai até o Ocidente, assim será a vinda do Filho do homem[105]”. Por conseguinte, é esperando por ele que nos prosternamos voltados para o Oriente. Essa tradição dos apóstolos não foi escrita; pois eles nos transmitiram muitas coisas que não foram escritas.


86 (IV, 13)
Os mistérios santos e imaculados do Senhor

O Deus bom, muito bom, eminentemente bom, cujo ser é todo bondade, não suportou, devido à riqueza superabundante de sua bondade, ser bom apenas para si mesmo, ou seja, sem que ninguém participasse de sua própria natureza. Por esse motivo, ele começou por criar as potências espirituais e celestes, depois os mundos visível e sensível e, por fim, a partir do espiritual e do sensível, o homem. Dessa forma, tudo o que foi criado por ele comunga de sua bondade de acordo com a existência (com efeito, ele próprio é a existência para todas as coisas, porque nele estão todos os seres; não apenas porque ele os trouxe a todos do nada à existência, mas porque sua ação conserva e mantém tudo o que foi produzido por ele). Esse é por excelência o caso dos vivos (pois segundo o ser e segundo sua participação na vida, eles comungam do bem) e dos seres racionais, tanto por causa daquilo que dissemos como por sua razão, e sobretudo por isso: pois eles são de certo modo mais próximos dele, embora ele os ultrapasse em tudo incomparavelmente.

Criado racional e dotado de livre arbítrio, o home recebeu o poder de estar constantemente unido a Deus por sua escolha pessoal, com a condição de persistir no bem, ou seja, na obediência ao Criador. Mas como agora ele transgrediu o mandamento daquele que o havia criado e caiu sob o golpe da morte da corrupção, o artífice de demiurgo de nossa raça, a partir das entranhas de sua misericórdia[106], se tornou semelhante a nós em todas as coisas[107], tornando-se homem, com a exceção do pecado; e assim ele se uniu à nossa natureza. Pois, uma vez que ele comunicou sua própria imagem e seu próprio Espírito e porque nós não os preservamos, ele partilhou da pobreza e fraqueza de nossa natureza, a fim de nos purificar, de nos subtrair à corrupção e de nos tornar outra vez participantes de sua divindade.

Com efeito, seria preciso que não apenas as primícias de nossa natureza chegassem a participar do melhor, mas também que todo homem que o quisesse fosse gerado com um segundo nascimento e fosse nutrido com um alimento extraordinário, adaptado a esse nascimento, atingindo assim a medida da perfeição. Por meio de seu nascimento, de um lado, ou seja, por sua encarnação, por seu batismo, sua paixão, sua ressurreição, ele libertou a natureza humana do pecado do primeiro pai, da morte e da corrupção; ele se tornou as primícias da ressurreição[108], e colocou-se como caminho, modelo e exemplo, a fim de que também nós, seguindo seus passos[109], nos tornemos por adoção aquilo que ele é por natureza, filhos e herdeiros de Deus e coerdeiros com ele[110]. Assim é que, como eu disse, ele nos concedeu um segundo nascimento: de sorte que, assim como por nossa filiação a partir de Adão nos parecemos com este, dele herdando da maldição divina e a corrupção, da mesma forma, por nossa filiação a ele, nos pareçamos com ele e sejamos herdeiros de sua incorruptibilidade, de sua bênção e de sua glória.

Como ele é o Adão espiritual, era preciso ainda que ele tivesse o nascimento espiritual e o alimento espiritual. Mas como somos pessoas duplas e compostas, temos necessidade de um segundo nascimento e também de um alimento composto. Quanto ao nascimento – falo aqui do batismo – esse nos é dado pela água e pelo Espírito[111]; quanto à alimentação, é ele, o pão da vida[112], nosso Senhor Jesus Cristo, aquele pão que desceu do céu[113]. Pois, estando a ponto de sofrer sua morte voluntária por nós, na noite em que entregou a si mesmo[114], ele estabeleceu uma nova aliança com seus santos discípulos e apóstolos e por intermédio deles com todos os que creem nele. Assim sendo, na sala superior da santa e gloriosa Sion, depois de haver comido a antiga Páscoa com seus discípulos e de ter realizado a antiga aliança, ele lavou os pés dos discípulos[115], cumprindo com esse gesto o símbolo do santo batismo. Em seguida ele partiu o pão e os distribuiu, dizendo: “Tomai e comei, isso é o meu corpo[116]”, que é partido em remissão dos pecados. Da mesma forma, ele tomou o copo de vinho e água e o distribuiu dizendo: “Bebei dele todos; esse é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por vós em remissão dos pecados. Fazei isso em memória de mim. Cada vez que comerdes desse pão e beberdes desse vinho, anunciareis a morte do Filho do homem e confessareis sua ressurreição, até que ele venha[117]”.

A partir daí, se “a palavra de Deus é viva e eficaz[118]”, e se “tudo o que o Senhor desejou, ele fez[119]”, se ele disse “faça-se a luz, e a luz foi feita; que haja um firmamento, e ele se fez[120]”, se “pela palavra do Senhor os céus foram firmados e pelo sopro de sua boca todo o seu exército[121]”, se o céu e a terra, a água e o fogo, o espaço e toda sua maravilhosa organização foram realizadas pela palavra do Senhor, assim como esse ser vivo tão admirável, o homem, se o próprio Verbo de Deus se fez homem voluntariamente, se ele formou para si mesmo sem semente um corpo com o sangue puro e imaculado da santa virgem, não teria ele poder para fazer do pão seu corpo e do vinho e da água seu sangue? No começo, ele disse: “Que a terra produza pastos e relvas[122]”, e até hoje, regada pela chuva, a terra produz a vegetação que lhe é própria graças ao impulso e ao poder que lhe concedeu esse mandamento divino. Deus disse: “Esse é o meu corpo” e “Esse é o meu sangue”, e “Fazei isso”, e, por seu mandamento todo-poderoso, até que ele venha, isso acontecerá. Pois ele disse: “até que eu venha”. E, como chuva sobre essa nova lavoura, vem, graças à invocação, o poder do Espírito Santo que o recobre com sua sombra. Pois assim como outrora Deus fez tudo o que fez pela operação do Espírito Santo, do mesmo modo agora a operação do Espírito realiza aquilo que ultrapassa a natureza e não pode ser captado senão pela fé. “Como isso poderá acontecer?”, disse a santa virgem, “Se eu não conheço homem algum?” E o arcanjo Gabriel lhe disse: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Altíssimo a cobrirá com sua sombra[123]”. E agora vem você perguntar: como pode o pão se tornar o corpo de Cristo, e o vinho e a água, o sangue de Cristo? E eu lhe respondo: o Espírito Santo paira sobre tudo e realiza essas coisas que ultrapassam a palavra e o pensamento.

Atribuímos a isso o papel do pão e do vinho. Com efeito, Deus sabe que na maior parte das vezes a fraqueza do homem repugna com desgosto aquilo que não se tornou banal pelo costume. Com sua costumeira condescendência, ele realizou por meio habituais à natureza as coisas que ultrapassam a natureza. Assim foi com o batismo, uma vez que os homens costumam se lavar com água e se untar com óleo: Deus ligou a graça do Espírito ao óleo e à água, e com eles realizou o banho da regeneração. Da mesma forma, como os homens costumam comer pão e beber vinho, ele ligou sua divindade a essas coisas e delas fez seu corpo e seu sangue, a fim de que, por meio daquilo que é habitual à nossa natureza, possamos nos elevar acima dessa natureza.

O corpo nascido da santa virgem é um corpo realmente unido à divindade; não porque esse corpo que foi assumido desceu dos céus, mas porque o próprio pão e vinho são transformados no corpo e no sangue de Deus. Se você buscar o modo como isso se produz, basta saber que foi pelo Espírito Santo, bem como a partir da santa Mãe de Deus que o Senhor, por si mesmo e em si mesmo, formou para si uma carne por meio do Espírito Santo. E nada sabemos além disso, salvo que a palavra de Deus é verídica, eficaz e onipotente; porém, o modo como aconteceu é impossível descobrir. O que podemos dizer é o seguinte: assim como é natural que pelo comer e o beber o pão, o vinho e a água são transformados no corpo e no sangue de quem come e bebe, sem que se transformem num outro corpo em relação ao seu primeiro corpo, também o pão, o vinho e a água da oferenda, graças à invocação e à intervenção do Espírito Santo, se transformam naturalmente no corpo e no sangue de Cristo; e eles não são dois, mas um só e o mesmo.

A comunhão, para aqueles que a recebem dignamente e com fé, leva à remissão dos pecados, à vida eterna e à preservação da alma e do corpo; para os que dela participam sem fé e indignamente, ao castigo e à condenação. Exatamente como a morte do Senhor se tornou para os fiéis vida e incorruptibilidade com vistas à fruição da eterna beatitude, para os descrentes e assassinos do Senhor, castigo e condenação eternos.

O pão e o vinho não são uma imagem do corpo e do sangue de Cristo – Deus nos livre! – mas sim o próprio corpo divinizado do Senhor, a partir do momento em que ele disse: “Isso é”, não uma imagem de meu corpo, mas “meu corpo”, e, não uma imagem de meu sangue, mas “meu sangue”. E já antes, dirigindo-se aos judeus: “Se vocês não comerem a carne do Filho do homem, vocês não receberão a vida eterna. Pois minha carne é alimento verdadeiro meu sangue bebida verdadeira”. E ainda: “Aquele que me consumir viverá[124]”.

É por isso que avançamos com grande temor, uma consciência pura, uma fé sem hesitação, e, sem dúvida, ele será isso para nós conforme cremos sem hesitar. Honremo-lo com toda pureza de alma e de corpo, porque ele é duplo. Avancemos para ele com um desejo ardente, colocando nossas mãos em formato de cruz para recebermos o corpo de crucificado; porque, depois de nele colocarmos nossos olhos, de tê-lo tocado com nossos lábios e nossa fronte, recebemos a divina brasa a de que em nós o fogo do desejo, aumentado pela chama saída dessa brasa, consuma nossos pecados e ilumine nossos corações, a fim de que, participando do fogo divino, sejamos inflamados e divinizados. Isaías viu o fogo da brasa[125]; ora, a brasa não é um simples lenho, mas um lenho unido ao fogo; da mesma forma o pão da comunhão não é um simples pão, mas um pão unido à divindade. Mas um corpo unido à divindade não é de uma natureza única: ele possui uma natureza de corpo e outra natureza de divindade unida a esse corpo; de sorte que, sendo dois, eles não são uma natureza, mas duas.

Melquisedec, o sacerdote do Altíssimo, recebeu Abrahão[126] que voltava da vitória sobre os estrangeiros, com pão e vinho. Essa mesa prefigurou a mesa mística do mesmo modo como esse sacerdote foi a figura e a imagem do verdadeiro e grande sacerdote, Cristo: “Tu és sacerdote, está escrito, por toda a eternidade, segundo a ordem de Melquisedec[127]”. Era desse pão que os pães de proposição eram a imagem[128]. Esse foi, com efeito, o sacrifício puro e evidentemente não sangrento que do nascer ao pôr do sol o Senhor, por intermédio do profeta[129], indicou que se lhe oferecesse.

O corpo e o sangue de Cristo têm por função o sustento de nossa alma e de nosso corpo, sem que se consumam, se corrompam ou sejam eliminados pelas necessidades fisiológicas – Deus nos livre!; ao contrário, para nossa existência e nossa conservação, eles nos defendem de toda espécie de dano, nos purificam de toda mancha: se tomamos ouro de má qualidade, nós o purificamos por meio de uma combustão que separa o bom do ruim; da mesma forma, no século futuro não seremos condenados com o mundo. Eles purificam das enfermidades e dos fluxos de humores de todos os tipos, como disse o divino apóstolo: “Uma vez que julgamos a nós mesmos, não seremos julgados. Mas ao nos julgar, o Senhor nos corrige para que não sejamos condenados com o mundo[130]”. E é ainda o que ele diz: “De tal modo que aquele que participa do corpo e do sangue do Senhor indignamente como e bebe sua própria condenação[131]”.

Esse pão é as primícias do pão futuro, que é o pão plenamente substancial. Pois esse termo “plenamente substancial” designa tanto o pão por vir, ou seja, o pão do século futuro, como aquele que comemos para a conservação de nossa existência. Seja como for, esse é um nome bem apropriado ao corpo do Senhor. Pois a carne do Senhor é espírito vivificante, pois ela foi concebida pelo Espírito vivificante[132]: “Aquele que nasce do Espírito é Espírito[133]”. Digo isso sem pretender suprimir a natureza do corpo, mas para tornar evidente o que ele tem de vivificante e de divino.

De resto, mesmo que alguns, como o teóforo Basílio, tenham chamado o pão e o vinho de contra-tipos do corpo e do sangue do Senhor, eles disseram isso referindo-se não após a santificação da oferenda, mas antes.

Falamos de participação: por meio dela participamos da divindade de Jesus. Falamos de comunhão, e essa é a verdade, porque por mei dela comungamos com Cristo, participamos de sua carne e de sua divindade, comungamos e nos unimos também uns aos outros por intermédio dela. Pois, como participamos de um só pão[134], nos tornamos todos no único corpo e o único sangue de Cristo e membros uns dos outros; e somos ditos agregados ao corpo de Cristo[135].

Devemos evitar a todo custo receber ou conceder a participação aos heréticos: “Não deem o que é sagrado aos cães”, disse o Senhor, “e não atirem pérolas aos porcos[136]”, a fim de não partilhar de seus erros e de sua condenação. Se efetivamente se trata de uma união a Cristo e entre nós, nos unimos realmente por livre escolha com todos os que dela participam conosco; pois é pela livre escolha que essa união acontece, e não sem que haja uma decisão de nossa parte.

Enfim, falamos de contra-tipos em relação àquilo que deverá vir, não porque não se trate verdadeiramente do corpo e do sangue de Cristo, mas porque agora participaremos por seu intermédio da divindade de Cristo, enquanto que então será espiritualmente, unicamente pela contemplação.


87 (IV, 14)
Sobre a genealogia do Senhor e sobre a santa Mãe de Deus.

