terça-feira, 29 de abril de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 2 - Teolepto de Filadélfia: Da profissão monástica




TEOLEPTO DE FILADÉLFIA



SOBRE E PROFISSÃO MONÁSTICA
E OUTROS CAPÍTULOS


Teolepto de Filadélfia

Teolepto, que foi bispo de Filadélfia, viveu no reinado de Andronico II Paleólogo, por volta de 1325. De início ele levou uma vida ascética e anacorética sobre a santa Montanha de Athos. Depois, tendo recebido como encargo a Sé de Filadélfia, ele iniciou na grande beleza de seus ensinamentos a Gregório de Tessalônica. Ele lhe ensinou a santa nepsis bem como a noera proseuké – a prece intelectual – enquanto este ainda era leigo, conforme relatado nos escritos do Patriarca Filoteu sobre a vida do mesmo Gregório.

O presente tratado, composto por ele, é um excelente testemunho e uma regra exata da meditação oculta em Cristo, como capítulos coesos, muito bem escritos, que unem o pensamento divino à pureza do fraseado. Eles foram inseridos aqui por serem mais confiáveis do que quaisquer outros e dignos de serem estudados por aqueles que se esforçam por recolher na concisão os sábios ensinamentos da filosofia espiritual.

*

A renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, no norte da Grécia, oferece muitos aspectos. Acima de tudo ela prolongou, assumiu e realizou um milênio de tradição monástica. Mas também foi um movimento de resistência à vontade declarada de alguns imperadores bizantinos, notadamente Miguel VIII Paleólogo, de contratar a qualquer preço uma aliança política com o Ocidente cristão para tentar conjurar a ameaça turca. Enfim, quando esta aliança foi denunciada, a renovação se tornou naturalmente uma causa comum com texturas hierárquicas, doutrinais, litúrgicas e sacramentais da Igreja ortodoxa que, desde o século IV, pela consagração e a resistência, os Padres fundadores do hesiquiasmo haviam amplamente contribuído para formar.
A vida e a obra de Teolepto de Filadélfia (nascido em Nicéia em 1250, morto por volta de 1320) participa destes três aspectos. Por ter sido um dos que resistiram à estratégia do imperador, Teolepto foi enviado em exílio para uma ilha do mar Egeu juntamente com diversos monges do Monte Athos, inclusive Nicéforo o Solitário, que o iniciaram no hesiquiasmo. Libertado ele foi recebido em Athos e depois se tornou metropolita de Filadélfia após a morte de Miguel VIII, onde procurou concentrar e unificar a Igreja do Oriente sobre o fundamento das origens e da tradição monástica. Ele próprio manteve mosteiros em Constantinopla e foi um dos iniciadores de Gregório Palamas. Sua mediação exemplar foi certamente decisiva.


A Filocalia apresenta dois textos distintos de Teolepto. O primeiro reproduz a essência de uma carta endereçada à princesa Irene, viúva do imperador João Paleólogo, que se tornara monja. Mas o destinatário desta carta – sobre a profissão monástica – é, nesta versão filocálica, um monge anônimo. O segundo texto, mais curto, explicita e precisa em nove capítulos as modalidades da iniciação.


A profissão monástica é incialmente comparada a uma árvore na qual tudo está, das raízes aos frutos, onde tudo contribui para a chegada da vida eterna, desde a renúncia às ligações com o mundo até a aquisição do amor deificante, permitindo ao cristão verificar e confirmar seu batismo, para finalmente se revestir de Cristo. “Esforce-se para transformar o chamado em ação”, diz Teolepto. Assim, a vocação monástica, devotada à imolação e à glória, não é para a Igreja senão a abertura infinita de toda a fé cristã: não mais viver para o mundo senão pelos “sentidos do Espírito”. A exortação é tradicional, toda cerzida de imagens e palavras bíblicas, mas ao mesmo tempo direta, viva, calorosa. Ela não percorre todo o campo de aplicação da vocação senão para atestar aos egressos o exercício permanente do hesiquiasmo: a passagem da inteligência simples para a prece pura, e da prece pura ao amor luminoso consagrado à “beleza de Cristo”, esta passagem que instaura a ordem filocálica no coração crucificado para o mundo.


DISCURSO
QUE EXPLICA O TRABALHO OCULTO
QUE IMPLICA A VIDA EM CRISTO
E QUE MOSTRA O LABOR IMPOSTO
PELA PROFISSÃO MONÁSTICA.


A profissão monástica é como uma grande árvore coberta de folhas e de numerosos frutos. Sua raiz é a superação de todas as coisas do corpo. Seus galhos são a ausência de paixões na alma e a ruptura para com as coisas do mundo das quais fugiu. Seu fruto é o amor deificante, a aquisição das virtudes e o regozijo ininterrupto que deles advém. Com efeito, foi dito que o fruto do Espírito é o amor, a alegria, a paz[1] e assim por diante. A fuga para longe do mundo permite refugiar-se em Cristo. Chamo de “mundo” o amor pelas coisas sensíveis e pela carne. Aquele que por meio do conhecimento da verdade ultrapassa as coisas do mundo se une a Cristo. Ele adquire seu amor, este amor pelo qual ele rejeitou tudo o que vem do mundo, e resgatou a pérola preciosa[2], Cristo. Assim, pelo batismo salutar, você se revestiu de Cristo[3], por intermédio do banho divino você se limpou de toda sujeira, e você reencontrou o esplendor da graça espiritual e a nobreza da criação.

Ora, o que aconteceu? Ou antes, o que sofreu o homem em sua irresolução? Por seu amor ao mundo, ele transformou os signos divinos com os quais fora marcado. Com seu pendor pela carne, ele corrompeu a imagem. A bruma dos pensamentos passionais empanou o espelho da alma, este espelho no qual aparece Cristo, o Sol espiritual. Você fechou a alma ao temor de Deus e conheceu as trevas da deserção do mundo. Você experimentou o quanto o ruído dispersa a inteligência e viu aonde as vãs distrações e a vida agitada levam os homens. E assim você foi ferido pela flecha do amor à hesíquia e buscou a paz dos pensamentos[4]. De fato, você aprendeu: “Busque a paz e a possua[5]”. Você desejou o repouso que está além, porque ouviu: “Volte, alma minha, ao seu repouso[6]”.

Considere então a nobreza que, pela graça, você recebeu no batismo, e recuse em pensamento ser chamado para o mundo das paixões. Com seu bom senso você se pôs a trabalhar, dirigiu-se ao local sagrado da meditação, revestiu-se do hábito precioso do arrependimento, e com toda sua alma prometeu permanecer no mosteiro até a morte. Daqui por diante você fez uma segunda aliança com Deus. A primeira você fez ao entrar na sua vida presente. E a segunda, você fez quando se apressou em se encaminhar para o fim desta vida. Então você se ligou a Cristo pela piedade e agora, por meio do arrependimento, você se prometeu a ele. Aí você encontrará a graça. Aqui você calculou sua dívida. Até então você era uma criança e não havia sentido a dignidade que lhe fora dada, e mesmo que mais tarde, ao crescer, você tivesse conhecido o dom, ainda trazia o freio na boca. Agora você atingiu a perfeição e reconheceu o poder daquilo que lhe fora prescrito.

Mas cuide para não transgredir sua promessa. Então, como um vaso inteiramente partido, você será rejeitado para as trevas exteriores onde estão o choro e o ranger de dentes[7]. Pois fora do caminho do arrependimento não existe outra via que conduza à salvação. Escute o que disse Davi: “Você fez do Altíssimo seu refúgio[8]”. Se você escolheu seguir a Cristo sobre o caminho estreito da vida[9], o mal que os hábitos do mundo lhe deram em partilha não virá a você[10]. Se você escolheu se arrepender, o amor pelo dinheiro, as delícias e as honras do mundo, as vestes luxuosas, a intemperança dos sentidos não mais o queimarão, os iníquos não se colocarão diante de você[11], o inchaço da reflexão, a alienação do intelecto, a presunção dos sucessivos pensamentos, toda outra alteração, toda outra confusão voluntária, a ligação aos pais, irmãos e próximos, amigos e familiares, nada o alcançará. Com eles você já não terá conversação nem relação intempestiva e inútil.

Se de corpo e alma você ama assim renunciar ao mundo, o chicote da dor não mais tocará sua alma[12], a flecha da tristeza não ferirá seu coração, seu rosto jamais voltará a ser sombrio. Os que se afastam dos hábitos do prazer, os que cessam de pender para tudo de que falamos, amaciam, de fato, as penas da tristeza. Pois Cristo aparece à alma que luta e a cumula de alegria inefável. E nada dentre as delícias ou as infelicidades do mundo pode jamais retirar dela esta alegria espiritual[13]. Com efeito, as boas práticas, as lembranças salutares, os pensamentos divinos, as palavras de sabedoria assistem ao que combate, o protegem por todas as veredas[14] de suas obras dedicadas a Deus. Assim ele caminha sobre todo desejo desprovido de razão e todo ardor fogoso, como sobre a víbora e o basilisco, ele pisoteia a cólera como o leão e o prazer como o dragão[15]. E a causa é a seguinte: separado dos homens e das coisas às quais nos referimos, ele colocou em Deus toda sua esperança, tornou-se rico do conhecimento de Deus a quem em espírito ele chama sempre em seu auxílio. Pois foi dito: “Ele esperou em mim e eu o libertei, e o protegerei porque ele conheceu meu nome. Ele me chamou e eu o escutei. E não apenas eu o libertarei dos que o atormentam, mas o glorificarei[16]”.

Vê você os combates daqueles que consagram sua vida a Deus, e a recompensa que recebem? Então, esforce-se por transformar o chamado em ação. Assim como você dedicou seu corpo à solidão e como, rejeitando os pensamentos sobre as coisas, mudou seus hábitos, faça-se estrangeiro, afaste-se das palavras, mesmo daquelas que convêm à sua condição. Pois se você não puser fim em si mesmo ou redemoinho das coisas de fora, você poderá se levantar contra aqueles que, no seu interior, estendem armadilhas. Se você não vencer os que o combatem por meio das coisas visíveis você não poderá derrubar os adversários invisíveis. Mas quando você abolir as distrações de fora, quando apagar os pensamentos interiores, então o intelecto despertará pata as obras e as palavras do Espírito. Em lugar do hábito das coisas que lhe são naturais e familiares, você trabalhará as virtudes. Em lugar das palavras vãs suscitadas pelo comércio com o mundo, o estudo e a explicação das palavras divinas meditadas pelo intelecto esclarecerão e instruirão a alma. Quando são acorrentados os sentidos, a alma descobre a liberdade. O por do sol traz a noite. Então Cristo se retira da alma e as trevas das paixões se apoderam dela, as feras espirituais a atacam. Mas quando se ergue o sol sensível, as feras se reúnem nos seus antros. Cristo se eleva no firmamento do intelecto que ora, e todo costume do mundo se afasta. O amor pela carne passa. Até o entardecer o intelecto parte para realizar seu trabalho[17], que é o estudo das coisas de Deus. Ele não limita no tempo a obra da lei espiritual, nem a mede, mas trabalha nela num êxodo da alma fora do corpo, até atingir o fim da presente vida.

É o que quis dizer o profeta quando falou: “Eu amo sua obra, Senhor, e a estudo todo o dia[18]”. O que ele chama de dia representa, para cada um, o decurso da vida presente. Cesse então todo comércio com as coisas de fora e combata os pensamentos interiores até encontrar o lugar da prece pura e a morada onde habita Cristo, que o iluminará e o cumulará de doçura com seu conhecimento e sua vinda, e o colocará num estado em que você considerará como uma alegria as aflições que você sofre por ele, e no qual você já não se submeterá aos prazeres do mundo que são como o absinto.

Os ventos levantam as ondas do mar e, se a tempestade não cessar, nem as ondas se acalmam, nem o mar se tranquiliza. E os espíritos de malícia levantam na alma do monge negligente a lembrança dos pais, dos irmãos, dos próximos, dos familiares, dos festins, das festas, dos espetáculos e de todas as outras imagens do prazer. Eles dão a entender que a felicidade está no uso dos olhos, da língua e do corpo. A hora presente então se consume na vacuidade. E a hora seguinte, quando você permanece só na cela, passa com a lembrança daquilo que você viu e que lhe disseram. A vida do monge escoa, inútil, nas obras deste mundo, que gravam no intelecto suas lembranças, como os pés de um homem que deixa na neve suas próprias pegadas. Se alimentamos as feras, quando as iremos matar? Se multiplicamos em nossas obras e pensamentos as ligações e os hábitos irracionais, quando faremos morrer o cuidado com a carne? Quando viveremos a vida em Cristo que prometemos viver?

As pegadas dos pés sobre a neve ou derretem sob o sol que brilha ou desmancham sob a chuva que cai. Assim como as lembranças que o amor e a prática dos prazeres cavam no intelecto desaparecem sob Cristo, quando ele se levanta no coração pela prece, e sob a carícia dolorosa da chuva de lágrimas. Então, se o monge não trabalha a razão, quando apagará ele as presunções que encobrem seu intelecto? A obra das virtudes se realizará no corpo se você deixar para trás os hábitos do mundo. As boas lembranças se imprimirão em você e as palavras divinas adorarão permanecer em sua alma se a memória das ações primitivas for sendo apagada por meio de preces contínuas que doce e dolorosamente você realizar em seu intelecto. Pois a luz com a qual a fé em Deus cumula sua memória, aliadas à contrição do coração cortam como uma navalha as más recordações.

Imite a sabedoria das abelhas. Com efeito, quando estas percebem um enxame de vespas voando ao redor, se aquartelam dentro da colmei e assim escapam aos danos das agressões. As vespas aqui representam os eventos do mundo. Fuja deles o mais depressa possível. Permaneça no santuário do templo e, daí, esforce-se para entrar novamente na cidadela interior da alma, que é a morada de Cristo, na qual se revelam a paz, a alegria, a serenidade do Sol espiritual, enquanto Cristo envia seus dons, como raios, e os concede como uma recompensa à alma que o recebe na fé e no amor pela beleza.

Assim, sentado em sua cela, lembre-se de Deus, eleve seu intelecto acima de tudo, volte-se para Deus sem nada dizer, desdobre diante dele o estado de seu coração e se prenda a ele com todo seu amor. Pois a lembrança de Deus é a própria contemplação de Deus, que chama para si a visão e o desejo do intelecto e o cerca com sua luz. Quando ela retorna a Deus cessando de conceber as formas dos seres, o intelecto, com efeito, passa a ver independentemente das formas. Chegando ao mais alto ponto do desconhecimento, ele ilumina sua própria visão com a luz inacessível da glória. Ele já não conhece nada, por que aquele a quem vê é incompreensível. Ele apenas conhece através da verdade d’Aquele que verdadeiramente é e que é o único que é além e acima do ser. Ele alimenta seu desejo de amor com a riqueza da bondade que emana desta fonte e, cumulando de certeza sua própria diligência, ele se torna digno de um repouso bem-aventurado que não tem mais fim.

