quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Extratos dos Santos Padres: Sobre a prece e a atenção

EXTRATOS DOS SANTOS PADRES



SOBRE A PRECE E A ATENÇÃO




Estes extratos dos Padres, publicados sem nome de autor, são talvez devidos ao mesmo Calixto Telikoudes. Em todo caso, no corpo da antologia, eles estão na sequência da “prática hesiquiasta”. À primeira vista é a mesma demonstração e a mesma exortação: impossível “voltar o olho livremente para a luz” sem a dupla ascese do corpo e do intelecto. Uma só necessidade: pela temperança, pela vigilância, revestir o homem interior, “viver para Deus”, fazer do corpo a “moradia da alma”, aí “recolher o intelecto” e alcançar assim o “céu do coração onde habita Cristo”. Donde, por meio da prece, uma atenção em todos os instantes: “sempre observar o presente para nele encontrar a beleza”. A inteligência, desembaraçada do sensível, se torna “semelhante a uma safira celeste”. Do despojamento das paixões à visão da luz eterna temos aqui como que uma ilustração do testemunho de Calixto Telikoudes: um breve resumo, fiel e incisivo, da via hesiquiasta.



Sobre a prece e a atenção.

Todo o esforço da ascese deve focar este ponto: quer a altura da alma não seja derrubada pela revolta dos prazeres. Pois como uma alma que se liga ao que está embaixo pelo prazer da carne poderá lançar um olhar livre para a luz inteligível à qual é aparentada? É por isso que, antes de tudo, é preciso ser temperante: a temperança guarda em lugar seguro a castidade. O intelecto que nos guia não deve se deixar absorver por pensamentos impuros. É, assim necessária a vigilância do homem interior, se quisermos que o intelecto não se perca em divagações, mas que se mantenha firme no objetivo da glória de Deus, a fim de escapar ao julgamento do Senhor que disse: “Infelizes de vocês, por que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora parecem belos mas que por dentro estão cheios de ossos dos mortos e de todo tipo de impureza. Por fora vocês parecem justos perante os homens, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e iniquidade[1]”.

É por isso que, pelo coração, a palavra e a ação, devemos conduzir um grande e justo combate, a fim de não recebermos em vão a graça de Deus[2]. Mas, assim como a cera é modelada pela arte do escultor, também nosso homem interior é modelado pelos ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. Então podemos realizar com nossas ações a palavra de Paulo, que disse: “Vocês se despojaram do homem velho e de suas obras e se revestiram do homem novo, que se renova no conhecimento, à imagem de seu Criador[3]”. Ele chama de homem velho a todos os nossos pecados e manchas. Devemos nos revestir do homem interior, como sinal de vida nova[4], até a morte, para que possamos dizer em verdade: “já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[5]”.

Portanto, é preciso muita atenção, muita vigilância para não faltar com nenhum dos deveres de que falamos, quando cumprimos os mandamentos. Pois senão não apenas seríamos privados de tamanha recompensa, como ainda tombaríamos sob o golpe de temíveis ameaças. Quando o diabo espalha suas armadilhas e, com grande violência, envia como se fossem flechas incendiárias[6] os pensamentos que ele secreta de si mesmo contra a alma que vive na hesíquia e na calma, quando ele se abrasa subitamente, quando ele prolonga indefinidamente e torna insolúvel a lembrança daquilo que algum dia foi lançado em nosso espírito, é preciso escapar a estas armadilhas por meio de uma sobriedade e de uma atenção ainda mais intensas, como um atleta que, com a defesa precisa e a velocidade de seu corpo consegue iludir os desígnios de seus adversários. Enfim, por meio da prece e da invocação da aliança do alto, é preciso deter a guerra e desviar as flechas. É o que Paulo nos ensinou quando disse: “Tomem sobre vocês o escudo da fé...[7]”.

Quando a alma relaxa o rigor e o ardor da reflexão e começa a rememorar ao acaso tudo o que já lhe aconteceu, então o pensamento, longe de qualquer educação ou ciência em relação às coisas das quais ela se lembra, é absorvido por elas e, divagando mais e mais, acaba por cair em pensamentos infames e absurdos. É preciso corrigir esta negligência e este despedaçamento da alma por meio de uma tensão mais rigorosa e mais vigilante da reflexão, é preciso fazer com que a alma retorne sobre si mesma, e lhe dar sempre o presente para considerar, para que nele ela veja a beleza. Quer esteja numa praça pública, quer participe de uma festa, quer esteja sobre uma montanha, ou no campo, ou no meio de uma multidão, o filósofo justo faz de seu corpo o lugar de sua meditação e permanece seguro em sua alma, ele se mantém fundamentado em si mesmo como em seu mosteiro natural, recolhendo aí seu intelecto e pensando com toda sabedoria naquilo que lhe convém. Pois pode acontecer que aquele que permanece sentado em sua cela, mas que é negligente, deixe seus pensamentos errando por aí, e que o que está na praça pública, mas é sóbrio e vigilante, esteja como que no deserto, voltado para si e apenas para Deus, com os sentidos trancados às perturbações que, por intermédio das coisas sensíveis, assaltam sua alma.

Assim, é preciso que aquele que se aproxima do Corpo e do Sangue de Cristo em sua memória[8], em memória dele que morreu por nós e que ressuscitou[9], se purifique de toda mancha da carne e do espírito[10], para não comer e beber de sua própria condenação[11]. E ainda será preciso claramente que ele seja o signo do julgamento Daquele que morreu por nós e ressuscitou, não apenas purificando-se de todo pecado, mas morrendo para o pecado, para o mundo e para si mesmo, e vivendo apenas para Deus[12].

Dentre os maus pensamentos, alguns não chegam a atingir a alma, se nos protegermos. Outros nascem e germinam em mós, quando somos negligentes: se nos prevenimos, eles logo se afogam e desaparecem. Outros enfim, quando perseveramos na negligência, nascem e crescem, nos conduzem às más ações e alteram toda a saúde da nossa alma. A beatitude consiste em não receber nenhum mau pensamento; depois, em rejeitar os pensamentos logo que eles entram e não aceitar que permaneçam em nós daí para frente, a fim de que eles cessem de produzir o mal. Mas ainda que sejamos sempre negligentes, o amor que Deus tem pelo homem pode corrigir esta negligência. Sua inefável bondade pode preparar inúmeros remédios para essas feridas.

Assim é que eu lhe peço, enquanto você viver num corpo, não relaxe seu coração. Com efeito, assim como o cultivador não pode jamais estar certo dos frutos que surgirão no seu campo, por que ele não sabe o que poderá acontecer com este fruto antes que ele o guarde no celeiro, também o homem não pode relaxar seu coração enquanto houver um sopro em suas narinas. E assim como nenhum homem, até seu último suspiro, conhece os sofrimentos pelos quais poderá passar, também o monge, enquanto respirar, não pode relaxar seu coração. Ele deve clamar a Deus continuamente, pedindo seu Reino e sua piedade. Ora, o maligno sabe muito bem que que ora a Deus sem cessar poderá realizar grandes coisas. Então, ele se esforça, pelas vias da razão ou da loucura, para desviar o intelecto. E cabe a nós, uma vez que temos consciência disto, nos opormos ao nosso inimigo. Quando permanecemos em oração, quando dobramos os joelhos, não deixemos que entre em nosso coração nenhum pensamento, nem branco, nem preto, nem direito, nem esquerdo, que tenha sido escrito ou que jamais tenha sido escrito. Não deixemos entrar senão a súplica a Deus, a iluminação, a irradiação solar que vem do céu iluminar a razão.

É preciso ter conduzido um grande combate, ter passado muito tempo em oração, para descobrir a serenidade da reflexão, tal como um novo céu, o céu do coração onde habita Cristo, como disse o Apóstolo: “Não reconhecem vocês que Cristo habita em vocês?[13]”. Se quisermos atingir este estado da inteligência, guardemo-nos de todo pensamento. Então o intelecto verá a si mesmo semelhante a uma safira celeste. Pois se o intelecto não estiver acima de todos os pensamentos que o ligam às coisas, jamais ele verá em si próprio o lugar de Deus. E jamais ele estará no alto, se não se despojar das paixões que, através dos pensamentos, o ligam às coisas sensíveis. Ele ultrapassará as paixões por meio das virtudes; os pensamentos simples pela contemplação espiritual; e a própria contemplação, quando lhe aparecer a luz.



[1] Mateus 23: 27-28.
[2] Cf. II Coríntios 6: 1.
[3] Colossenses 3: 9-10.
[4] Romanos 6: 1.
[5] Gálatas 2: 20.
[6] Cf. Efésios 6: 16.
[7] Efésios 6: 16.
[8] Cf. Lucas 22: 19.
[9] Cf. II Coríntios 5: 15.
[10] Cf. I Coríntios 11: 29.
[11] Cf. II Coríntios 7: 11.
[12] Cf. Romanos 6: 11.
[13] II Coríntios 13: 5.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Calixto Telikoudes: Sobre a prática hesiquiasta

CALIXTO TELIKOUDES



SOBRE A PRÁTICA HESIQUIASTA

 
Calixto Telikoudes


Calixto Telikoudes (cujo nome significa “realização”), também chamado de Angelikoudes (o “angélico”), é conhecido por haver vivido durante a segunda metade do século XIV num pequeno mosteiro da Macedônia, talvez sob a autoridade de Gregório o Sinaíta – com certeza, sob a de Nicéforo. Este curto texto sobre a prática hesiquiastas, retirado de seus Trinta Discursos, revela-o como um testemunho de última hora, fiel, embora apagado, aberto ao porvir absoluto, que transmite como nunca o inventário condensado da experiência monástica.

Calixto Telikoudes começa por explicar o duplo movimento que preside a vida do monge: em primeiro lugar, o retiro, que conduz à purificação, por meio do arrependimento, da anacorese e da hesíquia; depois a obra aberta e pacífica, por meio da qual o intelecto, desfrutando “da beleza mais alta que o mundo” se torna “o lugar do amor de Deus”. Enfim, ele sublinha a permanência obrigatória deste duplo movimento. O estado monástico – estado de solidão ofertada à comunhão – implica a um tempo a humildade e a confiança, a ascese da hesíquia (as privações, a salmodia, a leitura, o trabalho manual), alimentando sem descanso e protegendo da acídia isto que Calixto denomina “o outro cume”: a prece do coração. “Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, esteja em primeiro lugar a prece”. Calixto lembra então as condições e as modalidades desta oração (o coração manso e humilde e o amor de Cristo, o “paraíso de amor”), de que este texto simples, de pura transparência, que não retira nem acrescenta nada à milenar tradição hesiquiasta, oferece uma última imagem sucinta e clara.


SOBRE A PRÁTICA HESIQUIASTA


Não é possível arrepender-se sem a hesíquia. Também não é possível alcançar a pureza sem a anacorese. Não podemos ao, mesmo tempo, encontrar e conviver com os homens e sermos julgados dignos de encontrar e de contemplar a Deus. Assim, é aos que desejam se arrepender de suas faltas e se purificar das paixões, que é concedido desfrutar do encontro e da contemplação de Deus. Estes são o fim e o objetivo dos que levam sua vida em Deus, e tais são, se posso dizê-lo, as garantias da herança eterna de Deus, que recém aqueles que, por todos os meios, buscam a hesíquia. Eles são, para seu próprio bem, levados a se retirar para a solidão e a fugir dos homens. Isto é tudo o que lhes pede seu estado de alma.

O começo dessas coisas se dá através do luto e da tristeza, da vergonha e da condenação de si mesmo, assumida através da hesíquia, a fim de alcançar a pureza. Depois vêm as vigílias, as horas passadas em pé em oração, a temperança, as penas corporais, que finalmente conduzem às lágrimas, que correm dos olhos devotados à humildade, na compunção do coração. Assim é que a purificação se aproxima. É por meio destas ações que chegamos a ela, que levamos enfim a paz aos nossos pensamentos, enquanto as lágrimas correm, conforme foi dito.

E é então que o intelecto começa por si próprio a examinar a natureza dos seres, a buscar a arte de Deus, a conceber pensamentos divinos, a contemplar o poder, a sabedoria, a glória, a bondade e os demais atributos de Deus. Ele começa a trabalhar e se aproxima dos segredos da Escritura. Ele prova dos bens espirituais. Ele desfruta da beleza que está acima do mundo. Ele se torna o lugar do amor de Deus. Ele é arrebatado. Ele se regozija e exulta por se elevar ao cume das virtudes, ao amor do Criador do universo. Daí por diante ele cessa de trazer em si ou de temer o erro: ele pode escorregar eventualmente ou sofrer os impulsos pecadores e as desordens que lhe são impostos por diferentes razões, por que permanece sujeito à mudança. Nestes momentos, ele deve retornar sobre si mesmo e se manter longe do desespero. Ele deve se elevar em direção ao divino que dispensa o amor ao homem, sobre as asas da esperança, deve se entregar às lágrimas, à oração e aos outros bens de que falamos, e, na medida em que lhe for possível, desfrutar das delícias do divino Paraíso do amor; e não ver mais nada, nem imagem, nem volume, nem forma, nada além das lágrimas, da paz dos pensamentos e do amor a Deus. É assim que é possível se guardar de todo erro e adquirir a salvação da alma. Pois então a alma se torna modesta, sóbria e vigilante, e orante em Jesus Cristo nosso Senhor.

Quando você estiver sentado em sua cela, que seu intelecto se confie a Deus com toda humildade. Que ele se mostre humilde, por conta de sua baixeza, de sua vacuidade. Mas que tenha confiança, por causa do amor e da paciência incomensuráveis de Deus pelo homem. Pois é assim que a alma honra a Deus: embora sabendo-se pecadora, ela se confia ao amor que Deus tem pelo homem e se agarra a ele. É por isso que são Paulo ordenou: “Aproximemo-nos com confiança do Trono da graça[1]”. A confiança em Deus é verdadeiramente o fulcro da oração, como que suas asas, como que uma segunda natureza. Mas não se deve pensar que nos confiamos a Deus por sermos bons: afastemos de nós tal disposição. É pelo pensamento do amor e da paciência de Deus, de seu inefável amor pelo homem, que subimos com sobre asas em direção à esperança divina. Portanto, ore com um coração humilde, oferecendo sua vida com toda confiança, nutrido da boa esperança em Deus, como dissemos, em nosso Senhor Jesus Cristo.

É preciso procurar sempre e atentamente as coisas que acalmam o corpo e que livram o intelecto da perturbação. Ou seja: comer moderadamente, beber pouco, não dormir demais, permanecer acordado tanto quanti possível, ajoelhar-se quando puder, manter-se humilde, vestir-se com simplicidade, falar sobriamente e somente se necessário, dormir no chão duro e outras coisas que submetem o corpo. Também é bom buscar as coisas que despertam o intelecto e que contribuem para nossa ligação com Deus: a leitura refletida das Escrituras e dos Santos que as interpretaram, a salmodia compreendida, o estudo das palavras da Escritura e das maravilhas que podemos contemplar na criação, enfim, a oração que nossa boca pronuncia até que a santa graça do Espírito a faça subir ao coração. A partir daí virá o tempo de uma nova festa, o tempo de uma nova celebração, não mais dita pela boca, mas realizada pelo coração, no Espírito.

Veja agora como buscar essas coisas: ajoelhe-se sempre que puder e permaneça em oração. Quando você sentir a acídia depois de muito orar, dedique um tempo à leitura, e depois retorne à oração. Se a acídia voltar, levante-se, salmodie um pouco e depois volte a rezar. Se ela mais uma vez ressurgir, consagre-se ao estudo como dissemos, e em seguida retorne à oração. Enfim, para impedir toda forma de acídia, santo irmão, você deverá trabalhar um pouco com as mãos, conforme ensinaram os Padres. Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, a prece seja a primeira. Todo o resto só tem como função remediar a acídia que acompanha a oração. Mas quando a piedade de Deus socorre a alma e a graça do Espírito faz jorrar a prece do coração como de uma fonte, então o intelecto já não se consagra mais senão à prece e à contemplação, ele se desliga de tudo e sua única delícia consiste na prece e na contemplação no paraíso do amor de Deus.

A prece tem poder sobre todas as boas obras. É ela que engendra as lágrimas do arrependimento. Não considerando senão a Deus, que é a paz suprema, ela contribui grandemente para a paz do pensamento. É ela que faz nascer em nós o amor a Deus. Somente ela purifica a razão da alma, contemplando a Deus que suscita a purificação dos próprios anjos. Ela guarda puro o desejo que conduz a alma a Deus. Confiando-se a Deus infinita e sobrenaturalmente belo e bom, entretendo-se apenas com ele, ela se liga a ele com todo seu desejo. Enfim, ela acalma de tal maneira o ardor que este cai, invoca e clama por Deus, e leva a alma à humildade prosternando-se diante dele. Pois ninguém que ore e invoque a Deus pode ter um coração orgulhoso e irascível. É por isso que, numa palavra, a santa prece purifica e corrige todas as potências da alma, todas as energias da ação e da reflexão, em especial quando, através de uma vida dedicada à hesíquia e uma conduta como a que mencionamos, a alma se une à contemplação de Deus e ao eros divino que a acompanha. Que seu pensamento, voltando-se para seu interior, fixe sua meditação e sua visão no lugar do coração de onde provêm as lágrimas, quando você orar tanto quanto quando respirar o ar, e que lá ele permaneça sempre que possível. Isto constitui um grande auxílio e uma fonte de lágrimas abundantes e contínuas, libertando o intelecto de seu cativeiro, dispensando a paz, suscitando a prece intelectual e contribuindo, com Deus, à descoberta da prece do coração, pela graça do Espírito vivificante em nosso Senhor Jesus Cristo.