Com relação à santa Maria, a eminentemente louvável e sempre virgem Mãe de Deus, já demos, nas explicações precedentes, algumas explicações e expusemos o essencial, a saber, que ela é e nós a chamamos num sentido firme e verdadeiro “Mãe de Deus”. Resta complementar o que foi omitido. Maria havia sido prevista pelo desígnio pré-eterno e a presciência de Deus, prefigurada e previamente anunciada por diversas imagens e pelas palavras dos profetas sob inspiração do Espírito Santo. NO tempo predeterminado, ela nasceu da raça de Davi, segundo as promessas feitas a este: “O Senhor jurou a Davi a verdade e ele não o decepcionará. Eu colocarei sobre seu trono alguém que será fruto das suas entranhas[137]”. E também: “Eu jurei uma vez por minha santidade; terei mentido, Davi? Sua descendência subsistirá para sempre e seu trono estará diante de mim como o sol, como a lua estabelecida para sempre, e o testemunho no céu é fiel[138]”. E Isaías: “Um ramos nascerá de Jessé e uma flor brotará de sua vara[139]”.

José descende da raça de Davi: Mateus e Lucas, os santos evangelistas, mostraram isso explicitamente: mas Mateus faz descender José de Davi por Salomão[140], e Lucas por Nathan[141]. Quanto às gerações da santa virgem, ambos guardam silêncio.

Devemos ter em mente que o costume dos hebreus, assim como da santa Escritura, não é de fornecer a genealogia das mulheres. Mas a lei era de que uma tribo não tomasse por esposa alguém de outra tribo[142]. Portanto, José, que era da raça de Davi, e que era justo (o santo Evangelho lhe presta testemunho disso[143]), não teria se casado com a santa virgem contrariando a lei, e se esta não fosse uma descendente do mesmo ramo real que ele. Por isso, bastava dar a conhecer a origem de José.

Devemos também ter em mente o seguinte: se um homem morria sem ter filhos, a lei estabelecia que seu irmão esposasse a mulher do defunto e assegurasse uma descendência ao seu irmão. O filho, segundo a natureza, seria do segundo, ou seja, do genitor, mas segundo a lei ele seria do defunto.

Portanto, a partir da linhagem de Nathan, filho de Davi[144], Levi gerou Melchi e Panther. Panther gerou aquele que traz o nome de Bar-Panther. Esse Bar-Panther gerou Joaquim, e Joaquim gerou a santa mãe de Deus. Da linhagem de Salomão, filho de Davi, Mathan tomou uma esposa da qual nasceu Jacó. Com a morte de Mathan, Melchi, da raça de Nathan, filho de Levi e irmão de Panther, esposou a mulher de Mathan, mãe de Jacó, e com ela teve Eli. Jacó e Eli foram portanto irmãos uterinos, sendo Jacó da raça de Salomão e Eli da raça de Nathan. Eli, que era da raça de Nathan, morreu sem filhos, e Jacó, seu irmão, da raça de Salomão, tomou sua mulher e gerou José. José era, portanto, segundo a natureza, filho de Jacó, da descendência de Salomão, mas segundo a lei, de Eli, da linhagem de Nathan.

Joaquim então esposou Ana, essa mulher respeitável e digna de louvor. E assim como a antiga Ana[145], que era estéril, gerou Samuel graças a uma oração e um voto, também a segunda Ana obteve de Deus, graças à súplica e ao seu voto, a mãe de Deus, com a condição de não a conceder, ao menos sob esse aspecto, a qualquer personagem ilustre. Assim é que a graça (pois tal é o significado de Ana) deu à luz a soberana (pois esse é o significado de Maria: de fato, ela se tornou realmente a soberana de todas as criaturas, por seu papel de mãe do criador). Ela veio à luz na casa de Joaquim diante da porta probática e foi conduzida ao templo. A seguir, depois de haver crescido na casa de Deus e de ter sido nutrida pelo Espírito, como uma oliveira coberta de frutos[146], ela se tornou a morada de todas as virtudes, afastando todo desejo do mundo e da carne, desse modo conservando virgens tanto sua alma como seu corpo, como convinha àquela que iria receber um Deus em seu seio. Pois, sendo santo, ele deveria repousar naquilo que é santo[147]. Por conseguinte, ela acedeu à santidade e se mostrou um templo santo e admirável para o Deus altíssimo.

Ora, o inimigo de nossa salvação rondava as virgens por causa de predição de Isaías, que dizia: “Eis que a virgem irá engravidar e gerará um filho e o chamará de Emanuel, que quer dizer ‘Deus conosco’[148]”. Para que aquele que sempre se orgulhara de sua sabedoria fosse pego na armadilha por “aquele que enreda os sábios em sua própria astúcia”, a jovem foi concedida como noiva pelos sacerdotes a José, o livro novo foi confiado àquele que conhecia as Escrituras; o noivado foi a salvaguarda da virgem e iludiu aquele que espionava as virgens. Mas quando “chegou a plenitude dos tempos[149]”, o anjo do Senhor lhe foi enviado para anunciar a concepção do Senhor. Foi assim que ela concebeu o Filho de Deus, o poder enipostasiado do Pai, “não por um desejo da carne, nem por um desejo de homem[150]”, ou seja, não por uma cópula e uma inseminação, mas pela vontade do Pai e a cooperação do Espírito Santo. Ela permitiu ao criador ser criado, ao modelador ser modelado, ao Filho de Deus, ele próprio Deus, tomar a carne e penetrar na condição humana a partir de sua carne e de seu sangue puros e imaculados, quitando a dívida de nossa primeira mãe. Com efeito, assim como esta foi modelada sem cópula, a partir de Adão, também aquela deu ao mundo o novo Adão gerado segundo as normas da gestação e de uma geração que ultrapassa a natureza. Pois assim aquele que, sem mãe, saiu do Pai, foi gerado sem pai[151] de uma mulher; que ele venha de uma mulher é conforme às leis da gestação, mas que ele seja sem pai ultrapassa a geração segundo a natureza. Tendo nascido no momento habitual (pois ele nasceu nono mês, quando se iniciava o décimo mês) é conforme à lei da gestação; que tenha sido sem dor ultrapassa as regras da geração. Não tendo sido precedido pelo prazer, não foi seguido pela dor, segundo as palavras do profeta: “Antes que viessem as dores, ela pariu”; e também: “Antes que viesse o momento das dores, ela fugiu e pariu um menino[152]”.

Assim é que dela nasceu o Filho de Deus. Deus encarnado, não um homem portador de Deus, mas Deus encarnado, ungido não como profeta por meio de uma operação, mas pela presença total daquele que o ungiu, de tal forma que aquele que ungiu se tornou homem, o que foi ungido se tornou Deus, não por uma mudança de natureza, mas por uma união, a união segundo a hipóstase. Com efeito, o mesmo foi ungido e ungiu, visto que Deus ungiu a si mesmo como homem. Como, então, não seria Mãe de Deus, aquela que gerou a partir de si mesma o Deus encarnado? Foi assim, no sentido próprio e verdadeiro, que ela é chamada de Mãe de Deus e soberana, senhora de todas as criaturas, serva[153] e mãe do criador. De resto, assim como, no momento de sua concepção ele conservou virgem aquela que concebia, ao ser parido ele salvaguardou sua virgindade, tendo passado através dela sem a ferir, e conservando intacto o selo[154]. Ela concebeu pelo ouvido, mas o nascimento aconteceu pela via costumeira dos partos, embora alguns tenham inventado que a criança nasceu da Mãe de Deus pelo flanco. Pois não havia impossibilidade em que ele passasse pela porta sem romper o selo.

Ela permaneceu virgem, por conseguinte, mesmo após o parto, e sempre virgem, não tendo se aproximado de homem algum até sua morte. Com efeito, ainda que esteja escrito: “Ele não a conheceu até que ela desse à luz seu filho primogênito[155]”, devemos ter em mente o primogênito é aquele que nasceu primeiro, mesmo que seja também unigênito. Isso indica que ele foi o primeiro a ser gerado, sem que implique outros nascimentos. Quanto à expressão “até que”, significa o encerramento de um prazo prefixado, sem excluir o que é posterior. De fato, o Senhor disse: “Eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo[156]”, sem que por isso ele deva se separar de nós depois do fim do mundo. Com efeito, o divino apóstolo declara: “E assim estaremos sempre com o Senhor[157]”, falando no depois da ressurreição geral.

De fato, como, depois de ter dado à luz a Deus e depois de ter tido conhecimento do milagre pela experiência de suas consequências, teria ela aceito ter relações com um homem? Jamais! Pensar nessas coisas não é raciocinar com sabedoria; fazê-las, menos ainda.

E no entanto ela, a bem-aventurada que foi considerada digna desses dons que ultrapassam a natureza, suportou durante a Paixão as dores das quais escapara ao dar à luz. Sua compaixão maternal a fez suportar que se rasgassem suas entranhas, e ao ver condenado como um malfeitor aquele que, desde o nascimento, ela sabia ser Deus, ela foi rasgada ainda em seus pensamentos como por uma espada. É esse o significado das palavras: “Uma espada trespassará sua alma[158]”. Mas a alegria da Ressurreição transformaria a tristeza, proclamando a divindade daquele que fora morto em sua carne.


88 (IV, 15)
Dos santos e das honrarias às suas imagens

Devemos honrar os santos, como amigos de Cristo, como filhos e herdeiros[159] de Deus, conforme disse o evangelista teólogo: “A todos os que o receberam, ele concedeu o poder de se tornarem filhos de Deus[160]. De sorte que já não são mais servidores, mas filhos. Se são filhos, são também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo[161]”. E o Senhor, nos santos Evangelhos, disse aos apóstolos: “Vocês são meus amigos. Já não os chamo de servidores, pois o servo não sabe o que faz o mestre[162]”. Ora, se o criador e Senhor do universo é chamado de “Rei dos reis e Senhor dos senhores[163]”, e também “Deus dos deuses[164]”, sem dúvida alguma os santos são deuses, senhores e reis. Deus está nesses santos em realidade e linguagem, sendo Deus, senhor e rei. “Pois eu sou[165], disse ele a Moisés, o Deus de Abrahão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó[166]”. E Deus fez de Moisés um deus para o Faraó. Falo de deuses, reis e senhores, não pela natureza, mas porque eles reinaram sobre suas paixões. Foram senhores delas e guardaram sem alteração a semelhança com a imagem divina, segundo a qual foram gerados: com efeito, chamamos igualmente de rei a imagem do rei; por se terem unido a Deus por uma livre escolha, por tê-lo acolhido para que habitasse neles por meio dessa participação, eles se tornaram pela graça aquilo que ele é por natureza. Assim sendo, como não honrar os servidores que chegaram a ser amigos e filhos de Deus? Pois a honra devida aos companheiros de serviço mais zelosos é uma prova de devoção ao mestre comum.

Os santos foram os tesouros e as puras moradas de Deus: “Eu estabelecerei minha moradas neles, disse Deus, marcharei com eles e serei seu Deus[167]”. E: “As almas dos justos estão nas mãos de Deus e nenhuma tortura os alcançará[168]”, diz a santa Escritura, pois a morte dos santos é antes um sono do que uma morte. “Eles foram postos à prova no tempo e viverão para sempre[169]”. E: “A morte dos fiéis é preciosa diante do Senhor[170]”. O que existe de mais precioso do que estar nas mãos de Deus? Pois Deus é vida e luz e os que estão nas mãos de Deus estão na vida e na luz.

É o Apóstolo quem afirma que Deus faz sua morada no corpo através do intelecto: “Não sabem vocês que seus corpos são o templo do Espírito Santo que habita em vocês[171]? Ora, o Senhor é o Espírito[172]”. E: “Se alguém destrói o templo de Deus, a esse Deus destruirá[173]”.  Como então não honrar os templos animados de Deus, os tabernáculos animados de Deus? Esses, enquanto vivos, estiveram em livre familiaridade com Deus.

Cristo nosso mestre nos deixou nas relíquias dos santos fontes de salvação, das quais brotam uma variedade de benesses, das quais destila um azeite balsâmico. Que ninguém duvide! Se a água surgiu no deserto de uma rocha duríssima[174] pela vontade de Deus e do maxilar de um asno para dessedentar Sansão[175], podemos duvidar de que um azeite balsâmico jorre das relíquias dos santos? É claro que não, por pouco que conheçamos sobre o poder de Deus e a honra que ele concede aos santos.

Na lei, aquele que tocava num morto era considerado impuro[176]; mas eles não são mortos. Desde que a própria vida, a causa da vida, Cristo, foi contado entre os mortos, aqueles que haviam adormecido na esperança da ressurreição e em sua fé nele, esses já não são tratados como mortos. Como pode um corpo morto realizar milagres? Como, por meio dele, podem os demônios ser expulsos, os enfermos curados, como podem os cegos verem, os leprosos serem purificados[177], as tentações e aflições dissipadas, “os dons excelentes de toda espécie” derramados pelo “Pai das luzes[178]”, por intermédio daqueles que pediram com fé inquebrantável? O que você não suportaria para encontrar um protetor que o apresentasse a um rei mortal e que lhe desse garantias em seu favor? Então, não devemos também honrar os protetores de toda a raça humana que, em nosso favor, apresentam a Deus nossas demandas? Sim, devemos honrá-los, erguendo santuários a Deus em seus nomes, dedicando-lhes oferendas, glorificando sua memória e enchendo a tudo de alegria espiritual, para que a felicidade dos eleitos se torne a nossa, para que, aconselhados a não lhes prestar culto, não provoquemos em contrapartida seu descontentamento.  Pois, por intermédio daquilo com que prestamos culto a Deus também se alegram os que lhe rendem culto, e aos que detestam a Deus, detestam também os soldados de Deus. “Com salmos, hinos e cantos espirituais[179]”, com compunção e piedade para com os indigentes, nós os fiéis rendemos culto aos santos, quem mais do que todos prestam culto a Deus. Dediquemos a eles estátuas e imagens visíveis e tornemo-nos também estátuas e imagens vivas deles, imitando suas virtudes.