Estes são os sinais da lembrança exata. A prece é um diálogo do pensamento com o Senhor, um diálogo no qual se realizam as palavras da súplica ao mesmo tempo em que o intelecto tende por completo para Deus. Com efeito, a partir do momento em que o pensamento pronuncia sem cessar o nome do Senhor e que o intelecto está claramente atento à invocação do nome divino, a luz do conhecimento de Deus cobre com sua aura toda a alma como uma nuvem radiante[19]. A lembrança exata de Deus engendra o amor e a alegria. De fato, foi dito: “Eu me lembrei de Deus e me regozijei[20]”. E a prece pura engendra o conhecimento e a compunção. Pois foi dito: “No dia em que o chamei soube que você é meu Deus [21]”. E ainda: “Meu sacrifício a Deus será um coração quebrantado[22]”. Naqueles que, como todo seu intelecto e todo seu pensamento se voltam para Deus por meio da energia da tensão e do calor da prece, a alma, com efeito, se recolhe em ternura. Mas nos que, em seu intelecto, a razão e o espírito se prosternam diante de Deus pela atenção, pela prece, pelo recolhimento e o amor, todo o homem interior serve ao Senhor. Pois foi dito: “Amarás ao seu Senhor de todo seu coração[23]”.

Mas eu quero que você saiba. Ao mesmo tempo em que você pensa orar você pode muito bem estar caminhando longe da oração, esforçando-se sem nada ganhar e correndo em vão. Enquanto a boca canta louvores o intelecto vaga por aí, dividido pelas paixões e os afazeres, a ponto de perder toda a consciência da salmódia. O próprio pensamento é tocado. Pois muitas vezes, enquanto ele exprime as palavras da prece o intelecto não o segue nem se volta para Deus a quem é endereçada a oração. Ele permanece desviado em segredo para outros cuidados. O pensamento diz as palavras pela força do hábito, mas o intelecto não entra no conhecimento de Deus. A partir daí, com o intelecto disperso em imaginação e transportado para aquilo que ela dissimula ou para aquilo que ela deseja, a alma perde toda compreensão, toda disposição. Pois se falta o conhecimento que vem através da prece, se quem ora não se volta para Deus para chama-lo, como poderá a alma se encher de doçura? Como se alegrará o coração, se a pessoa finge orar mas não se dedica à verdadeira oração?

Pois “se alegrará o coração daqueles que buscam ao Senhor[24]”. E busca o Senhor aquele que, com todo seu pensamento e todo fervor, se prosterna diante de Deus, rejeitando todo cuidado para com o mundo em troca do conhecimento e do amor de Deus que nascem da prece pura e contínua. Mas para que fique bem claro aquilo que vemos quando nos lembramos de Deus no intelecto, e aquilo exatamente que buscamos quando nos dedicamos em pensamento à prece pura, usarei como exemplos as imagens do olho e da língua. Pois aquilo que a pupila é para o olho, aquilo que a expressão da palavra é para a língua, a lembrança é para o intelecto e a prece é para o pensamento. Como efeito, assim como o olho ao perceber o que está diante de si pelo sentido da visão nada diz, mas recebe pela experiência da visão o conhecimento daquilo que viu, também o intelecto quando, em seu desejo de amor, se aproxima de Deus pela lembrança ligando-se a ele com todo o fervor no silêncio da mais simples reflexão, é iluminado pela irradiação divina e recebe as garantias do esplendor futuro. A assim como a língua exprime as palavras da razão e revela a quem escuta a vontade oculta no intelecto, também o pensamento, ao repetir com frequência e calor as breves palavras da prece, revela o pedido da alma a Deus que tudo sabe.

É por meio da prece assídua e da contínua contrição do coração que abrimos o coração do Compassivo, o coração de seu amor pelo homem, e assim recebemos a riqueza da salvação. Pois foi dito: “Ao coração contrito e humilhado Deus não desprezará[25]”. Ele o conduzirá na prece pura. Sua obra realizada o levará diante de d’Aquele que reina sobre a terra. De fato, é quando você se aproxima do Rei, quando você está diante dele em seu corpo, quando você suplica com a sua língua e volta para ele os seus olhos, é neste momento que você atrai sobre si a benevolência real. Faça portanto assim, quer esteja na assembleia da Igreja, quer na solidão de sua morada. Com efeito, quando você se reunir no Senhor com seus irmãos para estar diante dele em seu corpo e levar até ele o canto de sua língua, faça com que seu intelecto esteja atento às palavras e a Deus, e que ele, o intelecto, saiba com quem está falando e o que está pedindo. Pois se o pensamento se consagra com força e pureza à prece, o coração recebe dela uma alegria inalienável e uma paz indizível. E quando você estiver a sós, sentado em sua cela, agarre-se à prece em pensamento, com o intelecto sóbrio e vigilante e um espírito quebrantado. Pela sobriedade e a vigilância, a contemplação o cobrirá com sua sombra. Pela prece, o conhecimento habitará em você. E pela compunção a sabedoria virá repousa sobre você, expulsando o prazer irracional e abrindo sua morada ao amor de Deus.

Creia-me. O que eu lhe digo é a verdade. Se em toda a sua obra você não se separar da mãe dos bens, a oração, não durma enquanto ela não lhe houver revelado o local das bodas, enquanto ela não o fizer penetrar no interior, enquanto ela não o cumular de glória e de regozijo inefáveis. Pois ela retira todos os obstáculos, aplaina o caminho da virtude e o torna fácil a quem a busca. Considere agora como age a prece espiritual. O diálogo apaga os pensamentos passionais. O olhar do intelecto voltado para Deus põe em fuga os pensamentos do mundo. A doçura da alma expulsa o amor pela carne. À custa de dizer em silêncio o nome de Deus, a prece se torna a harmonia e a união do intelecto com a razão e a alma. Pois foi dito: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles[26]”. Assim, a prece, resgatando as potências da alma da divisão criada pelas paixões e religando entre si as três partes da alma se une ao Deus único em três Pessoas. Em primeiro lugar, pelas vias da virtude ela apaga da alma a vergonha do pecado. A seguir, reproduzindo a beleza dos sinais divinos pelo santo conhecimento que há nela, ela conduz a alma a Deus. E esta imediatamente reconhece seu Criador. Pois foi dito: “No dia em que clamei eu soube que você é meu Deus[27]”. E ela é conhecida por ele: “O Senhor conheceu os que pertenciam a ele[28]”. Ele conhece pela pureza do ícone. Com efeito, todo ícone se reporta ao seu modelo. E é conhecido pela semelhança que obtém pelas virtudes. Assim ele tem o conhecimento de Deus e é conhecido por Deus.

Quem implora pela benevolência real tem três maneiras de fazê-lo: ou suplicar em alta voz, ou permanecer em silêncio, ou se atirar aos pés daquele que o pode socorrer. E a prece pura, recolhendo em si mesma o intelecto, a razão e o espírito, pela razão invoca o nome, pelo intelecto se volta sem distração para Deus, a quem invoca, e, pelo espírito, manifesta a doçura, a humildade e o amor. Assim ela implora pela Trindade que não tem começo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Deus Uno. Assim como a variedade de alimentos suscita o desejo de consumi-los, também as diferentes formas das virtudes despertam a vivacidade do intelecto. É por isso que, seguindo o caminho do pensamento, recite as palavras da prece. Fale, invoque sempre o Senhor e não se desencoraje[29]. Ore continuamente, imite a tenacidade da viúva que suplicava ao juiz intratável[30]. Então você caminhará em espírito[31] não mais se ligando aos desejos da carne, e os pensamentos do mundo já não virão interromper a continuidade da sua prece. Você terá se tornado o templo de Deus e celebrará a Deus sem descanso. Orando assim em pensamento lhe será concedido passar pela lembrança de Deus, penetrar no santuário do intelecto, ver o invisível nas contemplações místicas e servir apenas ao Deus único no coração de sua solidão, nas efusões comuns ao conhecimento e ao amor.

Quando você perceber que a oração se detém, pegue um livro. Aplicando-se à leitura, receba o conhecimento. Atravesse as palavras sem transgredi-las, retenha-as ligando-as ao seu pensamento, e guarde seu intelecto. Depois medite no que leu, para que seu pensamento seja cumulado de doçura pela compreensão e para que a leitura permaneça inesquecível. Logo se inflamará em você o fervor dos pensamentos divinos. Com efeito, foi dito: “Enquanto eu meditava, um fogo queimava em mim[32]”. Pois assim como os alimentos mastigados agradam ao paladar, também as palavras divinas volteadas e reviradas na alma nutrem e alegram o pensamento. Foi dito: “Que suas palavras são doces em minha boca![33]”. Aprenda de cor as palavras do Evangelho e os apotegmas dos Padres bem-aventurados, siga as pegadas de suas vidas para poder meditar à noite. Assim você renovará pela leitura e a meditação das palavras divinas o pensamento cansado de orar, e o preparará para retomar a prece no dia seguinte com mais diligência.

Cante a salmódia. Mas faça-o com a voz doce e o intelecto atento. Não permita que fique incompreensível nada do que você diz. Se alguma coisa escapara à sua inteligência, retome o verso tão logo possa, até que ela consiga seguir o que está sendo dito. Pois o intelecto está aí para permitir à boca cantar e para se lembrar de Deus. Aprenda com a experiência natural. Com efeito, assim como a pessoa que encontra alguém fala com ela olhando o interlocutor, também aquele que canta deve, pela memória, manter seus olhos em Deus.

Não negligencie se colocar de joelhos. Ajoelhar-se representa de fato a queda do pecado, que é provocada pela confissão. Levantar-se significa o arrependimento, que lembra a promessa da vida virtuosa. Mas cada prosternação deve ser acompanhada pela invocação espiritual de Cristo, a fim de que, inclinando a alma e o corpo diante do Senhor, nos reconciliemos com o Deus das almas e corpos. Se, de resto, você acrescentar à prece em pensamento o trabalho aprazível das mãos, rejeitando o sono e a preguiça, isto ajudará a sustentar o combate da ascese.

Todas as tarefas que mencionamos, desde que bem executadas e com o auxílio da prece, tornam mais agudo o intelecto, expulsam o desencorajamento, tornam a alma mais jovem e permitem ao espírito ser mais penetrante e mais fervente no trabalho do pensamento. Quando ouvir as batidas na madeira[34], saia da cela com os olhos do corpo voltados para o chão e levando o pensamento em Deus. Quando entrar no templo e tomar seu lugar no coro, não converse com o monge que estiver a seu lado nem deixe o intelecto vagar em frivolidades. Mantenha a língua atenta apenas à salmódia e seu pensamento preso à oração. Depois da refeição, retire-se para sua cela e dedique-se à regra que lhe foi assinalada.

Quando estiver à mesa, não olhe para o que os irmãos comem nem deixe sua alma se dividir em maus pensamentos. Olhe e tome o que estiver à sua frente, leve o alimento à boca e escute as leituras com seus ouvidos e dê a prece à sua alma, a fim de que, com o corpo e o espírito alimentados, você possa louvar Àquele que cumula de bens seu desejo[35]. Depois levante-se, retorne reservadamente e em silêncio à sua cela e, como a abelha laboriosa, trabalhe nas virtudes.

Quando executar um serviço com os irmãos, que suas mãos trabalhem, que seus lábios se calem e que seu intelecto se lembre de Deus, E se, por acaso, alguém se puser a tagarelar, para que cesse a desordem, levante-se e faça uma metania.

Rejeite os pensamentos. Não os permita penetrar em seu coração e aí permanecer. A persistência dos pensamentos passionais reanima as paixões e fere o intelecto. Uma vez que o atacarem, apresse-se em expulsá-los do intelecto com a flecha da oração. Porém, se eles continuarem a lhe bater e a confundir sua inteligência, avançando e recuando, saiba que eles estão sendo fortalecidos por uma vontade anterior. Uma vez que eles se sentem com direitos sobre a alma devido a uma falta de resolução, eles a perturbam e oprimem. É preciso dobrá-los por meio da confissão.Com efeito, os pensamentos maus fogem desde que triunfemos sobre eles. Assim como as trevas se retiram quando aparece a luz, também a luz da confissão apaga os pensamentos das paixões, que são como trevas. Pois a frivolidade e o relaxamento produzidos pelos pensamentos foram destruídos pela vergonha que acompanha a confissão e pelo mal que nos impomos para seguir a regra que nos foi ordenada. Encontrando o intelecto livre das paixões daí para frente graças à prece contínua e recolhida, eles fogem em confusão.

Com efeito, quando aquele que combate se esforça por meio da oração para cortar pela raiz os pensamentos que o perturbam, ele os afasta por algum tempo e destrói sua empreitada atacando-os e lutando contra eles, mas não consegue se libertar totalmente, porque ainda ama as causas destes pensamentos opressores: o conforto da carne e a consideração do mundo, coisas que ele não confessou. Assim ele não alcança a paz, porque manteve dentro de si os direitos do adversário. Que, possuindo coisas que não são suas, não será arguido pelos proprietários? E quem se libertará dos que o perseguem, se não se livrar daquilo que lhe é solicitado e que ele mantém erradamente? Mas quando aquele que combate, fortificado pela memória de Deus, cessa de se agarrar à carne e de confortá-la, e confessa irrepreensivelmente seus pensamentos, logo os adversários se afastam, e o intelecto liberto pode se consagrar à prece contínua e à meditação das coisas de Deus.

Afaste inteiramente toda suspeita que você possa eventualmente alimentar em seu coração contra quem quer que seja, pois isto destrói o amor e a paz. E aceite nobremente qualquer infelicidade vinda de fora, porque ela suscita a paciência salutar, esta paciência que permite permanecer e repousar nos céus.

Assim, conduzindo seus dias no bem, você atravessará de bom coração a vida presente, na alegria das esperanças bem-aventuradas. E na hora do seu êxodo, você deixará com toda confiança as coisas daqui e partirá para os lugares do repouso que o Senhor lhe preparou, para que você reine com ele quando ele recompensá-lo pelos esforços e penas que você suportou aqui em baixo. A ele sejam dadas toda a glória, honra e adoração, assim como a seu Pai que não teve começo e ao seu Espírito Santo, bom e vivificante, agora e sempre pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Gálatas 5: 22.
[2] Mateus 13: 46.
[3] Cf. Gálatas 3: 27.
[4] Cf. Jeremias 36: 11.
[5] Salmo 33 (34): 15.
[6] Salmo 114 (115): 7.
[7] Mateus 8: 12.
[8] Salmo 90 (91): 9.
[9] Cf. Mateus 7: 14.
[10] Salmo 90 (91): 10.
[11] Salmo 5: 6.
[12] Cf. Salmo 90 (91): 10.
[13] Cf. João 16: 22.
[14] Cf. Salmo 90 (91): 11.
[15] Cf. Salmo 90 (91): 13.
[16] Cf. Salmo 90 (91): 15.
[17] Salmo 103 (104): 23.
[18] Salmo 118 (119): 97.
[19] Cf. Êxodo 40: 32.
[20] Salmo 76 (77): 4.
[21] Salmo 55 (56): 10.
[22] Salmo 50 (51): 19.
[23] Deuteronômio 6: 5.
[24] Salmo 104 (105): 3.
[25] Salmo 50 (51): 19.
[26] Mateus 18: 20.
[27] Salmo 55 (56): 10.
[28] II Timóteo 2: 19.
[29] Cf. Lucas 18: 1.
[30] Cf. Lucas 18: 2-5.
[31] Cf. Gálatas 5: 16.
[32] Salmo 38 (39): 4.
[33] Salmo 118 (119): 103.
[34] Simandron, placa de madeira que servia de sino. Ela representa tanto a madeira da cruz quanto a materialidade do culto. Na Quinta-Feira Santa, em alguns lugares, ela substitui o sino.
[35] Cf. Salmo 102 (103): 5.

domingo, 27 de abril de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 2 - Nicetas Stethatos: Capítulos Gnósticos


TERCEIRA CENTÚRIA
CAPÍTULOS GNÓSTICOS


Do amor e da perfeição da vida

1. Deus é o intelecto impassível além de toda inteligência e de toda impassibilidade. Ele é Luz, e fonte da boa luz[1]. Ele é Sabedoria, Razão e Conhecimento, e dispensador da sabedoria, da razão e do conhecimento. Aqueles aos quais, por sua pureza, foram concedidas estas coisas, em quem as podemos ver em abundância, estes guardam em si a imagem de Deus, com a qual se recobriram, pois a partir daí se tornaram filhos de Deus conduzidos pelo Espírito, conforme foi dito: “Aqueles a quem o Espírito de Deus conduz, estes são de Deus[2]”.