É importante saber. Assim como o contemplativo, aquele que vê o que está oculto e que desfruta disto tem duas naturezas (ele é ao mesmo tempo Deus e homem), da mesma forma como, falando no geral ou em particular, ele tem dois modos (as aflições, seguidas das lágrimas). Aflições e lágrimas diferem muito entre si, mesmo sendo boas as duas, dadas por Deus e portadoras da bem-aventurança divina e da herança por ela concedida. As primeiras têm sua origem no temor a Deus e nos sinais do luto; as outras, no amor divino e no próprio Deus. As primeiras não conduzem diretamente ao regozijo, mas as últimas suscitam uma alegria imensa. As primeiras ocorrem aos noviços, as segundas àqueles que pela graça alcançaram a perfeição.

A hesíquia é feita de cinco obras: a prece (ou seja, a lembrança contínua de Jesus, introduzida no coração por meio da respiração, na ausência de qualquer pensamento) à qual chegamos por meio da mais ampla temperança, a do ventre, do sono e de todos os sentidos, permanecendo humildemente em nossa cela; a salmodia parcial, a leitura dos Evangelhos e dos Padres divinos, de seus capítulos sobre a oração, em especial os do Novo Teólogo, de Hesíquio e de Nicéforo; a meditação sobre o Juízo de Deus, ou a lembrança da morte e daquilo que está implicado nela; algum trabalho manual; depois dobrar-se novamente à oração, por mais obrigado que pareça, até que o intelecto, pela lembrança do Senhor e a descida contínua ao esforço do coração, se habitue a rejeitar por si próprio toda agitação. Tal é a obra dos monges noviços que desejam viver na hesíquia, e por isso estes monges não devem sair muito de suas celas, mas evitar entreter-se com outros, mesmo vê-los, salvo se absolutamente necessário, e mesmo assim com atenção e prudência, e raramente. Pois estas coisas provocam dispersão não apenas entre os noviços, mas inclusive entre os mais avançados.

A prece se liga à atenção, que deve cortar todo pensamento. Ao dizer “Senhor Jesus Cristo Filho de Deus” o intelecto se volta para o Senhor lembrando-se dele de maneira imaterial e silenciosa. Ao dizer “tenha piedade de mim” ele se volta para si mesmo. O intelecto não pode deixar de pedir por si mesmo. Tendo avançado no amor, ele tende para o próprio Senhor, na união, por experiência; depois do segundo apelo ele recebe a plena certeza. É por isso que os Padres nem sempre nos transmitem aparentemente a oração inteira. Um nos dá a prece inteira, como João Crisóstomo. Outro diz simplesmente “Senhor Jesus”, como Paulo, que acrescentava: “no Espírito Santo[2]”. Com efeito, o coração ora quando recebe a energia do Espírito Santo. Isto é próprio dos mais avançados, mas ainda não é o cume, que é a iluminação. João Clímaco disse: “Flagele os adversários com o nome de Jesus. Pois o nome de Jesus está ligado à sua respiração[3]”. Ele não acrescenta nada mais.

Mesmo aos noviços é permitido seja dizer todas as palavras da oração, seja não dizer mais do que uma parte em espírito, como mencionamos. Mas não se deve mudar constantemente, para não cair na divisão. É preciso manter-se ligado ao método que descrevemos: o caminho da prece pura. Se os pensamentos e as presunções que impedem a oração não a desviam, aquele que combate alcança um estado de ser em que consegue orar com toda liberdade, mantendo o intelecto no coração. No momento da inspiração o intelecto não força sua entrada no coração para logo sair: ele aí permanece como se estivesse em casa, e aí ele ora. É a prece do coração, e por isso é assim chamada. Ela é precedida no coração por um certo calor, que expulsa tudo o que poderia impedir a prece pura de se realizar completamente. Assim o intelecto permanece e ora livremente dentro do coração. É no seio deste calor e por meio desta prece que o amor pelo Senhor Jesus – de quem nos lembramos – nasce no coração, de onde correm as doces lágrimas que fazem jorrar em abundância o desejo de Jesus, quando o guardamos na memória.

Mas para que um homem seja considerado digno de todas essas coisas e de outras que as acompanham (das quais não falaremos agora) ele precisa se esforçar, com a lembrança de Jesus, mantendo diante dos olhos o temor a Deus dentro de seu coração e não simplesmente fora, a fim de escapar sem esforço não apenas às más obras, mas aos pensamentos passionais, chegando assim à plena certeza de que Deus o ama. Mas que ele não busque a manifestação de Deus, a fim de não receber aquele que é feito de trevas e se disfarça de luz. Com efeito, quando, sem procurar, seu intelecto encontra uma luz, que não a acolha nem a recuse, mas interrogue aquele que tem o poder de lhe ensinar. E que assim aprenda a verdade. Se ele encontrou a quem o ensine, não apenas por ter aprendido nas Escrituras, mas por ter recebido pessoalmente a luz em toda beatitude, graças sejam dadas a Deus. Caso contrário, é melhor não receber a visão, mas recorrer a Deus humildemente, considerando a si próprio como indigno de tal contemplação, como fizeram os Padres e no-lo ensinaram. Em diversos escritos eles falaram dos sinais da iluminação real e da iluminação ilusória. Mas assim como é preciso ter escutado de viva voz todas as coisas que dissemos, também é preciso ouvir estas últimas coisas a seu tempo. E aqui não é o momento.

Ao mesmo tempo que destas coisas e antes de tudo, é preciso agora instruir-se a respeito do seguinte: assim como alguém que quer aprender a atirar com arco não o estira sem ter um alvo, também o que pretende viver na hesíquia deve ter como alvo ser sempre manso de coração. Ele próprio jamais irá se preocupar com nada, nem nada irá preocupá-lo, senão aquilo que diz respeito à piedade. Esta é uma coisa fácil de alcançar se nos separamos de tudo e se nos calamos com mais frequência. E se mesmo então cometermos alguma falta, devemos nos arrepender imediatamente, condenando-nos, e nos colocarmos atentos para invocar antes de tudo a Jesus na hesíquia e com uma consciência pura, conforme já dissemos, para obtermos avançando no caminho sua graça divina que repousa na alma, e não apenas isto, mas ainda termos a alma em repouso longe dos demônios e das paixões que antes a perturbavam, e que ela se regozije com uma alegria inefável. Pois ainda que ela venha a se turbar, os demônios não poderão agir: ela não está mais ligada a eles, nem deseja o prazer que eles oferecem. Todo o desejo do homem que alcançou este estado está voltado para o Senhor que lhe concede sua graça. Assim é que o Senhor já não o abandona, embora permita que ele seja combatido. Por que? Para que seu intelecto não se encha de orgulho com aquilo que encontrou de bom. Ser combatido o mantém constantemente humilde. E somente a humildade não apenas lhe permite vencer os orgulhosos que o combatem, como ainda ser sempre considerado digno dos maiores dons, que também nós recebemos de Cristo que se rebaixou por nós[4] e que dispensa aos humildes sua graça em abundância[5], agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Hebreus 4: 16.
[2] I Coríntios 12: 3.
[3] Cf. A escada santa XX, 7 e XVII, 62.
[4] Cf. Filipenses 2: 8.
[5] Cf. Tiago 4: 6.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Filocalia - Tomo II Volume 4 - Calixto o Patriarca: Capítulos sobre a Oração



CALIXTO O PATRIARCA



CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO

 
Calixto o Patriarca


É possível, senão provável, que Calixto o Patriarca seja o mesmo Calixto Xanthopoulos, que foi patriarca de Constantinopla no final do século XIV. Mas nenhum documento o prova. Da leitura dos 83 capítulos que levam seu nome, uma coisa se depreende com certeza: o patriarca, cujo cargo o colocava à frente da Igreja, fala como o mais humilde e o último dos monges, e, sobretudo, como um testemunho e um profeta da interioridade e da atualidade do Reino de Deus.

Ele percorre esses capítulos como uma jubilação do Reino de Deus. O feixe da experiência milenar dos hesiquiastas apresenta-se reunido aqui no testemunho pessoal de uma alma e de um coração que, no fundo, não têm a transmitir senão a alegria e a paz da deificação. “Plantar em nós o divino”, diz Calixto; isto implica fazer do paraíso a imagem do homem interior, “que tem como terra o coração e por árvores a contemplação”, a qual depende da humildade (“a humildade é o começo da contemplação, e a contemplação é a perfeição da humildade”). Entre o sensível e o inteligível, na contemplação hesiquiastas como na revelação bíblica, não existe divisão nem dominação, mas uma humilde osmose. “O contemplativo colhe o invisível na criação visível. Ele vê a beleza”. Assim, a criação não é ocultada pela chegada do Reino. Ela é transportada com amor pelo louvor da alma. Mas há ainda mais: o contemplativo, diz Calixto, “dirige-se para o incriado”. A partir daí, a vida cristã é concebida sob o duplo signo da adoração de Deus em espírito e verdade, e a prece contínua, a “prece que vive”, a “prece que respira”, “a prece que faz subir do coração um fluxo incessante”, mergulhando “o amor que nos conduz para a beleza visível de Deus” no “êxtase do eros divino”. Mas este amor tem uma condição: o contemplativo “deve, em primeiro lugar, participar do Espírito vivificante”. O amor louco não é jamais outra coisa que o fruto maduro da compaixão de Cristo, no coração do mistério da Igreja. Ele é em primeiro lugar o modo de agir de Deus. O homem não deve sua salvação senão à compaixão de Cristo e ao mistério da Igreja, a qual, como a função patriarcal, permanece aqui como o não dito implícito: o lugar da eucaristia, o lugar da deificação, o lugar da comunhão e do reconhecimento onde todo fiel – afirma Calixto – é como que um “segundo Cristo”

Ao longo dos capítulos, sentimos assim brotar da fonte a experiência do homem deificado que, a partir da revelação bíblica, atesta toda a tradição hesiquiastas. O lugar de passagem obrigatório da deificação permanece sendo a noéra aisthesis, o sentido intelectual, o sexto sentido que permite, a um só tempo no corpo e sem auxílio dos sentidos corporais, a visão do invisível, pela mediação do intelecto que ora: a chave da mensagem filocálica, uma mensagem que aqui é levada à incandescência pela conjunção do monge e do patriarca numa mesma pessoa testemunhando como nunca que a Igreja, totalmente aberta à via do mundo, está ao mesmo tempo absorvida pelo mistério da segunda vinda de Cristo.





 
CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO


1. Se você quer aprender a verdade, imite o exemplo do tocador de cítara. Ele mantém sua cabeça inclinada para baixo, com o ouvido atento ao canto e maneja a palheta. Ao mesmo tempo em que as cordas são vibradas umas após outras, a cítara espalha sua melodia e o citarista exulta com esta doçura de mel.

2. O trabalhador da vinha, que ama penar, que este exemplo lhe seja claro, e creia. A partir de agora, sóbrio e vigilante como o citarista, você encontrará facilmente na profundidade do coração aquilo que procura. Pois a alma tomada de alto a baixo pelo amor divino não pode voltar atrás. “Minha alma, diz o divino Davi, está ligada a você[1]”.

3. Penso que a cítara, bem-amado, é o coração. As cordas são os sentidos. A palheta é a reflexão do intelecto. Este, por meio da razão, anima continuamente a palheta, que é a lembrança de Deus, de onde vem na alma um prazer inefável que reflete no intelecto puro o flamejar da luz divina.

4. Se não fechamos os sentidos do corpo, a água transbordante não pode correr em nós, esta água que o Senhor deu à samaritana. Ela buscava a água sensível, mas encontrou a água da vida que brotava dentro dela[2]. Com efeito, assim como a terra guarda por natureza a água e a distribui, também a terra do coração possui por natureza esta água que jorra e corre da fonte, assim como a luz do Pai que Adão perdeu por sua desobediência.

5. Assim como a água corre de uma fonte inesgotável, também a água da vida, a água transbordante[3], brota da alma. É esta água que residia na alma de Inácio o Teóforo e que o levou a dizer: “Não existe em mim um fogo para amar a matéria, mas uma água que age e que fala[4]”.

6. Esta bem-aventurada, ou melhor, três vezes feliz sobriedade, quero dizer, a sobriedade e a vigilância intelectuais da alma, é semelhante a uma água que jorra da profundeza do coração. A água que se espalha da fonte enche a fonte. A que jorra do coração é por assim dizer continuamente animada pelo Espírito e cumula de orvalho divino e de Espírito o homem interior e incendeia o homem exterior.

7. O intelecto purificado das coisas exteriores, que submeteu totalmente os sentidos pela virtude ativa, permanece imóvel como o eixo do céu. Ele contempla o centro: a profundidade do coração. Ele dirige a cabeça e olha além. Seus raios são como relâmpagos luminosos da reflexão que atraem das profundezas os pensamentos divinos. E ele submete todos os sentidos do corpo.

8. Que ninguém, ao ouvir falar em coisas proibidas, nelas toque antes do tempo, se não for iniciado nelas ou se ainda tiver necessidade de leite[5]. Os divinos Padres, ao ver tais homens buscando antes da hora coisas que só vêm a seu tempo, esforçando-se por entrar no porto da impassibilidade sem ter os meios para tanto, consideravam que este era um gesto sem sentido, nada mais do que isto. Pois é impossível a quem não conhece as letras estudar em um livro.

9. Aquilo que o Espírito Santo coloca em movimento na alma que começa a combater enche de serenidade o coração que grita: “Abba, Pai![6]”. Em si mesmo este movimento não possui figura nem forma. Mas ele transfigura pelo esplendor da luz divina e dá forma naturalmente sob o efeito do ardor do Espírito de Deus. Ele nos transforma, nos torna outros, como só Deus, com seu poder, sabe.

10. O intelecto purificado pela sobriedade e a vigilância se cobre facilmente de trevas, se não der as costas totalmente às coisas exteriores pela lembrança contínua de Jesus. Mas quem uniu a prática à contemplação e à guarda do intelecto não rejeita os ruídos. Sejam ou não uma linguagem, ele não os descarta. A alma ferida pelo desejo de amor que esta lembrança lhe traz segue a Cristo como a seu bem-amado.

11. Os que vivem no mundo podem até imobilizar as paixões e a rebeldia da carne, ou mesmo se deterem pela razão, como diz a Escritura: “Detenham-se e conhecerão[7]”. Mas eles jamais conseguirão apagar as paixões ou fazê-las desaparecer. Somente a vida eremítica consegue desenraizá-las.

12. Quanto à água que jorra, primeiro seu movimento é mais vivo, depois ele se acalma e se torna mais lento. Em seu primeiro movimento, a água não pode se turvar facilmente, pois corre depressa. Mesmo se se turvar um pouco, seu movimento é tal que logo ela se purifica. Mas quando a corrente de água perde sua força e se torna mais lenta, não apenas a água se turva, como ela se torna quase imóvel. É preciso então purificar-se totalmente e reencontrar por assim dizer o movimento nesta renovação.

13. Para os noviços e os que vivem da ética e da ação, o demônio se manifesta por ruídos, sejam estes uma linguagem ou não. Mas nos que miram a contemplação, ele suscita imaginações: o espaço parece se colorir com se fosse um efeito da luz. Às vezes ele chega a mostrar estas imaginações na forma de fogo, para enganar, desviando-os de seu caminho, os que combatem por Cristo.

14. Se você quer aprender como orar, considere qual a finalidade da atenção e da prece e não engane a si próprio. Esta finalidade, bem-amado, é a compunção contínua, a contrição do coração, o amor ao próximo. E o contrário é evidente: são os pensamentos da concupiscência, a maledicência, a aversão ao próximo e tudo o que se assemelha a isso.


OUTROS CAPÍTULOS.
O PARAÍSO É UMA IMAGEM DO HOMEM.

15. Assim como o corpo visível do homem é uma imagem na qual transparece aquilo que é visível nele, também o Paraíso de todas as belezas que Deus, em sua sabedoria, plantou no Éden a Oriente[8], é uma imagem do homem interior que tem como terra seu próprio coração e por árvores (estas árvores que seu intelecto criado à imagem de Deus deve plantar com toda sua vontade) as numerosas e diferentes contemplações de Deus, os pensamentos e especialmente as manifestações divinas. Estas contemplações comportam uma variedade de formas e de odores espirituais. Eu acrescentarei que elas constituem um alimento, uma alegria e, certamente, um prazer. As coisas do Éden simbolizam aquilo que é o coração que delas se nutre naturalmente e que encontra claramente no divino seu prazer e sua alegria.

O paraíso sensível está a leste do sol sensível. Mas o paraíso inteligível está dentro do homem, sob a luz do conhecimento do sol inteligível. Pois, segundo os Padres, é impossível ao coração que não possui a luz do conhecimento ter pensamentos, visões e manifestações de Deus e ser inteiramente preenchido pelas representações divinas, das mais simples às mais complexas, como acontece num paraíso além do mundo.

Mas não existe paraíso sem águas. Pois aquele que o descobriu deve enchê-lo de plantas fecundas e de frutos. No meio do Éden vemos uma fonte que se divide em quatro correntes que regam a superfície da terra, conforme está escrito[9]. No homem, a fonte de água viva é o movimento vivificante do Espírito Santo, de quem o Senhor disse: “A água que lhe darei será para ele uma fonte de água viva[10]”, que jorra do coração, como a que brota maravilhosamente do Éden. Esta fonte se divide em prudência, modéstia, justiça e coragem, as quatro correntes de onde jorram como rios as virtudes que nos assemelham a Deus. É por isso que foi dito que logo a água, ou seja, a energia, regou a superfície da terra, ou, se você preferir, a superfície do coração, para o crescimento, a maturação e a colheita dos frutos eleitos das virtudes divinas.