Honremos a Mãe de Deus por que ela, no sentido próprio e verdadeiro, foi aquela que gerou a Deus. Honremos João o Profeta como um precursor, um batista, um apóstolo, um mártir (“Pois dentre os filhos dos homens, nenhum foi maior do que João[180]”, como disse o Senhor, e porque ele foi o primeiro arauto do Reino). Honremos os apóstolos como irmãos[181] do Senhor que viram e participaram[182] de sua vida de sofrimentos, eles a quem Deus Pai “conhecia de antemão e predestinou a existirem conformes a imagem de seu Filho[183]”; “Em primeiro lugar os apóstolos, em segundo os profetas, em terceiro os pastores e os doutores[184]”.  Honremos os mártires do Senhor, chamados de todas as classes da sociedade, como soldados[185] de Cristo, que beberam de seu cálice e foram batizados no batismo[186] de sua morte vivificante, como participantes de seus sofrimentos[187] e de sua glória; eles, cujo primeiro foi também o primeiro diácono, o apóstolo e primeiro mártir de Cristo, Estevão. Honremos também nossos santos Padres, esses ascetas portadores de Deus, que foram os atletas do mais longo e penoso martírio, o da consciência; eles, que “vagaram vestidos com peles de cordeiros e de cabras, privados de tudo, afligidos, maltratados, errando pelos desertos, as montanhas, as cavernas e os antros da terra, eles de quem o mundo não era digno[188]”. Honremos os profetas anteriores à graça, os patriarcas, os justos que anunciaram a vinda de Cristo. A meditação de sua conduta nos encherá de zelo em vista da fé[189], da caridade, da esperança, do ardor, do modo de vida, da coragem nos sofrimentos, a perseverança até o sangue, a fim de que, com eles, partilhemos a coroa da glória[190].


89 (IV, 16)
Sobre as imagens

Como alguns nos censuraram por nos prosternarmos diante da imagem de nosso salvador e da nossa soberana, e de venerá-los, assim como a outros santos e servidores de Cristo, que aprendam eles que no começo Deus criou o homem à sua própria imagem[191]. Porque nos prosternamos uns diante dos outros, senão por que fomos criados à imagem de Deus? Pois, como disse Basílio, que tinha a Deus dentro de si e que sabia das coisas divinas, “a honra devida à imagem passa ao original”. O original é o que é representado e de onde provém a obra produzida. Por que o povo de Moisés se prosternava, posto em círculo diante da tenda que trazia as imagens e símbolos das realidades celestes, ou, para dizer melhor, de toda a criação[192]? É o que também disse Deus a Moisés: “Vá e faça todas as coisas segundo o modelo que lhe foi mostrado sobre a montanha[193]”. E os querubins[194], que protegiam o propiciatório com sua sombra, não eram eles obra[195] de mãos humanas? E o famoso templo[196] de Jerusalém? Não foi feito por mãos humanas e construídos pela arte dos homens?

Por outro lado, a santa Escritura condena os que se prosternam diante das estátuas[197] tanto quanto os que sacrificam[198] aos demônios. Os gregos ofereciam sacrifícios, assim como os judeus, mas os gregos aos demônios e os judeus a Deus. E os sacrifício dos gregos era rejeitado e condenado, enquanto que os dos justos era aceitável a Deus. Com efeito, Noé ofereceu um sacrifício, e “Deus aspirou um odor agradável[199]”, aceitando o perfume pela boa escolha e as boas disposições a seu respeito. Assim é que as estátuas dos gregos foram rejeitadas e marcadas com a interdição, porque eram representações de demônios.

Mas além disso, quem pode fazer uma imitação do Deus invisível, incorpóreo, sem contornos e sem figura? Atribuir uma figura à divindade só pode nascer da extrema demência e impiedade. Por isso é que na antiga aliança o uso das imagens não era permitido. Mas quando Deus, a partir das entranhas de sua misericórdia[200], se fez verdadeiramente homem para nossa salvação, ele não se fez ver como a Abrahão[201] ou como aos profetas, sob uma aparência humana; ele se fez verdadeiramente homem segundo a essência, habitou sobre a terra e se misturou aos homens[202], operou milagres, sofreu a paixão, foi crucificado, ressuscitou e subiu ao céu. E tudo isso foi realmente o que aconteceu, e foi visto pelos homens, foi descrito para que tivéssemos a lembrança dos fatos e para o ensinamento daqueles que não viram, a fim de que, sem haver visto, mas tendo aprendido e acreditado[203], possamos obter a beatitude prometida pelo Senhor. Mas como nem todos sabem ler ou têm tempo para ler, os Padres tomaram o cuidado de representar esses fatos em imagens, assim como se faz com os grandes feitos, por meio de uma lembrança concisa. Normalmente, com certeza, não estivemos presentes à paixão do Senhor, mas ver a imagem de Cristo crucificado nos traz à lembrança a paixão que nos salvou e, caindo de joelhos, nós nos prosternamos, não diante da matéria, mas diante daquilo que está representado, assim como nossa prosternação não se dirige à matéria do Evangelho, nem à matéria da cruz, mas à sua reprodução figurada. No que diferem, com efeito, a cruz que não traz a imagem do Senhor e a que a traz? O mesmo acontece com a Mãe de Deus: a honra que lhe prestamos remonta até aquele que tomou dela sua carne. O mesmo acontece com os altos feitos dos santos que são para nós um treinamento de coragem, de zelo, para imitação de sua virtude e a glória de Deus. Como dizemos, a honra devida a esses generosos companheiros fornece a prova de nossa retidão de sentimentos para com nosso mestre comum e a honra prestada à imagem passa ao original. Trata-se de uma tradição não escrita, como em relação à prosternação em direção ao Oriente, diante da cruz ou outras do gênero.

De resto, podemos lembrar a seguinte história: o rei de Edessa, Abgar, havia enviado uma pintor para reproduzir a efígie do Senhor; mas ele foi incapaz, devido ao brilho que irradiava de sua face. Então o Senhor colocou seu manto sobre seu rosto vivificante, e fez com que nele se imprimisse sua imagem, satisfazendo assim ao desejo de Abgar.

Agora, que os apóstolos nos transmitiram sem escrever muitas tradições, Paulo, o apóstolo das nações, nos escreve: “Assim, irmãos, fiquem firmes e conservem nossas tradições, com as quais vocês foram instruídos, seja de viva voz, seja através de nossas cartas[204]”. E aos Coríntios: “Eu os louvo, irmãos, porque vocês se lembram de mim em todas as ocasiões e conservam as tradições que eu lhes transmiti[205]”.


90 (IV, 17)
Sobre a Escritura

Único é o Deus proclamado pelo Antigo e pelo Novo Testamentos, esse Deus que é celebrado e glorificado na Trindade; pois o Senhor disse: “Eu não vim para derrubar a Lei, mas para cumpri-la[206]” (e de fato foi ele quem operou nossa salvação, objeto de toda a Escritura e de todo mistério), e também: “Vocês perscrutam as Escrituras e são elas que testemunham a meu respeito[207]”. E o Apóstolo disse: “Depois de haver, em muitas ocasiões e de muitas maneiras, falado aos nosso pais por meio dos profetas, Deus, nesses últimos dias, nos falou por seu Filho[208]”. Foi, portanto, pelo Espírito Santo[209], que a lei e os profetas[210], os evangelistas e os apóstolos, os pastores e os doutores[211] falaram.

“Toda Escritura é inspirada por Deus, e é sempre útil[212]”. De sorte que perscrutar as Escrituras é muito bom e muito útil à alma. Como uma árvore plantada à beira de um curso d’água, também a alma regada pela divina Escritura se alimenta, produz a seu tempo o fruto da fé Ortodoxa e se orna de folhas sempre verdes, ou seja, das ações que agradam a Deus. Com efeito, das santas Escrituras nos vem um ritmo regular para a ação virtuosa e a contemplação sem perturbações. Pois nelas encontramos um chamado a toda virtude e uma aversão a todo mal. Assim, se estivermos ávidos de saber, tornar-nos-emos sábios; pois, com a aplicação, o esforço e a graça que elas nos concedem, tudo caminha bem. “Pois quem pede receberá, quem procura achará e ao que bate ser-lhe-á aberto[213]”. Batamos, então, às portas do maravilhoso jardim das Escrituras, ele está cheio de perfumes, agradável, cheio de beleza, murmurando em nossos ouvidos os cantos variados dos pássaros espirituais que nos trazem Deus, ele toca nossos corações consolando-os quando estão aflitos, acalmando-os quando estão irritados, cumulando-os de eterna alegria; devemos montar nossa inteligência sobre as espáduas douradas e cintilantes da divina pomba[214]; sobre suas asas brilhantes, ela nos elevará até o Filho unigênito, herdeiro do vinhateiro da vinha[215] espiritual e, por intermédio dele, nos fará avançar até o Pai das luzes[216]. Porém, não batamos com negligência, mas com ardor e perseverança; não deixemos de bater. Pois é assim que se nos abrirá. Se lermos uma vez, duas vezes, sem compreender o que lemos, não esmoreçamos, mas perseveremos, meditemos, interroguemos. “Interroga seu pai, foi dito, e ele o informará, seus ancestrais, e eles lhe dirão[217]”. Pois nem todos possuem a ciência[218]. Consultemos a fonte desse paraíso cujas águas correm sempre e sempre puras, jorrando a vida eterna[219], bebamo-las com prazer, insaciavelmente, abandonemo-nos a esse prazer. Pois a graça é inesgotável.

Mas se podemos recolher, mesmo entre autores profanos[220], algo de útil, nada o impede. Sejamos como banqueiros prudentes e juntemos o ouro puro e autêntico, recusando o que foi adulterado. Tomemos os mais belos textos e atiremos aos cães[221] os deuses ridículos e os mitos estrangeiros; disso extrairemos um vigor extremo.

É preciso saber que o Antigo Testamento compreende vinte e dois livros, em conformidade com o alfabeto da língua hebraica. De fato, esta possui vinte e duas letras, das quais cinco são duplas, o que perfaz vinte e sete. São duplos o caph, o mem, o noum, o phi e o sadi. É por isso que desse modo contamos vinte e dois livros, mas encontramos vinte e sete, porque cinco dentre eles são duplos. O Livro de Ruth está unido ao de Juízes e junto com ele conta como um único livro para os hebreus. O primeiro e o segundo livro de Reis contam como um só livro, e terceiro e o quarto também. O primeiro e o segundo livro dos Paralipômenos (Crônicas) contam como um só livro, bem como o primeiro e o segundo de Esdras. Assim é que os livros do Antigo Testamento estão dispostos em quatro pentateucos, restando dois à parte. São os seguintes os livros recebidos: os cinco livros da lei, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; esse é o primeiro pentateuco e também a legislação. A seguir vem o segundo pentateuco, que chamados de Escritos, ou às vezes de Hagiógrafos: são Josué, filho de Navé, Juízes com Ruth, o primeiro e o segundo livro dos Reis (um só livro), o terceiro e o quarto livro de Reis (um só livro), os dois livros dos Paralipômenos (um só livro); eis o segundo pentateuco. O terceiro pentateuco compreende os livros poéticos: Jó, o Saltério, os Provérbios de Salomão, o Eclesiastes e o Canto dos Cânticos. O quarto pentateuco compreende os livros proféticos: os doze profetas (um só livro), Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel. Depois vem Esdras (dois livros reunidos em um só) e Esther. O Panaretos, ou a Sabedoria de Salomão, e a Sabedoria de Jesus, que o pai de Sirac havia composto em hebraico e que foi traduzido para o grego por seu descendente, Jsus filho de Sirac, são obras recomendáveis e boas, mas não entraram na conta e não foram depositados na arca.

No Novo Testamento existem quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João; os Atos dos Apóstolos, por Lucas o evangelista, sete Epístolas católicas, uma de Tiago, duas de Pedro, três de João, uma de Judas; quatorze epístolas de Paulo; o Apocalipse de João o evangelista; e os Cânones dos santos apóstolos transmitido por Clemente.



91 (IV, 18)
Os enunciados relativos a Cristo

Existem quatro modos genéricos de expressão, relativamente a Cristo: o primeiro aplica-se a ele antes de sua entrada na condição humana; o segundo, ao ato da união; o terceiro, após a união; o quarto, após a ressurreição.

1)      Antes da Encarnação, existem seis modos de expressão. O primeiro indica a conjunção da natureza e de sua consubstancialidade para com o Pai. Assim: “Eu e o Pai somos um[222]”; e: “Quem me viu, viu o Pai[223]”; e: “Ele tinha a condição divina[224]”; e outros do mesmo gênero. O segundo indica a perfeição da hipóstase. Assim: “o Filho de Deus[225]”; e: “marca de sua substância[226]”; e: “anjo do grande Conselho, admirável, conselheiro[227]”, e outros do mesmo gênero. O terceiro modo de expressão indica a pericorese das hipóstases, uma dentro da outra. Assim: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim[228]”, e sua inexpugnável fundação, como “Verbo[229]”, “sabedoria e poder[230]”, “esplendor[231]”. Pois o Verbo está no intelecto (falo do Verbo substancial), e também a sabedoria, o poder naquele que pode, o esplendor na luz: aí fundados inexpugnavelmente, eles brotam daí como de sua fonte comum. O quarto modo de expressão indica a procedência do Pai como de uma causa. Assim: “O Pai é maior do que eu[232]”. Com efeito, é do Pai que ele tira sua existência e tudo o que ele possui: a existência, pelo modo de geração, não de criação. Assim: “Quanto a mim, eu vim do Pai[233]”; e “eu vivo pelo Pai[234]”. Tudo o que ele possui, não por modo de participação ou de ensinamento, mas como procedendo de uma causa. Assim: “O Filho nada pode fazer por si mesmo se não o fizer pelo Pai[235]”. Se o Pai não existe, com efeito, tampouco o Filho existe; o Filho provém do Pai e está no Pai, mas não depois do Pai. Do mesmo modo, o que ele faz provém do Pai, mas é feito com o Pai. Pois é única e idêntica, não semelhante, é a vontade, a operação e o poder do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O quinto modo de expressão indica que a benevolência do Pai se realiza pela operação do Filho, não como por meio de um instrumento ou escravo, mas como por meio de seu Verbo substancial e dotado de hipóstase, por sua sabedoria e seu poder, dado que descobrimos aí o movimento único do Pai e do Filho. Assim: “Tudo foi feito por ele[236]”; e: “ele enviou seu Verbo e os curou[237]”; e: “A fim de que eles saibam que foste Tu que me enviaste[238]”.  O sexto modo de expressão é profético, e eventualmente aí se fala do futuro. Assim: “Ele virá de maneira visível[239]”, e nas palavras de Zacarias: “Eis que teu Rei virá a ti[240]”, ou nas palavras de Miqueias: “Eis que o Senhor deixou o seu lugar, ele descerá e caminhará sobre as alturas da terra[241]”. Outros falam desse porvir como de uma coisa ocorrida. “Esse Deus que é o nosso, depois disso, apareceu sobre a terra e se misturou aos homens[242]”, e: “O Senhor me criou como o início dos seus caminhos, em vista de suas obras[243]”, e: “Por causa disso, o Deus, teu Deus, te ungiu com um óleo de alegria, de preferência aos teus companheiros[244]”.