2. Todos aqueles que, por meio das penas da ascese, se purificaram das manchas da carne e do espírito[3], se tornaram cálices da natureza imortal pelos carismas do Espírito. Tendo chegado até aí, eles se veem cheios da boa luz. Desde então estão em paz, o coração repleto de calma, e proferem as boas palavras[4], a sabedoria de Deus escorre de seus lábios no conhecimento das coisas divinas e humanas. Nada pode turbar o que dizem quando expõem as profundezas do Espírito. Para estes homens já não existe lei[5]. Eles estão definitivamente unidos a Deus, e a boa transformação os transformou[6].

3. Aquele que, com seu fervor, tende para o divino sem evitar sua pena, se torna pelas virtudes da alma e do corpo a marca de sua imagem. Por osmose, ele próprio repousa em Deus e Deus repousa nele, de tal modo que, na superabundância dos carismas do Espírito, ele se torna e se mostra agora como a imagem da beatitude divina e Deus por adoção, e Deus é o iniciador de sua perfeição.

4. O homem não foi feito à imagem de Deus pela estrutura orgânica do corpo, como se pode pensar levado pela ignorância. Ele o é pela natureza intelectual da inteligência, que não é limitada pelo corpo que pesa para baixo. Com efeito, assim como a natureza divina não é limitada – pois ela está fora de toda criação, de toda densidade, sendo infinita e incorpórea, além de toda essência e de toda razão, incriada, intangível, fora de qualquer quantidade, invisível, imortal, incompreensível, inteiramente inconcebível por nós – também a natureza intelectual que Deus nos deu não tem limites e está fora de qualquer densidade, sendo incorpórea, invisível, intangível, incompreensível, imagem de sua glória eterna e imortal.

5. Deus é a primeira Inteligência. De fato, ele é o Rei do universo. Ele contém em si o Verbo consubstancial e eterno com o Espírito. Ele jamais esteve fora do Verbo e do Espírito, pois sua natureza é indivisível. E ele não se confunde com eles, pois a distinção das hipóstases nele não permite a confusão. A partir daí ele engendra naturalmente o Verbo a partir de sua essência sem se separar dele, porque continua indivisível. O Verbo eterno com ele tem a mesma natureza sem começo do Espírito, o qual procede do Pai[7] antes de todos os séculos. Também ele não se separa daquele que o engendrou. Pois a natureza de um e de outro é uma e indivisível, ainda que se apresente dividida em pessoas pela distinção das hipóstases. Ela é glorificada na Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E jamais estas Pessoas, que são uma só natureza e um só Deus, podem ser separadas da essência e da natureza em sua única eternidade. Contemple assim o ícone desta natureza única em três Pessoas. Contemple-a no homem que ela formou. Contemple-a no espiritual, mas não no visível, no imortal que é sempre o mesmo, mas não no mortal que se dissolve.

6. Da mesma forma como Deus, que é Inteligência muito além das criaturas por ele formadas na sabedoria, engendra independente de qualquer escoamento ou fluxo o Verbo em sua permanência e envia com seu poder, conforme está escrito[8], o Espírito Santo que está fora e além de tudo, também o homem, que participa de sua natureza divina, que, dentro de sua alma intelectual, incorpórea e imortal, é uma imagem sua em espírito, e cujo intelecto engendra naturalmente e por sua essência a razão por meio da qual todas as potências do corpo estão guardadas, está fora e no interior da matéria e dessas coisas visíveis. E do mesmo modo como aqueles são inseparáveis de suas hipóstases – vale dizer, do Verbo e do Espírito – também ele, em sua alma, não pode ser cortado do intelecto e da razão, da natureza única e da essência que não é limitada pelo corpo.

7. O divino é adorado em três hipóstases no Pai, no Filho e no Espírito Santo. E devemos considerar que a imagem que ele formou – o homem – também está dividida em três partes. Pela alma, o intelecto e a razão o homem adora a Deus que criou tudo a partir do nada. Aquilo que por natureza é eterno com Deus e consubstancial a ele é, assim, da mesma natureza e da mesma substância que sua imagem. É desta forma que a imagem se torna visível em nós. E é assim que eu sou imagem de Deus, mesmo tendo sido feito de uma mistura de argila e imagem.

8. Uma coisa é a imagem de Deus, e outra aquilo que vemos nesta imagem. A imagem de Deus é a alma intelectual, o intelecto e a razão: a natureza única e indivisível. Aquilo que vemos na imagem é a soberania, a realeza, a liberdade. Assim, uma coisa é a glória do intelecto e outra sua dignidade. Uma é a criação “à imagem” e outra a criação “à semelhança”[9]. A glória do intelecto é a elevação, o movimento contínuo para o alto, a sutileza, a pureza, a consciência, a sabedoria, a imortalidade. Sua dignidade é a razão, a realeza, a soberania, a liberdade. A criação à imagem de Deus significa o caráter pessoal, consubstancial, indivisível e inseparável da alma, do intelecto e da razão. O intelecto e a razão estão ligados à alma incorporal, imortal, divina e intelectual. Estas são coisas consubstanciais na mesma eternidade, que não podem ser jamais separadas nem divididas. A semelhança é a justiça, a verdade, a misericórdia, a compaixão, o amor pelos homens. Naqueles que cumprem e guardam estas coisas, a imagem e a semelhança se revelam claramente: elas são evidentemente animadas pela natureza, mas estão acima das outras pela dignidade.

9. A alma dotada de razão se divide em três partes. Mas também podemos distinguir nela duas partes: uma parte racional e outra passional. A parte racional, à imagem daquele que a criou, não é relativa a nada, não pode ser vista nem definida pelos sentidos, estando simultaneamente dentro e fora destes. Por meio da razão, a alma se comunica com as divinas potências intelectuais. Por meio do santo conhecimento dos seres, ela se eleva naturalmente para Deus como para seu modelo e desfruta de sua natureza divina. Mas a parte passional é dividida, submetida aos sentidos, às paixões, ao relaxamento. Por meio da paixão, a alma se comunica com a natureza sensível ligada ao alimento e ao crescimento, e se liga ao ar, ao frio e ao calor, aos alimentos, para assegurar a subsistência, a vida, o crescimento e a saúde. Alterada por estas coisas, a parte passional tanto deseja sem razão, levada pelo movimento natural, quanto se exacerba, levada por um ardor irrefletido, e suscita a fome, a sede, a tristeza, a pena e finalmente a dissolução. Ela se regozija com aquilo que a contenta e é deprimida pelas aflições. É com justiça que a denominamos passional, pois ela é absorvida pelas paixões. Quando esta parte mortal é absorvida pela vida do Verbo[10], quando vence o mais forte, então a vida de Jesus aparece também na nossa carne mortal[11], trazendo para nós a morte vivificante da impassibilidade, e nos concede a herança incorruptível da imortalidade no desejo do Espírito.

10. Assim como o Criador do universo, antes de fazer tudo a partir do nada, continha em si o conhecimento, as naturezas e as razões de todos os seres, sendo ele o rei dos séculos e sabedor de tudo por antecipação, também ele concedeu ao homem formado à sua imagem, para que se tornasse o rei da criação, possuir em si as razões, as naturezas e o conhecimento de todos os seres. Por sua criação o homem possui em si da terra a secura e a frialdade dos tecidos do corpo; do ar e do fogo, o calor e a umidade do sangue; da água, a umidade e o frio dos humores; das plantas, o crescimento; dos seres vivos, o modo de se alimentar; dos animais selvagens, seu estado de paixão; dos anjos, a vida dotada de inteligência e de razão; de Deus, o sopro imaterial, a alma incorpórea e imortal que vemos no intelecto, na razão e no poder do Espírito Santo, que o faz ser e viver.

11. É pela virtude e o conhecimento que nos assemelhamos a Deus que nos formou à sua imagem e semelhança[12]. Pois sua virtude cobre os céus, e a terra está plena de seu conhecimento[13]. A virtude de Deus consiste na justiça, na santidade e na verdade. É o que disse Davi: “Você é justo, Senhor, e sua verdade me envolve[14]”. E também: “O Senhor é justo e santo[15]”. Também nos assemelhamos a Deus pela retidão e a bondade. “Pois o Senhor é bom e direito[16]”. Assemelhamo-nos a ele pela palavra de sabedoria e a palavra de conhecimento. Pois todas estas coisas estão nele, e ele é chamado de Sabedoria e Verbo. Assemelhamo-nos a ele pela santidade e a perfeição, conforme ele próprio disse: “Sejam perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito[17]. Sejam santos, como eu sou santo[18]”. E nos assemelhamos a ele pela humildade e a doçura, pois ele disse: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão a paz em suas almas[19]”.

12. Sendo nosso intelecto à imagem de Deus, naturalmente ele possui em si esta imagem, na medida em que ele permanece naquilo que lhe é próprio e não se afasta de sua dignidade e de sua natureza. É por isso que de alguma maneira ele deseja permanecer nas coisas de Deus, que ele busca se unir a ele, de quem ele extrai sua origem, devido a quem ele se move, para quem ele tende por todas as suas qualidades naturais, e por isso também ele deseja imitá-lo em seu amor ao homem e sua simplicidade. Pois ele próprio engendra o Verbo, e recria como se fossem outros céu as almas de seus companheiros. Ele os afirma pela paciência das virtudes ativas. Ele os traz à vida pelo sopro de sua boca[20]. Ele lhes dá a força para combater as paixões destruidoras. Imitando com justiça a seu Deus, ele próprio aparece como autor da criação espiritual e de todo o resto. E ele escuta claramente, vindo do alto: “Aquele que separa o digno do indigno será como minha boca[21]”.

13 Quem persevera nos movimentos naturais do intelecto e na dignidade da razão se guarda puro de matéria, se adorna de doçura, de humildade, de amor, de compaixão, e se cobre de luz sob o flamejamento do Espírito Santo. Voltado para as mais altas contemplações, ele penetra no conhecimento dos mistérios ocultos de Deus e se coloca, em seu amor pelo bem, a serviço daqueles que, por sua sabedoria, podem escutar essas coisas. Ele não multiplica o talento[22] apenas para si, mas ele transmite seu usufruto para aqueles que estão próximos de si.

14. Quem se eleva acima da dualidade, que liberta desta dualidade a nobreza do um, encontrou dentre os espíritos imateriais a vida fora da matéria e se tornou um espírito dotado de intelecto, mesmo que o vejamos viver num corpo no meio dos outros homens.

15. Aquele que, pela dignidade e a natureza do um submeteu a dualidade à servidão, submeteu a Deus toda a criação, reuniu no um o que estava separado e pacificou todas as coisas[23].

16. Enquanto a natureza das potências que se encontram em nós não for ordenada, enquanto ela estiver dividida em múltiplos desacordos, não teremos ainda parte nos dons sobrenaturais de Deus. Ora, se não tivermos parte nestes, estaremos ainda longe da hierurgia[24] do altar celeste, que é cumprida pela obra intelectual da inteligência. Mas quando, pelo longo esforço dos combates sagrados, nos purificamos da malícia ligada à matéria, quando, pelo poder do Espírito reunimos no um tudo o que nos divide, então teremos parte nos bens secretos de Deus, seremos dignos de oferecer a Deus o Verbo os mistérios divinos da hierurgia mística do intelecto no altar mais que celeste e espiritual de Deus, pois seremos os iniciados e os sacerdotes de seus mistérios imortais.

17. A carne deseja contra o espírito, e o espírito contra a carne[25]. Existe entre os dois uma guerra implacável. Um deve vencer o outro e dominá-lo. Esta divisão presente em nós se denomina sublevação, impulso, jugo, duelo selvagem. Ele divide a alma, no mesmo ponto em que o intelecto dá seu impulso a um ato de paixão humana.

18. Enquanto formos divididos pela inconstância dos pensamentos e a lei da carne nos dominar e perdurar em nós, estaremos dispersos em numerosos pedaços de nós mesmos e seremos rejeitados para longe da unidade divina, pois não nos enriquecemos desta unidade. Mas quando nosso ser mortal é engolido[26] pelo poder unificante e pela ausência sobrenatural de preocupações, quando o intelecto, dominando a si mesmo, se ilumina com os esplendores e os pensamentos que o enchem de sabedoria, a alma, toda enovelada na unidade como Deus, encontra o um ao invés das múltiplas divisões. Recolhida na unidade divina, ela se vê unificada na simplicidade, à imitação de Deus. Tal é o restabelecimento da alma em seu estado ancestral. E esta é a renovação que nos leva ao melhor.

19. A ignorância é uma calamidade e mais do que uma calamidade. Ela é verdadeiramente uma treva palpável[27]. Ela obscurece as almas nas quais se encontra. Ela divide profundamente o pensamento e impede a alma de se unir a Deus. Tudo o que se junta a ela é desordem e ausência de razão. Pois ela torna o homem inteiro irracional e insensível. Mas, do mesmo modo como a ignorância, ao se espalhar e se tornar mais espessa, se torna para a alma que lhe está submetida um abismo infernal onde se encontram todos os tormentos, todas as dores, as tristezas, os gemidos, também o conhecimento de Deus, do qual podemos dizer que é uma fonte radiante e infinita de luz, torna divinamente luminosas as almas nas quais se encontra pela pureza. Ela as enche de paz, de calma, de alegria, de sabedoria inefável e de amor perfeito.

20. A presença da luz divina é simples e una. Ela recolhe em si as almas que a recebem e depois retorna a si mesma. Ela as une à sua unidade. Ela as torna perfeitas com sua perfeição. Ela conduz pelas profundezas de Deus a visão de sua inteligência. Ela lhes permite contemplar os grandes mistérios. Ela as inicia e as torna aptas a iniciar. Assim sendo, procure se purificar a fundo por suas penas, e você verá em si claramente a energia destas palavras, a energia amada por Deus.

21. Os flamejamentos da luz primordial que penetram pelo conhecimento nas almas purificadas não apenas as tornam boas e luminosas, como as conduzem pela contemplação natural aos céus espirituais. Assim os efeitos da energia não permanecem aí dentro das almas, mas se exercem até que, pela sabedoria e o conhecimento dos mistérios inefáveis as almas se unem ao um, e, de múltiplas que eram, se tornam uma com ele.