É uma coisa maravilhosa, doce e cheia de graça compreender o que acontece então e que reside na fonte, a qual representa, jorrando do meio do coração, como explicamos, o movimento e a energia sobrenaturais do Espírito vivificante. A fonte não é da mesma natureza das plantas nem da terra, pois estas são outra coisa. A água é suficiente para todas as inumeráveis plantas. Ela, que é uma, as rega, as assiste sem medida, embora elas difiram umas das outras a ponto de possuírem temperamentos opostos, sendo umas secas, outras úmidas, outras quentes, outras frias. A fonte, como eu disse, corre por entre toda esta variedade de plantas. Ela derrama sua água única e simples, que é seu maior auxílio; dividindo-se em quatro correntes, ela faz assim o que é melhor para cada planta. Ela não é da mesma natureza das coisas que existem em nós, sejam as virtudes, o conhecimento ou a contemplação ligada a ele. E ela também não é da mesma natureza que o coração. Ela é a divina irradiação sobrenatural d’Aquele que criou a vida, seu movimento e sua energia irrefreáveis. Ela é dada aos fiéis pela graça. Ela sobe continuamente de dentro do coração e corre na direção do que está fora. Ela se divide em quatro virtudes, como eu disse, que são as quatro virtudes que ela ampara acima de todas. Ela é sucessivamente a mesma água para todas. Pelo Espírito ela ampara primeiro a prudência, e através do conhecimento ajuda aos que fazem a obra da justiça. Enfim, chamada “a que dá sabedoria” e poder, esta água revela depois de muito tempo sua energia amparando a castidade e a coragem.

Deste amor, desta sabedoria são testemunhos seguras Paulo e Isaías. Um diz claramente: “O amor de Deus se derrama nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado[11]”. E Isaías conta o espírito da sabedoria dentre as sete energias do Espírito[12]. Ora, não apenas o Espírito ampara o amor, mas se torna um espírito de zelo face ao amor, a ponto deste anular uma série de pecados, como está escrito[13]. O zelo leva à condenação, e às vezes à morte. Diz-se que Elias, o grande profeta e amigo de Deus matou pela espada muitos sacerdotes infames[14]. Antes, Finéas esfaqueou o Medianita com a Israelita[15]. E antes deles, o próprio Moisés, o santo legislador do Antigo Testamento, por zelo e com a mão dos homens de sua raça entregou à morte inúmeros homens. Quando se trata de ação, o melhor é o conhecimento. E quando se trata de contemplação, o melhor é a ignorância que ultrapassa o conhecimento. Mas é impossível que tal aconteça convenientemente numa alma que não possui o espírito de verdade nem o espírito do conhecimento. Tanto a alegria do coração como a tristeza que se opõe a esta alegria são manifestamente efeitos do Espírito. Ouça a Escritura que diz: “O fruto do Espírito é a alegria[16]”; e: “Deus concede a alguns um espírito de compunção[17]”.

Em uma palavra, de acordo com os Padres, o Espírito Santo e vivificante intervém em todas as coisas da virtude e também nesses estados que, aparentemente, como eu disse, se opõem mutuamente e que a Escritura chama de fogo e água, coisas totalmente contrárias, pois ele auxilia a tudo o que, na alma, é bom e belo e ele suscita nela a energia que dá a vida e a força. É por isso que a Escritura fala dele no singular e no plural: o Salvador o chama de fonte e de rios. É assim que ele se divide em quatro correntes e assume todas as virtudes. Uma alma se torna nova em tudo a partir do momento em que a água dá a vida sobrenaturalmente à alma que está em comunhão com o Espírito, que a transporta a tudo o que lhe convém e acontece, e faz tudo como deve.

Assim eu penso que a pedra em que Moisés o legislador[18] bateu com sua vara fazendo com que jorrasse água sobrenaturalmente como de rios, é o coração petrificado pelo endurecimento. Quando Deus, em lugar da vara, bate oportunamente com suas palavras este coração e o penetra com a compunção, o poder do Espírito alegremente suscitado jorra deste coração de maneira sobrenatural como se fossem correntes de água vivificante, e traz a tudo uma ajuda imensa. E como dizê-lo? Ela, que é uma só e mesma água por natureza, dá a vida a todos os seres que a recebem, numerosos e infinitos, na medida de cada um. É verdadeiramente maravilhoso que esta pedra levada sobre um único carro[19] pode jorrar água que daria para encher miríades de carros até o infinito. Mas de onde lhe veio isto? De onde tirava ela tanta água? De que fonte? Porém, maior maravilhamento deve atingir aqueles que consideram o quanto o cálice do coração, carregado com tanta leveza por um corpo tão ínfimo, não cessa de derramar um fluxo de miríades de espíritos e de corpos tão infinito quanto a vida. De onde veio isto ao coração, que está além de todo número? O Espírito, como disse Aquele que é a própria verdade, sopra onde quer. Você ouve a sua voz, mas não sabe de onde vem nem para onde vai[20]. E no entanto ele sopra o tempo todo.

Assim, se recebemos de Deus tamanha dignidade, de plantar em nós o divino à imitação de Deus, aí estará o paraíso, claro que não o paraíso que os sentidos exteriores podem captar, mas um paraíso inteligível, como dissemos, bem mais elevado em toda sua beatitude, e além do entendimento de quem ainda não experimentou a dignidade sagrada. Entreguemo-nos por inteiro, com toda a piedade, com a retidão que leva à fé, ao fundamento da hesíquia e por intermédio dos mandamentos, a Cristo Deus na Trindade. Perseverando deste modo numa contemplação que recolhe as visões e os pensamentos divinos de que falamos – e eu acrescentarei as reflexões teológicas que ela planta no coração em Deus – com toda nossa resolução roguemos por ela como se deve para que habite em nós e faça jorrar em nossos corações seus pensamentos mais elevados do que o mundo. O Espírito Santo, podemos dizer, são os rios. Pois “quem crê em mim, como diz a Escritura, de seu coração brotarão rios de água viva[21]”. E o Apóstolo bem-amado acrescenta que ele dizia isto do Espírito que os que nele creram deviam receber[22]. A glória, pelos séculos dos séculos, a ele que dá aquilo que ultrapassa a inteligência.

DO DOM ESPIRITUAL.

Veja os dons de Deus que não volta atrás, e as graças de Deus que nada pode superar. E regozije-se com o milagre que chega agora divinamente, se você considerar as coisas que Deus fez a Adão, a primeira criatura, e as coisas mais elevadas ainda que ele fará por nós a seguir.

Ele insuflou em Adão um sopro de vida, a graça do Espírito vivificante, e assim Adão se tornou um homem perfeito. Ele se tornou uma alma viva[23], não apenas uma alma. Com efeito, a alma do homem não é o Espírito de Deus, mas se tornou no Espírito uma alma viva. Pois o Espírito Santo e vivificante de Deus se torna em verdade, para a alma que vive como se deve, uma alma dotada de razão à imagem de Deus. Mas o Espírito de Deus não faz corpo com a alma. Ora, esta caiu, perdeu a imagem de Deus e tudo o que era preciso para a vida a uma alma racional. A bestialidade, e mesmo a ferocidade, infelizmente a invadiu. Sem Deus, disse o Salvador, nada, absolutamente nada podemos fazer[24] daquilo que devemos realizar no Espírito e em Cristo. É por isso que o homem foi criado sem falha, isto é, total. Adão não se tornou simplesmente uma alma, mas uma alma viva. Pois Deus insuflou nele um sopro que é a vida para as almas dotadas de razão. Portanto, o sopro de Deus insuflado em Adão deu a este, na medida do possível, uma glória bem real. Ele oferece uma glória semelhante a Deus a quem participar aplicando-se às coisas pela visão e a profecia e se tornar assim verdadeiramente criador junto com Deus e um segundo Deus pela graça, por intermédio das visões divinas e das profecias luminosas, como quis o Criador do universo, o Criador mais do que sábio.

Mas o homem dobrou o joelho e em sua queda submeteu-se ao grande mal da desobediência. Ora, ele caiu do Espírito Santo vivificante que nos ilumina, não foi capaz de guardar a imensidão de tamanha honra, foi verdadeiramente reduzido ao estado dos animais sem inteligência, assemelhando-se a eles[25]. E, com toda sua ignorância e obscurecimento, ele se afastou do objetivo divino, incapaz de levantar a cabeça nestas trevas horríveis, manifestamente privado do dom divino, do dom sobrenatural deste sopro que Deus lhe havia insuflado.

Mas chegou o tempo das compaixões de Deus, e Deus enviou seu Verbo para nos curar de nossa corrupção[26]. Ora, o Verbo traz em si o Espírito que o acompanha naturalmente, que ilumina e esclarece sua divindade – podemos dizer: seu poder – de que falou o profeta, quando deu graças a Deus por toda a humanidade: “Você enviou sua luz e sua verdade. Elas me conduziram, me levaram à montanha santa, ao seu conhecimento único e supremo, nas moradas e nas contemplações de sua glória[27]”. É para lá que, levada por Deus, se eleva o intelecto e é lá que ele reside. Ele está acima das coisas visíveis, de certo modo aproximando-se do Deus Altíssimo. A partir do momento que veio o Verbo legítimo de nosso Deus, trazendo consigo naturalmente, enquanto santo Verbo de Deus, o santo Espírito de Deus, todos os que receberam com fé o santo Verbo de Deus receberam imediatamente o Espírito Santo de Deus, que acompanha sempre e indubitavelmente o Verbo. E eles não apenas o receberam de Deus Pai face a face, como na origem o fez Adão e mais tarde os discípulos de Cristo quando este soprou sobre eles[28], mas recebendo subitamente o invisível como um sopro – ou seja, o Espírito, que lhes insuflou claramente a graça que lhe é própria -  os que participam do fundo do coração podem ver em seu intelecto o Espírito que derrama as águas sempre nascentes como de uma fonte, que imediatamente os ilumina e permite ao intelecto ver as coisas maravilhosas do novo nascimento e as coisas acessíveis da glória divina. Em uma palavra, pela participação sobrenatural ao Espírito por meio da  graça, o intelecto de põe a contemplar misticamente e recebe abundantemente grandes benesses.

Progredindo na paciente concepção da graça, ele chega às visões e às presciências pela iluminação do Espírito, e se eleva ao nível de Deus. Ele vê a união hipostática que ultrapassa o entendimento, esta união da natureza divina com a natureza hipostática do homem. Ele vê a efusão do Espírito em tudo, esta efusão que Adão não viu assim, porque não comungava da natureza divina, nem recebeu de fato a adoção de Deus.


DA ENERGIA DIVINA NO HOMEM E, PORTANTO, DA PAZ.

17. Consideremos que está em nosso poder a energia que está no coração do Espírito Santo, e veremos depois as coisas que ela realiza. Consideremos ainda a energia que nos é natural e as coisas que lhe são próprias. Veremos que nos é praticamente impossível, com nossas energias naturais, encontrar a paz. Pois está aí, juntamente com o amor e a alegria, o verdadeiro fruto da energia do Espírito: ser paciente, ser doce, cheio de bondade, partilhar nossos bens com os que nos são próximos. No imediato nenhuma energia que nos é natural se distingue do impulso da alma, a qual é manifestamente da ordem do ardor. Mas esta energia não vem a nós sem a vontade. A vontade do monge ativo está ligada ao desejo, como a do contemplativo está ligada mais à tensão. É por isso que é impossível às nossas energias naturais extinguir totalmente o desejo e o ardor por cujo intermédio nos colocamos normalmente em ação.

Porém a energia do Espírito Santo no coração é sobrenatural, sua gênese não reside em nada da natureza, mas ela se manifesta de forma inconcebível naqueles que receberam a piedade: ela é claramente suscitada apesar dela, ou, numa palavra, ela irradia luz. Pois ninguém pode lhe dizer o que leva à energia, ao flamejamento e à manifestação do Espírito, senão quem já recebeu naturalmente o dom de vê-la e de se regozijar com ela em seu coração. A energia divina não tem nenhuma necessidade da vontade nem do impulso natural para se desenvolver. É claro que o desejo e o ardor não operam aqui, nem fazem nada. Numa palavra, a parte passional da alma cai no ostracismo e perde a ação quando do coração sobe naturalmente a respiração do Espírito vivificante. Mas o intelecto exulta e vive. A partir daí também a alma encontra a paz, na calma e na absoluta e necessária impassibilidade. Ela contempla a Deus. Maravilhosamente, sua relação com Deus, sua iluminação, sua tensão se tornam o Espírito que ela recebeu de Deus. Assim ela vê que alcançou o conhecimento do inexprimível esplendor mais que luminoso da beleza divina, e ela ama abundantemente ao Deus mais do que belo. Ela se regozija em conhecer o Pai do Senhor, que, na medida em que se pode expressar, é infinito, ilimitado, incompreensível, ela se regozija por conhecer sua herança e a si mesma daí por diante dentro da inefável compaixão divina, e então atinge uma paz maravilhosa, pois percebe que não lhe falta mais nada, pela graça da extrema beleza que ultrapassa o intelecto.

Como dissemos, quando o ardor natural é suplantado em sua ação pela energia do Consolador, que se desenvolve por si só, a paciência e a doçura, unidas à maior bondade, se ligam à vida da alma. Elas são frutos do Espírito Santo[29], com o qual comungam os que receberam a piedade de Deus. Mas o espírito de ilusão e mentira, mesmo que pareça agir sobre a alma independente da vontade e do impulso de quem o recebe, não apazigua o estado passional – ao contrário, provoca-o – não realiza nem o amor a Deus, nem a alegria, nem a paz. Pois a mentira é desordenada, ela é inconsequente, estranha à paz e à calma que vêm de Deus.

18. Eu fico maravilhado, Senhor, diante da benfazeja luz da paz admirável, luz tão repousante, bem-amada, naturalmente transbordante, cheia de graça e imensamente transbordante. Ela, e só ela, é toda a vida do intelecto. Eu fico maravilhado, Todo-Poderoso, Mestre Santo, que uma vez tocados pelas efervescências inefáveis de sua bondade infinita, esta possa viver totalmente por si mesma e não por você[30], que está acima do ser. Pois você é a vida que criou as vidas, e a fonte de toda bondade e de toda beleza. Se, com efeito, a mulher não fez mais do que tocá-lo, e sequer a você, mas apenas às suas vestes, ó Salvador, e ainda sequer às suas vestes, mas apenas às franjas do tecido, e secretamente, e mesmo assim ela foi imediatamente curada de toda uma vida de enfermidade e devolvida à saúde contra todas as expectativas[31], que pensar, ó Rei, do que deve experimentar naturalmente, e da vida que deve levar, e por que, aquele que, em sua bondade, você tocou com a inefável efervescência divina, e a quem você concedeu clara e maravilhosamente sua compaixão? Sabemos que você tomou pela mão a sogra de Pedro. E que a febre a deixou de imediato. Ela recuperou a saúde, levantou-se e o serviu[32] cheia de admiração e ardor. Ora, esta mulher não foi tocada senão uma vez, e de fora: pois você a tomou pela mão. Se então, de acordo com as palavras do Evangelho, ela foi inteiramente curada no mesmo instante, o que será daqueles a quem você toca inefavelmente, não uma vez, mas continuamente, noite e dia, e não em qualquer parte de fora do corpo, mas no mais profundo do coração, você que tanto ama suas almas, claramente auxiliando-os com sua força naquilo que lhes acontece, consolando-os nas infelicidades e fazendo por eles miríades de coisas boas e belas? Como então, ó Altíssimo, poderão estes homens viver para si mesmos, e não inteiramente para você, como é natural? Ou melhor, agora que eles vivem apenas por você, como não se considerarão infelizes, como não se prosternarão humildemente, se se virem, por qualquer satisfação efêmera, afastados do tão grande e extraordinário socorro de sua graça?

Glória a você, verdadeiramente glorificado, que glorifica os humildes. E quando eles são glorificados, você os torna ainda mais humildes, pois, com seus dons inefáveis, eles se tornam devedores de tantos bens imensos. Quando você concede a graça aos humildes, você se enraíza maravilhosamente em seus corações e eles são verdadeiramente glorificados. Você disse claramente no livro de Salomão que a sabedoria de Deus se enraíza num povo glorificado, além de toda imaginação. “É por isso que eu me elevei no coração como um cedro do Líbano[33], eu que superei as coisas de baixo, as coisas da terra. Chegado ao cume dos pensamentos divinos, atingi as alturas, a montanha de Deus. Como o terebinto estendi meus ramos. Naqueles em quem eu me enraízo por meio da graça espiritual, meus galhos são os ramos da glória e da graça[34]”.

Senhor, você é a própria verdade. O que eu digo é inteiramente verdadeiro. É por isso que a alma pura, a alma que o recebeu como uma esposa, tanto desejou permanecer à sua sombra, por difícil que tenha sido. Ela mostra assim que seu fruto enche de doçura, e não simplesmente isto, como ele se torna doce na boca. Pois a doçura do Senhor normalmente não passa em todos pelos seus sentidos, como quando se diz: “Como o cinamomo e os bálsamo eu dei meu perfume, e como a mirra escolhida eu espalhei o bom odor[35]”, ela não faz isto a todos. É o que também Paulo que dizer: “O perfume único e mesmo foi para alguns um odor de vida que conduz à vida, para outros um odor de morte que leva à morte[36]”. É assim que acontece superabundantemente, se podemos dizê-lo, com a doçura divina e a glória de Deus que se revela concomitantemente. Não são todos, mas apenas alguns que as percebem por meio dos sentidos intelectuais: os que se dedicam à hesíquia e que receberam a bem-aventurança divina pela comunhão com o Espírito que dispensa a vida e a luz, em suma, os que têm o coração puro, na medida em que é possível tê-lo. Se uma vida tumultuada, impura, manifestamente privada da comunhão com o Espírito, fosse digna, ela sentiria naturalmente em sua alma a glória de Deus, seu perfume e sua doçura. Mas isto não é possível, não pode ser. É preciso a fuga do mundo, a solidão, a hesíquia, a clausura, a vida devotada aos deveres da virtude, da sobriedade e da vigilância, da prece e da atenção, e a tudo o que trazem consigo os que se arrependem, a fim de lugar à insuperável bondade da misericórdia divina. Por amor ao homem esta se inclina e permanece na alma que a busca penosamente: é a piedade maravilhosa. Deus – ó, quanta graça! – se torna com a alma um só espírito enraizado na profundidade do coração, irradiando uma luz estrangeira, que cresce e se eleva em altura, estendendo-se nos ramos do intelecto e trazendo os frutos espirituais: o amor, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a nobreza[37] e miríades de coisas boas e belas, estes frutos que recebe aquele que deles se alimenta. Se você julgar corretamente o que acontece aqui, você poderá ter uma ideia de que sensação de glória, de perfume, de doçura, passa da boca à alma, quando se recebe com toda a pureza os frutos do Espírito que dispensa a vida e a luz.