As expressões anteriores à união se referem a Cristo também após a união; mas as expressões seguintes à união jamais se referem ao antes, a menos que seja, como sublinhamos, de modo profético.

2)      Quanto às expressões no decurso da união, são três. Em primeiro lugar, quando nos expressamos do ponto de vista do melhor, falamos da divinização da carne, de sua invasão pelo Verbo, de sua exaltação, etc., destacando a riqueza que a carne recebe por sua união e sua conjunção com o Altíssimo, o Verbo de Deus. Em segundo lugar, quando nos exprimimos do ponto de vista do inferior, falamos da encarnação do Verbo, da sua entrada na condição humana, da kenosis, do rebaixamento, do empobrecimento. Essas expressões e outras do mesmo gênero são atribuídas a esse Verbo e a esse Deus em consequência de sua implicação na realidade humana. Em terceiro lugar, quando nos exprimimos dos dois pontos de vista a um tempo, falamos de união, de comunhão, de unção, de conjunção, de conformação, e outras expressões do tipo. Assim, é esse terceiro modo de expressão que dá sentido aos outros dois mencionados precedentemente. Pelo termo de união é mostrado aquilo que cada um dos elementos recebe em consequência de sua junção e de sua pericorese com aquele que viria a coexistir consigo; em virtude da união segundo a hipóstase diz-se que a carne foi divinizada e se tornou Deus, com a mesma divindade que o Verbo, enquanto que o Deus Verbo se fez carne e se tornou homem, sendo chamado de criatura e qualificado como o último[245]. Não que as duas naturezas se tenham transformado em uma só natureza composta; pois é impossível que as propriedades de naturezas opostas se combinem numa só natureza. Mas as duas naturezas se uniram segundo a hipóstase e adquiriram a pericorese sem confusão e sem a transformação de uma na outra. Essa pericorese, porém, não proveio da carne, mas da divindade; pois seria impossível à carne penetrar a divindade; mas uma vez que a divindade penetrou na carne, ela deu à carne essa penetração inefável nela, à qual nós chamamos de união.

É preciso ter em mente que no caso do primeiro e do segundo modo de expressão percebemos uma reciprocidade naquilo que faz a união. Com efeito, em nossa linguagem a respeito da carne, falamos de divinização, de invasão pelo Verbo, de exaltação, de unção, sendo que o ponto de partida de tudo isso é a divindade, mas é o que é percebido quanto à carne; agora, quando se trata do Verbo, falamos de kenosis, de encarnação, de entrada na condição humana, de rebaixamento, etc. Como eu já disse, tudo isso é atribuído ao Verbo e a Deus a partir da carne; e ele se sujeitou a isso livremente.

3)      Depois da união, existem três modos de expressão. O primeiro é aquele que coloca em evidência a natureza divina. Assim: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim[246]”, e: “Eu e o Pai somos um[247]”, e tudo o mais que é atribuído a ele antes de sua entrada na condição humana; tudo isso lhe será atribuído mesmo depois dessa entrada, exceto o fato de não haver assumido a carne com suas características naturais. O segundo destaca a natureza humana. Assim: “Por que vocês buscam ferir a um homem como eu, que só lhes disse a verdade?[248]”, e: “Assim é que o Filho do homem deverá ser elevado[249]”, etc.

Quanto ao que foi escrito sobre o Cristo salvador e que convém ao homem, quer se trate de suas palavras ou de seus atos, existem seis modos de expressão:

a.      Existe aquilo que se realizou e que está em conformidade com a natureza, em consideração ao plano divino. Por exemplo, seu nascimento de uma virgem[250], seu crescimento em idade e seu progresso, a fome, a sede, a fadiga, as lágrimas, o sono, as perfurações dos pregos, a morte e outras coisas semelhantes que afetam a natureza sem merecer reprovação. Em tudo isso existe uma mistura do divino com o humano; mas nós sustentamos que isso provém realmente do corpo, sem que a divindade seja afetada, embora por meio disso ela tenha realizado o plano de nossa salvação.
b.     Existe aquilo que não passa de encenação. Como quando ele pergunta: “Onde vocês colocaram Lázaro?[251]”, ou quando ele se dirige à figueira[252], quando ele se disfarça ou se oculta, quando ora[253], quando “faz menção de seguir adiante[254]”. Ele não tinha necessidade desse tipo de coisas nem como Deus, nem como homem; e no entanto ele simulou, como um homem o faria, nos casos em que a necessidade ou a utilidade o exigiam. Por exemplo, em relação à oração: para mostrar que ele não se substituía a Deus, que ele honrava o Pai como sua causa; quanto às perguntas, que fazia não porque ignorasse a resposta, mas porque desejava mostrar que ele era realmente homem, ao mesmo tempo que era Deus. Nos casos em que ele se ocultou, a fim de nos ensinar a não usar de precipitação, a não nos entregarmos.
c.      Existe aquilo que consiste em apropriação e em correlação. Como no pedido: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?[255]”; as afirmações: “Aquele que não conhecera o pecado, o fez pecado por nós[256]”, e: “Ele se tornou maldição para nós[257]”, e: “O próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas[258]”. Com efeito, nem como Deus nem como homem, ele jamais foi abandonado pelo Pai, jamais se tornou pecado ou maldição, jamais precisou se submeter ao Pai. Enquanto Deus, de uma parte ele é igual ao Pai, nem seu adversário nem seu sujeito; e enquanto homem, ele jamais se insubordinou contra aquele que o gerou, mesmo que tivesse razão para se submeter. Foi portanto por se apropriar de nosso personagem, por se colocar no nosso nível, que ele disse essas coisas. Nós, com efeito, estávamos sob o golpe de um pecado e de uma maldição, por causa de nossa desobediência e de nossa rebelião, causas do nosso abandono.
d.     Os enunciados feitos em virtude de uma distinção estabelecida pelo pensamento. Pois se distinguirmos pelo pensamento aquilo que em realidade é indissociável – em outras palavras, a carne e o Verbo – estaremos afirmando que ele era escravo e que ele ignorava. Ele pertencia efetivamente à natureza escrava e ignorante e, se não estivesse sua carne unida ao Deus Verbo, teria sido escravo e ignorante; mas em razão de sua união ao Deus Verbo segundo a hipóstase, ele não era nem escravo nem ignorante. Pois também segundo esse modo ele chamava ao Pai seu Deus.
e.     Os enunciados feitos em vista de sua manifestação a nós e da confirmação da fé. Assim: “Pai, glorifica-me na glória que eu tinha junto a Ti antes que o mundo existisse[259]”. Por si mesmo, ele era e é glorificado; mas, para nós, sua glória não havia sido nem manifestada nem confirmada. Também essas palavras do Apóstolo: “Estabelecido Filho de Deus em potência segundo um espírito de santidade, depois de sua ressurreição de entre os mortos[260]” Com efeito, foi por seus milagres, sua ressurreição e a vinda do Espírito Santo que ele foi manifestado e confirmado perante o mundo na qualidade de Filho de Deus. Enfim: “E ele progredia em sabedoria e em graça[261]”.
f.       Os enunciados feitos em função de sua apropriação da personalidade judaica, quando ele se contava entre os judeus, como quando disse à samaritana: “Vocês adoram aquilo que não conhecem, mas nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus[262]”.

O terceiro modo de expressão é aquele que mostra a unicidade de sua hipóstase, ao mesmo tempo em que apresenta sua dualidade. Assim: “Eu vivo pelo Pai e aquele que me consome viverá também por mim[263]”, e: “Eu vou para o Pai e vocês não mais me verão[264]”, e: “Eles não crucificaram o Senhor da glória[265]”, e: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem, que está no céu[266]”; e outras coisas semelhantes.

4)      Dentre os modos de expressão posteriores à Ressurreição, alguns ser referem à divindade. Assim: “Vocês batizarão em nome do Pai e do Filho (enquanto Deus, evidentemente) e do Espírito Santo[267]”, e: “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo[268]”, e outros semelhantes (é como Deus que ele estará conosco). Outros se referem à humanidade: “Elas abraçaram seus pés” e “lá eles me verão[269]”, e outros.

5)      Dentre os modos de expressão posteriores à Ressurreição em relação ao grau de humanidade, existe uma diversidade. Alguns são conforme a realidade, mas decorrem não da natureza, mas da economia que visa confirmar que foi o próprio corpo que sofreu e que ressuscitou. Assim, falar das cicatrizes[270], do fato de que ele comeu e bebeu depois da Ressurreição[271]. Outros são reais em virtude da natureza. Assim, passar sem esforço de um lugar a outro, entrar onde as portas estão fechadas[272]. Outros são a modo de encenação. Assim: “Ele fez menção de seguir caminho[273]”. Outros provêm desses dois aspectos. Assim: “Eu subo para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus[274]”, e: “Ele entrará, o rei de glória[275]”, e: “Ele está sentado à direita da majestade, nas alturas[276]”. Outros, na medida em que ele se coloca entre nós, por um modo de distinção puramente abstrato, como em: “Meu Deus e vosso Deus[277]”.

Devemos, por conseguinte, atribuir o que é elevado à natureza divina, superior às afeições e ao corporal, e o que é humilde à natureza humana, o que é comum às duas ao composto, ou seja, ao Cristo único, que é Deus e homem. Devemos saber que ambas as naturezas pertencem ao único e mesmo Jesus Cristo nosso Senhor. Se estivermos conscientes daquilo que é próprio a cada categoria e percebermos que cada qual constitui a ação do mesmo ser, nossa fé será correta e isenta de erros. A partir de tudo isso se torna possível reconhecer a diferença entre as naturezas unidas e o fato de que, como diz são Cirilo, “não são a mesma coisa pela qualidade de sua natureza, a divindade e a humanidade”. Não obstante, existe um único Filho, Cristo e Senhor, e, como ele é único, também sua pessoa é única, sem que a união segundo a hipóstase seja de modo algum dividida pelo reconhecimento da diferença das naturezas.


92 (IV, 19)
Deus não é causa do mal

Devemos ter em mente que a santa Escritura costuma chamar a permissão de Deus de operação. Assim é que, quando o Apóstolo diz em sua Epístola aos Romanos: “Não é o oleiro senhor de sua argila para fazer da mesma massa um vaso para uso nobre e outro para uso vulgar?[278]”. Deve ficar bem entendido que ele mesmo faz uns e outros, pois somente ele é o criador de todas as coisas, mas não é ele quem faz deles objetos honrados ou desprezíveis, mas isso depende da escolha de cada um. E isso fica claro a partir do que diz o mesmo Apóstolo em sua segunda Epístola a Timóteo: “Num grande palácio não existem apenas vasos de ouro e de prata, mas também de madeira e de terracota, sendo alguns para uso nobre e outros para uso vulgar. Se, portanto, alguém se purifica com um desses vasos, este será um vaso nobre, santificado e útil ao mestre, pronto para toda boa obra[279]”. E é claro que a purificação deve ser feita voluntariamente: “...se, portanto, alguém se purifica...”; e daí provém a recíproca: se alguém não se purifica, esse será um vaso feito para a desonra inútil do mestre, bom para ser quebrado. Portanto, tanto a primeira citação como essas: “Deus encerrou todos os homens na desobediência[280]”, e: “Deus lhes deu um espírito de torpor, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir[281]” – não devem ser compreendidas como se Deus houvesse operado essas coisas, mas no sentido de que ele as permitiu, porque o livre arbítrio e a ausência de obrigação são o bem.

Portanto, a santa Escritura fala habitualmente de sua permissão como sendo sua operação e sua atividade. Não obstante, quando ela diz que Deus criou males[282] e que “não existe nesta cidade mal cujo autor não seja o Senhor[283]”, ela não está indicando que seja Deus o autor dos males. Mas é que o termo de “maldade” possui uma dupla acepção, um duplo sentido: tanto ele indica o mal por natureza, que é contrário à virtude e à vontade de Deus, como pode se tratar daquilo que é mau e penoso em relação à nossa sensibilidade, como aflições e calamidades. Estas, por serem dolorosas, nos parecem más; mas em realidade elas são boas, porque levam àqueles que as compreendem a conversão e a salvação. São essas que a Escritura afirma provirem de Deus.

Devemos ter em mente, outrossim, que também delas somos nós a causa; pois os males involuntários são filhos dos males voluntários. E devemos saber ainda que a Escritura costuma tratar como efeitos aquilo que devemos ver como resultados. Assim: “Contra ti pequei e fiz o que é mau diante dos teus olhos, para que sejas justificado em falares e que triunfes quando julgares[284]”. Aquele que pecou não o fez para que Deus seja triunfante, nem Deus precisa de nossos pecados para aparecer como vencedor.  Ele está incomparavelmente acima de nós, mesmo acima daqueles que não pecam, na medida em que ele é criador, inalcançável, incriado, possuidor de uma glória ligada à sua natureza, e não acrescentada a ela. Mas é que, quando pecamos, ele não é injusto ao se encolerizar contra nós e, ao perdoar aqueles que se arrependem, ele aparece como vencedor sobre nossa maldade. Não é esse nosso objetivo quando pecamos, mas é isso que acaba acontecendo. Do mesmo modo, quando um homem está trabalhando e chega um amigo, ele diz: meu amigo veio para que eu não trabalhe mais hoje. Ora, não foi para que ele não trabalhasse que seu amigo veio, mas é isso que acabou acontecendo: a recepção ao amigo não lhe deixou mais tempo, de sorte que ele parou seu trabalho. Nesse caso, estamos falando de resultados, pois assim é que aconteceram as coisas. De resto, Deus não pretende ser o único justo: ele quer que todos nos assemelhemos a ele na medida de cada qual.