22. É preciso em primeiro lugar nos desembaraçarmos das misturas e confusões por meio da ordem purificadora, longe do mal que liga à matéria os inteligíveis, para depois termos os olhos do intelecto cheios de luz e sempre claros graças à outra ordem, a ordem iluminadora que se realiza através da sabedoria mística oculta em Deus; e se elevar assim em direção à ciência dos conhecimentos sagrados que, pela palavra divina, concede o novo e o antigo[28] àqueles que têm ouvidos; enfim, transmitir os sentidos místicos e ocultos desta ciência, comunicando-os aos entendimentos que ninguém profana, afastando-o dos imperfeitos, a fim de não entregar aos cães o que é santo e de não atirar a pérola do Verbo às almas que são como porcos[29] e que a mancharão.

23. Quando alguém percebe que o fervor de sua alma se dilata na fé interior e no amor a Deus, saiba que ele traz em si a Cristo que eleva sua alma da terra e das coisas visíveis e prepara nos céus sua morada. Quando ele vê seu coração se encher de alegria e desejar com compunção dos bens secretos de Deus, saiba que então o Espírito divino age nele. Enfim, quando ele sentir seu intelecto cheio de luz inefável e da mais profunda sabedoria dos pensamentos, saiba que o Consolador está em sua alma e que ele vem visita-lo para lhe revelar os tesouros do Reino dos céus nele ocultos. Então, que ele se guarde cuidadosamente, como um palácio de Deus e uma morada do Espírito.

24. A guarda dos tesouros ocultos do Espírito detém as coisas humanas, o que consiste propriamente naquilo a que chamamos de hesíquia. Esta, pela pureza do coração e a compunção longe de qualquer prazer, ilumina cada vez mais o desejo do amor de Deus, liberta a alma dos laços dos sentidos e a convence a se libertar dos modos habituais de viver. Quando ela traz de volta assim as potências da alma, ela as devolve ao que elas são por natureza, restabelecendo-as em seu estado original para que nenhum mal, proveniente da alteração da imagem e de seu movimento para o pior, venha a se opor ao criador dos bens.

25. É por esta perfeição sagrada, por esta perfeição divina que traz numa luz benfazeja a hesíquia bendita e sacra, que praticamos e buscamos como se deve. Mas se este grau de elevação e de perfeição ainda não foi alcançado, aquele que parece viver em estado de hesíquia ainda não repousa na perfeita hesíquia do intelecto. Na medida em que ele ainda não alcançou esta altura, ele não repousa na hesíquia, longe da tempestade interior das paixões indomáveis. Ele não terá mais que seu corpo rodeado de muros, buracos e cavernas, esgotado por um intelecto desordenado e errante.

26. As almas que alcançaram um grau extremo de pureza e que chegaram a uma grande altura de sabedoria e de conhecimento assemelham-se aos querubins por se aproximarem de maneira, por assim dizer, imediata, por sua ciência, da fonte dos bens. Então elas recebem com toda pureza a revelação da visão direta, da qual apenas as potências dos querubins, diante de tal Tearquia[30], são profunda e imediatamente iluminadas, como foi dito, na mais alta intensidade das contemplações divinas[31].

27. Da mesma forma como as primeiras potências do alto são, umas, as mais ardentes e vívidas envolvendo as coisas de Deus, com seu movimento contínuo que não tem fim, e outras, as mais dotadas de visão, de conhecimento e de sabedoria, cujo estado divino as coloca sempre em movimento ao redor das coisas de Deus, também tais almas são mais ardentes e vívidas em envolver o divino, dotadas de sabedoria, de conhecimento e da maior tensão nas contemplações místicas. Um mesmo poder e um mesmo estado divino as conduzem. Desta forma, seu movimento em torno das coisas de Deus é contínuo, seu fundamento e sua morada são firmes. Por outro lado, elas recebem as iluminações, neste estado em que participam do Ser e transmitem às outras almas, abundantemente, pela palavra, as efusões de sua luz e de suas graças.

28. Deus é Inteligência, e causa do movimento contínuo do universo. Todas as inteligências têm nele, a primeira Inteligência, seu ponto fixo e seu movimento infinito. É isto que experimentam todos os que, pelos santos suores, têm neles o movimento, não material e misturado, mas sem mescla e sem confusão. Eles o experimentam no ardor de seu amor divino, comunicando entre si e consigo mesmos os flamejamentos irradiados pela Tearquia que concede o bem e a sabedoria dos mistérios do Deus oculto a eles, transmitindo-os amorosamente aos demais e neles celebrando o amor a Deus que não tem fim.

29. As almas que tornaram em si leve a razão desembaraçada da matéria são móveis e giram ao redor de Deus. Da dualidade que combate a si própria em todas as coisas elas fizeram a dócil rédea que conduz aos céus. Elas gravitam sem fim ao redor de Deus, como que tensionadas para o centro e a causa do movimento circular. E elas são imóveis, estáveis e firmes, mirando o centro sem poder se desligar dos laços que as unem para voltar às sensações a ao erro das coisas humanas lá em baixo. Esta é a finalidade perfeita da hesíquia, para onde são levados os que a vivem verdadeiramente. Arrebatados pelo movimento, eles permanecem imóveis. Estáveis e imóveis, eles giram ao redor do divino. Enquanto não chegarmos a este ponto, apenas parecemos viver na hesíquia, mas é impossível que nosso intelecto saia da matéria e da errância.

30. Quando, com toda atenção e fervor, retornamos à beleza original da razão, quando, com a chegada do Espírito, tomamos parte na sabedoria e no conhecimento que nos são concedidos desde o alto, então se revela a nós, que podemos vê-la claramente, sábia e bela, a fonte primordial, a causa primeira da criação de todos os seres. Ela não traz a nós nada que a acuse, nada proveniente da malícia que nos destrói, quando, contra nossa vontade, nos desvia para o pior. Quando aquilo que é separado transborda, quando escapa da beleza original, quando decai da deificação, a fonte, caída em semelhante divisão, engendra sua forma desprovida de toda razão.

31. O único e primeiro fundamento dos que tendem para o progresso é o conhecimento dos seres que adquirem por meio da filosofia ativa. O segundo é o conhecimento dos mistérios ocultos de Deus no qual são iniciados pela contemplação natural. O terceiro é a aproximação da luz original e a união com ela, onde se encontra o repouso de todo progresso filosófico e de toda contemplação.

32. Todas as inteligências evoluem por si próprias, para si mesmas e para o Ser em si. Elas são conduzidas numa mesma e única forma através destes três modos. Elas iluminam seus próximos, os iniciam nos mistérios de Deus e os conduzem à perfeição por meio da sabedoria do céu, como espíritos purificados, unindo-os a elas e à Unidade.

33. A deificação em vida é a verdadeira hierurgia espiritual e divina por meio da qual é celebrado o Verbo da sabedoria misteriosa e pela qual ele é transmitido àqueles que para tanto se prepararam na medida do possível. Por toda sua bondade Deus a concedeu do alto à natureza racional na unidade da fé. Assim alguns, graças à sua pureza, receberam esta recompensa pelo conhecimento do divino e se tornaram semelhantes a Deus, em conformidade com a imagem de seu Filho[32], por seus altos movimentos intelectuais em redor das coisas divinas, e se tornarão por adoção como deuses em relação aos demais homens sobre a terra. Outros, pela purificação, através de sua razão divina e da santa união, perfazem a si mesmos na virtude. Na medida de seu próprio progresso e de sua própria purificação, eles participam da deificação dos primeiros e comungam com eles na união divina, até que todos, unidos no Um, recolhidos todos na unidade do amor, sem fim se unem ao único Deus. E Deus estará no meio de deuses[33], criador das boas obras, Deus por natureza ao meio de deuses por adoção, nada trazendo da criação que o possa acusar.

34.O homem que se devota à virtude não pode se tornar semelhante a Deus – na medida em isto nos é permitido – se não começar por se desfazer, pelo calor das lágrimas, do peso do lodaçal dos vícios que roubam a luz e se não se agarrar à hierurgia dos santos mandamentos de Cristo.  Pois de outra forma é impossível participar dos bens secretos de Deus. Aquele que deseja provar em espírito da doçura divina e do prazer das coisas espirituais deve se afastar de toda sensação do mundo e, por seu impulso em direção aos bens reservados aos santos, engajar continuamente sai alma na contemplação dos seres.

35. Manter em si imutável a semelhança divina que nos é dada pela extrema purificação e um grande amor a Deus só é possível numa elevação contínua em direção a Deus e numa tensão do intelecto mais contemplativo, tensão que nasce naturalmente na alma a partir da perseverante hesíquia das virtudes, da prece contínua, imaterial e calma, da temperança em tudo e da leitura assídua das Escrituras.

36. É preciso se esforçar não apenas para atingir a paz das potências que existem em nós, mas para alcançar o desejo do repouso intelectual. Este é capaz de, na calma, fazer repousar sobre o bem todo o impulso dos pensamentos e, por meio do orvalho divino que vem do céu, curar e refrescar o coração ferido no fogo enviado do alto e atiçado pelo Espírito.

37. A alma ferida profundamente pelo ardente amor a Deus, depois de haver provado a doçura de seus dons inteligíveis, já não pode se deter inteiramente sobre si mesma, nem permanecer no lugar sem tender para diante rumo aos degraus que sobem aos céus. Pois quanto mais ela avança pelo Espírito em suas elevações e mais penetra nas profundezas de Deus, mais ela é inflamada pelo fogo do impulso, descobrindo a imensidão de seus mistérios sempre mais profundos, e apressando-se em se aproximar do fogo benfazejo, no qual se detém todo desenvolvimento do intelecto, a fim de conhecer na felicidade do coração o fim de suas próprias carreiras.

38. Quando alguém entra em comunhão com o Espírito Santo, quando descobre em si, por uma energia e um perfume inefáveis, que o Espírito o visitou, este homem já não se resigna daí por diante em permanecer dentro dos limites da natureza. Transformado pela boa transformação da direita do Altíssimo[34], ele esquece alimento e sono, ele despreza as coisas do corpo, já não pensa no descanso corporal e, mesmo que passe o dia em penas e suores ascéticos, não sente nenhuma fadiga, nenhuma necessidade natural, nem fome, nem sede, sem sono, nem qualquer outra necessidade da natureza. Pois o amor de Deus se espalhou invisivelmente com uma alegria inefável em seu coração[35]. Perseverando toda a noite à luz do fogo, ele trabalha na obra do intelecto exercitando seu corpo e desfruta das delícias do festim da eternidade e da imortalidade das plantas do Paraíso inteligível. Foi quando se viu elevado a este Paraíso que Paulo escutou as palavras inefáveis[36] que o homem afetado pela sensação do visível não consegue ouvir.

39. Uma vez inflamado pelo fogo da ascese e batizado na água das lágrimas o corpo já não se cansa quando pena, mas repousa no suor, pois ele evidentemente está acima dos esforços da ação. Recebendo do interior da alma a calma e o silêncio da paz, ele antes se enche de outro poder, de outra tensão, de outra força do Espírito. Depois de haver assim enriquecido o corpo que mora consigo, e erguido o estado deste acima do exercício corporal, a alma transfere os movimentos naturais para os combates do intelecto e trabalha resolutamente nesta obra. Ela guarda para si própria os frutos das plantas imortais no Paraíso inteligível, donde escorre em rios a fonte dos pensamentos divinos, e onde habita a Árvore do conhecimento de Deus carregada com os frutos da sabedoria, da alegria, da paz, da doçura, da bondade, da paciência e do amor inefável[37]. Trabalhando e guardando[38] com tal fervor, ela emigra do corpo e penetra na treva da teologia. Ela se coloca fora do universo. Nada do que é visível a retém. Unida a Deus, ela repousa de seus suores e de seu desejo.

40. A razão nos diz, a nós que nos devotamos à virtude: de tudo o que está em nós, o que é mais alto, o visível ou o inteligível? Se for o visível, não preferiremos nem amaremos nada tanto quanto as coisas que passam e nossa alma não será mais forte do que nosso corpo. Mas se for o inteligível, Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade[39]. Assim o exercício corporal é supérfluo[40] quando a obra intelectual da alma é suficientemente forte, tornando leve o que a puxa para baixo e tornando tudo espiritual, unindo tudo ao melhor.

41. Existem três ordens entre aqueles que avançam nos degraus que sobem rumo à perfeição: a ordem da purificação, a ordem da iluminação e a ordem da união mística que leva à perfeição. A primeira é a dos noviços. A segunda, a dos médios. A terceira, a dos perfeitos. Pois, subindo pela ordem estes três degraus, quem se devota à virtude cresce até alcançar o talhe de Cristo, até se tornar um homem perfeito na medida da plenitude de Cristo[41].

42. A ordem da purificação é a dos noviços que se engajam nos combates sagrados. Sua natureza própria consiste na rejeição da forma do homem terrestre, na libertação de toda malícia material: ela nos faz revestirmo-nos do homem novo, renovado pelo Espírito Santo[42]. Sua obra é o desprezo da matéria, o esgotamento da carne, a fuga para longe de tudo o que incita à paixão a nossa porção racional e o arrependimento das faltas passadas. Por outro lado ela nos permite lavar em lágrimas o amargor do pecado, regrar nossa conduta sobre a bondade do Espírito, purificar pela compunção o interior da taça[43], ou seja, do intelecto, de toda sujeira da carne e do espírito[44], para em seguida verter nela o vinho da razão que alegra o coração do homem[45] purificado, e levá-la ao Rei dos espíritos para que ele a experimente, enfim, ela nos permite consumir efetivamente no fogo da ascese e nas penas dos combates, rejeitar todo veneno do pecado, embeber-se adequadamente, mergulhar nas águas da compunção e forjar um glaivo afiado capaz de lutar contra as paixões e os demônios. Quem chega a este estado por meio da ascese de numerosos combates extinguiu o poder do fogo natural e fechou a boca dos leões, as paixões selvagens. Ele foi confortado e erguido de sua fraqueza pelo Espírito. Ele se tornou forte como um novo Jó[46], vestiu o troféu da paciência e venceu o tentador.

43. A ordem da iluminação é a ordem dos que progrediram e que a partir dos combates sagrados alcançaram a primeira impassibilidade. Sua natureza própria é conhecimento dos seres, a contemplação das razões da criação e a comunicação do Espírito Santo. Sua obra consiste na purificação do intelecto operada pelo fogo divino, no desvelamento espiritual dos olhos do coração, no nascimento do Verbo nas mais altas meditações do conhecimento; seu fim é a palavra de sabedoria que expõe claramente a natureza dos seres, o conhecimento das coisas divinas e humanas e a revelação dos mistérios do Reino dos céus[47]. Quem alcançou este grau pela obra do intelectual da inteligência é transportado sobre o carro de fogo puxado pela quadriga das virtudes, como um novo Elias[48]. Ele é arrebatado em plena vida ao espaço inteligível e percorre as coisas dos céus, muito acima da baixeza do corpo.