É por isso que são verdadeiramente bem-aventurados os corações puros que possuem a ciência das virtudes. Pois eles verão a Deus[38] na vida futura mais completamente, mais claramente. E desde agora eles o veem como que em penhor[39], segundo as Escrituras: segundo estas, não apenas eles o veem e verão, como ainda poderão provar das coisas sobrenaturais na medida em que agora as experimentam parcialmente e delas usufruem em Cristo.


DA VIDA CONTEMPLATIVA. DE QUÊ O CONTEMPLATIVO PRECISA. QUE A PRECE É CARACTERÍSTICA DA PARTE CONTEMPLATIVA DA ALMA, E QUE A CONTEMPLAÇÃO É ASSIMILADA PELOS PADRES À ORAÇÃO.

19. A vida contemplativa reside na santa prece. Ela é sua companheira constante. Uma e outra são sementes dadas por Deus, sementes deificantes da vida intelectual da alma. Elas são as obras inseparáveis da alma que Deus carrega e realiza com sua lei. Para a tradição, contemplação e prece estão de tal modo unidas que os Padres falam delas no singular: eles as chamam de ação do intelecto e contemplação. São Isaac disse: “O ato do intelecto se acha na pura obra deste, no intercâmbio divino, na prece perseverante e em tudo o que se lhe segue. Ele se realiza na parte da alma que deseja e se chama contemplação[40]”. Veja que existe aí mais um símbolo de unidade do que a união das duas coisas, da prece e da contemplação. Ele acrescenta ainda que “esta contemplação purifica a energia do amor da alma, que é um desejo natural, que ilumina o que há de inteligência na alma[41]”. Compreenda que existe uma única energia da parte contemplativa da alma, a saber, a prece e a contemplação.

É o que também nos mostra são Máximo, quando diz: “O intelecto não pode se purificar sem o encontro e a contemplação de Deus”. E ainda: “A anacorese, a contemplação e a prece reduzem o desejo e até o suprimento”, e “a alma é conduzida conforme à razão, quando ambas vão a Deus pela contemplação espiritual e a oração”. E mais: “Dê à razão as asas da leitura, da contemplação e da prece[42]”. Assim, em tudo a contemplação é necessária à prece e a acompanha. As duas constituem uma mesma energia do intelecto, ou da razão, e são inseparáveis uma da outra. Esta energia é suscitada pelo intelecto, contemplação e prece sustentando-se mutuamente quando a razão é forte e se dedica à hesíquia com todo conhecimento. É por isso que os Padres dizem que o intelecto que ora sem o poder da contemplação é como um pássaro sem asas, uma vez que ele não se eleva a Deus seguindo suas próprias disposições nem se distancia sem falhas das coisas terrestres e que não consegue se aproximar das coisas do céu com toda a força da alma.

Segundo são Máximo, a contemplação purifica o intelecto, e o estado de oração o leva nu até Deus. Não é preciso dizer que o intelecto que não tende para a contemplação não será purificado, como diz a lei de Deus. Ele afirma que a pureza do intelecto está na revelação dos mistérios, pois a pureza do intelecto é a perfeição que faz retornar a contemplação celeste suscitada fora dos sentidos pelo poder espiritual do mundo de cima, o mundo das maravilhas inumeráveis. O contemplativo ora numa altura tal que a ciência da contemplação purifica nele a reflexão do intelecto. Esta pureza lhe permite ver a Deus com os olhos fechados, na medida em que isto é possível. Aquele que ora se rende verdadeiramente à beatitude.

SOBRE “DEUS É ESPÍRITO, E OS QUE O ADORAM                           DEVEM ADORÁ-LO EM ESPÍRITO E VERDADE”.

20. Diz-se que Deus é Espírito, e que os que o adoram devem fazê-lo em espírito e verdade[43]. É dito “os que o adoram” no plural, e não “o que o adora”, no singular. Isto é bem natural, uma vez que ele quer salvar a todos os seres e conduzi-los ao conhecimento da verdade[44], ele que preparou incontáveis e diferentes moradas[45] para a fruição eterna dos que serão justificados, ele, o anjo do grande conselho[46], o salvador que, da altura de seu amor pelo homem, estende suas mãos para chamar aqueles cuja reflexão é sábia, ou tola, fraca ou doente. Um mesmo caminho de salvação é assim oferecido a todos os homens de uma vez por todas. Eles são aí levados por múltiplos caminhos e o tomam de diferentes maneiras, conforme o estado e a resolução de cada um; e eu acrescentarei segundo sua força e certamente segundo o ensinamento daquele que o levou a Deus e que escolheu adorar a Deus, como foi dito. Pois pode acontecer que não estejamos seguros a respeito de quem nos ensina ou que duvidemos que sua natureza seja boa. Mas então falhamos com o objetivo perfeito, que está em Deus. Outros podem ter tido um mestre experimentado nas coisas divinas, mas, por sua inaptidão, viram-se impedidos de atingir a perfeição. Mas uns e outros, e no fundo todos, se o quiserem, podem adorar a Deus em espírito e verdade, seja conforme a ordem própria a cada um, seja, é preciso dizê-lo, segundo sua força, seja segundo o dom que recebeu do Deus do universo.

Assim, um homem simples que caminha observando os mandamentos e vive a fé, se seguir humildemente outros homens considerados, torna-se claramente um adorador de Deus em espírito e verdade[47]. Pois a fé que fala claramente de Deus e das coisas divinas e invisíveis não pode ser outra coisa que o Espírito. De fato, o Senhor afirma: “As palavras que eu lhes digo são espírito e vida[48]”. Quanto aos maravilhosos mandamentos deificantes daquele que é a própria verdade, não imagino que alguém possa ser tão fraco de inteligência para querer se separar da verdade. De modo que aquele que, pela fé, segue a Deus em espírito e verdade, assim como aquele que ensina as disposições desta fé, é chamado de monge ativo e contemplativo.

Mas quem se liga ao conhecimento dos seres ou da Sagrada Escritura, como é natural a uns e outros, que continue a se recolher em Deus, a passar do visível, do conhecido e da carne para as coisas do intelecto. É evidente que, elevando-se para o Espírito, e daí em linha reta para aquilo que ultrapassa a inteligência, ou seja, para a verdade além de toda verdade, para Deus, ele estará adorando claramente a Deus em espírito e verdade. Do mesmo modo os que salmodiam e os que oram, se compreendem o poder das palavras que cantam e o poder da prece, e se recolhem estas palavras em si tanto quanto possível, adoram totalmente a Deus em espírito e verdade. Pois é evidente que de espírito e verdade são também as santas palavras dos salmos e das orações. E certamente aquele que se dobra sobre si mesmo na comunhão visível e sob o impulso do Espírito, aquele que, em sua forma simples e com os olhos fechados vê a Deus pela luz do conhecimento, também este, da maneira mais elevada, adora a Deus em espírito e verdade.

Enfim, aquele que vê como em um espelho a luz da glória e da economia de Cristo, na medida em que isto é possível, e a efusão do Espírito que vem do Pai por intermédio de Cristo, animando e consolando os fiéis, também este adora verdadeiramente a Deus em espírito e verdade, em Jesus Cristo.


DA PRECE

21. É Deus quem ensina o conhecimento ao homem[49], conforme está escrito. Mas como ele ensina? Ele dá a prece o santo impulso que transmite luminosamente ao que ora a respiração contínua do Espírito. Esta prece sagrada é verdadeiramente a morada, a grande morada da graça mais do que boa. Ela é um mestre para aquele que a recebe. Ela é manifestamente um espelho da alma: nela o intelecto vê claramente suas próprias tendências, seus desvios, suas alienações, suas acídias, suas fraudes. Mas não apenas isto. Ela é também o espaço da pureza, o esplendor da contemplação, o espírito da tensão da obra divina em direção a Deus, a chama do fogo dos desejos ardentes por Deus, a simplicidade do intelecto desembaraçado de formas, o silêncio longe de tudo e a imensa alegria do maravilhamento. Numa palavra, o intelecto vê e conhece infalivelmente por meio da prece aquilo que são os estados e as paixões da alma. Ele é iniciado luminosamente nas causas primeiras dos princípios que dão à alma seu movimento. Ela por sua vez serve às primeiras e se liga aos últimos, tanto quanto possível, sucessivamente, a partir do momento em que se tornam dignos de amor ou de solicitude.

Levar a vida de monge dedicado à ciência implica assim não apenas que se conheça por meio da ascese, correta e perfeitamente, o uso conveniente do intelecto e da palavra, da reflexão e dos sentidos, como também que se saiba discernir o que se deve conceder ao ardor e ao desejo, que se aprenda sabiamente, por meio da ação e da contemplação, a formar em si mesmo, graças ao conhecimento natural da reflexão, a bela harmonia ordenada das potências da alma, e a cantar a melodia intelectual, na medida em que seja esta também infinitamente doce. Assim, a paz de Deus, a bem-amada paz, e a alegria que ela produz, virão repousar no monge iniciado na verdadeira prece e ornado com os frutos do Espírito.

Portanto, aquele que decidiu que deve por todos os meios e de todos os modos orar continuamente, como manda o Apóstolo[50], e que desta prece faz o próprio coração de suas ações, este será contado dentre os discípulos de Cristo. E seguindo seus conselhos relativos à sagrada oração, ele se tornará filho da graça em Cristo.


O QUE É NECESSÁRIO PARA A PRECE,
E NO QUE ELA É DIGNA DE HONRA.

22. Se a santa prece não fosse mais do que o mestre que ensina e mostra os deveres da virtude, já não seria ela digna destas grandes coisas? E se ela não é apenas um mestre que ensina e mostra, mas também um consolador que conduz a tudo o que é naturalmente da ordem dos bens, de quantas oferendas sagradas não estaria ela acima, de quantos louvores não estaria além? E no entanto o ensino e a consolação de pouco ou nada servem, se o ensinado e o consolado forem fracos. É preciso um poder que estimule seu desejo. Se você procurar, você encontrará de uma vez por todas a oração, e nela descobrirá a energia que conforta a alma no Espírito.

É grande assim o poder da oração naqueles que se dedicam à virtude. E está certo. Pois a prece que respira, e por assim dizer a prece que vive, faz subir do coração um fluxo contínuo. E ela é assim manifestamente pela comunhão e a energia do Espírito vivificante. Três coisas são, portanto, as mais necessárias: o ensino daquilo que convém aos espirituais, o consolo nos combates das obras e, acima de tudo, o poder que alivia os atos e as dificuldades. Nosso Senhor, que nos deu o Espírito, disse: “Vocês receberão o poder do Espírito Santo que virá sobre vocês[51]”. E a este poder ele chamou de Consolador e Mestre que ensina, quando disse: “O Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome lhes ensinará tudo e os lembrará daquilo que eu disse[52]”. É assim que por meio da oração é concedida a cada um, para seu bem, a manifestação do Espírito. A um é dado um espírito de sabedoria, a outro um espírito de conhecimento, a outro um espírito de cura[53] e todas as coisas que foram mencionadas pelo Apóstolo, que são animadas pelo único e mesmo Espírito, que se distribui em cada um conforme quer[54]. É o que o ensinamento de são Paulo nos revela claramente.

A quem de algum modo participa dos dons do Espírito três coisas estão ligadas necessariamente: o poder mais alto do que a natureza, o ensono mais elevado do que o mundo e a consolação divina revelada nas santas palavras do Senhor, conforme dissemos. Aliás, quando o Senhor diz: “Sem mim vocês nada podem[55]”, ele mostra indubitavelmente que tudo o que tende a agir tem obrigatoriamente necessidade do poder divino. E quando ele diz: “Não chamem ninguém na terra de ‘mestre’, porque vocês não têm senão um mestre e guia, que é Cristo[56]”, ele quer dizer que o homem tem necessidade do ensinamento divino para compreender o que deve fazer e o que lhe vem da parte de Deus. Enfim, quando ele afirma: “Eu pedirei ao Pai e ele lhes enviará um Consolador, o Espírito da verdade, para que ele permaneça sempre com vocês[57]”, ele lembra que a consolação é necessária e inseparável da graça.

A distinção entre os carismas se estabelece assim por si só. Com efeito, uma coisa é a sabedoria e outra coisa (em espécie) o conhecimento. A profecia não se assemelha a ambos. E os carismas das curas são ainda outra coisa. Cada um dos dons do Espírito enumerados pelo Apóstolo[58] se distingue dos demais. Porém, qualquer que seja a graça, ela é adornada pelas três energias do Espírito de que falamos. Com efeito, como o intelecto criado preso dentro de um corpo poderia estar unido aos seus próprios bens e à virtude, se não lhe fosse dado participar do poder mais alto do que o céu, que nem os anjos possuem? E coo encontraria ele um meio de participar do mistério mais elevado do que o mundo, sem a iniciação do Espírito? Vale dizer, ele seria tomado de vertigem ao alcançar esta altura a que é levado pelo grande dom de Deus e pela firme tensão da virtude se não descobrir também a santa consolação do Deus bom.

Que devemos pensar então da prece feita sob a impulsão do Espírito, esta prece que dispensa à alma todo dom espiritual e traz em si o poder, o ensinamento e a consolação do Espírito Santo? De quantos louvores não será ela mais do que digna? Quanto não devem honrá-la os que a receberam pela graça? E quanto não devem buscá-la aqueles que ainda não a possuem, a ela que, pela santa união, liga o intelecto a Deus em Jesus Cristo, o Filho de Deus na verdade?


DA ORAÇÃO.

23. Quando, pela graça, o estudo regular das coisas que cercam a Deus e o socorro do sopro do Espírito vivificante propiciam ao intelecto um claro pensamento de Deus, que este veja a si mesmo e considere sua própria fraqueza, e que ele considere o quanto a negligência, o esquecimento dos deveres e o trabalho realizado pela ignorância o afastaram daquilo que ele devia fazer. Assim, você que se esforça por condenar a si próprio e se humilhar diante do que é justo e verdadeiro, dirija-se continuamente a Deus pela prece, com um espírito humilde, na certeza e na esperança do incompreensível amor que Deus dedica ao homem por inefável bondade. Este amor transbordante nos permite aproximar com segurança do trono da graça[59], como nos ensina são Paulo. Pois não é seguindo nossos caminhos que Deus costuma agir em nós, mas é conforme sua infinita compaixão. Não tentemos colocar em nós mesmos nosso olhar durante a prece, mas olhemos para a força da pureza e da grande compaixão que existe em nosso Deus, nosso Pai mais do que bom, a fim de que tenhamos em nós, sem mal, seu amor verdadeiramente salutar.


SOBRE “DEUS DISSE A ABRAHÃO: DEIXE SUA TERRA”.                        E DA CONTEMPLAÇÃO.

24. Deus disse a Abrahão, ou seja, ao emigrante: “Deixe sua terra, sua família, a casa do seu pai e vá para a terra que eu lhe mostrarei, uma terra onde correm o leite e o mel[60]”.

É isto que ele diz ainda agora, e mais alto, ao intelecto que emigra e que passa do sensível ao inteligível: “Deixe os sentidos e as coisas sensíveis – e, no fundo, a totalidade do mundo visível – e venha para a terra que lhe mostrarei”. Estas palavras devem ser associadas ao que disse o Senhor: “Venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e tome sua cruz – ou seja, crucifique-se para o mundo, para os sentidos e para as coisas sensíveis – e venha me seguir[61]”, a mim que subo para o Pai, juntamente com o Espírito que a tudo dirige[62]. Foi dito: “Deus disse a Abrahão”. Deus é o Pai que fala pelo Verbo, o Filho. E continuando: “Venha para a terra que lhe mostrarei”. Este é o gesto habitual do dedo, para apontar. Ora, o Espírito de Deus é chamado de “dedo de Deus”. Pois a expressão “eu expulso os demônios com o dedo de Deus[63]” também aparece como “pelo Espírito de Deus[64]” em outra parte. Os sábios egípcios diziam: “É o dedo de Deus[65]”, designando assim a energia espiritual. “Para a terra que lhe mostrarei”, é como se ele dissesse: “para a terra à qual o conduzirei por meu Verbo e meu Espírito”. “Para a terra onde correm o leite e o mel” equivale a dizer para a compreensão do próprio Deus, para o conhecimento daquilo que ele é por natureza.

Neste conhecimento é impossível que o intelecto seja aquilo que ele deve ser se não for iluminado e esclarecido pela chama do Espírito vivificante, esta chama que contemplamos por intermédio do Filho. Com efeito, a partir daí o Deus que ama o homem convida o intelecto e se engajar e partir como um novo Abrahão, para além das agressões dos espíritos do mal, passando das coisas sensíveis às coisas inteligíveis, às coisas do além, onde se alcança em sua simplicidade a visão e a contemplação da Divindade nas três Pessoas. Ela é, por causa deste convite, revelada pelo tríplice poder e pela tríplice energia da Origem única. Pois Deus Pai é propriamente a terra prometida que os mansos devem herdar[66], bem como os de coração reto. Temos a promessa disto pelo Espírito divino. Os herdeiros terão o ardor da esperança: a terra onde correm o leite e o mel, as luzes da manhã, os raios gêmeos, a vida, as delícias, a purificação do mundo inteiro, até que invoquem Aquele que nasceu do Pai, seu Filho inseparável, quando ele se encarnará no homem como um raio de mel e quando a raça humana será cumulada de doçura e de maravilhosa alegria pelos ensinamentos e as graças transbordantes e pelas miríades de coisas boas e belas. O leite é o Espírito Santo. Ele é simples. Ele não é engendrado, mas ele procede. E sua branca luz fornece alimento divino aos seres de razão que são os filhos chamados a entrar no Reino dos céus, como disse o Senhor.