93 (IV, 20)
Que não existem dois princípios

Eis aqui um ponto de partida para saber que não existem dois princípios, o bom e o mal. O bom e o malsão contrários um ao outro, eles se destroem mutuamente, eles não podem existir um dentro do outro. Por conseguinte, cada um deles estará encerrado numa parte do todo. E desde logo eles estarão circunscritos não apenas pelo todo, mas cada qual por uma parte do todo.

A partir daí, quem assinalará a cada um seu lugar? Pois não se pode dizer que eles entraram em entendimento e que fizeram um pacto, pois se o mal fizer a paz e selar um pacto com o bem, ele não será o mal, do mesmo modo como o bem não será o bem se tiver laços de amizade com o mal. Mas se alguém assinalou a cada um deles seu lugar próprio, será este, e não nenhum deles, o Deus.

Das duas uma, forçosamente: ou bem eles se tocam e se destroem mutuamente, ou existe um intermediário qualquer no qual não existe nem bem nem mal, uma espécie de divisão que separa um do outro. E, nesse caso, não haverá dois princípios, mas três.

Mais uma vez, necessariamente, das duas uma: ou bem eles vivem em paz, coisa de que o mal é incapaz (pois quem vive em paz não é mau), ou eles se combatem, coisa de que o bem não é capaz (pois aquele que se bate não é perfeitamente bom); ou bem o mal combate o bem sem que este reaja; mas nesse caso ele seria destruído pelo mal, ou constrangido e atormentado, coisas que não são marcas do bem. Portanto, não pode haver senão um princípio bom, desembaraçado de toda maldade.

Mas se é assim, de onde provém o mal? É impossível que ele extraia sua origem do bem. Nós afirmamos assim que o mal não é outra coisa do que a privação do bem, um desvio que faz com que se vá do que é conforme a natureza para aquilo que lhe é contrário. Pois nada do que é conforme a natureza é mau. Tudo o que Deus fez é muito bom, na medida em que se tornou existente. Na medida em que esses seres permanecem no estado em que foram criados, eles são muito bons; mas se, voluntariamente, eles se desviam do que é conforme a natureza e se dirigem para o que é contrário à natureza, eles caem no mal.

A conformidade com a natureza é, portanto, para todas as coisas, submissão e obediência ao criador. Mas se voluntariamente uma das criaturas se rebela e se torna desobediente em relação àquele que a fez, ela instala a maldade em si própria. A maldade, de fato, não é nem uma substância, nem uma propriedade de uma substância, mas um acidente, ou seja, um desvio voluntário de um estado conforme a natureza para um contrário a ela, e é nisso que consiste o pecado.

De onde, então, provém o pecado? Trata-se de uma invenção da livre decisão do diabo. Será então que o diabo é mau? Na medida em que ele veio à existência, ele não era mau, ele era bom. Ele foi criado por seu autor como um anjo brilhante de esplendor e luz. Mas, dotado de livre arbítrio enquanto ser racional, ele voluntariamente se afastou da virtude conforme à sua natureza para se lançar para sempre nas trevas da maldade, afastado de Deus, o único bom[285] e autor da luz. Pois é de Deus que tudo o que é bom extrai sua bondade, e, na medida em que nos afastamos dele por uma livre decisão (não por uma localização), nos encontramos no mal.


94 (IV, 21)
Porque Deus, na sua presciência, criou seres
que pecam sem arrependimento?

Deus, em sua bondade, fez passar do nada à existência tudo o que está submetido ao devir, e ele tem a presciência de tudo o que acontecerá. Assim, se os seres não estivessem destinados a existir, eles tampouco teriam chance de serem maus, e não estariam incluídos nessa presciência. Com efeito, os conhecimentos se referem ao que existe e as presciências ao que obrigatoriamente existirá; em primeiro lugar vem a existência, e depois o fato de ser bom ou mau. Se, uma vez que a bondade de Deus os destinou à existência, caso o fato de serem maus por uma escolha os impedisse de existir, o mal estaria superando a bondade de Deus. Por conseguinte, Deus criou bom tudo o que ele criou, e cada qual, por sua própria escolha, se torna bom ou mau. É verdade que o Senhor disse: “Melhor seria para esse homem que não houvesse nascido[286]”. Isso, porém, não equivale a declarar como má sua criação, mas a reconhecer que o mal sobreveio à sua criatura em decorrência de sua escolha pessoal e de sua negligência. Com efeito, a negligência em sua decisão torna vã para esse homem a liberalidade de seu criador. É como alguém que, depois de ter recebido das mãos de um rei riqueza e poder, impusesse suas próprias vontades arbitrárias ao seu benfeitor; este, depois de prendê-lo, o punirá como merecido, se ele tentar persistir até o fim em suas intenções arbitrárias.


95 (IV, 22)
Lei de Deus e lei do pecado

A divindade é boa, ela é eminentemente boa, assim como sua vontade. Com efeito, tudo o que Deus quer é bom. E o preceito que aquilo que ele quer nos ensina é a lei, a fim de que, permanecendo nela, estejamos na luz[287]. Transgredir o preceito dessa lei é o pecado. Esse pecado ganha consistência pelo assalto do diabo e por causa de uma aceitação sem contraposição, e plenamente voluntária de nossa parte. Ele também recebe o nome de lei[288].

Apossando-se de nosso intelecto, a lei de Deus nos atrai para si e aguilhoa nossa consciência. Aliás, nossa consciência também é chamada de nosso intelecto. E o assalto do maligno, ou seja, a lei do pecado, invade os membros de nossa carne e nos assalta por intermédio dela. Basta que por uma única vez venhamos a transgredir voluntariamente a lei de Deus e acolhermos o assalto do maligno, para que ele se interiorize em nós e sejamos vendidos por nós mesmos ao pecado[289]. Daí vem a propensão que empurra nosso corpo ao pecado. Por isso chamamos também a isso de lei inscrita em nossa carne, essa sensibilidade para o pecado que se encontra em nosso corpo, também chamada de concupiscência e de prazer do corpo.

É assim que de um lado nosso intelecto, ou seja, a consciência, se compraz na lei de Deus, ou seja, em seu preceito, e a deseja. De outro lado, a lei do pecado, ou seja, o assalto conduzido pela lei que reside em nossos membros, ou seja, pela concupiscência, a inclinação, o movimento do corpo assim como da parte irracional da alma, faz campanha contra a lei do intelecto, a consciência, e a reduzirá à escravidão, mesmo que eu respeite a lei de Deus, mesmo que eu o ame, mesmo que eu não consinta no pecado; ao se misturar a nós, graças à doçura do prazer, da concupiscência do corpo e da parte irracional da alma, como eu disse, ela irá me desorientar e me persuadir a servir ao pecado. Mas “o que era impossível à lei, por ter sido ela reduzida à impotência pela carne, Deus o realizou ao enviar seu Filho numa carne semelhante àquela do pecado (pois ele assumiu a carne, mas não o pecado). Ele condenou o pecado na carne, a fim de que a justiça exigida pela lei se realizasse em nós, que não caminhamos sob o império da carne, mas do Espírito[290]”. Pois “o Espírito vem em socorro de nossa fraqueza[291]” e fornece à lei de nosso intelecto uma força contra a lei que está em nossos membros. Com efeito, “nós não sabemos orar como se deve, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis[292]”, o que quer dizer que ele nos ensina qual objetivo deve ter nossa oração. Dessa forma, é impossível realizar os mandamentos de Deus senão pela paciência e a oração.


96 (IV, 23)
Contra os judeus, a respeito do sábado

O sétimo dia da semana é chamado de sábado, que significa repouso; com efeito, foi nesse dia que Deus descansou de suas obras, conforme diz a Escritura[293]. Eis porque o número dos dias avança até sete[294] e recomeça um ciclo a partir do primeiro dia. Esse número é honrado entre os judeus, porque Deus estabeleceu que ele fosse honrado não de modo ocasional[295], mas com pesadas penas em caso de transgressão. E suas prescrições não eram neutras, mas motivadas por causas misticamente perceptíveis às inteligências dotadas de penetração espiritual.

Na medida em que eu entendo, eu, o ignorante, e partindo dos argumentos mais baixos e mais grosseiros, Deus conhecia a grosseria, a atração pela carne e, numa palavra, a inclinação ao pecado do povo de Israel, bem como sua falta de discernimento. Seu primeiro objetivo foi o de buscar um repouso ao servidor e à besta de carga, como está escrito, pois “um homem tem piedade de sua besta de carga[296]”. Ao mesmo tempo, Deus queria que, libertando-se de sua atração pela matéria, os israelitas se reunissem diante dele com “salmos, hinos e cânticos espirituais[297]”, consagrando todo o sétimo dia à meditação das santas Escrituras e colocando em Deus seu repouso. De fato, quando ainda não existia nem lei nem “Escritura inspirada[298]”, nem por isso o sábado deixou de ser consagrado a Deus. Mas, uma vez que a Escritura inspirada foi dada por Moisés, o sábado foi consagrado a Deus para que se entretivessem com a lei e a meditassem aqueles que não podiam consagrar a Deus toda sua vida, aqueles que não serviam por amor ao soberano como a um Pai, mas que, como escravos ingratos, reservavam apenas uma parte a Deus, a menor possível, e ainda assim por medo de prestar contas e de receber castigos em casos de transgressão.  “Pois a lei não foi feita para o justo[299]”, mas para os injustos. Da mesma forma, quando Moisés, primeiramente, se colocou diante de Deus para um jejum de quarente dias, depois para outro jejum de quarente dias ainda[300], ele certamente mortificou pelo jejum o dia de sábado, embora a lei interditasse aos judeus mortificar pelo jejum o sábado. Se eles dizem que isso se passou antes da lei, que dirão de Elias o Tesbita[301], que chegou a realizar uma viagem de quarenta dias alimentando-se uma única vez[302]? Esse homem rompeu o sábado mortificando-se não apenas pelo jejum, mas por uma viagem durante os sábados desses quarenta dias, sem que aquele que deu a lei tenha se irritado contra ele; ao contrário, ele o recompensou por sua virtude, manifestando-se a ele sobre o Horeb. Que dirão eles de Daniel[303]? Não passou ele três semanas sem alimento? Que dizer de todo o povo de Israel? Não se faz a circuncisão ao oitavo dia, mesmo que este coincida com o sábado[304]? Não se jejua durante o grande jejum prescrito pela lei, mesmo se ele coincidir com o sábado[305]? E os sacerdotes e os levitas de serviço no tabernáculo, “não violam o sábado sem serem culpados[306]”? Mesmo para o gado, se ele cair num buraco num sábado[307], aquele que o tirar de lá não é culpado, mas o que o negligenciou é condenado. Que dizer de todo o povo de Israel? Não carregaram eles, por sete dias, a arca de Deus ao redor das muralhas de Jericó, tempo durante o qual certamente aconteceu um sábado[308]?

Como eu disse, foi para que houvesse tempo para Deus e para que se reservasse a ele uma parte, por pequena que fosse, para que o escravo e a besta de carga pudessem descansar, que foi estabelecida a observância do sábado, com a intenção dos homens ainda infantis e “sujeitos aos elementos do mundo[309]”, dos homens carnais e incapazes de compreender algo além do corpo e da letra. “Mas quando veio a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho único, homem nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para resgatar aqueles que estavam sob a lei, para que nós recebêssemos a adoção[310]”. Pois a nós que o recebemos, que cremos nele, “ele concedeu o poder de nos tornarmos filhos de Deus[311]”. De tal maneira que já não somos escravos, mas filhos[312], não mais sob a lei, mas sob a graça[313], não mais de modo a assegurar por medo um serviço parcial ao Senhor, mas estabelecidos em consagrar-lhe todo o tempo de nossas vidas, afastando constantemente o escravo do pecado, da ira e do desejo, e exortando-os a liberar todo seu tempo para Deus. Que o desejo se volte sempre e completamente para Deus; que a ira se arme contra os inimigos de Deus. Não deixando repousar a besta de carga, ou seja, o corpo, em relação à escravidão do pecado, ao contrário empurremo-la para que se coloque a serviço dos mandamentos divinos.

É isso que nos ordena a lei espiritual do Senhor, e aqueles que a observam estão acima da lei mosaica, pois quando veio aquilo que é perfeito[314], o que era parcial foi abolido, e quando o véu da lei, ou seja a cortina do templo[315], foi rasgado pela crucificação do salvador, e que o Espírito brilhou em línguas de fogo[316], a letra foi abolida, o carnal encontrou seu fim, a lei da servidão foi finalizada e a lei da liberdade[317] nos foi dada. Assim é que celebramos o repouso perfeito da natureza humana, vale dizer, o dia da Ressurreição[318]. Nesse dia, o Senhor Jesus, princípio da vida e salvador, nos introduziu à herança prometida àqueles que adoram a Deus em espírito; nesse dia ele a recebeu como nosso predecessor[319], tendo ressuscitado dos mortos e vendo as portas do céu abertas para ele, e assim assentou-se em seu corpo à direita do Pai[320], ali para onde irão também os que observam a lei espiritual.

Assim sendo, para nós que caminhamos segundo o espírito e não segundo a letra, trata-se da renúncia a tudo o que é carnal, trata-se da adoração em espírito, trata-se da união com Deus. É com efeito uma circuncisão a renúncia ao prazer do corpo e ao supérfluo desprovido de necessidade. Pois o prepúcio não é outra coisa que uma pela supérflua da parte voluptuosa. Pois todo prazer que não vem de Deus e que não está em Deus é um prazer supérfluo, figurado pelo prepúcio. O repouso distante do pecado é, por sua vez, um sábado. Dessa maneira, a circuncisão e o sábado são uma só e mesma coisa, e assim realizados conjuntamente pelos espirituais, não constituem a menor violação da lei.