44. A ordem mística, que conduz à perfeição, é a ordem dos que já percorreram tudo e que alcançaram a medida do talhe de Cristo[49]. Sua natureza própria é a de fender o espaço, de dominar o universo, de envolver as ordens dos mais altos céus, de aproximar da luz primigênia e de descobrir as profundezas de Deus pelo Espírito. Sua obra consiste em cumular o intelecto que contempla todas essas razões relativas à providência, à justiça e à verdade, consiste na resolução dos enigmas, das palavras e das parábolas obscuras[50] da divina Escritura, consiste enfim em iniciar aquele que assim realiza em si os mistérios ocultos de Deus para que ele se encha da sabedoria inefável pela comunhão com o Espírito e se revele no meio da grande Igreja de Deus como um sábio teólogo que, com as palavras do conhecimento divino, ilumina os homens. Aquele que, por meio das profundezas da humildade e da compunção, atinge este grau, penetrou no terceiro céu da teologia, como um novo Paulo. Ele escutou as palavras inefáveis[51] que nenhum homem sob o domínio das sensações é capaz de ouvir. Ele experimentou os bens secretos que o olho não viu, que o ouvido não escutou[52]. Ele se tornou ministro dos mistérios divinos[53], a boca de Deus, que serve aos mistérios revelando-os aos homens pela palavra; nisto ele encontra o repouso benfazejo, ele se tornou perfeito no Deus perfeito. Ele está unido com os teólogos às mais altas potências dos Querubins e dos Serafins, que possuem a palavra de sabedoria e de conhecimento.

45. A vida dos homens se divide em duas partes, e o fim desta vida se relaciona a três ordens. Uma parte da vida é comum e transcorre dentro do mundo. A outra não é comum e conduz para além do mundo. O que é comum se divide entre castidade e desejo insaciável. O que não é comum se divide em filosofia, ciência natural e energia sobrenatural. A primeira parte, ou bem vem naturalmente e se liga ao que é justo, ou bem perde o movimento natural, se liga ao que é injusto e conduz à injustiça. A segunda, se for dirigida pela regra, se buscar pelo sentido do fim[54], termina na natureza infinita e atinge a perfeição que está acima da natureza. Mas sem exercida por uma vã ambição, se afastar de sua finalidade, terminará numa inteligência inepta[55], imperfeita e com toda justiça rejeitada pela perfeição.

46. O Espírito é luz, vida e paz. Quem é iluminado pelo Espírito divino leva assim uma vida serena em paz. O conhecimento dos seres e a sabedoria do Verbo correm nele daí por diante, e a inteligência de Cristo lhe é concedida. Este homem conhece os mistérios do Reino[56], penetra nas profundezas de Deus e, dia após dia, com o coração calmo e luminoso, fala aos homens boas palavras de vida[57]. Pois ele é bom, uma vez que traz em si o Deus bom que anuncia o novo e o antigo[58].

47. Deus é sabedoria. Deificando por meio do conhecimento dos seres aqueles que caminham na razão e na sabedoria, ele os une a si pela luz e os torna deuses por adoção. Do mesmo modo como criou tudo do nada pela sabedoria, que pela sabedoria ele conduz e governa todas as coisas do mundo, que na sabedoria ele realiza sempre a salvação de todos os que se aproximam em retorno a ele, também aquele que, por sua pureza, recebeu partilhar da sabedoria do alto cumpre sempre com toda sabedoria, como uma imagem de Deus, as obras da vontade divina. Ele se recolhe longe das coisas exteriores, tão divididas, e, a cada dia, pelo conhecimento dos segredos, eleva e aponta sua razão para as vidas verdadeiramente angélicas. Unificando sua vida tanto quanto lhe for possível, ele une a si mesmo às potências do alto que giram ao redor de Deus na unidade; ele as segue como a bons guias e por meio delas sobe até a origem primeira e a causa primeira.

48. Aquele que, pela mais alta sabedoria, se uniu às potências do alto, que unido Deus (por que se tornou à semelhança de Deus) pela razão e a comunhão vive com todos no amor à sabedoria, este afasta das coisas exteriores e divididas as faculdades dos que desejam isto, com a ajuda do poder divino. Imitando a Deus, ele os recolhe como a si próprio numa vida unitiva e os eleva por meio da sabedoria, o conhecimento e a iluminação dos segredos, para a contemplação da glória da única e primigênia luz. Unindo-os aos seres e às ordens que gravitam ao redor de Deus, ele os conduz, luminoso e flamejante de Espírito, para a unidade de Deus.

49. Oito virtudes naturais e fundamentais acompanham as quatro virtudes. Cada uma delas, de parte e de outra de si mesmas, suscita duas outras e se torna uma tríade. Assim, da meditação se levantam o conhecimento e a sábia contemplação; da justiça, o discernimento e a compaixão; da coragem, a paciência e a constância; da castidade, a pureza e a virgindade. Deus, que configurou de três em três estas doze virtudes e que nos inicia em seus mistérios, assenta-se acima de tudo na sua sabedoria sobre o trono do intelecto, e envia o Verbo para que este as crie em nós. O Verbo, recebendo dos princípios fundamentais a matéria de cada uma dessas virtudes, cria na alma o mundo inteligível da piedade. Na alma ele desdobra a meditação como se fosse um véu constelado de estrelas que iluminam a vida, e faz brilhar e irradiar sobre ela o conhecimento divino e a contemplação natural, como dois grandes luminares. Como se fosse a terra, ele funda na alma a justiça, como um festim inesgotável. Ele estende a castidade sobre ela como o ar, para cobri-la com o frescor do orvalho da vida sem mistura. Como o mar, ele delimita a coragem na fraqueza da natureza, para derrubar as fortalezas e as torres[59] do adversário. O Verbo, construindo desta maneira o mundo, coloca na alma o Espírito, o poder do movimento perpétuo do intelecto e do recolhimento constante que não se dispersa, como disse Davi: “Sobre a palavra do Senhor os céus foram fundados, e pelo sopro de sua boca todo o seu poder[60]”.

50. Através das passagens que realizam de uma idade espiritual a outra, nosso Senhor Jesus Cristo cresce naqueles que se dedicam à virtude. Quando ainda são crianças e precisam de leite[61], se diz que bebem o leite das virtudes elementares do exercício do corpo, cuja utilidade diminui[62] na medida em que crescem em virtude e se afastam da infância. Quando chegam à adolescência e comem o alimento sólido da contemplação dos seres, porque se exercitaram nos sentidos da alma[63], diz-se que avançaram em idade e em graça[64], que já se assentam entre os anciãos[65] e que descobrem neles as profundidades ocultas nas trevas[66]. Quando enfim chegam à idade do homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo[67], diz-se que pregam a todos a palavra do arrependimento, que ensinam aos povos as coisas do Reino dos céus, e que vão ao encontro dos sofrimentos[68]. Pois este é o fim de todo homem que se aperfeiçoa nas virtudes: depois de haver atravessado todas as idades de Cristo, chegar ao sofrimento das tentações carregando sua cruz.

51. Na medida em que estamos submetidos aos elementos da ascese, evitando tomar alimentos, tocar as coisas, contemplar a beleza, escutar os cantos, sentir perfumes, enquanto estamos sob a orientação de tutores e ecônomos[69], somos ainda crianças, mesmo que sejamos herdeiros e mestres de todas as coisas do Pai. Mas quando o tempo da ascese chega ao seu termo e se realizou na impassibilidade, então da pureza da reflexão nasce em nós o Verbo e sobre nós vem a lei do Espírito, a fim de nos resgatar, a nós que estávamos sob a lei dos cuidados da carne, e de nos conceder a adoção. Isto feito, então o Espírito clama em nossos corações: “Abba, Pai”, nos mostrando e nos revelando a filiação e a liberdade diante de Deus Pai. Por intermédio de Cristo ele permanece em nós e nos fala como se fôssemos filhos e herdeiros de Deus[70]. A partir daí, estamos libertos da escravidão dos sentidos.

52. Para aqueles que, juntamente com Pedro, progrediram na fé, que, com Tiago, se elevaram na esperança, que com João se tornaram perfeitos no amor, o Senhor se transfigura depois de haver subido a alta montanha da teologia[71]. Pela manifestação e a marca da ele brilha diante deles como o sol. Pelos pensamentos da sabedoria misteriosa ele flameja como luz. O Verbo se revela neles, no meio da Lei e da Profecia, legislando e ensinando as coisas da Lei, e descobrindo os tesouros profundos e escondidos da sabedoria das coisas da Profecia: então ele prevê e prediz. O Espírito os cobre com sua sombra como uma nuvem luminosa, e desta nuvem a voz da teologia mística desce sobre eles, iniciando-os no mistério da Trindade em três Hipóstases, dizendo-lhes: “Eis aqui meu Bem-Amado, o termo da palavra de perfeição, em quem eu me comprazo[72]: tornem-se para mim filhos perfeitos no Espírito perfeito”.

53. A alma que despreza todas as coisas terrestres e que está totalmente ferida pelo amor a Deus vive num êxtase estranho e divino. Pois, depois de haver visto claramente as naturezas e as razões dos seres, depois de ter compreendido o fim das coisas humanas, ela já não suporta permanecer encerrada no universo nem limitada por aquilo que a cerca. Rompendo seus limites e os laços de seus sentidos, ultrapassando a natureza de todas as coisas, ela penetra nas trevas da teologia, no silêncio inefável, compreende a beleza do Ser na luz da inexprimível sabedoria das meditações, na medida da graça recebida. Mergulhando divinamente em sua contemplação naquilo sobre quê medita, ela se delicia com os frutos das plantas imortais e com o temor amoroso, vale dizer, com as meditações dos pensamentos divinos. Ela exprime perfeitamente a grandeza e a glória, porque nunca está crispada sobre si mesma. Estranhamente levada pelo Espírito, ela conhece o sofrimento louvável numa alegria e um silêncio indizíveis. Mas como ela age, ou o que a empurra, ou o que lhe faz ver e misticamente lhe comunica os segredos, estas coisas lhe é impossível explicar.

54. Quem semeia em si próprio com justiça as lágrimas da compunção recolhe o fruto da vida: uma alegria inexprimível. Quem busca e espera o Senhor até que ele venha e produza sua justiça colherá em abundância as espigas do conhecimento de Deus. A luz da sabedoria o iluminará e ele se tornará um candelabro de luz eterna para iluminar todos os homens. Ele não se negará aos que lhe estão próximos, cobrindo-a com o jarro do ciúme, esta luz de sabedoria que lhe foi dada[73]. Ele dirá as boas palavras na Igreja dos fiéis para o benefício de muitos[74]. Ele dirá coisas que permaneceram ocultas desde a origem, tudo aquilo que ele ouviu do alto, deixando ressoar em si o Espírito divino, e se aplicando a tudo o que sabe por meio da contemplação dos seres e daquilo que seus Pais lhe ensinaram[75].

55. As montanhas da obra dos mandamentos de Deus serão abertas a todo homem consagrado no dia em que ele atingir a perfeição na virtude. Elas lhe destilarão a doçura da alegria quando ele reinar sobre Sião pela perfeição pura. E as colinas, as palavras de virtude, se derramarão em leite. Elas lhe trarão o alimento quando ele repousar sobre o berço da impassibilidade. Todas as fontes de Judá, vale dizer, sua fé e seu conhecimento, farão correr suas águas: os dogmas, as parábolas e os enigmas das coisas de Deus. E a fonte da sabedoria oculta jorrará de seu coração, como da mansão do Senhor, e irrigará a ravina de juncos[76], ou seja, os homens consumidos pela secura e o calor das paixões. Então ele conhecerá em si o verdadeiro cumprimento das palavras do Senhor, que disse: “Aquele que crê em mim, de seu seio correrão rios de água viva[77]”.

56. O sol de justiça, disse Deus, se eleva sobre aqueles que reverenciam, e sua cura está em seus atos. Eles deixarão a prisão das paixões e correrão livremente como bezerros soltos dos laços do pecado. Eles pisotearão os homens iníquos e os demônios como se estes fossem cinzas no dia em que eu os restabelecer, disse o Senhor que domina o universo[78], quando eles se levantarão através de todas as virtudes e se tornarão perfeitos pela sabedoria e o conhecimento na comunhão do Espírito.

57. Se, sobre a montanha que domina a planície[79] deste mundo e a Igreja de Cristo, você erguer o estandarte do novo conhecimento do alto, se você levanta em si a voz da sabedoria de Deus que lhe foi concedida- conforme foi dito – exortando e ensinando pela palavra a seus irmãos, abrindo a eles a inteligência da divina Escritura[80] para que compreendam os dons maravilhosos de Deus, e se você se antecipa a eles na obra de seus mandamentos, não tenha medo dos que invejam o poder de suas palavras e que alteram toda a divina Escritura, homens vazios que varreram a si próprios mas que estão prestes a se tornarem morada do diabo[81]. Pois Deus escreveu no Livro dos vivos[82] as palavras de seus lábios, e estes homens não poderão prejudicá-lo, como não o pode Simão a Pedro. Antes dirá você, juntamente com o profeta, neste dia em que os vir estendendo armadilhas para fazê-lo cair no caminho: “Eis que o Senhor é meu Deus e meu Salvador. Eu me confiei a ele. Ele me salvará e a nada temerei. Pois o Senhor é minha glória e meu louvor, e ele me salvou. Eu não cessarei de anunciar as obras de sua glória sobre a terra[83]”.

58. Se você perceber em si que o impulso da energia das paixões está inerte e que brota de seus olhos a compunção que provém da humildade, saiba que o Reino de Deus desceu sobre você e que em você concebeu o Espírito Santo. E se você sentir a ação do Espírito, sacudindo-o e falando em seu interior, e levando-o a proclamar na grande Igreja a salvação e a verdade de Deus, não cerre seus lábios[84] por causa da inveja dos judaizantes. Apenas sente-se e, como disse Isaías[85], escreva num bloco de notas[86] aquilo que lhe diz o Espírito: “Estas coisas acontecerão nos dias do tempo e até a eternidade, como lhe foi dito: os que sentem inveja são um povo indócil, filhos mentirosos que não têm fé”. São estes os que não querem acreditar que o Evangelho age ainda e que ele criou os filhos de Deus e os profetas, mas que dizem aos profetas e aos doutores da Igreja: “Não nos anunciem a sabedoria de Deus”, e àqueles que enxergam as visões da contemplação natural: “Não nos falem disto, mas reportem-nos e anunciem-nos uma nova ilusão que ame o mundo, retirem de nós a palavra de Israel[87]”. Não dê atenção à sua inveja e às suas palavras. Porque até os surdos, no final, escutarão aquilo que do alto ressoa em você para o benefício de muitos outros. E os que estão nas trevas desta vida e com os olhos cegados nas brumas do pecado verão[88] a luz em suas palavras. E os pobres de espírito se regozijarão[89] com elas, os homens desesperados se encherão de alegria[90] e os perdidos em espírito conhecerão a sabedoria de suas palavras. Os que murmuram contra você aprenderão a obedecer às palavras do Espírito. E as línguas que balbuciam aprenderão a dizer a paz[91].

59. Feliz daquele que tem em Sião, na Igreja de Deus, a semente do ensinamento de suas palavras, disse Isaías[92], e que tem seus próprios filhos, os filhos do Espírito, na cidade dos primogênitos, na Jerusalém celeste. Pois este homem, diz-se, esconderá suas palavras por algum tempo e ele mesmo será oculto pelas águas que o levam. No final ele aparecerá em Sião, na Igreja dos fiéis, levado como que por um rio glorioso sobre a terra sedenta das ondas de sua sabedoria. Os que se confiaram a ele já não serão derrubados pelos invejosos, mas seus ouvidos escutarão as suas palavras. O coração dos que sofrem na alma escutará com atenção. E que os servidores da inveja não digam mais: “Silêncio”, porque um homem piedoso os aconselhou com inteligência e não lhes disse bobagens como estes tolos que são os sábios do mundo. Seu coração nada pensou de vão, nada existe nele que seja iníquo, nada de falso ele disse diante de Deus, para dispersar as almas que tinham fome e tornar vazias as almas que tinham sede[93]. Por isso suas palavras continuam a ser um auxílio para muitos, mesmo que não pareçam sê-lo àqueles que o denigrem.