É assim natural ver na terra onde correm o leite e o mel o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É para esta terra que se transporta o intelecto e para ela que ele emigra, como foi dito, sob a condução e pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas. Pois, assim como ninguém pode dizer “Senhor Jesus” – segundo Paulo – senão no Espírito Santo[67], também ninguém pode levar o intelecto de sua alma para a glória e a grandeza da unidade simples das três Pessoas, e vê-las, senão pelo poder e a graça da Trindade, na deposição das coisas sensíveis pelos sentidos, e até das coisas inteligíveis reveladas pela Escritura e o mundo sensível, no distanciamento daquilo que é mensurável.

Assim, é na sua luz, na luz de Deus, ou seja na unidade de sua irradiação, que veremos a luz[68], que o veremos, a você que ilumina nossos corações e nosso intelecto. E possamos reconhecer, para contemplá-lo, aquilo que lhe pertence e o que vem de você, a fim de que nenhuma carne se glorifique de si mesma[69]. É por isso que aquele que antes era Abrão, que quer dizer o emigrado, depois de ter partido e de ter deixado tudo como lhe fora ordenado, dirigindo-se para a terra onde correm o mel e o leite, recebeu o nome de Abrahão, ou seja, o pai de numerosas nações. Também o intelecto digno de ser chamado de emigrante, desde o momento em que parte do sensível, dos sentidos e do mundo todo pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas, dirigindo-se para a irradiação simples da Trindade, para a contemplação e a visão, engendra e suscita, como se fossem numerosas nações, inúmeros grandes pensamentos, inefáveis e misteriosos. Ele está feliz, se regozija e exulta diante das coisas extraordinárias que lhe são reveladas e que nascem para ele, como um pai faz diante dos seus filhos, e possui a paz que está em Cristo.


DA HUMILDADE E DA CONTEMPLAÇÃO

25. Suas obras são admiráveis, Senhor, e minha alma está arrebatada por conhecê-las. A mesma causa que eleva o intelecto suscita também a extrema humildade. O que conduz a alma às alturas infinitas é também aquilo que mais a rebaixa. A humidade é o começo da contemplação, e a contemplação é a perfeição da humildade. Ainda que tivéssemos toda a sabedoria deste mundo seria impossível alcançar a contemplação sem a humildade. Quero dizer: a contemplação que nos eleva. Pois os Gregos tinham uma contemplação que não elevava. Sem a contemplação que eleva e sem inclinar o próprio pescoço como um cordeiro[70] é impossível ao homem ser humilde.

Oh sabedoria inefável d’Aquele que nos criou tão sabiamente! Mas quem a conhecerá jamais, sem tê-la experimentado primeiro, a partir da humildade, a mais alta elevação, e depois, a partir das alturas, a extrema humildade? E se dizemos a propósito do intelecto semelhante a Deus, que o que desce é o mesmo que sobe, devemos acrescentar que o que sobe é também o que desce[71]. Pois quando o intelecto que conhece a arte da humildade recebeu pela graça as delícias das alturas e se regozija por trazer em si as coisas que ultrapassam a razão, ele se coloca, pela humildade, abaixo de tudo. Davi disse: “Senhor, meu coração não se dilatou, meus olhos não se elevaram, eu não alcancei as coisas grandes e maravilhosas que me ultrapassavam, sem primeiro ter me humilhado[72]”. Entretanto, o intelecto, não sem razão, pode dizer o contrário: “Senhor, eu não me humilhei, não me dei ao trabalho, não disse de mim mesmo ser terra e cinzas, sem que antes meu coração não se tenha dilatado, que meus olhos não se tenham elevado, que eu não tenha alcançado as coisas grandes e maravilhosas que me ultrapassam”.

Oh Rei, admirável Criador! Você leva o êxtase ao meu coração, em mim que compreendo a obra de sua sabedoria: o intelecto que sua providência criou sábio.

26. O intelecto que retorna a Deus pelas mãos da graça conhece em primeiro lugar um estado de condenação. Por isso o homem que traz em si este intelecto se lamenta no luto e sofre com lágrimas. Ele parte seu coração tanto quanto possível. A cada dia ele purifica o que nele existe de passional. Ele se humilha naturalmente sem a menor tristeza. Mas quando, pelo dom de Cristo, ele chega à purificação que traz a hesíquia, quando ele se opõe em espírito às agressões inteligíveis, quando ele se eleva para Deus e para sua glória e permanece tendendo à contemplação, ele descobre, depois daquela primeira, uma segunda condenação, que provém do intelecto, e esta condenação é imensa, dura um longo tempo e é sem saída. Dela, ele adquire uma humildade mais firme, real e clara, a tal ponto, que se ele pudesse dizer que todos os homens são bem-aventurados, ele próprio se veria como o pior dos seres, ou antes, não somente ele se veria como o pior dos seres, mas, em verdade e pelos sentidos da alma, ele se veria pior até do que aquilo que não tem ser. Pois aquilo que não é, tampouco pode pecar, mas ele próprio está em constante estado de pecado.

Daí provém sua humildade. No entanto, ele se regozija e se glorifica de muitas coisas, embora nunca de si mesmo – pois ele nunca cessa de se condenar por seu pecado. Porém ele se entrega ao Deus compassivo, que o aproxima de seu sopro, ou, para falar mais claramente, que suscita e espalha dentro de seu coração fluxos de luz celeste e rios das maravilhas do Espírito eterno, e que ilumina o intelecto e diz de seu conhecimento: “Eu estou com você[73]”. Deus revela a ele seus mistérios como a um amigo e o cumula de alegria. A ele respondemos com as palavras de Davi: “Ele não trata segundo nossas faltas, nem nos retribui segundo nossos pecados[74]”. E segundo Paulo: “É pela graça que somos salvos[75]”, ainda que tenhamos cumprido na medida do possível com todos os mandamentos divinos, ainda que tenhamos rejeitado todo caminho injusto[76] na medida de nossa capacidade, e ainda que nos tenhamos esforçado por não perder nada – se possível fora – daquilo que leva à salvação.

Aquele que não vê a si mesmo sentindo estas coisas e que não conhece a si mesmo experimentando-as ainda não tocou a verdadeira contemplação. Ele não chorou o bastante. Ele não considerou a unidade da fé e o conhecimento da verdade[77]. Ele não viu a glória divina nas coisas que acontecem, nem aquilo que está além dos afazeres humanos. Resumindo, ele não alcançou a ciência das razões divinas e humanas.


DA CONTEMPLAÇÂO

27. A criação que traz em si o inteligível e a Escritura que traz em si o espiritual testemunham a glória, o Reino, a sabedoria, o poder, enfim, a grandeza de Deus. Mas o que traz cada uma destas coisas? Seu testemunho é nada? É pouco, como uma gota no oceano? Não. Pois foi contemplando a si mesmo e, por assim dizer, liberando aquilo que nele é sábio, poderoso, glorioso ou grande, que Deus fez tudo o que fez. Ele nos permitiu ver as coisas grandes e gloriosas, cheias de sabedoria e de poder. Ele próprio não tem necessidade de nada. Mas ele transborda de bondade. Assim como ele resolveu, e na medida em que resolveu, ele, com muita harmonia e avaliação e para seu próprio bem conduziu o homem a estar, viver e passar seu tempo na terra, e velou para ligá-lo a si e por lhe conceder o gozo que lhe convinha. Ele criou o Adão único, mas considerando a multitude dos homens. Então ele permitiu que se visse que sua paciência nada negligenciara, e que nada faltaria a nenhum dos homens que viesse a habitar no mundo. A terra guardou o que a faz corresponder às coisas de baixo; o céu, o sol, o ar e o mar estão em correspondência com a terra. Assim, cada qual corresponde ao outro, e traz em si esta analogia que trouxe de Deus, que conhece todas as coisas previamente e que a tudo criou com uma ordem e um poder que exprimem a analogia e a harmonia.

Pois se o Criador não houvesse suscitado a gênese dos seres tendo em vista o uso do mundo, mas em vista somente de sua natureza potente e sábia, gloriosa e grande, teríamos miríades de mundos ao invés de um único, e não mundos como o que conhecemos, mas mundos estranhos, sobrenaturais, que ultrapassariam o entendimento. A alma não poderia suportar facilmente a glória e o esplendor de sua beleza e de sua sábia diversidade, e em seu arrebatamento ela quereria fugir para fora do corpo. Deus quis fazer do homem uma obra única, o rei das coisas da terra, um outro Deus das coisas de Deus, e de bom grado lhe deu o usufruto de todas as coisas deste mundo. Bem disse o profeta: “Ele formou a terra do nada[78]”. E um outro: “Ele estendeu o céu acima das alturas como um manto[79]”. E fazer tremer a terra apenas por contemplá-la[80], que transbordamento de poder! Assim é que ele entregou ao ser por sua simples palavra todas as coisas visíveis, mas guardou para o século futuro as coisas mais gloriosas e melhores que ele reformou com sua morte depois de as ter fundido no túmulo, para que a alma as possa ver. E o homem se tornou uma nova criatura devotada a novos bens, novas delícias, novas visões. Quanto aos homens que vemos agora, eles não passam de sombras ou de um longo sonho, podemos dizer.

Se você quiser se assegurar disso, considere tanto quanto puder a ordem dos anjos intelectualmente, sua sabedoria, seu poder, que nos são não apenas inefáveis como incompreensíveis. Embora o mundo por vir não dependa senão apenas do pensamento de Deus, tamanha variedade e todas as coisas do além são maravilhosas. Se estas coisas dependem de um único pensamento, porque elas jamais existiram, uma vez que era possível que se pusessem em movimento pela vontade, a sabedoria e o poder de Deus? Mas se este pensamento é acessível, como é possível conceber que ele seja infinito? Com efeito, o infinito não tem limites e, onde não existem limites tampouco existe movimento, mas o escoamento da energia a partir do poder que vem da essência, para explicarmos a coisa em parte. O que a criação ou a Escritura revelam de Deus, se isto pode se comparar ao poder de Deus, é algo bem obscuro, uma pequena gota num oceano sem fundo nem fim. No entanto, possamos nós, digo eu, descobrir e conhecer esta gota espiritual. Assim, quando tivermos estendido o intelecto pelo infinito, depois de termos contemplado como uma gota a beleza, a glória e as delícias, e quando tivermos celebrado por analogia, na medida em que nos é permitido, Aquele que é para o infinito infinitamente mais que o infinito, possamos nós, intelectos simples e infinitos à imitação dos anjos, nos tornarmos Deus fora de todos os limites, nos unirmos a ele numa punica forma, num estado que nos leve para além do mundo, numa regozijo inefável, numa alegria e num transbordamento do coração, pela energia e a graça do Espírito. Amém.

DO MONGE ATIVO E DO MONGE CONTEMPLATIVO

28. O monge ativo que se aplica em ser manso e vigilante como deve sê-lo um ativo não deve deixar de salmodiar. Mas o monge contemplativo não está em estado de poder salmodiar. Ele não deve desejá-lo. Ele não o pode, uma vez que ele próprio se encontra assumido pela energia da graça divina, levado em silêncio ao cume das delícias espirituais, na alegria de um coração calmo que nada mais atinge. E ele não deve deseja-lo, uma vez que ele não contempla senão uma coisa, e que ele coloca em ação a faculdade intelectual da alma por meio de pensamentos imutáveis e pacíficos, numa profunda serenidade. É por isso que a obra da visão de Deus passa necessariamente pelo silêncio da contemplação. No entanto a visão pode lhe ser concedida mesmo quando ele lê. Ele não deve se espantar. Devemos ver aí as mutações do intelecto e o caráter composto e mutante de nossa natureza. Mas é preciso saber que depois da leitura esta obra da contemplação pela graça ainda é o ponto mais baixo da obra da contemplação. Tanto por si mesmo como por seu próprio desenvolvimento, o intelecto não pode, apenas graças à leitura, considerar o indivisível. Mas na liberdade intelectual, que se cumpre misteriosamente no coração do silêncio, vemos no mais das vezes a unidade que supera a divisão. O que vemos das coisas sensíveis não ultrapassa o que ouvimos delas? Os olhos, com efeito, são mais fiéis que os ouvidos, como todos concordam. Tanto nas coisas sensíveis como nas inteligíveis, ver, ou seja, contemplar alguma coisa dos inteligíveis, é bem melhor do que ouvir, o que ocorre quando lemos. Pois, assim como no caso da mulher samaritana que, depois de falar com o Verbo verdadeiro, foi pregar sua divindade aos seus concidadãos, mas quando o Verbo, no transbordamento de sua extrema bondade, foi ele próprio à cidade e falou aos seus habitantes, estes disseram que não precisavam mais do testemunho da mulher para estabelecer a divindade do Verbo[81]; do mesmo modo, quando a reflexão se encontra fora da alma e de suas potências, ela testemunha da divindade pelas palavras da linguagem com as quais ela fala.

Mas quando a alma e tudo o que há nela vê pela graça a divindade do Verbo, já não é mais o tempo em que ela tinha necessidade do testemunho de fora. Quem escuta deve, com efeito, ver o que escuta. Quem vê não precisa que lhe sejam ensinadas as coisas que ele vê, uma vez que ele é contado entre os que veem, entre os que têm olhos. É o que podemos observar em Tomé, que ouviu e não foi persuadido, mas disse: “Se eu não vir, não acreditarei”. Mas quando ele viu, ele gritou: “Meu Senhor e meu Deus[82]”. Naquilo em que ele não acreditava antes de ter visto, ele próprio reconheceu a verdade; aquilo que ele não possuía quando apenas escutara – ou seja, a fé – ele adquiriu no momento em que viu.

É preciso, portanto, distinguir a contemplação da ação, do mesmo modo como distinguimos o intelecto dos sentidos.

29. As criancinhas e os homens na flor da idade precisam de leite. Mas para uns o leite é um alimento, para outros um prazer. O mesmo acontece aos monges ativo e contemplativo quando eles leem os salmos. Um o faz para confortar e afirmar sua alma, o outro – o contemplativo – o faz por prazer, e sobretudo para deixar repousar o fogo de seu coração, sua tensão para Deus e o fluxo de suas lágrimas. Pois o Espírito abalança-se nele, o cumula de alegrias nos esplendores da beleza de Deus, o transfigura de glória em glória[83] e o faz crescer. Mas a compleição da carne a argila do coração são fracas. Assim, o monge ativo passa seu tempo nas palavras divinas para o conhecimento, o ensinamento e a ciência que elas fornecem. Mas o contemplativo recolhe em silêncio o conhecimento das palavras de Deus. Nenhum discurso é capaz de expressar o que ele aprende inefavelmente e o que ele vê em sua contemplação. A Escritura diz que o ouvido escutará as maravilhas da hesíquia[84]. Ela diz: “maravilhas” Mas ela não pode dizer quais são estas maravilhas. Ela não tenta expressar o que não é exprimível nas coisas que ultrapassam a razão. É por isso que eu quero chamar de bem-aventurados os monges ativos a quem a palavra divina glorificou por terem acreditado antes de ver[85]. Mas eu considero que os contemplativos são ainda mais que bem-aventurados. Pois se o monge ativo, embora sem ver, recebeu apenas por sua fé a bem-aventurança, tudo o que diz respeito ao contemplativo é inconcebível, pois ele caminha numa fé bem mais elevada do que a do monge ativo. Pois ele vê as coisas grandes e maravilhosas, ele experimenta as elevações em seu coração[86], ele está naturalmente todos os dias em estado de contemplação.

30. O Criador e Ordenador do universo concedeu o desfrute aos dois componentes do homem que se correspondem e assim deu à vida um só e mesmo nome. Ao homem exterior ele ofereceu toda a criação visível. Ao homem interior, que é a alma, ele ofereceu o que há de inteligível na criação sensível. Pois assim como no homem o inteligível está unido aos sentidos, também em toda a criação visível a beleza inteligível pode ser percebida no coração de cada coisa. Não há nada nas coisas sensíveis – é o mínimo que podemos dizer – que esteja privado de conexão com o intelecto. E é bastante natural. Pois nada, de tudo o que foi feito para o homem pela palavra divina d’Aquele que domina o universo, pode existir sem razão. Ora, é isto que aconteceria se a criação sensível não estivesse penetrada pelo intelecto. Como o corpo se contenta com a sinergia do visível, a alma cristã permaneceria vazia. O corpo seria melhor do que a alma, o que é absurdo. E de onde a alma tiraria a vida que lhe é própria? De Deus? Mas então uma criação sem razão irá contra a ordem d’Aquele que a tudo criou pelo Verbo. Pois as substâncias separadas que são as dos seres compostos seriam inferiores, se esta criação nos coubesse sem mediação, uma vez que tais substâncias se dirigiriam por si mesmas a Deus. Seria preciso ao contrário se elevar a partir dos simples inteligíveis e descobrir as delícias da visão? Mas se acontecesse que inteligências materiais, ultrapassando sua natureza, rivalizassem com as inteligências imateriais para tender para o bem, só isto já nos permitiria alcançar uma ordem semelhante à dos anjos. Pois estes possuem suas vidas em si mesmos e tendem à beleza primeira. A partir de si mesmos eles desfrutam das auroras da luz única de Deus. Mas nós que, por nossa natureza, estamos abaixo deles e somos segundos depois dos anjos e das ordens que por assim vêm depois deles, em nosso nível nos recolhemos em Deus e em sua beleza, sem colocarmos na frente as substâncias separadas, ou as coisas simplesmente inteligíveis. Pois esta é a obra angélica, a obra dos que descobrem por si próprios a tensão divina. Mas avançando pela razão a partir dos seres compostos e chegando às criaturas simples, passamos ao incriado como as coisas da natureza, conforme eu já disse. Nós nos recolhemos na simplicidade em nós mesmos e em Deus.