É preciso ainda saber que o número sete designa o conjunto do tempo presente, nas palavras do sábio Salomão: “Reparta com sete e até mesmo com oito[321]”. E Davi, inspirado, salmodiando sobre a oitava, salmodiava a respeito da catástase[322] que viria depois da ressurreição dos mortos[323]. Portanto, a lei, ao prescrever a detenção ao sétimo dia do trabalho do corpo e sua liberação tendo em vista as coisas espirituais, sugeria misticamente ao verdadeiro Israel, àquele cujo intelecto via a Deus, que se aproximasse durante todo o tempo de Deus e ficar acima das coisas do corpo.


97 (IV, 24)
A Virgindade

Os carnais[324] denigrem a virgindade e os amigos do prazer produziram esse testemunho: maldito seja todo homem que não produz semente para Israel[325]. Quanto a nós, que colocamos nossa confiança no Verbi de Deus que tomou a carne de uma virgem, afirmamos que a virgindade foi implantada na natureza humana desde o alto e desde a origem. O homem, com efeito, foi moldado a partir de uma terra virgem; foi apenas de Adão que Eva foi criada, no paraíso, onde a virgindade era o estado da vida. Efetivamente, a divina Escritura afirma que “Adão e Eva estavam nus e não se envergonhavam[326]”. Mas quando eles cometeram a transgressão, “eles conheceram que estavam nus[327]” e, tomados pela vergonha, costuraram tangas para si. A seguir, depois da transgressão, “porque são terra e retornarão à terra[328]”, quando a morte penetrou no mundo por intermédio da transgressão[329], “Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e gerou[330]”. Assim, o casamento foi inventado para evitar a desaparição e a supressão da espécie pela morte; e, pela procriação, o gênero humano foi preservado.

Mas podemos nos perguntar: o que significam então “macho e fêmea[331]” e “crescei e multiplicai-vos[332]”? A isso responderemos que “crescei e multiplicai-vos” não indica necessariamente a multiplicação pela união conjugal. Pois Deus poderia ter multiplicado a espécie de outras maneiras, caso seu preceito houvesse permanecido inviolado até o fim. Mas Deus sabia, em sua presciência, “ele, que sabe todas as coisas antes que aconteçam[333]”, que os homens iriam transgredir e ser condenados à morte; previdentemente, ele criou o macho e a fêmea e lhes ordenou crescer e multiplicar-se. Mas voltemos ao nosso caminho e vejamos as vantagens da virgindade, o que equivale a falarmos também da castidade.

Quando Noé recebeu o comando de entrar na arca e salvaguardar as semente do mundo, ele recebeu a seguinte ordem: “Entre você, seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos[334]”. Ele separou os homens de suas esposas para que, com a ajuda da castidade, escapassem do abismo e do naufrágio universal. Mas quando cessou o dilúvio, a ordem foi: “Saiam, você, sua mulher, seus filhos e as mulheres de seus filhos[335]”. Eis que novamente, tendo em vista a multiplicação, o casamento foi autorizado. Em seguida, Elias, este auriga, esse viajante celeste do redemoinho de fogo[336], não abraçou ele com alegria o celibato e sua exaltação acima dos homens, não foi ele um testemunho disso? Quem fechou os céus? Quem ressuscitou os mortos[337]? Quem dividiu as águas do Jordão[338]? Não foi Elias, com sua virgindade? Eliseu, seu discípulo, não deu prova de igual virtude, recebendo ainda o dobro da porção da graça do Espírito que havia pedido[339]? Que dizer dos três santos jovens[340]? Por praticarem a virgindade, não se tornaram eles mais fortes do que o fogo, não se tornaram seus corpos indestrutíveis ao fogo devido a essa virgindade? E Daniel, cujo corpo fora fortificado pela virgindade, não viu os dentes das feras se tornarem impotentes para feri-lo[341]? Quando Deus estava a ponto de se manifestar aos israelitas, não ordenou a eles que conservassem castos seus corpos[342]? Não observavam seus sacerdotes a castidade quando penetravam no santuário para aí oferecer sacrifícios[343]? Não tratou a lei a castidade como uma grande voto[344]?

É preciso assim compreender a prescrição da lei no sentido mais espiritual. Com efeito, existe uma semente espiritual concebida pelo amor e o temos a Deus no seio de nossa alma, que sofre as dores e gera um espírito de salvação. É assim que deve ser entendida essa frase: “Bem-aventurados os que possuem uma semente em Sião e os que abrigam seu próximo em Jerusalém[345]”. Como então, seremos nós pervertidos, bêbados ou idólatras[346], ou seremos bem-aventurados por possuirmos uma semente em Sião e abrigarmos nossos irmãos em Jerusalém? Nenhuma pessoa de bom senso sustentará tal opinião.

A condição dos anjos, característica de toda natureza incorpórea, é a virgindade. Não o afirmamos para difamar o casamento – Deus não o permita! – (pois sabemos que o Senhor abençoa o casamento com sua presença[347] e que foi ele quem disse: “O casamento é honrado e o leito conjugal é sem mácula[348]”), mas para que as pessoas estejam conscientes de que a virgindade é superior a este bem que é o casamento. Com efeito, existem tensões e relaxamentos em matéria de virtudes, tanto quanto de vícios. Sabemos que todos os mortais nasceram de um casamento, depois dos fundadores da raça humana. Estes, com efeito, foram obra de uma modelagem virginal, não de um casamento. Por conseguinte, na mesma medida em que o anjo é superior ao homem, é a virgindade mais preciosa do que o casamento. Mas por que falamos de anjos? O próprio Cristo é a glória da virgindade: sem contar o fato de ter sido gerado pelo Pai sem começo e sem junção, mesmo tendo se tornado homem como nós, ele tomou a carne de modo superior ao nosso, a partir de uma virgem sem união conjugal, e manifestou em si mesmo a virgindade autêntica e total. Eis porque ele não fez disso uma lei para nós (pois “nem todos compreendem essas palavras[349]”, como ele próprio disse), mas nos ensinou em ato, e nos concedeu a força de praticar a virgindade. Pois não é evidente que hoje em dia a virgindade tem passe livre entre os homens?

A fecundidade que resulta do casamento é boa, como bom é o casamento, por que ele impede as perversões e porque, graças à união legítima, ele não deixa que o delírio do prazer conduza loucamente às ações ilegítimas[350]. O casamento é bom sempre que não existe o domínio de si; a virgindade é melhor na medida em que faz crescer a fecundidade da alma e entrega a Deus um fruto maduro, a prece. “O casamento é honrado e o leito conjugal é sem mácula; mas Deus julgará os pervertidos e os adúlteros[351]”.


98 (IV, 25)
A circuncisão

A circuncisão foi dada a Abrahão antes da lei[352], mas após as bênçãos e a promessa[353], como um sinal que o colocava, a ele e às pessoas de sua casa, à parte das nações com as quais ele vivia. A prova disso é que enquanto Israel viveu só durante quarenta anos no deserto, sem se misturar com nenhuma outra nação, ninguém que nasceu no deserto foi circuncidado. Mas no tempo em que Josué os fez atravessar o Jordão, eles foram circuncidados e uma segunda lei de circuncisão foi promulgada. Com efeito, na época de Abrahão foi dada uma lei de circuncisão, que depois deixou de ser observada no deserto durante quarenta anos. Novamente, pela segunda vez, Deus deu uma lei de circuncisão a Josué depois da travessia do Jordão, como está escrito no Livro de Josué, filho de Navé: “Fabrique facas de pedra e faça uma nova circuncisão dos israelitas[354]”, e logo adiante: “Os israelitas tinham caminhado pelo deserto durante quarenta anos, até que desapareceu toda a geração de guerreiros que tinham saído do Egito e que não obedeceram a Deus. O Senhor lhes havia jurado que eles não veriam a terra que Javé tinha jurado dar a seus antepassados, uma terra onde corre leite e mel. O Senhor, porém, deu descendentes para eles, e foi a estes que Josué circuncidou, pois estavam sem circuncisão, uma vez que não tinham sido circuncidados no caminho[355]”. Assim é que a circuncisão era o sinal que separava Israel das nações entre as quais vivia.

Outra coisa acontece com a imagem do batismo. De fato, assim como a circuncisão retira do corpo não uma parte útil, mas um excesso que de nada serve, também pelo santo batismo nós retiramos o pecado. Como toda evidência, o pecado constitui o supérfluo do desejo, e não um desejo útil (pois é impossível escapar totalmente ao desejo ou jamais experimentar prazer algum). O que existe de inútil no desejo, ou seja o prazer e o desejo inúteis, é o próprio pecado, e é isso que o batismo retira quando recebemos o sinal da cruz sobre a fronte; ele não nos separa das nações (pois todas as nações receberam o batismo e foram marcadas com o sinal da cruz), mas em cada nação ele distingue o fiel do descrente. Agora, uma vez que a verdade foi manifestada, a figura e a sombra se tornaram vãs. Assim, a circuncisão hoje é supérflua e contrária ao santo batismo. Pois quem é circuncidado está obrigado a observar a totalidade da lei[356]; ora, o Senhor, para cumprir a lei, foi circuncidado e observou toda a lei incluindo o sábado, a fim de realizar a lei e levá-la à perfeição[357]. Mas a partir do momento em que foi batizado e que o Espírito Santo se manifestou aos homens na forma de uma pomba[358], descendo sobre ele, o culto e a vida em espírito, bem como o reino dos céus, foram doravante proclamados.


99 (IV, 26)
Sobre o Anticristo

Devemos saber que o Anticristo virá. É claro que todo homem que não confessa que o Filho de Deus, que é Deus, já veio em carne, sendo Deus perfeito e tendo se tornado homem perfeito, permanecendo sempre Deus[359], já é um anticristo. Entretanto, chamamos de Anticristo de modo especial e eminente aquele que virá no final dos tempos[360]. É preciso, por conseguinte, que o Evangelho tenha sido anunciado previamente a todas as nações[361], como disse o Senhor, e que então ele virá para convencer do erro os judeus hostis a Deus. Com efeito, o Senhor lhes disse: “Eu vim em nome do Pai e vocês não me receberam. Um outro virá em seu próprio nome, e vocês o receberão[362]”. E o Apóstolo: “Como eles não acolheram o amor da verdade em vista de serem salvos, e por essa razão, Deus enviará sobre eles uma força de cegueira para que eles creiam na mentira, de sorte que serão julgados todos os que não creram na verdade e se tornaram cúmplices da injustiça[363]”. Portanto, os judeus não acolheram o Senhor Jesus Cristo, que era Filho de Deus e Deus, mas acolherão àquele que os perderá[364], dizendo-se Deus. Que ele se autoproclamará Deus, é o que ensinou o anjo a Daniel, nos seguintes termos: “Ele considerará como nada os deuses de seus pais[365]”. E o Apóstolo disse: “Que ninguém os seduza de modo algum. É preciso que primeiro venha a apostasia e que o homem injusto se revele, o filho da perdição, o adversário que se levanta contra Deus e contra toda piedade, a ponto de se sentar no templo de Deus e de se declarar Deus[366]”. “No templo de Deus”: não no nosso, mas no antigo, o templo dos judeus; pois ele não virá entre nós, mas entre os judeus, não por Cristo, mas contra Cristo e contra os que são de Cristo. É por isso que o chamamos de Anticristo.

Foi preciso assim que antes o Evangelho tivesse sido proclamado[367] a todas as nações. “Então será manifestado o ímpio, cuja vinda será marcada pela atividade de Satanás, com toda espécie de obras de poder, de sinais e de prodígios enganadores, com toda sorte de seduções e de injustiça para aqueles que se perderem; a este o Senhor destruirá com a palavra de sua boca e o reduzirá a nada com a parúsia de sua manifestação[368]”. Por conseguinte, não será o próprio diabo que se tornará homem, como o Senhor se tornou homem – que não o permita Deus! – mas será um homem a gerar a perversão e que se tornará o suporte da atividade de Satanás. Com efeito, Deus, prevendo a extravagância de sua futura escolha, permitirá que nele o diabo faça sua morada.

Assim, dizemos nós, ele irá gerar a perversidade; ele crescerá sem que ninguém perceba e subitamente ele se erguerá, se rebelará e se fará rei. Depois, no início de seu reinado, ou melhor de sua tirania, ele tomará a máscara da justiça; mas ao firmar seu poder ele perseguirá[369] a Igreja de Deus e manifestará toda sua maldade. Ele virá “com sinais e prodígios enganadores[370]”, fabricados mas não verdadeiros, e àqueles cuja inteligência estiver degradada e instável ele enganará e afastará de Deus, a ponto de fazer tremer, “se possível fosse, mesmo os eleitos[371]”.

Enoque e Elias o Tesbita[372] serão enviados para entregar os corações dos pais aos filhos, ou seja, a sinagoga para nosso Senhor Jesus Cristo e para a predicação dos apóstolos, e eles serão transportados por ele. E o Senhor virá do céu da e maneira como os apóstolos o viram subir ao céu[373], perfeito Deus e perfeito homem, com glória[374] e poder, e ele destruirá o homem injusto, o filho da perdição[375], com o sopro de sua boca. Que ninguém espere o Senhor vindo da terra, mas do céu, como ele próprio nos assegurou[376].


100 (IV, 27)
A Ressurreição

Nós acreditamos também nas ressurreição dos mortos. Pois haverá, haverá realmente a ressurreição dos mortos. Quando falamos de ressurreição, entendemos com isso a ressurreição dos corpos. Com efeito, uma ressureição é um novo erguimento daquilo que estava caído; ora, sendo as almas imortais, como poderiam elas ressuscitar? Pois se definirmos a morte como a separação entre alma e corpo, a ressurreição será sem dúvida uma nova conjunção entre a alma e o corpo, um segundo levantamento do ser vivo que estava dissolvido e tombado. O próprio corpo que estava corrompido e dissolvido ressuscitará então, incorruptível[377]; pois não falta poder àquele que na origem constituiu esse corpo a partir do pó da terra[378] a fim de ressuscitá-lo depois dele ter novamente sido dissolvido para retornar à terra da qual fora tirado[379] por uma decisão do Criador.