60. Para quem habita sobre uma rocha dura numa caverna elevada, o pão do conhecimento é dado à saciedade, e o cálice da sabedoria até a embriaguez. Assim sua transparência será fiel. Ele verá o Rei na glória e seus olhos verão de longe a terra[94]. Sua alma meditará a sabedoria e anunciará a todos o lugar eterno, fora de onde nada existe.

61. Assim, se a instrução do Senhor abre os ouvidos de todo homem que o reverencia, lhe acrescenta mais um ouvido para escutar e lhe dá uma língua de discípulo para que ele saiba quando dizer[95] uma palavra, quem mais  faria recuar os prudentes e os sábios deste mundo desnudando a loucura de sua sabedoria[96]? Quem mais confirmaria as palavras de seus servidores? Quem mais, senão ele mesmo que realiza coisas novas e maravilhosas para sua glória, que traça no coração deserto e seco um caminho de humildade e doçura, que faz jorrar, na reflexão árida e sem água, rios de sabedoria inefável, para irrigar sua raça eleita, o povo que ele guarda a fim de contar suas virtudes[97]. Pois ele caminha diante dos que o amam e reverenciam, ele aplaina as montanhas das paixões, destrói as portas de bronze da ignorância, abre as portas de seu conhecimento e lhes revela nas trevas os tesouros ocultos e invisíveis, para que eles saibam que é ele mesmo o Senhor Deus que os chama por seu nome: Israel[98].

62. Quem é aquele que vence o oceano de paixões e detém suas vagas? É o Senhor dos Exércitos. Ele liberta aos que o amam do perigo do pecado. Ele transforma em calma a tempestade dos pensamentos, coloca suas próprias palavras em suas bocas[99] e lhes cobre com a sombra de suas mãos, sob a qual ele estendeu o céu e fundou o mar. Ele próprio concede aos que o reverenciam uma língua de discípulo e um ouvido inteligente[100] para ouvir sua voz do alto e para anunciar seis mandamentos na casa de Jacó, à Igreja dos fiéis. Mas nos que não têm olhos para ver os raios do Sol de justiça, nem ouvidos para ouvir as maravilhas da glória de Deus, o fim da ignorância é a obscuridade, e a esperança é vã como as palavras. Nenhum destes diz o que é justo. Neles não existe julgamento de verdade. Eles se confiam a coisas vãs e o que eles dizem é vazio. Eles concebem a invejam e dão a luz à difamação. Seus ouvidos são incircuncisos, eles não conseguem escutar. Por isso a palavra de conhecimento de Deus é para eles uma reprovação e eles não a querem ouvir.

63. Que sabedoria pode haver entre aqueles que invejam seu próximo? “Como, diz Jeremias[101], os maledicentes podem dizer: Nós somos sábios, e: A lei do Senhor está do nosso lado, se eles se consomem de inveja diante daqueles que receberam a graça do Espírito pela sabedoria e o conhecimento de Deus? O falso conhecimento dos escribas e dos sábios deste mundo é vã. Eles perderam o caminho da verdadeira ciência”. É por isso que os sábios decaídos da sabedoria do Consolador foram confundidos ao vê-lo crescer entre os filhos dos pecadores, e então temeram o poder de suas palavras. Eles foram capturados nas redes de seus pensamentos, uma vez que rejeitaram a verdadeira sabedoria e o conhecimento do Senhor.

64. Por que terão sido estes homens consumidos pela inveja contra aqueles a quem a graça do Espírito tornou ricos, contra os que receberam uma língua de fogo como a pena de um escriba alerta[102], quando foram eles próprios que abandonaram a fonte da sabedoria de Deus? Pois se eles tivessem seguido o caminho de Deus eles teriam permanecido para sempre na paz da impassibilidade. Eles teriam aprendido onde está a razão, onde a força, onde a inteligência, onde o conhecimento dos seres, onde a longevidade, e a vida, a luz dos olhos, a sabedoria e a paz[103]. Eles teriam aprendido quem encontra o lugar da sabedoria e quem penetra em seus tesouros. Eles teriam aprendido de que forma Deus, por meio de seu profeta, dá suas ordens aos iniciados em sua palavra, quando diz: “Que o profeta que recebeu num sonho uma revelação conte aquilo que viu em sonho. E quem ouviu minha palavra proclame minha palavra com toda a verdade[104]”. E ainda: “Escreva para mim em um livro todas as palavras que eu lhe disse[105]”. A partir daí, jamais eles teriam sido consumidos pela inveja diante de tais homens.

65. Se um Etíope pudesse mudar sua pele e uma pantera suas manchas[106], também os maledicentes poderiam dizer e projetar o bem, mesmo pensando o mal. Eles enganam o próximo com suas mentiras porque avançam com truques e se riem de seus amigos. Eles não dizem a verdade, pois sua língua já não sabe falar senão uma linguagem vã e falsa[107]. Compreenda, portanto, você, que pelo conhecimento e a palavra de Deus que estão consigo, é invejado e desdenhado por eles. Ore assiduamente e diga com Jeremias: “Senhor, lembre-se de mim, visite-me, guarde-me destes homens maus que me perseguem. Em sua paciência, depois de me testar por tanto tempo, não me rejeite. Saiba que eu sou o opróbrio dos que rejeitam seu o conhecimento. Consuma-os na sua inveja, e a palavra de seu conhecimento fará o regozijo e a alegria de meu coração. Pois eu jamais me sentei na assembleia dos que se riem de seu conhecimento. Eu me confiei às suas mãos. Sentei-me na solidão, pois sua inveja me enchia de amargura. Você me ouvirá, bem o sei, porque você faz com que os perdidos retornem de seus descaminhos (...) Eu o restabelecerei entre meus amigos. Você estará diante da minha face. Se, daquilo que é indigno você extrai o que é nobre, você será como a minha boca. Eu o livrarei das mãos dos malfeitores que o ultrajam, disse o Senhor Deus de Israel[108]”.

66. Que os sábios maledicentes escutem todo o fim do discurso[109]. Por meio de suas penas, os Nazireus[110] de Deus se tornaram mais puros do que a neve. Em suas vidas eles estão mais brancos do que o leite. O brilho de sua sabedoria supera o da safira[111], e a forma de sua palavra a da pérola pura. Os que comeram das delícias do conhecimento deste mundo desapareceram. O Espírito os deixou. Os que se alimentaram do grão de sabedoria dos Gregos foram recobertos pelo fumo da ignorância[112]. Eles lançaram cordas sobre si mesmos e ficaram presos a si próprios. Pois sua língua está colada à sua garganta e eles se tornaram mudos. Eles rejeitaram receber, a custa de penas, a verdadeira sabedoria e o verdadeiro conhecimento do Espírito divino.

67. Deus, que derruba a árvore que se ergue e levanta a que cai, que seca a árvore verde e faz reflorir a árvore seca[113], ele próprio abre a boca dos seus servidores[114] no meio da assembleia numerosa e concede a palavra a todos os que anunciam poderosamente a boa nova[115]. Pois a ele pertencem a sabedoria, a inteligência e a força. E assim como ele muda os tempos e os anos, ele faz reinar sobre as paixões as almas que o buscam e o desejam. Ele os faz passar da vida para a Vida, concedendo por meio do Espírito a sabedoria aos sábios e a inteligência aos que são capazes de compreender. Ele próprio revela aos que sondam as profundezas de Deus as coisas enterradas e ocultas. Ele lhes dá a conhecer aquilo que está envolto nas trevas dos enigmas. Pois a luz da sabedoria e do conhecimento está com ele[116], e ele a concede a quem ele quiser.

68. Para aquele que cumpre com perseverança os mandamentos relativos ao homem exterior e ao homem interior, para quem não vê senão a glória de Deus, são concedidas a honra do conhecimento do céu, a paz da alma e a incorruptibilidade. Pois este não se contenta apenas com ouvir, ele realiza a obra da lei da graça[117]. Seu conhecimento é atestado pelas obras, e Deus não o despreza, mas, juntamente com ele, glorifica este conhecimento pelas palavras que vêm através dele e que manifestam a luz que sua sabedoria faz brilhar na Igreja dos fiéis. Pois Deus não faz acepção de pessoas[118]. Mas a quem se entrega às brigas, a quem desobedece às palavras dos que trazem o Espírito[119], que se deixa persuadir por seu próprio intelecto e pelas palavras enganadoras daqueles que só se cercam de piedade na aparência[120] e que são levados por um espírito de ambição e de amor ao prazer, a este é dada a aflição e a angústia, a inveja, a concupiscência e a cólera. A partir daí este pagará por seu erro e ao final denunciará os pensamentos que se acusarão mutuamente ou que o justificarão, no dia em que Deus julgar os segredos dos homens e retribuir a cada qual segundo suas obras[121].

69. Não é judeu aquele que apenas parece, como se diz, nem é circuncisão aquela que é visível na carne, mas é judeu aquele que o é secretamente, e é circuncisão aquela feita no coração, que provém do espírito e não da letra[122]. Da mesma forma o homem perfeito no conhecimento e na sabedoria não é aquele que o é apenas por sua eloquência e sua bela linguagem, como não é um asceta realizado aquele que estaciona no exercício corporal e visível das penas, mas aquele que se consagra à obra espiritual secreta. Quem fala com um coração puro e bom é um sábio perfeito em conhecimento pelo Espírito de Deus, e não pela letra. Seu louvor não vem dos homens, mas de Deus[123]. Os homens o ignoram e invejam. Somente Deus e aqueles que são animados pelo mesmo Espírito o amam e conhecem.

70. Se nenhuma carne é justificada perante Deus pelas obras da lei[124], como foi dito, que, apenas pelos combates e as penas da ascese, atingirá a perfeição diante de Deus? Com efeito, pela ação nós nos encaminhamos ao estado de virtude e reprimimos a energia das paixões. Mas não é apenas pela ação que nos tornamos homens perfeitos na plenitude de Cristo. Então, o que nos leva à perfeição? A fé interior em Deus: ela é o fundamento daqueles que esperam[125]. Por causa dela Abel ofereceu a Deus um sacrifício maior do que Caim e foi confirmado como justo[126]. Por ela Abrahão, ao ser chamado, aceitou partir e foi habitar na terra prometida[127]. É ela que conduz os que são verdadeiramente fervorosos e os eleva até as grandes esperanças dos mais altos dons de Deus, e de lá até o conhecimento dos seres. É ela que coloca em seu coração os tesouros inesgotáveis do Espírito, para que estes lhe exprimam os mistérios novos e antigos de Deus[128], e para que ele os dê aos que disto necessitam. O homem que recebeu a graça desta fé se eleva pelo amor até a perfeição do conhecimento de Deus e entra em seu repouso[129].  Ele mesmo repousa das obras realizadas, como Deus repousou das suas próprias[130].

71. Deus fez desde o começo a promessa: os que não forem fiéis não entrarão no repouso. Assim sendo, é pela sua falta de fé que eles não podem entrar[131]. Isto posto, como poderiam alguns, apenas pelo exercício corporal, sem fé, entrar no repouso da impassibilidade e na perfeição do conhecimento, quando vemos tantos homens incapazes de aí entrar e repousar de todas as suas penas? Portanto, cada qual deve investigar se não tem em si um coração pervertido pela incredulidade[132]. Pois é por causa desta última que falta a eles o repouso e a perfeição, embora se entreguem a tantas penas. Por isso eles se afadigam todo o tempo nas obras ativas e comem o pão da dor[133]. Se eles não conhecem a graça do sétimo dia[134], que se esforcem para entrar pela fé no repouso da impassibilidade e na perfeição do conhecimento, a fim de não caírem na expressão original da desobediência[135] e não serem submetidos às mesmas coisas que aqueles que um dia foram infiéis.

72. Dotados de sentidos, mas também de palavra e intelecto, devemos oferecer de nós mesmos um dízimo a Deus. Dotados de sentidos, devemos perceber atentamente as coisas sensíveis e por meio de sua beleza nos elevarmos até o Criador, atribuindo a ele o conhecimento irrepreensível dessas coisas. Dotados de palavra, devemos falar o bem das coisas divinas e humanas. Dotados de intelecto, devemos pensar sem erros em Deus, na vida eterna, no Reino dos céus, nos mistérios do Espírito nele ocultos. Tudo isto para provar que sentimos, falamos e compreendemos sã e irrepreensivelmente segundo Deus. Esta é a verdadeira medida e a santa oferenda a Deus.

73. O dízimo que em primeiro lugar devemos a Deus é a Páscoa da alma, ou seja, a superação de todo estado passional e de toda sensação desprovida de razão. Durante esta Páscoa, o Verbo é oferecido em sacrifício por meio da contemplação dos seres. Ele é comido no pão do conhecimento e seu sangue precioso é bebido no cálice da sabedoria misteriosa. Aquele que comeu e celebrou a Páscoa sacrificou em si mesmo o Cordeiro que tira o pecado do mundo[136], e já não mais morrerá, conforme a palavra do Senhor, mas viverá por toda a eternidade[137].

74. Aquele que se levantou de suas obras mortas ressuscita com Cristo. E se ressuscita com Cristo por meio do conhecimento, Cristo já não morre mais nele, a morte da ignorância já não mais o domina. Pois aquilo que um dia morreu devido ao pecado, levado por seu movimento natural, morreu de uma vez por todas. O que agora vive, vive por Deus[138], pela liberdade do Espírito Santo, que o levantou de entre as obras mortas do pecado. Ele próprio já não vive mais para a carne e para o mundo, porque morreu para os membros de seu corpo e para as coisas da existência. Mas Cristo vive nele[139] a partir do momento em que ele está sob a graça do Espírito Santo, que ele não está mais submetido à lei da carne, e que ele oferece a Deus Pai seus membros como armas de justiça[140].

75. Aquele que libertou seus membros da escravidão das paixões e os colocou a serviço da justiça[141] entra na santificação do Espírito Santo, tendo superado a lei da carne. O pecado não mais o dominará. Ele se confiou à liberdade e à lei do Espírito. Pois o fim do serviço da justiça não é como o fim da escravidão das paixões. Esta termina na ruína inteligível da alma. Mas aquela conduz à vida eterna oculta em Jesus Cristo[142] nosso Senhor.

76. Enquanto o homem viver carnalmente, a lei da carne o dominará. Mas se ele perece, se se faz de morto para o mundo, ele se livra desta lei[143]. Não existe outro caminho para se morrer para o mundo senão fazendo morrer os membros do corpo. Nós os levamos à morte quando comungamos do Espírito Santo. E sabemos que comungamos do Espírito Santo quando oferecemos a Deus frutos dignos do Espírito: o amor a Deus com toda nossa alma, o amor ao próximo com todas as nossas forças, a alegria do coração que vem de uma consciência pura, a paz na alma que provém da impassibilidade e do auto rebaixamento, a bondade dos pensamentos do intelecto, a paciência nas aflições e nas tentações, a simplicidade de uma vida modesta, a fé interior em Deus e que não duvida de nada, a doçura na humildade, a compunção e a temperança dos sentidos que abarca tudo. Quando levamos estes frutos a Deus, passamos ao largo da lei da carne. Não existe mais lei que nos castigue por causa dos frutos que nos dera a morte quando ainda vivíamos conforme a carne. Pois fomos libertos desta lei[144] desde que fomos levantados de nossas obras mortas, com Cristo, pela liberdade do Espírito.