É por isso que, a fim de que possamos desfrutar, viver e nos elevarmos a Deus em nosso intelecto, nos é necessário contemplar o inteligível espalhado por todo o sensível e unido às coisas visíveis, este inteligível que o monge ativo não pode ou não quer ver. Ele não pode, se não tiver um homem, ou a Escritura, para lhe mostrar. E ele não quer, mesmo que lhe seja dado, quando, por presunção ou malícia, ele desconfia de seu próximo, não crê senão em si mesmo, jamais provou do ensinamento dessas coisas e considera que as indicações da Escritura são para ele um guia suficiente. Ele se contenta em colocar a criação a serviço de seu corpo, pensando que é nisto que reside a piedade. Isto lhe basta, e ele não busca nada além. O contemplativo, ao contrário, recolheu o invisível na criação visível, descobriu aquilo que na Escritura concorda com o Espírito, e com passo alegre partiu para as substâncias separadas. Ele vê a beleza de seu esplendor, ele se regozija em atravessá-las pela graça e ele se dirige para o incriado inteligível de Deus. Dedicado às delícias do infinito e da contemplação, na medida do possível, ele está, na simplicidade e no sobrenatural, inefavelmente suspenso no raio da beleza divina. Num maravilhamento mais alto do que o mundo, num estado de unidade e de simplicidade, ele desfruta naturalmente da beleza inexprimível e deste esplendor luminoso. Ele está cumulado de alegria e de admiração. Assim ele recebe o fluxo sem fim do regozijo divino, e em sua generosidade ele mostra ao monge ativo, por suas palavras e seus escritos, o caminho que conduz à verdade.


DA COMUNHÃO COM O ESPÍRITO SANTO

31. Você sabe quem se difunde no coração dos fiéis e qual é o signo desta efusão? É acima de tudo o Espírito Santo quer procede do Pai pelo Filho, e que preenche o mundo. Ele está inteiro em tudo, e se difunde inteiro em cada um dos fiéis. Ele se distribui impassivelmente e se dá numa comunhão irresistível. O sinal de sua comunhão, ou de sua efusão em nós, é o desejo pela humilde pobreza, as lágrimas que não cessam de correr sem dificuldade, o amor verdadeiro, o amor total por Deus e o próximo, a alegria do coração, o regozijo em Deus, a paciência nos deveres, a mansidão para com todos, e simplesmente a bondade, a união do intelecto, a contemplação, a luz, o ardente poder da prece contínua, enfim, a ausência de cuidados com as coisas temporais e a memória do eterno. “Como são maravilhosas suas obras, Senhor![87]”. “Da cidade de Deus se disseram coisas verdadeiramente gloriosas[88]”; a cidade de Deus é aqui o coração fiel.

32. Se depois que ele se fez ouvir você compreendeu o grande Conselho de nosso Deus, conselho inconcebível em sua bem-aventurança, que nos foi revelado pelo amor sobrenatural do Pai pelo homem e que Jesus nos trouxe e transmitiu, ele que na bondade transbordante de sua santidade que ultrapassa o entendimento e em seu amor pela raça se fez por nós o Anjo deste grande conselho[89] que recolhe todas as razões das coisas visíveis numa única razão concisa que Deus prometeu nos dar[90], se você compreender você nunca deixará de estar maravilhado, alegre e em paz.

33. Se você conheceu o objetivo que nos foi assinalado pela grandeza de Deus, e o que por este objetivo acontece entre nós e Deus, e se você compreendeu o que Deus quer para nós, como ele cumpre o que é nosso e o quanto nos falta daquilo que lhe pertence, sua obra será cheia da tristeza amada por Deus e de uma humildade total e verdadeira.


DA CONTEMPLAÇÃO

34. Quem medita a respeito de tudo o que o amor de Deus lhe permite experimentar nas visões intelectuais, verá sem dúvida se erguer em sua alma três coisas que as Escrituras e os Livros santos sublinharam com fervor – que se fosse preciso que os homens as adquirissem por todos os meios – ou seja, a fé, a esperança e o amor[91], que são o cumprimento, ou antes o fundamento, de todas as virtudes da ação e da contemplação. Esta é verdadeiramente a trindade santa que está em nós e que pode nos unir à Santíssima Trindade, se a levarmos como se fôssemos anjos.

35. O intelecto são contempla geralmente ao redor de Deus três ordens de sistemas, que são por sua vez trinitários: a ordem pessoal, a ordem natural e a ordem que se segue à natural. A primeira trindade se revela ao intelecto principalmente pelas Santas Letras. A trindade natural é descoberta a partir da contemplação dos seres. Quanto à trindade que se segue à natural, ela provém da verdade da razão. Portanto, quando o intelecto penetra na primeira ordem trinitária, ou mais precisamente quando ele tende para ela, ele encontra o inacessível, mas ele ainda não se tornou simples. Quando ele atinge a segunda ordem, maravilhado, ele descobre a alegria da sabedoria. Mas quando ele penetra na terceira trindade, ele entra verdadeiramente na treva, aonde está Deus. Ele se torna totalmente simples, infinito, para além de todo limite, num estado no qual não existem nele nem figura nem forma. Quando enfim ele considera, ou melhor, quando ele tenta ver estas três ordens como uma décima ordem na qual os pregadores da verdade dizem que toda a plenitude da divindade reside num corpo[92], então ele enxerga verdadeiramente a paz que o ultrapassa, na natureza perfeita da graça da contemplação.

36. Se ele subdividir novamente, o intelecto contemplará então no dom apaziguador de Cristo três estados que organizam no mistério a graça espiritual: o que está além do mundo, o que abarca o mundo e o que está em si. Nesta unidade trinitária, ou no dez, ou na perfeição da contemplação, o intelecto, pela bondade da graça, celebra na alma os aguilhões do amor de Deus e os mistérios deste amor. Ele brilha ao redor deles, ele se torna radioso, ele irradia uma luz de felicidade. Ele próprio não vive senão em espírito. Ele volta para Deus o amor da alma. Tanto quanto possível, ele o transporta para o eros divino. A partir de então ele começa a amar a Deus, e com razão. Ele se eleva e avança ao redor deste amor, ele se liga aos mandamentos, ele os contempla, corre para eles tanto quanto pode. Ele se esforça continuamente para desabrochar pela graça, na medida em que isto lhe seja permitido, e para realizar ciosamente em si mesmo o amor divino. Então Deus e o intelecto se tornam maravilhosamente um só Espírito. Do mesmo modo como Deus está espiritualmente no intelecto que o recebe, o intelecto está em Deus que o penetra. Considere aqui com clareza o que diz Paulo: “Aquele que se liga ao Senhor se torna um com ele em Espírito[93]”. A partir daí Deus se torna para o intelecto irradiação, luz, eros, amor. E o intelecto se regozija em Deus com maravilhosa alegria, exultando nu esplendor único da tripla luz. Ele se acalma e repousa naturalmente em Cristo com arrebatamento.

37. Quer as expresse, quer as conceba ou as veja, possa o intelecto contemplativo preferir dizer naturalmente diante de Jesus encarnado estas cinco palavras[94] referentes à glória, ao amor, à graça, à paz e ao repouso.

Primeiro a palavra de glória: o Verbo se reflete na criação do visível e do inteligível. Pois “tudo foi criado por ele e nada do que foi feito foi feito sem ele[95]”; os séculos e o que está na eternidade, ou seja, a ordem do mundo mais alto do que o céu e, com mais forte razão, o mundo temporal. Mais ainda, ele é da mesma natureza e está sobre o mesmo trono que Deus Pai e o Espírito. Ele é a imagem do Deus invisível[96] e a irradiação de sua glória[97]. Dele é naturalmente tudo o que o Pai tem[98]. É por isso que ele está no Pai e o Pai está nele[99]. Depois vem a palavra de amor: pois o Verbo se fez carne a partir de nós e habitou entre nós[100]. A palavra da graça: pela efusão e o dom do Espírito vivificante em nós, pois todos recebemos de sua plenitude, e graça por graça[101]. A seguir a palavra de paz, esta paz cuja boa nova o Verbo anunciou aos que estavam próximos ou distantes dele[102]; ele fundou a paz[103] e reconciliou o que está sobre a terra com o que está nos céus[104]. É por isso que o Pai nos ressuscitou e nos estabeleceu com ele nos lugares celestes em Cristo[105]. Enfim, a palavra de repouso: pois por ela nos tornamos incontestavelmente herdeiros de Deus. Não apenas nada é mais forte do que Deus, mas ninguém se iguala Àquele que, além de toda medida, é maior do que o infinito.

A partir de então aquele que é conduzido em espírito e verdade por estas cinco palavras contempla na Trindade única as três palavras conjuntas em vista do extraordinário cumprimento do único objetivo secreto. Assim, pelo amor e a temperança, pela vigília, a leitura e a oração, na humildade fundamental e na justiça ativa, na medida do possível, ele progride simultaneamente para as contemplações de Deus e as contemplações divinas, e ele vive só com Deus, não dando a menor atenção a si mesmo, nem se abandonando ao medo que se agarra a ele. Desde então ele usufrui inefavelmente dos numerosos e luminosos carismas do Espírito, no santo amor, na alegria do coração, na paz sobrenatural, nos bens que acompanham a verdade. E ele se torna um templo de Deus, um novo herdeiro. A graça o faz herdeiro de Deus por adoção de uma vez por todas.


SOBRE O QUE DEUS DISSE A ABRAHÃO:
“EU MULTIPLICAREI A SUA SEMENTE.”

38. A partir daí, quando, pelo poder do Espírito que dá a vida e a luz, eu contemplo o Senhor, o Deus-Homem, com o olhar apaziguado da alma, e quando eu lembro claramente das cinco palavras a seu respeito, eu vejo maravilhosamente cumprir-se a promessa que o Verbo encarnado fez um dia a Abrahão quando lhe anunciou: “Eu multiplicarei sua semente como as estrelas do céu e como as areias à beira-mar[106]”. Da mesma forma, quando ele diz: “Todas as nações serão benditas na sua semente[107]”, esta semente, para são Paulo, significa Jesus. A semente multiplicada de Abrahão é, por conseguinte, o Senhor Jesus, que, pela união e a energia da divindade, é o único capaz de suscitar a superabundância. Sua grandeza é infinita, sua amplitude insondável, sua verdade multiplicada como as estrelas do céu ou a areia à beira-mar, pois ele é o Deus das graças. É precisamente dele que provém a raça de Abrahão. Deus não fala aqui de Ismael, pois este não era filho de uma mulher livre[108]. Está escrito: “É de Isaac que lhe virá um filho[109]”. Ele também não fala de Israel, pois não é tanto de uma multitude que abarcaria todos os homens da terra, mas do Senhor, do Cristo assumido, a partir da semente de Abrahão, por Deus o Verbo: uma pessoa única, homem e Deus. Somente sua paz não tem fronteiras[110], seus julgamentos são um abismo[111] e seus caminhos são insondáveis[112]. Seu poder, sua sabedoria e todo o divino que o cerca são no infinito infinitamente infinitos. Nele as nações invisíveis foram abençoadas[113] contra toda espera, e tal multiplicação se cumpre através daquilo que havia sido previsto. Mas não era conveniente nem necessário a Deus prometer ao patriarca que lhe concederia a graça de multiplicar o povo com sua semente. Pois regozijar-se destas coisas é no mínimo pagão e grosseiro. Mas um homem devotado ao melhor, como Abrahão, e amado por Deus como o era este patriarca, não podia senão amar e se regozijar com toda sua alma pelo conhecimento e a contemplação de Deus que se abriam para ele, uma vez que daí ele recebeu uma superabundância de pensamentos, de contemplações e de iluminações divinas, que se multiplicavam cada vez mais, como convém a Deus.

Assim é que Moisés soube admiravelmente suplicar, a fim de ver claramente a Deus que lhe aparecera[114]. E quando ele o viu, ele foi considerado tão justo que se multiplicou. E dele veio tamanha soma de conhecimentos divinos que nem se pode mencionar. Também Salomão recebeu de Deus uma profusão e uma soma de sabedoria e de ciência dos seres igual à areia das praias[115]. E ele se multiplicou mais do que todos os seus contemporâneos.

Se refletirmos a respeito disto descobriremos facilmente como Deus multiplica o homem ou a semente do homem que recebeu a graça. Com efeito, Deus não se regozija simplesmente com a multitude de um povo. Ele se regozija com a sabedoria, a ciência espiritual da alma e com as outras virtudes divinas que estão além de todo número. O Senhor Jesus, que possui todas estas virtudes em superabundância, é ele próprio o cumprimento da sabedoria de Abrahão, ele, em cujo corpo habitou toda a plenitude da divindade[116] que ultrapassa infinitamente toda ordem de grandeza. É dela que provém toda a superabundância e os tesouros do conhecimento e da sabedoria ocultos em Cristo[117]. E este é verdadeiramente o dom que convém a Deus, este dom eminente prometido com toda justiça ao eminente amigo de Deus, Abrahão.

Veja assim em Jesus Cristo a divina multiplicação, como que infinita, das cinco palavras de que falei. Em primeiro lugar a irradiação da natureza divina é revelada pela glória que envolve Cristo. Pois ele é verdadeiro Deus. As meditações teológicas dos Padres sobre a grandeza são infinitas, e são insondáveis aquelas sobre a abundância da multiplicação. Pois tudo o que diz respeito à filiação do Pai, a justa doutrina da consubstancialidade, as coisas da comunhão do Espírito, a efusão dos dons dos quais participam miríades de homens – talvez a terra inteira – e que jamais diminuíram, e ainda as coisas da economia da encarnação, e tudo o que daí decorre, tudo isto é inefável e sem número. Ora, tudo isto, para resumir, o que provém da glória, o que provém do amor, da graça, da paz, de nosso repouso, tende a se multiplicar secretamente, na medida em que é permitido, mais do que o número das estrelas do céu e do que os grãos de areia das praias, em Jesus Cristo, a semente de Abrahão. Esforcemo-nos para louvar e glorificar tão alta promessa, maravilhosa e secreta, digna somente de Deus, a fonte das graças, feita a um amigo fiel eleito entre todos, para a imensa felicidade comum da raça humana, em especial dos crentes. Glória Àquele que quis que assim se multiplicasse a semente. Amém.


SOBRE “LOUVE A MINHA ALMA AO SENHOR”.

39. Louve minha alma ao Senhor[118] pelo céu dos céus, este céu cujo ser é a luz. Louve-o acima dos céus, por seus anjos e suas potências. Profundamente louvados sejam seu poder e sua sabedoria. Bendito seja seu santo nome. Louve ao Senhor. Louve-o pelas águas que estão abaixo do firmamento e pela luz que está acima das águas. Louve-o pelo firmamento do céu, por sua ordem e seu giro maravilhoso. Louve-o pelo azul que a tudo inflama. Louve-o pelo sol, a lua, as estrelas, por sua glória e beleza, por sua diversidade, sua posição e seu movimento, por seu estado flamejante e sua ardente existência de fogo sem matéria, esta coisa inteiramente terrível. Louve-o pela luz do dia, e pela sua mudança quando se extingue, esta mudança por meio da qual com toda sabedoria ela cobre por igual tudo o que há no mundo.

Louve minha alma ao Senhor pela paz e o equilíbrio maravilhosos nos quais se enfrentam os elementos irredutíveis, os quatro grandes elementos do todo: a água, o fogo, o ar e a terra. Louve-o pela imensa proliferação e pela diversidade dos pássaros, pela providência que dirige sua vida e seus movimentos. Louve-o pelo mar e sua enorme potência que é quebrada pela coisa mais frágil de suas margens, a areia. Louve-o por todos os seres inumeráveis que vivem nas águas, com tamanha diversidade de formas, de grandeza, de qualidade, de condutas, de hábitos, de costumes, de força e de energia. Na paz e no arrebatamento, louve ainda ao Senhor por tudo o que o mar pode reunir tão depressa e que contribui para as necessidades da vida do homem.

Com alegria louve ao Senhor pela terra, os animais e as serpentes sem número que se deslocam sobre ela, tão diferentes e variados. Louve-o igualmente, é certo, pelas árvores que crescem e que, paradoxalmente, dentro de uma mesma família, dão frutos ou não os dão, numa diversidade incomparável. Louve-o pelas ervas, os frutos, os cereais, os legumes, que estão ligados aos perfumes, ao calor, ao frio, à umidade e à secura, e que diferem por muitas razões que ultrapassam a razão. Louve-o pelas águas que se dividem e se repartem, pelas chuvas, a neve e a geada, pelas tempestades e pelos raios.

Por estas coisas e por outras semelhantes louve, minha alma, e bendiga ao Senhor, por seu poder incompreensível, sua sabedoria inefável, sua glória inexplicável. Pois todas as coisas visíveis lhe foram dadas por este Criador no indizível amor que ele tem por você, desde que no meio de todas essas coisas luminosas e gloriosas você veja em sua intimidade e em sua razão, que você reflita a glória, a sabedoria e o poder de seu Criador que nos amou a ponto de nos dar seu filho único[119], que se fez homem, coisa nova e maravilhosa que ultrapassa a inteligência.


DA CONTEMPLAÇãO

40. É preciso que se diga: o que concebeu fazer o poder de seu poder, que ultrapassa todo poder, Mestre supra-essencial, mais alto do que o ser? E o que quis você por meio deste poder, Rei mais do que sábio? Que quis você em sua incompreensível benevolência, Deus mais do que bom? E o que fez você, Senhor mais do que glorioso que domina o universo, em seu amor infinito, na inefável providência de sua bondade por nós? Glória à sua infinita bondade com que, sem limites, nos cumulou em sua previdência, sua sabedoria e seu poder que não compreendemos, você que em tudo é totalmente inacessível. Possa eu dizer, também eu, com o bem-aventurado Davi: “Como são grandes as suas obras, Senhor, e profundos os seus pensamentos[120]”. Pois eu vejo pelo intelecto, tanto em verdade como em espírito: eis que a casa do Senhor está cheia de glória[121]. Mas da mesma maneira, ao mesmo tempo em que eu recebo esta visão, eu me vejo, também eu, na morada da glória do Senhor, repleto de glória e de graça, cumulado do repouso inefável e da indizível paz eterna. Eu estou, e não sem razão, totalmente fora de mim, atingido, ferido pelo aguilhão do amor divino, e queimo com o ardor do desejo do amor, na alegria espiritual, na felicidade e no mais alto regozijo, acima do mundo. Pelo dom de Deus eu estou até o fundo do coração cheio da santa luz do Espírito, esta lâmpada que jamais se extingue, se podemos nos expressar assim. Assim eu penetro nas razões dos seres, reunidos numa única razão secreta com todas as razões do universo, e vejo todas as coisas da Escritura convergir para esta razão. Mistérios me são revelados, conduzindo a esta razão única, manifestando-se por ela apenas aos que veem em espírito em espírito e em verdade. Esta razão é o grande Conselho de Deus. É por ela que Davi cantava quando a viu: “O Conselho do Senhor reside na eternidade, e os pensamentos de seu coração de geração em geração[122]”. Pois ninguém jamais poderá impedir o Conselho do Senhor[123]. Este Conselho se vê e se transmite não por um ensinamento, mas por uma graça espiritual anipostática iluminando verdadeiramente o intelecto e dispondo-o a enxergar o que está além do mundo.