Com efeito, se não houver ressurreição, “comamos e bebamos[380]” e levemos uma vida de prazeres e alegrias. Se não existir a ressurreição, em que nos diferenciaremos dos seres irracionais? Se não existir a ressurreição, devemos considerar mais felizes os animais nos campos, pois suas vidas transcorrem sem tristeza. Se não existir a ressurreição, não existirá nem Deus nem Providência, e tudo será conduzido pelo acaso. Pois aqui vemos um sem-número de justos submetidos à pobreza e à injustiça, sem obter nenhuma contrapartida na vida presente, enquanto que pecadores e injustos vivem na riqueza e na volúpia mais total. Ora, quem de bom senso veria nisso a obra de um juízo equitativo[381] ou de uma sábia Providência? Haverá, portanto, haverá sim uma ressurreição, pois Deus é justo[382] e concede uma recompensa[383] aos que o esperam com paciência. Se somente a alma se colocasse no combate pela virtude, somente ela seria coroada. E se somente ela chafurdasse nos prazeres, somente ela seria castigada; mas como a alma não possui uma existência separada e não participa sem o corpo nem da virtude nem do vício, é justo que os dois acedam juntos à recompensa.

A santa Escritura dá testemunho da futura ressurreição dos corpos. Com efeito, Deus disse a Noé após o Dilúvio: “Da mesma forma como os legumes herbáceos, eu lhes dei todas as coisas; mas não comam a carne com o sangue de sua alma; efetivamente, eu pedirei contas do sangue de suas almas a todo animal, e pedirei contas também a todo humano sobre a alma de seu irmão. Quem derramar o sangue do homem verá seu sangue derramado em troca, porque eu fiz o homem à imagem de Deus[384]”. Como pediria Deus contas do sangue do homem a todos os animais[385], senão porque ele irá ressuscitar os corpos dos homens mortos? Pois os animais não morrem em troca dos homens. E também disse Deus a Moisés: “Eu sou o Deus de Abrahão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Deus não é o Deus dos mortos[386]”, o Deus dos defuntos que não mais existirão, mas dos vivos cujas almas vivem em sua mão[387], cujos corpos viverão pela ressurreição. E o ancestral de Deus, Davi, disse a Deus: “Você retirará deles o sopro, eles expirarão e retornarão ao pó[388]”. Essa proposta se refere aos corpos. A seguir ele acrescenta: “Você enviará seu sopro e eles serão criados, e você renovará a face da terra”. E Isaías: “Os mortos ressuscitarão e se levantarão aqueles que estavam na tumba[389]”. Ora, é evidente que não são as almas que estão depositadas nos túmulos, mas os corpos. E o bem-aventurado Ezequiel diz: “Eis que, enquanto eu profetizava, houve um tremor de terra, e os ossos se aproximaram, osso contra osso, cada qual adaptado ao seu lugar. E eu vi que surgiram os nervos, que carnes os envolveram, que sobre eles estendeu-se a pele para os recobrir[390]”. A seguir ele nos ensona como, convocados a se abater sobre eles, vieram os ventos[391]. E o divino Daniel: “Nesse tempo se levantará Miguel, o grande príncipe que protege o povo ao qual você pertence: será uma hora de grandes apertos, tais como jamais houve, desde que as nações começaram a existir, até o tempo atual. Então o seu povo será salvo, todos os que estiverem inscritos no livro. Muitos que dormem no pó despertarão: uns para a vida eterna, outros para a vergonha e a infâmia eternas. Os que forem reunidos brilharão com o esplendor do firmamento, e dentre a multidão dos justos brilharão para sempre como estrelas[392]”. Ao falar dos muitos que dormem no pó da terra e que despertarão, ele afirma evidentemente a ressurreição dos corpos; pois ninguém dirá que são as almas que dormem no pó da terra. De resto, o próprio Senhor, nos santos Evangelhos, nos transmitiu claramente a doutrina da ressurreição. “Porque vai chegar a hora em que todos os mortos que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho, e sairão dos túmulos: aqueles que fizeram o bem, vão ressuscitar para a vida; os que praticaram o mal, vão ressuscitar para a condenação[393]”. Ora, que homem de bom senso afirmaria jamais que nos túmulos estão as almas?

Mas não foi apenas através de palavras, mas de ações que o Senhor salientou a ressurreição dos corpos. Em primeiro lugar, ele ressuscitou a Lázaro que já estava morto há quatro dias e fedia[394]. Pois ele não ressuscitou apenas uma alma desprovida de corpo, mas um corpo com sua alma, e também não outro corpo mas aquele mesmo que estava corrompido. De fato, como seria possível reconhecer a ressurreição daquele que estava morto, como teriam acreditado nisso, se as propriedades características daquela pessoa não ressurgissem com ela? No entanto ele ressuscitou Lázaro para demonstrar sua própria divindade e inspirar a fé em sua própria ressurreição e também na nossa; mas Lázaro voltaria a morrer. Pelo contrário, o Senhor fez de si as primícias da ressurreição perfeita, definitivamente subtraída à decadência da morte. É por isso que o divino apóstolo Paulo diz: “Se os mortos não ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou. Portanto, nossa fé terá sido em vão, e permaneceremos sempre em pecado[395]”. E: “Cristo ressuscitou, primícias daqueles que dormem[396]”. E: “Primeiro nascido de entre os mortos[397]”, e também: “Pois se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, também os que estão adormecido, Deus, por intermédio de Jesus, os levará para junto de si[398]”. “Também”, disse ele, ou seja, do mesmo modo como Cristo ressuscitou.

Que a ressurreição do Senhor tenha sido a reunião de um corpo não corrompido com uma alma (pois foi essa a separação), é coisa evidente. Com efeito, ele disse: “Destruam esse templo e em três dias eu o reconstruirei[399]”. Ora, podemos confiar no testemunho do santo Evangelho de que ele falava de seu próprio corpo. “Apalpem-me e vejam”, disse o Senhor aos seus discípulos que acreditavam ver um espírito, “sou eu, que não mudei em nada; um espírito não possui carne nem ossos, como vocês podem constatar que eu possuo[400]. E dizendo isso ele lhes mostrou as mãos e o lado[401]”, que ele apresentou também a Tomé para que o tocasse: não é o bastante para que creiamos na ressurreição dos corpos?

O divino apóstolo diz ainda: “É preciso ainda que esse ser corruptível se revista de incorruptibilidade e que esse ser mortal se revista de imortalidade[402]”. E também: “Fomos semeados corruptíveis e nos levantaremos incorruptíveis; fomos semeados fracos e nos ergueremos fortes; fomos semeados desprezíveis e nos ergueremos gloriosos; fomos semeados como corpos psíquicos – ou seja, grosseiros e mortais – e nos levantaremos como corpos espirituais[403]”, imutáveis, impassíveis, sutis que é o significado de espiritual. Assim é que o corpo do Senhor, depois da ressurreição, atravessava portas fechadas[404], não sentia fadiga, não tinha necessidade de alimento, nem se sono, nem de bebida. Pois eles serão, disse o Senhor, como os anjos de Deus[405], sem casamento nem gravidez. Da mesma forma o apóstolo diz: “Quanto anos, nossa cidade está nos céus, de onde esperamos nosso Senhor Jesus Cristo como nosso salvador, que transfigurará nosso corpo de miséria para torná-lo conforme ao seu corpo de glória[406]”; ele não fala de mudança para outra forma, jamais!, mas de passagem da corrupção[407] à incorruptibilidade.

Mas podemos nos perguntar: “Como poderão os mortos se levantar?[408]”. Quanta falta de fé! Que bobagem! Aquele que por sua simples vontade transformou pós num corpo, que pré-ordenou o desenvolvimento no seio maternal de uma gota de semente nesse organismo diversificado e complexo que é o corpo acabado, não poderá ele por um ato de sua vontade ressuscitar aquele que nasceu e se dissolveu? “Com que corpo voltarão? Insensato[409]”, se seu endurecimento o impede de crer nas palavras de Deus, creia ao menos nas suas obras[410]. “Pois aquilo que você semeia não renasce sem antes morrer; e o que você semeia não é o corpo que virá, mas um simples grão, por exemplo do trigo ou de qualquer outra planta. Deus, por seu lado, lhe dá um corpo tal como dispôs e dá a cada semente um corpo particular[411]”. Considere, por conseguinte, que as sementes são enterradas em sulcos como se fossem túmulos. Quem lhe impõe as raízes, o caule, as folhas e depois as espigas e as franjas delicadas das espigas? Não será o criador do universo? Não será por ordem daquele que construiu todas as coisas? Do mesmo modo, creia também que a ressurreição dos mortos acontecerá pela vontade e por meio de um sinal de Deus: pois nele o poder e a vontade estão juntos.

Por conseguinte, ressuscitaremos, e nossas almas serão novamente reunidas aos nossos corpos agira incorruptíveis e libertos da corrupção; e assim iremos nos apresentar diante do temível tribunal de Cristo[412]. O diabo e seus demônios[413], com seu vassalo, ou seja, o Anticristo, bem como os ímpios e os pecadores, serão atirados ao fogo eterno[414], fogo não material como o nosso, mas como só Deus sabe. Então, aqueles que tiverem feito o bem resplandecerão como o sol[415] com os anjos para a vida eterna[416], junto com nosso Senhor Jesus Cristo; nós o veremos como somos vistos, e traremos o fruto da alegria sem fim que dele provém.  