77. Os que receberam as primícias do Espírito pelo banho do novo nascimento e que as guardaram com todo vigor, pressionados pela pesandez da carne, gemem por si e, com a chegada do Consolador em sua plenitude, aguardam a filiação[145], a fim de ver seu próprio corpo liberto da escravidão da corrupção. Pois o Espírito vem em socorro de sua fraqueza natural e intercede por eles com gemidos inefáveis[146]. Seus corações estão em Deus e suas esperanças esperam ver em sua carne mortal a revelação do Filho de Deus, a morte vivificante de Jesus[147], a fim de se tornarem também filhos de Deus conduzidos pelo Espírito Santo, a fim de receberem a libertação da escravidão da carne e alcançar a liberdade da glória dos filhos de Deus, por quem tudo concorre para o bem, pois eles amam a Deus[148].

78. A divina Escritura deve ser interpretada espiritualmente, e é aos espirituais que são revelados pelo Espírito Santo os tesouros que estão contidos nela. O homem psíquico não pode receber tal revelação[149]. Este segue seus próprios pensamentos e recusa ouvir ou compreender o que dizem os outros, porque não traz em si o Espírito de Deus que sonda as profundezas de Deus e que conhece as coisas de Deus[150]. Ele tem em si o espírito material do mundo, cheio de ciúme e inveja, transbordando de querelas e divisões[151]. Por isso buscar o sentido e descobrir a inteligência das palavras lhes parece uma loucura. Pois, ignorando que tudo o que está nas divinas Escrituras, relativamente às coisas divinas e humanas, só pode ser considerado espiritualmente, eles se riem daqueles que as veem assim. Na medida em que, como Demas[152], seu pensamento distorce e inverte os pensamentos divinos e as palavras de tais homens, eles afirmam que estes não são espirituais, que não são conduzidos pelo Espírito de Deus, que não têm método. Mas o espiritual não é assim. A tudo ele julga inspirado pelo Espírito divino. Ele próprio não pode ser julgado por ninguém: porque ele tem em si a inteligência de Cristo, a qual ninguém jamais poderá instruir[153].

79. No fogo da revelação do último dia, que então provará a obra de cada um[154], diz Paulo, caso esta obra seja de essência incorruptível e lhe tenha sido dada para edificação, ela permanecerá intacta no meio do fogo. Não apenas ela não queimará, mas resplandecerá em luz, inteiramente purificada, mesmo da menor mácula. Ao contrário, se a obra de alguém foi dedicada à matéria perecível e se ligou a ela para torná-la ainda mais pesada, ela será consumida[155] e o abandonará vazio no meio do fogo. A obra incorruptível, a que permanece, são as lágrimas do arrependimento, a misericórdia, a compaixão, a prece, a humildade, a fé, a esperança, o amor, e tudo o mais que é feito em vista da piedade: aquilo que, enquanto vive o homem, o edifica como um santo homem de Deus[156] e que, quando ele morre, parte consigo e permanece incorruptível por toda a eternidade. A obra que perece no fogo – é evidente para qualquer um – consiste no amor pelos prazeres, pela vanglória e pelo dinheiro, no ódio, na inveja, no roubo, na embriaguez, no ultraje, na condenação e toda falsidade que se realiza no corpo por concupiscência ou cólera. Estas coisas perecem junto com o homem que as traz em si, quando este é queimado pelo fogo da concupiscência e arrancado de seu corpo. E, ao desaparecer, elas abandonam no meio do fogo o operário eternamente atormentado pelos séculos dos séculos.

80. O conhecimento de Deus significa que é conhecido por Deus aquele que nele se edifica humildemente e com a oração, e que ele recebe de Deus a riqueza do verdadeiro conhecimento de seus mistérios sobrenaturais.  Mas se a pessoa fica inchada por isto, ela já não está sendo edificada no conhecimento pela humildade e a prece, mas é levada pelo espírito material deste mundo. Por isso tal homem crê saber essas coisas, mas não conhece as coisas divinas como elas devem ser conhecidas[157]. Ao contrário, aquele que ama a Deus, que considera que nada é preferível ao seu amor e ao amor pelo próximo, este conhece tanto as profundezas de Deus como os mistérios de seu Reino, do modo como deve conhecê-los alguém que é guiado pelo Espírito divino[158]. E, realizando pelo amor a vontade de Deus como  um verdadeiro operário do Paraíso de sua Igreja, ele se torna conhecido de Deus[159]. Pois ele faz com que as almas regressem, torna dignos os indignos[160] pela palavra que lhe é dada pelo Espírito Santo e mantém sua obra intacta pela humildade e a compunção.

81. Todos fomos batizados em Cristo pela água e o Espírito Santo. Todos comemos do mesmo alimento espiritual e bebemos da mesma bebida espiritual. Isto é Cristo. No entanto Deus não se compraz na maior parte de nós[161]. De fato, muitos fiéis e monges oprimiram e esgotaram seus corpos sob o peso de inúmeras penas de ascese e exercícios corporais, mas não tiveram a compunção que provém de um coração quebrantado ligado ao bem, nem a compunção inspirada pelo amor ao próximo e a si mesmo. Por isso eles ficaram vazios, perderam a plenitude do Espírito Santo e se afastaram do conhecimento de Deus. A matriz de seu pensamento permaneceu estéril, e suas palavras não contém sal nem luz.

82. O que o Verbo pede aos Nazireus[162] não consiste apenas em subir pela ação a montanha do Sinai, nem em se purificar antes de subir, nem em lavar suas vestes, nem em se abster de mulher[163], mas em ver a Deus, não por trás[164], mas ele próprio em sua glória, comprazendo-se neles, dando-lhes as tábuas do conhecimento e enviando-os para edificar seu povo[165].

83. Depois de haver revelado seus mistérios ocultos, seus maiores mistérios, o Verbo não tomou consigo todos os seus servidores e discípulos, mas apenas a alguns deles, a quem ele concedeu um ouvido, aos quais abriu os olhos e deu ainda uma língua nova[166]. Tomando-os em separado dos demais, que também eram seus discípulos, ele subiu o monte Tabor da contemplação e se transfigurou diante deles[167]. Ele não os iniciou ainda no Reino dos céus, mas mostrou-lhes a glória e o esplendor da Divindade. Ele concedeu Às suas vidas e às suas palavras que brilhassem por si próprias como o sol no meio da Igreja dos fiéis. Ele transformou seus pensamentos em brancura, em pureza de luz radiante. Neles ele colocou seu intelecto e os enviou a proclamar com suas bocas o novo e o antigo[168], para que edificassem sua Igreja.

84. Muitos colocaram todo seu cuidado em cultivar seus campos, lançando neles uma semente pura, depois de haver cortado as ervas daninhas e queimado os cardos sob o fogo do arrependimento, mas, como Deus não espalhou sobre seus campos a chuva do Espírito Santo que é suscitada pela compunção, estes campos nada produziram e se consumiram na secura. Eles não produziram por si sós as espigas fecundas do conhecimento de Deus. É por isso que, mesmo não tendo passado fome nem sido privados da palavra de Deus, eles não receberam seu conhecimento e permaneceram de mãos vazias, tiveram pouco o que levar para se alimentarem no festim e morreram na alma.

85. Todo homem que pronuncia com sua boca palavras confiáveis para a edificação do próximo as extrai do bom tesouro do seu coração, por ser bom, como disse o Senhor[169]. Ninguém pode se dedicar à teologia e dizer coisas relativas a Deus, se não for no Espírito Santo[170]. E ninguém, se falar pelo Espírito de Deus, pode dizer coisas contrárias à fé em Cristo. Mas afirmando aquilo que edifica, que conduz a Deus e a seu Reino, ele restabelece a nobreza primordial e une a Deus muitos que se salvam. E, se a revelação do Espírito é dada a cada um para seu benefício[171], aquele que recebeu em abundância a palavra da sabedoria de Deus e que escutou a palavra do conhecimento é conduzido pelo Espírito divino. Ele se torna a morada dos tesouros inesgotáveis de Deus.

86. Todo homem batizado em Cristo e que acreditou jamais será deixado sem a graça do Espírito, desde que não se entregue às energias do espírito contrário, se não manchar a fé com suas obras e se não viver na irresponsabilidade e na negligência. Pois ele terá guardado vivas as primícias do Espírito Santo recebidas por meio do santo batismo. Ou então as terá reacendido com obras de justiça, caso estas se tenham extinguido. É impossível que ele não receba do alto o cumprimento desta justiça. Pois, ou bem ele conduziu o bom combate da palavra da sabedoria de Deus e, pela plenitude do Espírito, se tornou digno de ensinar na Igreja; ou ele recebeu a palavra do conhecimento dos mistérios de Deus e o mesmo Espírito o tornou digno de ver os mistérios do Reino dos céus; ou ele recebeu a fé interior, no mesmo Espírito, e lhe foi concedido crer nas promessas de Deus, como Abrahão; ou ele recebeu o carisma da cura no mesmo Espírito, para curar os enfermos; ou ele recebeu a energia das potências para expulsar os demônios e fazer milagres; ou recebeu o dom das profecias para prever e predizer as coisas por vir; ou o discernimento dos espíritos, para distinguir quem fala e quem não fala no Espírito de Deus; ou a interpretação das diferentes línguas[172], ou a proteção dos aflitos, ou a condução dos rebanhos de Deus[173] e do povo, ou o amor por todos e seus carismas, a paciência, a bondade e tantos outros[174]. Mas se alguém não possui nenhum destes dons, já não posso afirmar que ele seja fiel, nem posso contá-lo dentre os que se revestiram de Cristo pelo batismo divino[175].

87. Aquele que tem amor não é capaz de invejar por ciúme. Ele não fanfarroneia por orgulho e presunção, nem se infla contra ninguém, nem faz o que possa ser inconveniente ao próximo. Ele não busca seus próprios interesses, mas os do próximo. Ele não se irrita prontamente contra aqueles que o afligem, nem investiga se aquilo que lhe acontece é mau. Ele não se regozija com as faltas de seus amigos, mas, juntamente com eles, com a verdade e a justiça. Ele aceita todas as aflições que lhe advêm. Em tudo ele crê, com simplicidade e inocência. Ele espera receber de Deus o fruto de tudo o que ele nos prometeu. Ele suporta tudo o que lhe advém na forma de tentações e não devolve o mal com o mal. O operário do amor jamais abandona o amor ao próximo[176].

88. Dentre aqueles a quem foi concedido receber do alto a graça do Espírito Santo em seus diferentes carismas, alguns ainda são crianças e não atingiram a perfeição à qual os carismas divinos conduzem, enquanto outros são adultos e perfeitos na plenitude destes carismas. Os primeiros, compenetrados no cumprimento dos mandamentos divinos, crescem por meio destes e, cumulados com os maiores dons do Espírito, abandonam os carismas próprios da infância. Os outros, indo além e até o final no amor e no conhecimento de Deus, fazem cessar em si os carismas parciais, quer sejam estes a profecia, como foi dito, ou o discernimento, a inteligência das coisas ou o governo dos homens[177], etc. Pois aquele que penetrou no templo do amor já não conhece apenas parcialmente ao Deus Amor, mas, encontrando-o face a face, conhece-o como ele próprio é conhecido por Deus[178].

89. Aquele que, em sua fervorosa busca pelos carismas espirituais, persegue e descobre o amor, já não suporta, pela prece e a leitura, falar apenas para sua própria edificação. Pois quem, por meio da prece e da salmodia, só fala a Deus com sua língua, edifica a si mesmo, como disse Paulo, mas deve também se apressar em profetizar para edificar a Igreja de Deus[179], ou seja, em ensinar aos que lhe são próximos a obra dos mandamentos de Deus e o modo como devem se esforçar para agradar a Deus. Em que poderia servir aos demais aquele que diariamente não fala senão a si próprio e a Deus por meio da prece e da salmodia, se não falar também aos que dependem dele, seja por uma revelação do Espírito Santo, seja pelo conhecimento dos mistérios de Deus, seja pelo carisma da previsão e da profecia, seja pelo ensino[180] da palavra da sabedoria de Deus? Quem dentre seus discípulos irá se preparar para combater[181] as paixões e os demônios se ele não lhes dispensar um ensinamento claro, por escrito ou de viva voz? Na verdade, se o pastor não busca edificar seu rebanho para que este receba em abundância a palavra do ensino e do conhecimento do Espírito, sua busca pelos carismas de Deus carece de fervor. Pois, não fazendo mais do que cantar e orar apenas com sua língua em espírito, ou seja, orando com sua alma, ele edifica a si próprio, mas seu intelecto permanece estéril[182]: ele não profetiza, nada ensina nem edifica a Igreja de Deus. Se Paulo, que, mais do que todos os homens, se uniu a Deus, preferia dizer na Igreja cinco palavras com sua inteligência fecunda para ensinar aos outros, mais do que dizer dez mil palavras de salmodia com a língua[183], isto significa que os que dirigem os homens se desviarão para longe do caminho se abandonarem seu encargo de pastores para se dedicarem apenas à leitura e à salmodia.

90. Aquele que, a partir d matéria e da essência intelectual, nos concedeu o ser, aquele que paradoxalmente uniu e constituiu em um só todos os elementos da natureza que por si só são contrários, também nos deu a arte de bem viver pela palavra de sua sabedoria e a palavra do conhecimento, para que, de um lado, por meio do conhecimento do Espírito vejamos os tesouros do Reino dos céus ocultos junto a ele e que ele nos concedeu e, de outro lado, por meio da sabedoria de sua palavra, possamos dar aos que nos estão próximos a riqueza de sua bondade e os bens da vida eterna, que ele preparou para a delícia daqueles que o amam[184].

91. Quem ultrapassou as ameaças e as promessas das três leis penetrou na vida que já não está sujeita à lei. Este se tornou a própria lei da Igreja e já não está sob o poder da lei. A vida que não está sujeita à lei é livre e está acima de toda necessidade natural e de toda desorientação. Quem nela penetra está livre, como se vivesse fora da carne. Ele se torna como o fogo na comunhão do Espírito, totalmente unido a Cristo, acima de toda natureza. Nele foi abolido tudo o que é parcial[185].

92. Quem chegou ao conhecimento do Intelecto primigênio, que é o começo e o fim do universo, já não tem em si nenhum limite e se encontra simultaneamente dentro e fora de todos os seres; este é capaz de permanecer só e de viver só em meio aos solitários. Ele não perde nada de sua perfeição por estar só, nem perde sua solidão por estar junto de muitos outros. Ele é sempre o mesmo em qualquer parte, e é só em tudo. Ele tem como começo o movimento que o leva à solidão no meio dos demais, e como fim a mais alta perfeição da virtude.

93. A união sem confusão, a conjunção da alma e do corpo, quando de acordo consigo mesma, constitui uma só e mesma obra, seja da matéria, seja da natureza. E se ela não esta em acordo, um combate interior desperta o desejo de vitória. Mas a razão vem e toma o poder, dissipando logo toda inveja e colocando a concórdia à frente. Assim ela entrega a totalidade das obras à natureza e ao Espírito.