“Quem conhece o poder de sua cólera, Senhor? E quem considera seu ardor e o teme?[124]”, diz a sagrada Escritura. Mas a sabedoria espiritual em mim diz também: quem conhece o poder do seu amor? Quem pode medir seu eros a partir de seus atos? Maravilhosas são as obras de seu amor, Senhor, minha alma sabe-o bem. O conhecimento do seu eros é um maravilhamento[125]. Mas quem pode tender inteiramente para ele? Este conhecimento, que se estende infinitamente até o infinito, não está apenas acima de tudo pela qualidade, mas também pela diversidade. Não podemos falar dela, porque ela provém de uma e outra fonte, numa sabedoria sem limite e na correspondente potência, ó Senhor inefável. Pela natureza, o poder, a energia, você é a Unidade. Pelas hipóstases, pelas propriedades pessoais, é a Trindade. Seja bendito, você que nos abençoou com a benção espiritual[126] total na Pessoa de nosso Cristo Jesus, por meio de quem você nos revelou e nos estabeleceu nos pousos celestes[127] acima de todo princípio, de todo poder, de toda potestade, de toda dominação, de todo nome pronunciado neste século ou no século futuro[128], você que nos fez herdeiros com ele[129], herdeiros seus em tudo, herdeiros da Trindade do Deus único, e que maravilhosamente nos deu o poder sobre tudo o que há no céu e na terra. Pois é nele, em Jesus Cristo, que nós, os terrestres, fomos justificados pela razão e pela graça.

Você, Deus da Trindade, que transborda de amor divino e do maravilhoso eros! Por seu intermédio participamos do dom de Deus o Verbo. Você é verdadeiramente glorificado, Senhor que nos contemplou assim com a sua glória, acima de todo entendimento, você que é verdadeiramente inefável, e que faz o que é incompreensível, e que mantém oculto o eros que, além de toda medida, lhe traz até nós.

41. Bem-aventurado o homem cujo sentido intelectual refloresceu graças à admirável hesíquia e que retornou por assim dizer a si mesmo e que vive pela inspiração e pela impulsão do Espírito. Redirecionando as disposições da alma, despertando o intelecto e transformando sem dificuldade o coração, este sentido é pela graça o fruto de uma reflexão sã, quando esta voa na direção do divino. Mas ela não pode retornar a si sem a experiência da hesíquia e a pureza que a graça dá ao intelecto. Isto é tão impossível a um homem quanto nadar no ar. Com o sentido intelectual, sua lembrança e sua contemplação de Deus são eficazes e úteis; sem ele é como se houvesse um esquecimento de Deus, e sua lembrança é mais ignorância e ceticismo do que contemplação e conhecimento. Aquele que pela graça encontrou este sentido divino é como se tivesse encontrado a Deus: ele não tem necessidade de palavras; ele se mantém próximo a Deus. Ele foi escolhido para celebrar a liturgia divina. Ele abraça o silêncio, ou melhor, ele se cala ainda que não queira. O Espírito de Deus permanece nele. O amor, a paz, a alegria espiritual se erguem nele. A vida que ele vive não é a mesma vida habitual e comum, pois ele se regozija em Deus e seus olhos veem a luz intelectual, pois eles próprios são olhos do intelecto. Seu coração guarda o fogo. A simplicidade, a imutabilidade, o infinito, a ausência de limites e de começo, o eterno se unem maravilhosamente nele para arrebata-lo. As lágrimas não cessam de correr de seus olhos. Ele tem em seu coração nada menos do que a fonte de água viva, a água espiritual. Ele encontra a unidade e a totalidade ao se unir ao inteligível. Ele se cerca da luz do único. Ele desfruta das delícias que estão acima do mundo. Ele é arrebatado pelo êxtase, ele brilha de alegria, maravilhado, fora de si, absorvido por Deus.

Quem experimentou isto compreenderá e celebrará com justeza ao Deus Altíssimo, além de toda imagem, de toda qualidade, de toda geração, de toda quantidade, simples, sem forma, inexplicável, sem começo, eterno, incriado, incorruptível, incompreensível, insondável, mais alto que o ser, mais que poderoso, mais que bom, mais que belo. A ele o louvor e a glória pelos séculos dos séculos.


DA ILUMINAÇÃO DIVINA

42. Senhor, aos insensatos a sabedoria diz: “Venham, comam meu pão e bebam o vinho que preparei para vocês[130]”. Assim eu me confiei ao seu inefável amor pelo homem, Senhor, e chego a você, verdadeiramente insensato que sou por ser pecador em todas as minhas ações. Assim eu imploro, ó compassivo, eu lhe imploro, conceda-me o dom do alimento espiritual e da bebida de seu Espírito, este Espírito que é também incontestavelmente a própria luz. Pois os seus o dizem: os que trazem o Espírito trazem também a luz. Assim, quando a luz surgir inefavelmente, eu saberei que ela está em mim de um modo que ultrapassa a natureza. Pois você será para mim minha vestimenta, minha vida santa e bem-aventurada. Os que trazem a luz como a possuem os seus, de você se revestem[131], aurora luminosa da glória do Pai, vida verdadeira e sem mistura. Tais homens, como seus santos, revestiram-se do Pai. Assim são eles claramente as mansões, as moradas, os templos da Divindade três vezes luminosa, a Divindade celebrada acima de tudo. Eles deixaram o visível, separaram-se do inteligível, eles repousam espiritualmente em você, a Divindade mais que divina.


DE ONDE VEM O EROS DIVINO NA ALMA

43. O eros divino vem habitar na alma por meio dos mandamentos e dos dogmas de Deus, quando o Espírito vivificante volta a se iluminar no coração. Então ele se inflama com um fogo ardente. Este amor é como uma alma cheia da divina oração pura, eterna, sempre transbordante: ele é um movimento, uma energia, ele unifica e agrega, é êxtase e visão, a alegria verdadeiramente sagrada que provém da iluminação. Ele é o caminho reto da união perfeita e maravilhosa que vem de Deus, é a fonte incontestável da luz supranatural, esta luz intelectual anipostática de que falam os Padres. Ele é a fonte dos dons da deificação, da segurança da futura herança dos santos, das garantias da glória de Cristo, da vestimenta mais que celeste da alegria que paira acima do mundo, do selo da santa adoção, numa palavra, do esplendor de Cristo, que torna semelhantes a ele os que o recebem[132] e lhes permite participar de sua inefável deificação. Eles serão chamados de irmãos, de herdeiros de Deus, herdeiros com ele[133]: isto é uma coisa absolutamente maravilhosa.

Por isso é bem-aventurado aquele que, votando-se ardentemente ao que dissemos, pode adquirir o eros inefável de Deus e se dedicou à santa oração levando uma vida voltada para a hesíquia. Pois ele estará verdadeiramente ligado a Deus e transformado pela mudança deificante que ultrapassa o intelecto. Sofrer por Cristo será para ele uma alegria[134], ele se consagrará inteiramente aos seus mandamentos[135]. A ele a glória por todos os séculos dos séculos. Amém.


DO EROS DIVINO

44. Deus está naturalmente no infinito infinitamente acima de toda contemplação, mesmo a dos querubins. Mas de certa forma podemos contemplar seu eros, que provém de uma infinita bondade. É por meio dele, pela força do eros, que o criado é feito inteligível e que o visível se torna inteligível através das razões inteligíveis das criaturas. É por isso que o eros divino, desde sua primeira efusão, se manifesta nos seres inteligíveis, ou seja nos anjos e nas almas que estão mais próximos de Deus e são com ele aparentados. São principalmente as naturezas inteligíveis que têm como característica a divindade. Pois por meio delas Deus cria também as outras naturezas em seu amor e grandeza de alma, ou mais precisamente na grandeza intelectual que é sua, como já revelamos. Assim é possível àqueles que contemplam em plena luz, de um modo ou de outro, o eros d’Aquele que em si é totalmente invisível, verdadeiramente verem através das coisas visíveis, como nos templos, o inteligível que está acima dos mundos.

Entre Deus que ama o homem e o homem que é amado, muitas coisas provêm profundamente do eros divino quando ele atrai das muitas maneiras que lhe são naturais e, sobretudo, quando o intelecto faz do coração iluminado sua morada, trazendo em seu espírito a visão que o inflama. É então que a alma recebe pela graça no coração as garantias da vida espiritual. É dado a ela sentir a energia do intelecto: ela começa a contemplar sobrenaturalmente na luz divina, sem erro e com toda segurança, os dons d’Aquele que a ama. A partir daí, ela se sente chamada a se lembrar dele e busca continuamente voltar aos seus dons. Com alegria ela representa para si o rosto d’Aquele que a ama e se maravilha desmesuradamente, se consome de amor por Deus e já não se permite sentir ou conceber outra coisa senão isto. No transbordamento da contemplação ela já não sabe, ela ignora que ela é. Assim engajada, ela se torna radiosa, ela exulta, ela se regozija, ela transborda de felicidade, ela ama a Deus, ela alcança a fervura do eros, é conduzida aos mistérios de Deus, é levada ao fogo do coração pelo Santíssimo Espírito vivificante.

Existe aí um círculo sagrado todo feito de doçura: o círculo do amor. Este círculo é maravilhosamente animado pelo eros divino que revela a aparição das criaturas, este eros por meio do qual Deus, tomado de amor por nós, indica manifestamente o caminho que faz de nós seres tomados de amor por ele. Assim é que Deus se faz amado por nós e nós, que proviemos de Deus no princípio, a ele retornamos. Quando chegamos à semelhança divina em imagem, pela doçura e o regozijo do eros que recebemos de Deus, tornamo-nos bons e sábios, ou seja, somos ativos e contemplativos, somos amados por Deus e amamos a Deus, experimentando os mistérios da união vivificante e do êxtase, numa palavra, a paixão bem-aventurada da luz radiosa do conhecimento, em Cristo nosso Senhor.


DO TEMOR NO AMOR

45. Vocês que escolheram o amor de Deus e o repouso espiritual do eros místico, vocês que com toda sua sensibilidade carregam o cálice divino, que com ele estão inefavelmente radiosos e felizes, vocês que contemplam as profundidades dos mistérios que estão acima do mundo, que desfrutam do indizível e repousam na mais profunda paz, temam ainda e orem, atentos a Deus, votados à humildade de todas as maneiras, e ouvindo aquilo que o divino Davi disse abertamente a Deus: “Você é minha alegria, livre-me daqueles que me encarceraram[136]”; e também o que ele ensina em sua natural nobreza, por ser portador do Espírito: “Sirvam ao Senhor com temor e regozijem-se nele com tremores[137]”; vejam igualmente a Paulo, o vaso de eleição[138], que foi arrebatado até o terceiro céu, que entrou no paraíso sagrado e que ouviu as palavras inefáveis que nenhum homem pode dizer[139], e que depois de tão grandes coisas ainda temia ensinar aos outros sem ter ele mesmo aprendido o bastante[140].

Do mesmo modo, se o divino Davi, o mestre da terra inteira, diz: “Vocês que amam ao Senhor, execrem o que é mau[141]”, é como se ele ensinasse abertamente: “Vocês que amam ao Senhor, temam”. Ele via que a malícia tentava se opor invejosamente ao amor a Deus e se misturar naturalmente à alma. É por isso que ele também disse, àqueles que amam ao Senhor, que chegaram a este estado, que estão atentos em execrar a malícia: “Se vocês aprenderam que devemos execrar a malícia, mesmo assim ainda devem temer”. Pois se não houvesse nada mais a temer, o profeta não ordenaria execrar àqueles que amam a Cristo.

Pois se regozijar-se e exultar em Deus contemplando os mistérios naturais consiste num estado elevado, num estado elevado verdadeiramente cumulado de graça, ainda assim nossa alma é naturalmente mutável e muito próxima da matéria terrestre e do corpo que esta cultiva. Ela deve se cobrir rapidamente do temor na luta que a faz tender ao eterno, mas ela espantosamente se une à matéria. Quer queira, quer não, ela respira com ela, sofre com ela, muda naturalmente de forma, como se, podemos dizê-lo, não tivesse nenhum poder. A matéria se opõe a ela implacavelmente e a comanda de muitas maneiras levando-a à ruína. Assim é que se torna necessária a prece suscitada pelo temor. A alma que tende para Deus tem necessidade tanto do temor quanto do tremor. E eu peço aos mais nobres dentre os que me ouvem para que se esforcem para ver e discernir o que são esta atenção e esta prece, a partir do momento em que a alma contempla estas coisas pela graça luminosa do Espírito e experimenta ardentemente o amor a Deus.

Se Adão tivesse tido naturalmente o temor, uma vez que ele recebeu tanto dom profético, do qual ele usufruía e que o levou a imitar a Deus, ele não teria sido vencido tão pouco nobremente. Mesmo Sansão, nascido da promessa[142], mesmo Davi que trazia a Deus em si, e tantos outros, dos quais o mais admirável foi Salomão. Se tais homens foram vencidos, é porque eles tinham necessidade do temor, da luta, da atenção e da prece. Que pensar então dos que ainda não alcançaram o dom e a energia sobrenaturais do Espírito? E dos que ainda não se elevaram no êxtase do eros divino, neste amor louco que nos conduz à beleza visível de Deus? De quanto temor, quanto tremor, quanta atenção e quanta prece não necessitam estes em Jesus Cristo, com o coração humilde e constantemente?


DAS TRÊS FORMAS DO AMOR

46. A experiência mostra que o princípio do amor é triplo e que analogamente as coisas primeiras são triplas; assim sendo, as razões do amor são triplas.

Existe o amor sensível, ou seja, o amor dos sentidos, voltado para as coisas sensíveis; este amor consiste num desejo passional por aquilo que se quer. É assim que, na maior parte dos casos, amam os animais desprovidos de razão.

Existe outro amor que consiste num impulso da alma, um impulso da razão em direção ao que pensamos ser o bem, e para que recebamos os benefícios que nos traz o bem.

O terceiro amor é o amor do intelecto. Mas este provém do Espírito vivificante. Um encantamento sobrenatural empurra a beleza para dentro do coração sem que se queira, inflamando e ativando a contemplação do bem supremo, ou seja, de Deus. Pois não é por sua vontade, mas por natureza, que a alma considera que Deus é belo, e que ele é infinitamente mais belo do que tudo. Assim, seu eros não se inflama sob a ação da vontade. Pois ele é sempre suscitado pela energia natural do Espírito vivificante que age no coração, na mesma medida em que este está longe de ser animado pela vontade. Ao contrário, é ela suscita naturalmente a vontade. O consolo divino, como é natural e conforme foi dito, é assim a energia de Deus levada à alma pelo sopro e vinda do Espírito. Ela é a relação da alma com Deus que nos dá a vida. A consolação que ela traz é maravilhosa: ela é a união e a compaixão. Ela leva todo o intelecto a se unir com toda força, com todas as potências da alma, à beleza divina no desejo intelectual do belo.

Segue-se daí que a consolação não é propriamente nada do que foi dito: nem o apetite do sensível, nem o desejo do bem. Só é chamado consolação o amor da beleza intelectual percebida pela contemplação, este amor que provém da energia pela qual o impulso do Espírito Santo é suscitado pelo coração de maneira sensível. E o Espírito Santo que coloca em ação esta energia é chamado de Consolador. É esta energia que é verdadeiramente o amor; as duas outras formas de amor não passam de ídolos. O amor da alma que busca pelo raciocínio o bem para o bem é naturalmente um ídolo do amor divino e espiritual. Quanto ao amor sensível, ele é uma consequência do amor psíquico.

É praticamente impossível conhecer racionalmente as coisas do amor, a doçura e a consolação, e menos ainda o que é a pureza do coração, se este não for animado, de modo contínuo e manifesto, pelo poder vivificante do Espírito Santo. Pois o raciocínio não é capaz de modo algum de colocá-lo em movimento do interior da sede das potências da alma, vale dizer, o coração. Ele só consegue fazê-lo desde o exterior. O mesmo acontece com os sentidos, com mais forte razão. É por isso que por meio do raciocínio e dos sentidos só é possível amar de modo parcial, idólatra e tenebroso. Mas o poder e a energia do Espírito Santo vivificante, penetrando até o fundo e o interior toda a morada da alma, e suscitando e conduzindo, em seguida, com seu encantamento, as potências da alma na contemplação intelectual da extrema beleza, arrebata a alma ao mais alto ponto em direção à beleza divina, pelo amor verdadeiro e o encanto que estão acima do mundo. Portanto, somente aquele que traz a Deus em si e que está divinamente animado por este poder que mencionamos, é capaz de compreender com toda certeza, no secreto de sua alma, o que é o amor verdadeiro e o que é sua fruição, e como nenhum homem pode amar de verdade coisa alguma, nem amar ao próprio Deus, antes de tomar parte no Espírito vivificante, ainda que ele seja capaz de amar de modo geral. Pois ele não sabe o que é verdadeiramente o amor e o inefável prazer que este traz em Jesus Cristo nosso Senhor, a ele toda a glória pelos séculos dos séculos.