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[1] Cf. Lucas 24: 43.
[2] Cf. Marcos 16: 19.
[3] Atos 1: 11.
[4] Tecido utilizado para as vestes imperiais.
[5] Cf. Gênesis 1: 26.
[6] Sabedoria 2: 23.
[7] II Coríntios 6: 14.
[8] Cf. I Coríntios 15: 20.
[9] Cf. Êxodo 14: 16.
[10] Cf. Números 16: 32.
[11] Cf. Números 16: 35.
[12] Cf. Levítico 20: 2.
[13] Gregório de Nazianze, Orações 30, 21.
[14] Cirilo de Alexandria, De recta fide ad Theodosium imp., PG 76, 1173 C 2-5.
[15] Cf. Salmo 44: 8; Hebreus 1: 9.
[16] Cirilo de Alexandris, De recta fide ad Reginas, PG 76, 1220 C 8 – D 4.
[17] Atanásio de Alexandria, Contra Apollimnarium liber sec, PG 26, 1133 B 4-9.
[18] Salmo 44: 8.
[19] Baruch, 3: 38.
[20] Salmo 136: 1.
[21] Colossenses 1: 15.
[22] Romanos 8: 29.
[23] Cf. Hebreus 2: 14.
[24] João 20: 17.
[25] Cf. Romanos 6: 3-4.
[26] Cf. Mateus 28: 19.
[27] Hebreus 6: 4.6.
[28] Romanos 6: 3.
[29] Cf. Mateus 16: 16.
[30] Cf. Atos 10: 38.
[31] Salmo 44: 8.
[32] Isaías 61: 1.
[33] Mateus 28: 19.
[34] Cf. Sabedoria 2: 23.
[35] Cf. João 9: 34.
[36] Id.
[37] Cf. João 3: 5.
[38] Gênesis 1: 26.
[39] Cf. II Coríntios 1: 22.
[40] Gênesis 1: 2.
[41] Cf. Gênesis 6: 17.
[42] Cf. Levítico 15: 10.
[43] Cf. 3 Reis 18: 34.
[44] Cf. Romanos 8: 23.
[45] Essas quatro palavras (arch, sjragis, julakthrion,jwtismos ) expressam o essencial de toda a teologia dos sacramentos.
[46] Cf. Atos 16: 23.
[47] Cf. II Pedro 2: 22.
[48] Tiago 2: 20.
[49] Cf. Gênesis 7: 17.
[50] Cf. I Colossenses 10: 2.
[51] Cf. Levítico 14: 8.
[52] Mateus 3: 11.
[53] Cf. Salmo 73: 13.
[54] Cf. Mateis 5: 17.
[55] Atos 1: 5.
[56] Cf. Lucas 15: 20.
[57] O oitavo batismo é o Juízo final; ele não traz a salvação, contrariamente aos anteriores. Por que João o introduz nessa lista? Um elemento de resposta se encontra no capítulo 100, 1 24-30: uma vez que o corpo se encontra reunido com a alma, a alegria dos eleitos será perfeita, e os efeitos do batismo se estenderão então aos corpos.
[58] Cf. Lucas 3: 22.
[59] Cf. Gênesis 8: 11.
[60] Cf. Atos 2: 3.
[61] Deuteronômio 4: 24.
[62] Cf. Gênesis 8: 11.
[63] Cf. Mateus 14: 10.
[64] Romanos 10: 17.
[65] Hebreus 11: 1.
[66] Cf. Colossenses 2: 11.
[67] I Coríntios 1: 18.
[68] O conhecimento psíquico é o conhecimento da ordem natural, e pode ser considerado demoníaco na medida em que não se exerce dentro do campo estabelecido pelo Criador.
[69] I Coríntios 2: 15.14.
[70] Cf. Hebreus 11: 6.
[71] Cf. Romanos 8: 17.
[72] Romanos 6: 3.
[73] Cf. Gálatas 3: 27.
[74] Cf. I Coríntios 1: 24.
[75] Cf. Hebreus 11: 28.
[76] Cf. Salmo 2: 9.
[77] Salmo 131: 7.
[78] Salmo 131: 8.
[79] Mateus 24: 30.
[80] Marcos 16: 6.
[81] I Coríntios 1: 23.
[82] Cf. Gênesis 2: 9.
[83] Cf. Gênesis 47: 31; Hebreus 11: 21.
[84] Cf. Gênesis 48: 14.
[85] Cf. Êxodo 14: 16-17.
[86] Cf. Êxodo 17: 11.
[87] Cf. Êxodo 15: 25.
[88] Cf. Êxodo 17, 6.
[89] Cf. Números 21: 9.
[90] Cf. Romanos 8: 3.
[91] Deuteronômio 28: 66.
[92] Isaías 65: 2; cf. Romanos 10: 21.
[93] I João 1: 15.
[94] Malaquias 3: 20.
[95] Zacarias 6: 12.
[96] Salmo 67: 33-34.
[97] Gênesis 2: 8.
[98] Cf. Gênesis 3: 24.
[99] Cf. Êxodo 37: 5.
[100] Cf. Levítico 16: 14.
[101] Cf. Números 2: 3.
[102] Cf. Ezequiel 8: 16; 11: 1.
[103] Cf. Salmo 67: 34.
[104] Cf. Atos 1: 11.
[105] Cf. Mateus 24: 27.
[106] Cf. Lucas 1: 78.
[107] Cf. Hebreus 2: 17; 4: 15.
[108] Cf. I Coríntios 15: 20.
[109] Cf. I Pedro 2: 21.
[110] Cf. Romanos 8: 17.
[111] Cf. João 3: 5.
[112] João 6: 35.
[113] João 6: 51.
[114] Cf. I Coríntios 11: 23.
[115] Cf. João 13: 5.
[116] Cf. Mateus 26: 26.
[117] Liturgia Jc, 202.
[118] Hebreus 4: 12.
[119] Salmo 134: 6.
[120] Gênesis 1: 3.6.
[121] Salmo 32: 6.
[122] Gênesis 1: 11.
[123] Lucas 1: 34-35.
[124] João 6: 53.55.57.
[125] Isaías 6: 6.
[126] Cf. Gênesis 14: 17; Hebreus 7: 1.
[127] Salmo 109: 4.
[128] Cf. Levítico 24: 5-9.
[129] Cf. Malaquias 1: 11.
[130] I Coríntios 11: 31-32.
[131] I Coríntios 11: 29.
[132] Cf. João 6: 63.
[133] João 3: 6.
[134] Cf. I Coríntios 10: 17.
[135] Cf. Efésios 3: 6.
[136] Mateus 7: 6.
[137] Salmo 131: 1.
[138] Salmo 88: 36-38.
[139] Isaías 11: 1.
[140] Cf. Mateus 1: 6.
[141] Cf. Lucas 3: 31.
[142] Cf. Números 36: 3-9.
[143] Cf. Mateus 1: 19.
[144] Cf. Lucas 3: 31.
[145] Cf. I Reis 1: 10-11. 20.
[146] Cf. Salmo 51: 10.
[147] Cf. Isaias 57: 15.
[148] Mateus 1: 23.
[149] Gálatas 4: 4.
[150] João 1: 13.
[151] Cf. Hebreus 7: 3.
[152] Isaías 66: 7.
[153] Cf. Lucas 1: 38.
[154] Cf. Ezequiel 44: 2.
[155] Mateus 1: 25.
[156] Mateus 28: 20.
[157] I Tessalonicenses 4: 17.
[158] Lucas 2: 35.
[159] Cf. Romanos 8: 17.
[160] João 1: 12.
[161] Gálatas 4: 7.
[162] João 15: 14-15.
[163] I Timóteo 6: 15.
[164] Cf. Deuteronômio 10: 17.
[165] Êxodo 3: 6.
[166] Êxodo 7: 1.
[167] II Coríntios 6: 16.
[168] Sabedoria 3: 1.
[169] Salmo 48: 10.
[170] Salmo 115: 6.
[171] I Coríntios 6: 19.
[172] II Coríntios 3: 17.
[173] I Coríntios 3: 17.
[174] Cf. Êxodo 17: 6.
[175] Cf. Juízes 15: 19.
[176] Cf. Números 19: 11.
[177] Cf. Mateus 11: 5; Lucas 7: 22.
[178] Tiago 1: 17.
[179] Efésios 5: 19.
[180] Mateus 11: 11.
[181] Cf. Mateus 13: 55.
[182] Cf. Lucas 1: 2.
[183] Romanos 8: 29.
[184] I Coríntios 12: 28.
[185] Cf. II Timóteo 2: 3.
[186] Cf. Marcos 10: 38-39.
[187] Cf. Filipenses 3: 10.
[188] Hebreus 11: 37-38.
[189] Cf. Hebreus 13: 7.
[190] Cf. I Pedro 5: 4.
[191] Cf. Gênesis 1: 27.
[192] Cf. Êxodo 33: 10.
[193] Hebreus 8: 5; cf. Êxodo 25: 40.
[194] Cf. Êxodo 38: 8-6.
[195] Cf. IV Reis 19: 18.
[196] Cf. III Reis 6: 1ss.
[197] Cf. Salmo 96: 7.
[198] Cf. Deuteronômio 32: 17.
[199] Gênesis 8: 21.
[200] Cf. Lucas 1: 78.
[201] Cf. Gênesis 18: 2.
[202] Cf. Baruc 3: 38.
[203] Cf. João 20: 29;
[204] II Tessalonicenses 2: 15.
[205] I Coríntios 11: 2.
[206] Mateus 5: 17.
[207] João 5: 39.
[208] Hebreus 1: 1-2.
[209] Cf. Atos 4: 25.
[210] Cf. Mateus 7: 12.
[211] Cf. Efésios 4: 11.
[212] II Timóteo 3: 16.
[213] Mateus 7: 8.
[214] Cf. Salmo 67: 14.
[215] Cf. Mateus 21: 38-39.
[216] Cf. Tiago 1: 17.
[217] Deuteronômio 32: 7.
[218] Cf. I Coríntios 8: 7.
[219] Cf. João 4: 14.
[220] Cf. I Timóteo 3: 7.
[221] Cf. Mateus 7: 6.
[222] João 10: 30.
[223] João 14: 9.
[224] Filipenses 2: 6.
[225] Mateus 4: 3.
[226] Hebreus 1: 3.
[227] Isaías 9: 5.
[228] João 14: 10.
[229] João 1: 1.
[230] I Coríntios 1: 24.
[231] Hebreus 1: 3.
[232] João 14: 28.
[233] João 16: 27.
[234] João 6: 57.
[235] João 5: 19
[236] João 1: 13.
[237] Salmo 106: 20.
[238] João 11: 42.
[239] Salmo 49: 2.
[240] Zacarias 9: 9.
[241] Miqueias 1: 3.
[242] Baruc 3: 36.38.
[243] Provérbios 8: 22.
[244] Salmo 44: 8.
[245] Cf. Apocalipse 1: 17; 22: 13.
[246] João 14: 10.
[247] João 10: 30.
[248] João 7: 19; 8: 40.
[249] João 3: 14.
[250] Cf. Lucas 1: 52.
[251] João 11: 34.
[252] Cf. Mateus 21: 19.
[253] Cf. João 12: 28.
[254] Lucas 24: 28.
[255] Mateus 27: 46.
[256] II Coríntios 5: 21.
[257] Gálatas 3: 13.
[258] II Coríntios 15: 28.
[259] João 17: 5.
[260] Cf. Romanos 1: 4.
[261] Lucas 2: 52.
[262] João 4: 22.
[263] João 6: 57.
[264] João 16: 10.
[265] I Coríntios 2: 8.
[266] João 13: 3.
[267] Mateus 28: 19.
[268] Mateus 28: 20.
[269] Mateus 28: 9-10.
[270] Cf. João 20: 27.
[271] Cf. Lucas 24: 43.
[272] Cf. João 20: 19.
[273] Lucas 24: 28.
[274] João 20: 17.
[275] Salmo 23: 7.
[276] Hebreus 1: 3.
[277] João 20: 17.
[278] Romanos 9: 21.
[279] II Timóteo 2: 20-21.
[280] Romanos 11: 32.
[281] Romanos 11: 8.
[282] Cf. Isaías 45: 7.
[283] Amós 3: 6.
[284] Salmo 51: 6.
[285] Cf. Mateus 19: 17.
[286] Mateus 26: 24.
[287] Cf. João 1: 7.
[288] Cf. Romanos 7: 23.
[289] Cf. Romanos 7: 14.
[290] Romanos 8: 3-4.
[291] Romanos 8: 26.
[292] Romanos 8: 26.
[293] Cf. Gênesis 2: 2.
[294] Cf. êxodo 13: 6.
[295] Cf. Deuteronômio 5: 14.
[296] Provérbios 12: 10.
[297] Efésios 5: 19.
[298] II Timóteo 3: 16.
[299] I Timóteo 1: 9.
[300] Cf. Êxodo 24: 18; 34: 28.
[301] Cf. III Reis 19: 8-10.
[302] O personagem de Elias faz parte dos homens do Antigo Testamento que servem aos Padres para mostrar o que é a verdadeira religião. Assim é que Teodoreto de Cyra sublinha a vontade divina de mostrar a verdadeira piedade ao ordenar a Elias que fosse até a viúva estrangeira, a qual, por sua vez, simbolizava dos “gentios”.
[303] Cf. Daniel 10: 2-3.
[304] Cf. Levítico 12: 3.
[305] Cf. Levítico 23: 27s.
[306] Mateus 12: 5.
[307] Cf. Mateus 12: 11; Lucas 14: 4.
[308] Cf. Josué 6: 1-27.
[309] Gálatas 4: 3.
[310] Gálatas 4: 4-5.
[311] João 1: 12.
[312] Cf. Gálatas 4: 7.
[313] Cf. Romanos 6: 14.
[314] Cf. I Coríntios 13: 10.
[315] Cf. Mateus 27: 51.
[316] Cf. Atos 2: 3.
[317] Cf. Tiago 1: 25.
[318] Cf. Atos 3: 15.
[319] Cf. Hebreus 6: 20.
[320] Cf. Marcos 16: 19.
[321] Eclesiastes 11: 2.
[322] Catástase ou apocatástase: a restauração da Humanidade em seu estado original depois da Ressurreição. Somente a encarnação do Verbo permite essa renovação definitiva da Humanidade e a recuperação da perfeição anterior à transgressão, ultrapassando inclusive o estado do Paraíso terrestre.
[323] Cf. Salmo 6: 1; 11: 1.
[324] Cf. I Coríntios 3: 3.
[325] Deuteronômio 25: 9.
[326] Gênesis 2: 25.
[327] Gênesis 3: 7.
[328] Gênesis 3: 19.
[329] Cf. Romanos 5: 12.
[330] Gênesis 4: 1.
[331] Gênesis 1: 27; cf. Mateus 19: 4.
[332] Gênesis 1: 27.
[333] Daniel 13: 42.
[334] Gênesis 6: 18.
[335] Gênesis 8: 16.
[336] Cf. IV Reis 2: 11.
[337] Cf. III Reis 17: 22.
[338] Cf. IV Reis 2: 8.
[339] Cf. IV Reis 2: 9.
[340] Cf. Daniel 3: 24.
[341] Cf. Daniel 6: 23.
[342] Cf. Êxodo 19: 10-15.
[343] Cf. p.ex. Números 8: 21.
[344] Cf. Números 6: 2.
[345] Isaías 31: 9. (Septuaginta)
[346] Cf. I Coríntios 5: 11.
[347] Cf. João 2: 1.
[348] Hebreus 13: 4.
[349] Mateus 19: 11.
[350] Cf. I Coríntios 7: 2.
[351] Hebreus 13: 4.
[352] Cf. Gênesis 17: 10-12.
[353] Cf. Gênesis 12: 1-3.
[354] Josué 5: 2.
[355] Josué 5: 6-7.
[356] Cf. Gálatas 5: 3.
[357] Cf. Lucas 2: 21.
[358] Cf. Lucas 3: 22.
[359] Cf. I João 4: 2.
[360] Cf. p. ex. Mateus 13: 40.
[361] Cf. Mateus 24: 14.
[362] João 5: 43.
[363] II Tessalonicenses 2: 10-12.
[364] Cf. II João 7.
[365] Daniel 11: 37.
[366] II Tessalonicenses 2: 3.
[367] Cf. Mateus 24: 14.
[368] II Tessalonicenses 2: 8-10.
[369] Cf. I Coríntios 15: 9.
[370] Mateus 24: 24.
[371] Ibidem.
[372] Cf. Malaquias 3: 22; Gênesis 5: 24.
[373] Cf. Atos 1: 11.
[374] Cf. p. ex. Mateus 24: 30.
[375] Cf. II Tessalonicenses 2: 3.
[376] Cf. Mateus 25: 31.
[377] Cf. I Coríntios 15: 42.
[378] Cf. Gênesis 2: 7.
[379] Cf. Gênesis 3: 19.
[380] I Coríntios 15: 32.
[381] Cf. Romanos 2: 5.
[382] Cf. Salmo 10: 7.
[383] Cf. Hebreus 11: 6.
[384] Gênesis 9: 3-6.
[385] Cf. p. ex. Ezequiel 3: 18.
[386] Mateus 22: 32.
[387] Cf. Sabedoria 3: 1.
[388] Salmo 103: 29-30.
[389] Isaías 26: 19.
[390] Ezequiel 37: 7.
[391] Cf. Ezequiel 37: 9.
[392] Daniel 12: 1-3.
[393] João 5: 28.
[394] Cf. João 11: 38-40.
[395] I Coríntios 15: 16.
[396] I Coríntios 15: 20.
[397] Colossenses 1: 18.
[398] I Tessalonicenses 4: 14.
[399] João 2: 19.
[400] Lucas 24: 39; João 20: 20.
[401] Lucas 24: 37.
[402] I Coríntios 15: 53.
[403] I Coríntios 15: 42-44.
[404] Cf. João 20: 26.
[405] Cf. Mateus 22: 30.
[406] Filipenses 3: 20.
[407] Cf. I Coríntios 15: 53.
[408] I Coríntios 15: 35.
[409] I Coríntios 15: 35-36.
[410] Cf. João 10: 38.
[411] I Coríntios 15: 36-38.
[412] Cf. Romanos 14: 10.
[413] Cf. Mateus 25: 41.46.
[414] Mateus 25: 41.
[415] Mateus 13: 43.
[416] Mateus 25: 46.