94. Dos três seres que nos constituem, um comanda e não é comandado; outro comanda e é comandado; e o terceiro não comanda e é comandado. Assim, quando aquele que comanda se vê dominado pelos que são comandados, aquele que é livre por natureza se vê submetido aos que normalmente são sujeitados. Ele é deslocado de sua própria hegemonia e de sua natureza própria. Assim se estabelece um grave conflito entre eles e, se este conflito existe, não se pode dizer que tudo está submetido à razão[186]. Mas quando o que comanda consegue dominar os outros e conduzi-los sob seu poder e sua soberania, então tudo o que estava separado é reunido no Um e entra em acordo, e o que conduz a Deus traz consigo a paz. Estando tudo sujeito ao Verbo, o Reino é entregue por ele a Deus Pai[187].

95. Quando os cinco sentidos submetidos aos quatro princípios das virtudes fundamentais guardam em si a docilidade, eles dispõem a natureza do corpo, formada por quatro elementos[188] a seguir sem perturbações a roda da vida. Neste movimento da natureza, as potências não se revoltam contra sio mesmas. A parte passional do desejo e do ardor se une à razão. O intelecto, assumindo seu poder natural, faz dos quatro princípios seu carro, dos cinco sentidos submissos seu trono e, combatendo a carne tirânica, arrebatado aos céus, é conduzido pela quadriga[189]. Ele se apresenta ao Rei do universo, recebe a coroa da vitória e repousa nele da longa carreira.

96. Para os que se tornaram perfeitos no tempo da contemplação e que estão fundamentados sobre as colunas do Espírito, o cálice está preparado e o pão já foi trazido para a mesa real. Eles repousam sobre o trono, ricos em prata. Um tesouro de pérolas e pedras preciosas está às suas portas e uma riqueza incontável é colocada em suas mãos. A ação logo faz deles homens clarividentes em suas obras. Ela os prepara a que se dirijam ao Rei e não para os homens preguiçosos.

97. O Reino dos céus é concedido já aqui em baixo a todos os que se consagram a Deus, ou apenas após a dissolução do corpo? Se ele é concedido desde agora, a vitória é invencível, a alegria inefável e nossa elevação ao Paraíso é livre. Pois este se encontra diretamente no oriente divino[190]. Mas se devemos espera-lo após a morte e a dissolução, e se o abandono do mundo é feito sem temor, aprendamos no que consiste o Reino dos céus, o Reino de Deus e o Paraíso, e no que um difere do outro, e qual é o tempo de cada um, e como, quando e depois de quanto tempo nos será dado penetrar num ou noutro. Pois quem viveu no interior do primeiro, ao mesmo tempo em que existia aqui em baixo revestido de sua carne, também não deixou de estar nos outros.

98. O mundo do alto, que ainda não está acabado, aguarda para se realizar recebendo os primogênitos de Israel, que querem a Deus, para seu restabelecimento. Pois o mundo do alto se realiza e termina por meio daqueles que alcançam o conhecimento de Deus. Uma vez acabado, ele põe fim ao mundo de baixo, o mundo dos fiéis e dos infiéis e abre a todos uma passagem para si, dispensando a cada um o mesmo grau e separando de uns e de outros aquilo que não estava em si unido a ele. Ele conduz para si, provindo de si mesmo, a origem e o fim dos seres. Ele lhes assinala os limites, como uma fronteira sem margens. Mas ele próprio não é conduzido por nenhuma outra origem. Nada o transporte e nada o limita. Pois ele é em si o movimento perpétuo, não confinado em si mesmo, mas que ao mesmo tempo não ultrapassa seus próprios limites. Mas ele realiza o sábado dos outros, e é o repouso de toda origem e de todo começo.

99. A unidade das Potências do alto, que canta os louvores, dirige os hinos e conduz o coro, tem uma composição trinitária. Ela está diante da Trindade de modo trinitário, celebrando a Liturgia e oferecendo o louvor temerosamente. Uns se estendem sob a origem e a causa de tudo. Eles procedem desta origem, são os mais próximos e dirigem os hinos: seus nomes são os Tronos, os Querubins e os Serafins. Eles têm como característica a sabedoria inflamada, o conhecimento do celeste, e sua finalidade é o hino divino de El[191], em língua hebraica. Os que estão entre os três primeiros e os três seguintes na ordem, rodeiam a Deus. São os Poderes, as Dominações e as Potências. Eles têm como característica a direção das grandes coisas, a energia dos milagres e os prodígios dos sinais. Sua finalidade é o hino três vezes santo: Santo, Santo, Santo[192]. Os últimos, os mais próximos de nós, estão acima de nós mas abaixo daqueles que cercam a Deus. São os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Deles é propriamente o serviço litúrgico e sua finalidade é o hino sagrado do Aleluia[193]. A natureza racional que está nos homens, que leva à perfeição toda virtude e que eleva toda sabedoria e todo conhecimento do Espírito e do fogo divino, se une a essas potências pelos carismas de Deus, atraída que é por todos através da pureza. Ela se une a uns pelo serviço e a liturgia dos mandamentos de Deus; ela se une a outros pela compaixão, pela proteção dos irmãos de raça e ainda pela economia das grandes coisas de Deus e pelas energias do Espírito; enfim, ela comunga dos terceiros pela sabedoria inflamada da palavra e pelo conhecimento das coisas divinas e humanas. Assim completa, e oferecendo, para transmutá-los, os dons da natureza, por meio deles ela se une a Deus pela década[194], oferecendo de si a ele as primícias do dízimo.

100. Deus é Unidade e Trindade. Ele tem sua origem na Unidade e seu fim em si mesmo como num círculo, tal como a década. Ele tem em si a origem e o fim de tudo. Mas ele também está além de tudo, porque está acima do universo. Quem entra em Deus penetra nas razões e no conhecimento dos seres: fora de tudo, permanece no entanto no interior de tudo. Ele conhece a origem e o fim das coisas, pois ele está, em seu Intelecto, unido ao Pai pelo Verbo e perfeito no Espírito. A esta perfeitíssima e indivisível Trindade consubstancial, adorada no Pai, no Filho e no Espírito Santo, glorificada na Natureza única, no único Reino, na Potência única da Divindade, seja dada a honra, o poder e a glória pelos séculos dos séculos. Amém.




[1] A Luz original.
[2] Romanos 8: 14.
[3] Cf. II Coríntios 7: 1.
[4] Cf. Salmo 44 (45): 1.
[5] Cf. Gálatas 5: 23.
[6] Cf. Salmo 76 (77): 11.
[7] Cf. João 15: 26.
[8] Cf. João 14: 26.
[9] Cf. Gênesis 1: 26.
[10] Cf. II Coríntios 5: 4.
[11] Cf. II Coríntios 4: 11.
[12] Cf. Gênesis 1: 26.
[13] CF. Habacuque 3: 3.
[14] Salmo 88 (89): 9.
[15] Salmo 144 (145): 17.
[16] Salmo 24 (25): 8.
[17] Mateus 5: 48.
[18] Levítico 20: 26.
[19] Mateus 11: 29.
[20] Cf. Salmo 32 (33): 6.
[21] Jeremias 15: 19.
[22] Cf. Mateus 25: 20.
[23] Cf. Colossenses 1: 20.
[24] Ação sagrada: celebração dos mistérios de Deus.
[25] Cf. Gálatas 5: 17.
[26] Cf. II Coríntios 5: 4.
[27] Cf. Êxodo 10: 21.
[28] Cf. Mateus 13: 52.
[29] Cf. Mateus 7: 6.
[30] Designa o poder do Reino de Deus.
[31] Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste VII, 1.
[32] Cf. Romanos 8: 29.
[33] Cf. Salmo 81 (82): 1.
[34] Cf. Salmo 76 (77): 11.
[35] Cf. Romanos 5: 5.
[36] Cf. II Coríntios 12: 4.
[37] Gálatas 5: 22.
[38] Cf. Gênesis 2: 15.
[39] Cf. João 4: 24.
[40] Cf. I Timóteo 4: 8.
[41] Cf. Efésios 4: 13.
[42] Cf. Colossenses 3: 10.
[43] Cf. Mateus 23: 26.
[44] Cf. II Coríntios 7: 1.
[45] Cf. Salmo 103 (104): 15.
[46] Cf. Hebreus 11: 33-34.
[47] Cf. Lucas 8: 10.
[48] Cf. II Reis 2: 11. A quadriga das virtudes consiste nas quatro virtudes fundamentais que conduzem do corpo carnal ao corpo glorioso.
[49] Cf. Efésios 4: 13.
[50] Cf. Provérbios 1: 6.
[51] Cf. II Coríntios 12: 4.
[52] Cf. I Coríntios 2: 9.
[53] Cf. I Coríntios 4: 2.
[54] Cf. Filipenses 3: 14.
[55] Cf. Romanos 1: 28.
[56] Cf. Lucas 8: 10.
[57] Cf. Salmos 18 (19) 3; 44 (45): 2.
[58] Cf. Mateus 13: 52.
[59] Cf. II Coríntios 10: 4.
[60] Salmo 32 (33): 6.
[61] Cf. Hebreus 5: 12.
[62] Cf. I Timóteo 4: 8.
[63] Cf. Hebreus 5: 14.
[64] Cf. Lucas 2: 52.
[65] Cf. Lucas 2: 46.
[66] Cf. 12: 22.
[67] Cf. Efésios 4: 13.
[68] Cf. Lucas 12: 50.
[69] Cf. Gálatas 4: 2.
[70] Cf. Gálatas 4: 6-7.
[71] Cf. Mateus 17: 1.
[72] Cf. Mateus 17: 5.
[73] Cf. Mateus 5: 15.
[74] Cf. Salmo 18 (19): 5.
[75] Cf. Salmo 77 (78): 2-3.
[76] Cf. Joel 4: 18.
[77] João 7: 38.
[78] Cf. Malaquias 4: 2-3.
[79] Cf. Lucas 6: 71.
[80] Cf. Lucas 24: 32.
[81] Cf. Mateus 12: 44.
[82] Cf. Apocalipse 3: 5.
[83] Salmo 12: 2-4.
[84] Cf. Salmo 39 (40): 10.
[85] Cf. Isaías 30: 8-10.
[86] Literalmente: “numa tabuinha”.
[87] Cf. Isaías 30: 10.
[88] Cf. Isaías 29: 18.
[89] Cf. Mateus 5: 3.
[90] Cf. Isaías 29: 19.
[91] Cf. Isaías 29: 24.
[92] Cf. Isaías 31: 9.
[93] Cf. Isaías 32: 6. 8.
[94] Cf. Deuteronômio 34: 4.
[95] Cf. Isaías 50: 4-5.
[96] Cf. Isaías 44: 25, citado em I Coríntios 1: 20.
[97] Cf. I Pedro 2: 9.
[98] Cf. Isaías 45: 1-3.
[99] Jeremias 8: 8-9.
[100] Cf. Isaías 50: 4.
[101] Jeremias 8: 8-9.
[102] Cf. Salmo 44 (45): 2.
[103] Cf. Baruc 3: 14.
[104] Jeremias 23: 28.
[105] Jeremias 36: 2.
[106] Cf. Jeremias 13: 23.
[107] Cf. Jeremias 9: 4-5.
[108] Jeremias 15: 15-21.
[109] Cf. Eclesiástico 12: 15.
[110] Trata-se aqui dos monges, homens que se consagraram a Deus.
[111] Cf. Lamentações 4: 7-8.
[112] Cf. Lamentações 4: 5.
[113] Cf. Ezequiel 17: 24.
[114] Cf. Ezequiel 29: 21.
[115] Cf. Salmo 67 (68): 12.
[116] Cf. Daniel 2: 21-22.
[117] Cf. Tiago 1: 25.
[118] Cf. Romanos 2: 11.
[119] Cf. Romanos 8: 14.
[120] Cf. II Timóteo 3: 3.
[121] Cf. Romanos 2: 6.
[122] Cf. Romanos 2: 28-29.
[123] Cf. Romanos 2: 29.
[124] Cf. Gálatas 2: 16.
[125] Cf. Hebreus 11: 1.
[126] Cf. Hebreus 11: 4.
[127] Cf. Hebreus 11: 8.
[128] Cf. Mateus 13: 52.
[129] Cf. Hebreus 4: 3.
[130] Cf. Hebreus 4: 10.
[131] Cf. Hebreus 4: 18-19.
[132] Cf. Hebreus 3: 12.
[133] Cf. Salmo 126 (127): 2.
[134] Cf. Hebreus 4: 9.
[135] Cf. Hebreus 4: 11.
[136] Cf. João 1: 29.
[137] Cf. João 6: 58.
[138] Cf. Romanos 6: 10-11.
[139] Cf. Gálatas 2: 20.
[140] Cf. Romanos 6: 13.
[141] Cf. Romanos 6: 19.
[142] Cf. Colossenses 3: 3.
[143] Cf. Romanos 7: 2.
[144] Cf. Romanos 7: 4-6.
[145] Cf. Tito 3: 5.
[146] Cf. Romanos 8: 23.
[147] Cf. Romanos 8: 26.
[148] Cf. II Coríntios 4: 10.
[149] Cf. I Coríntios 2: 14.
[150] Cf. I Coríntios 2: 10.
[151] Cf. Romanos 1: 29.
[152] Cf. II Timóteo 4: 10.
[153] Cf. I Coríntios 2: 15-16.
[154] Cf. I Coríntios 3: 13.
[155] Cf. I Coríntios 3: 14.
[156] Cf. Efésios 2: 21-22.
[157] Cf. I Coríntios 8: 2.
[158] Cf. Gálatas 5: 18.
[159] Cf. I Coríntios 8: 3.
[160] Cf. Jeremias 15: 19.
[161] Cf. I Coríntios 10: 4-5.
[162] Cf. Nota 518 : Trata-se aqui dos monges, homens que se consagraram a Deus.
[163] Cf. Êxodo 19: 15.
[164] Cf. Êxodo 33: 23.
[165] Cf. Êxodo 19: 23.
[166] Cf. Isaías 35: 6.
[167] Cf. Mateus 17: 2.
[168] Cf. Mateus 13: 52.
[169] Cf. Lucas 6: 45.
[170] Cf. I Coríntios 12: 3.
[171] Cf. I Coríntios 12: 7.
[172] Cf. I Coríntios 12: 9-11.
[173] Cf. I Coríntios 12: 28-29.
[174] Cf. I Coríntios 13: 4-7.
[175] Cf. Gálatas 3: 27.
[176] Cf. I Coríntios 13: 4-8.
[177] Cf. I Coríntios 12: 28-29.
[178] Cf. I Coríntios 13: 9 e 12.
[179] Cf. I Coríntios 14: 2-4.
[180] Cf. I Coríntios 14: 6.
[181] Cf. I Coríntios 14: 8.
[182] Cf. I Coríntios 14: 4.
[183] Cf. I Coríntios 14: 19.
[184] Cf. Romanos 2, 4 e 9.
[185] Cf. I Coríntios 13:9-10.
[186] Cf. Hebreus 2: 8.
[187] Cf. I Coríntios 15: 24.
[188] Água, terra, fogo e ar.
[189] Cf. II Reis 2: 11. A quadriga das virtudes consiste nas quatro virtudes fundamentais que conduzem do corpo carnal ao corpo glorioso.
[190] Cf. Gênesis 2: 8.
[191] Um dos nomes de Deus em hebraico. Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste XV, 9.
[192] Cf. Isaías 6: 3.
[193] Cf. Apocalipse 19: 1. Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste IV, 1.
[194] O cumprimento da liturgia da nove ordens angélicas: Deus em si.