QUE O INTELECTO ALCANÇA A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS
DE TRÊS MANEIRAS

47. Assim como o movimento do corpo necessita de outro elemento dentro de sua própria ordem, a saber, os olhos, e de mais outro elemento que esteja acima de sua natureza – a luz –, também o movimento do intelecto tem necessidade de outros elementos: em sua própria ordem, os olhos, e acima de sua natureza, a luz. É por isso que nem todos os movimentos da alma são convenientes. A ela só convém aquele que é suscitado pela graça dos olhos e da luz.

Os olhos do intelecto são a porta do coração que se abre pela fé. A luz é o próprio Deus que age pelo Espírito no coração. E assim como a luz sensível não produz nada de justo sem os olhos, por lhe faltar aquilo que a vê, também a luz inteligível, Deus, não anima o intelecto de quem não abriu a porta do coração. Mas nem os olhos podem fazer nada sem a luz, nem a abertura do coração serve sem Deus. Ou antes, é impossível ao coração se abrir se Deus não agir nele, e sem que ele, o coração, veja.


COMO PARTICIPAR DA VISÃO

48. Quando o coração se une ao intelecto por meio da graça, este, sem erro, vê através da luz espiritual e tende para aquilo que deseja, que lhe é próprio e que é Deus. Ele está inteiramente fora dos sentidos, ou seja, fora de qualquer cor, qualidade ou imaginação: ele descansa das imaginações do sensível. Nosso intelecto é como um vaso divino que recebe tanto quanto lhe é possível o inacessível esplendor da beleza de Deus. Trata-se de um vaso maravilhoso, que se dilata sob a abundância do Espírito divino quando este o penetra. Quanto mais o Espírito aflui, maior se torna o vaso. Se o Espírito penetra pouco, o vaso diminui, e se torna mais frágil quanto menor o fluxo. Se o Espírito o penetra com força, o vaso o acolhe em si e guarda sem perda aquilo que recebeu. Mas se ele recebe pouco, ele se torna frágil e inapto, e já não consegue reter o que foi vertido. Ele se torna mais leve quanto mais recebe. Mas se torna mais pesado e mais ligado à terra quando permanece vazio daquilo que lhe convém. A ele é mais fácil conter mais do que menos: ele é o contrário dos vasos sensíveis, que são mais aptos a conter menos do que mais.

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus[143]”. Pela imensidão destas palavras dilata-se o intelecto que as escuta. Levando a ele a mais alta luz, Deus abre ao intelecto as mais vastas imensidões. Pela amplidão que sua voz emprestou à contemplação de Deus, tornou firme o intelecto permitindo-lhe alçar-se por si só e se tornar apto à elevação, contendo ao extremo a sabedoria divina. E quando Jesus, falando de Paulo, disse a Ananias: “Ele é para mim um vaso de eleição[144]”, devemos entender isto como no sentido do homem interior: arrebatado ao terceiro céu, como ele próprio escreveu, Paulo recebeu palavras inefáveis, que não é permitido ao homem dizer[145].


DA CONTEMPLAÇÃO

50[146].Em que lugar está nosso intelecto quando recebe o esplendor da manifestação de Deus? Ele possui uma propriedade maravilhosa de que iremos falar e que o opõe ao lugar corporal. Pois este recebe mais na medida em que mais cresce, enquanto que com o intelecto acontece o contrário. Quanto mais ele se recolhe e se fecha, mais consegue acolher. E quando ele chega a reduzir a zero todo movimento da razão e da inteligência, bem como todo e qualquer movimento, ele consegue ver o que é grande e maior do que tudo: ele vê a Deus. Ele o vê na mesma medida em que a graça do Santíssimo Espírito Santo lhe concede, e que a natureza material e criada lhe permite ver Aquele que está além das coisas visíveis. Ele não imagina no vazio, nem repassa sempre o mesmo pensamento, como em um sonho. Mas pelo poder inefável do Espírito divino na luz do coração, operando e experimentando a transformação que ultrapassa a natureza e que ele recebe pela graça, ele repousa em calma e seu coração vigia[147]. E antes ignorar quem se é do que ignorar esta energia divina e espiritual. Pois neste momento acontece um movimento contínuo do coração, um movimento espiritual feito de calor e transbordamento de vida que na maior parte das vezes vem acompanhado de doces lágrimas. Este movimento coloca em paz o coração não apenas em si mesmo, mas com todos os homens. Ele engendra a pureza, a bem-aventurança, as súplicas silenciosas, a abertura do coração, a alegria, o prazer inefável. O homem que descobriu este movimento por ter ouvido falar dele foge verdadeiramente, e não apenas em aparência, de todo prazer corporal, toda alegria mundana, toda riqueza, toda glória das coisas exteriores, que são abolidas.

Quem recebeu todas essas coisas carrega-as de fato, divina e espiritualmente, com o coração e o intelecto, e não apenas pelo simples raciocínio. E não é com esta luz sensível que ele se regozija, pois se deixando distrair pelos sentidos ele torna menos vívida a luz divina, a luz verdadeiramente doce do intelecto. É por isso que, desde que ele se dedica a esta, por pouco que seja, parece-lhe ser possível confortar um pouco o homem exterior: ele suporta tudo, ele aguenta tudo[148], ele se torna forte em tudo por sua atitude interior feliz no amor divino e na contemplação. Já nenhuma aflição, para não dizer nenhum pecado, lhe pesa.

É por este lugar, ou seja, pelo intelecto amoroso, que Davi tanto penou, que ele ensinou o desejo e confortou sua fadiga, quando ele disse não ter concedido o sono a seus olhos, nem descanso às suas pálpebras, nem repouso à sua face até que tivesse encontrado um lugar para o Senhor[149]. E o sábio Salomão prescreveu: “Se o espírito do rei se levantar contra seu coração, não deixe seu posto[150]”. Também o Salvador ordenou a seus discípulos: “Levantem-se, vamo-nos daqui[151]”. É deste lugar que ele falava, quando celebrou a Páscoa ritual numa sala no andar de cima[152]. É por isso que, quando chamamos de bem-aventurados aos pobres de espírito[153], penso que esta pobreza de espírito significa a retirada do intelecto para fora de todas as coisas, por assim dizer, seu desnudamento e seu recolhimento em si mesmo. Pois então o intelecto não apenas vê o Reino de Deus, mas também o experimenta: ele adquiriu a paz no regozijo imortal.


DO ATIVO E DO CONTEMPLATIVO

51. O contemplativo recolhe os frutos do prazer da melhor parte, que é a verdadeira contemplação, quando se dedica ao silêncio e contempla a Jesus. O monge ativo ignora este prazer que ainda não experimentou: ele se inquieta e se agita com muitas coisas[154] – ele canta, ele lê, ele esgota seu corpo e despreza, como preguiçosos que não fazem seus deveres, aqueles que voltaram suas faculdades intelectuais para as coisas inteligíveis que não aparecem aos sentidos, mas que produzem um prazer inefável aos que a elas se dedicam e uma alegria inexprimível aos que nelas repousam. Sequer ocorre ao seu espírito, ao que parece, que diante do verdadeiro Verbo de Deus que de nada necessita em seu grande amor pelo homem cessa todo regozijo pessoal. O regozijo passa a nascer então da contemplação divina, pois Deus é perfeito e não precisa do repouso que nos é próprio. É por isso que ele louva e acolhe a Maria sentada a seus pés[155], nutrindo-se da contemplação de suas palavras e despertando em si o homem interior para melhor compreendê-las. Mas ele não louva do mesmo modo a Marta, embora ela se inquiete e se agite por muitas coisas, como está escrito. Não apenas ele as exorta à melhor parte, como ele ensina, com elas a todos os homens a não acusarem de ociosidade aos que desejam contemplar e consagrar sua vida ao repouso, mas sim a louvá-los e imitá-los tanto quanto possível.


COMO CONTEMPLAM OS CONTEMPLATIVOS

52. Nas coisas presentes que já vieram ao mundo os contemplativos contemplam como num espelho e em enigmas[156] o estado das coisas futuras que estão para nascer. Mas assim como o espelho não mostra em si nada que tenha uma consistência real, embora aquilo que ele mostra exista – pois qualquer um que ame a verdade reconhecerá que o que se contempla num espelho é a clara imagem de uma realidade – também as coisas que existem e que virão não possuem outra consistência e outra substância do que a que mostram, mas revelam ao menos as imagens incontestáveis de realidades verdadeiras. Elas receberam a faculdade de contemplar e conduzem certamente à própria verdade.

Assim, quando você ouve Paulo dizer que caminhamos pela fé e não pela visão[157], não pense que ele fala da fé que provém de se ouvir dizer. Senão, como poderia ele dizer: “Eu agora conheço em parte, mas então eu conhecerei como sou conhecido[158]”, e: “Quando chegar o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá[159]”? Percebe que este conhecimento das coisas presentes leva a contemplar o que ele será no século futuro, e que a única coisa que separa o conhecimento do século futuro do conhecimento do século presente é como aquilo que separa o imperfeito da perfeição em sua forma única? Quem afirma caminhar pela fé e não pela visão diz também: “Assim eu corro, mas não ao azar, e luto, mas não como quem combate o ar[160]”, tão certo e verdadeiro era seu conhecimento das coisas do século futuro.

Ele não é inconsequente consigo mesmo quando diz essas coisas, longe disto, mas parece sê-lo devido ao duplo sentido da fé, como é duplo o sentido da visão. Pois existe uma fé que precisa de provas, porque nascida de uma simples asserção, e existe uma fé que não necessita nenhuma prova, pois algumas evidências convencem suficientemente aquele que crê: esta é aquela a que chamamos de fé anipostática.

Você compreenderá mais claramente o que quero dizer por meio de um exemplo. Suponha que eu lhe diga que vi um homem tecendo um pano bordado e capaz de inserir no tecido animais alados, formas de leões, de abutres, de cavalos, carros, combates e outras coisas semelhantes. Se você não viu com seus próprios olhos este tecido, é preciso que você tenha fé na simples asserção para aceitar sua existência. Mas se você viu não o tecelão mas o tecido, você saberá por isso mesmo, sem necessidade de alguém que lhe diga, que se trata de obra de um homem; pois não acontece na natureza que um tecido se faça sozinho, ou que possa ser tecido por algum outro ser semelhante a ele. A partir daí é outra fé, diferente da primeira, que preenche sua alma. É assim que o sentido da forma visível, como dissemos, é descoberto pela fé. Por exemplo, você viu um homem com cabelos louros, ou morenos, eventualmente longos; tudo nele é harmonioso, os olhos, a tez, o nariz, os lábios, todos os traços pelos quais se revela a forma de um rosto: esta forma que você viu é anipostática. Se lhe perguntarem como é este tecelão que você não viu, você poderá demonstrar de modo geral e com toda certeza, por haver visto o tecido, que aquele que o criou é um homem. Mas você dirá que ignora a forma anipostática deste homem, porque você não o viu com seus próprios olhos. Você não negará que se trata de um homem, não se recusará a reconhecer que quem teceu o pano bordado tenha uma forma humana: mas esta forma é vista de modo impessoal. Embora ela não tenha sido contemplada, ela é recebida sem hesitar de uma maneira geral, quase como se você o tivesse visto realmente.

Existe assim, repetimos, uma fé que trazemos em virtude de uma simples asserção e por ouvirmos falar. E existe uma fé anipostática que provém do fato de estarmos claramente persuadidos. Assim, existe uma forma que pertence a alguém, que é contemplada em sua realidade fundamental[161] e à qual chamamos de anipostática; e existe uma forma que não pertence a uma pessoa, mas que é contemplada de forma geral e não se expressa nas numerosas diferenças deste gênero.

Todos os contemplativos possuem em si a fé anipostática. Mas em geral eles veem uma forma que não é anipostática. Pois se Deus não é uma forma inteligível, como pode ele ser chamado de beleza? A beleza de Deus contemplada pelo intelecto fora de sua pessoa simboliza esta forma inteligível, eminente, profundamente admirável e gloriosa, que suscita o arrebatamento da alma, que cumula e ilumina o intelecto com luz intelectual, banhando-o num esplendor abundante e diversificado, e abrindo-o ao sentido de Deus. Depois de sua visão, Manué disse: “Estamos perdidos, mulher, porque vimos a Deus[162]”. Quem quer que tenha visto esta forma confessa que ela é uma aparição de Deus. É também nesta forma que Moisés viu a Deus, conforme está escrito: “Deus apareceu a Moisés em uma forma, não num enigma[163]”. Mas se Deus fosse inteiramente desprovido de forma divina, ele seria totalmente invisível. E, como a beleza se amolda à forma, tampouco a ela veríamos.

Se, ao falarmos de Deus, deixássemos de dizer que a forma cabe à divindade, o mesmo ocorreria com a beleza, e com mais forte razão com a face, que exprime a forma e a beleza. Ora, vimos que foi dito pelos Profetas que ele próprio não possuía nem forma, nem beleza, que lhe faltava a forma[164]. Mas o Profeta dizia isto do Verbo, a partir do momento em que este pendia do madeiro como um dos malfeitores[165], sem demonstrar em si mais nenhum sinal da natureza divina. Quanto à natureza humana, com efeito, mesmo que ela não tivesse mais nenhuma beleza devido à morte, é evidente que ela tinha no mínimo a forma de um morto. Davi celebra isto ao dizer que ele é belo com toda beleza[166], mas não em sua natureza humana. Pois ele acrescenta: “A graça se espalha em seus lábios[167]”, o que manifestamente se aplica à divindade, à qual a beleza está ligada. Davi menciona frequentemente a face de Deus. Ora ele diz: “Você retirou sua face, e eu caí[168]”, ora ele clama: “Não retire de mim sua face[169]”, ou: “Afaste sua face de meus pecados[170]”. Assim, se ele não recusa dizer que a face e a beleza são atributos de Deus, fora de toda imagem e de toda realidade fundamental, é justo dizer a mesma coisa da forma, que é face e beleza.

É a mesma coisa que pensava Paulo ao dizer: “Eu corro, mas não ao acaso; eu luto, mas não como quem combate o ar[171]”. Pois não podemos ver a Deus em si mesmo, nem tomar parte do que ele é em si mesmo. Mas podemos vê-lo de outra maneira. O Incompreensível se deixa compreender. É também por isso que Davi nos aconselha a buscar sempre a face do Senhor[172], a fim de que, penetrando na visão de sua divindade, possamos descobrir a graça imensa e inefável, o regozijo e o prazer divinos. Ele fala assim a Deus, a respeito de si mesmo: “Eu serei cumulado por ver a sua glória[173]” Pois a glória do esplendor da face divina se ergue, abundante e infinita, sobre aqueles que contemplam a Deus em espírito e em verdade. O regozijo e as delícias da glória são inesgotáveis, e por assim dizer insuportáveis em sua superabundância para aqueles que o experimentam. Mas para os que não o viram nem provaram elas são indescritíveis e inconcebíveis. De fato, se nenhuma palavra pode descrever a doçura do mel a quem nunca o experimentou, como se poderia mostrar as coisas da luz que ultrapassa o intelecto aos que nunca a viram, que jamais receberam o regozijo e o prazer divino que estas coisas trazem?

Não diremos mais nada. São Paulo, que tinha a fé anipostática em Deus e a forma de Deus eminente, mais do que bela mas não hipostática, dizia caminhar segundo a fé, e naturalmente pela fé anipostática, não pela forma contemplada em sua realidade fundamental, pois a fé não suscita sozinha a deificação incriada. De fato, diz são Máximo: “Eu chamo de deificação incriada à iluminação da divindade em sua forma anipostática[174]”. Esta iluminação não tem origem, mas se manifesta de maneira inconcebível naqueles que são dignos dela. E no entanto é através da forma que podemos ver a beleza, esta beleza da qual o grande Basílio disse: “Que existe de mais digno de amor do que a beleza de Deus?[175]”. E também: “A verdadeira beleza, a mais digna de amor, que somente o homem de intelecto puro pode contemplar, envolve a divina e bem-aventurada natureza[176]”. É neste sentido que Paulo pode dizer de si mesmo que era ignorante na arte de falar, mas não no conhecimento[177]. Pois é grande quem chegou a este conhecimento por meio do qual conhece em parte, em sua forma inteligível, a Deus que ultrapassa o entendimento.

É este conhecimento parcial que teve também Moisés vendo a Deus. Ao considerar a forma divina e a beleza que não podemos ver na realidade fundamental, ele disse: “Se tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que me faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça aos teus olhos[178]”. Uma vez que já lhe haviam sido reveladas a manifestação divina e a glória da beleza, mas não na realidade fundamental de Deus, ele pedia o que é o mais perfeito. Mas Deus não lhe concedeu aquilo que sequer o olhar dos anjos – como de toda alma dotada de inteligência – pode ver, e que ultrapassa os limites de todo conhecimento. Pois Moisés era vidente: ele vira a Deus nas trevas, não na hipóstase, mas na forma e na beleza inteligíveis fora da realidade fundamental. Assim Deus se deixou ver. É o que disseram Moisés e Elias, e de modo geral os diversos profetas que viram a Deus.

Nós caminhamos pela fé anipostática nascida da contemplação de Deus, confirmada pela glória irradiante da beleza de sua face, atestada pela visão de sua luz que ultrapassa todo esplendor, e não pela fé que provém da simples afirmação daquilo que ouvimos dizer. Caminhamos pela fé anipostática, não pela visão[179] da realidade fundamental. Não é no século futuro que teremos necessidade da fé. É aqui que está a fé anipostática. Então veremos mais claramente a inteira beleza da glória divina. Agora a vemos primeiro como sombra. Como dizia Gregório o Teólogo: “Quando uma visão chega a uma aparência de verdade, ela está fora de si mesma”. É o que está simbolizado pelo que vemos na sombra. Pois então a coisa será face a face[180]. O parcial desaparecerá e o perfeito será revelado. Mas agora, como disse santo Agostinho: “A visão parcial de Deus é o que arrebata toda alma dotada de razão no ardente desejo de sua glória”. Com efeito, é nisto que a alma se torna simples e em sua simplicidade vê uma única coisa: o segredo de Deus que ultrapassa tudo. Nesta forma, nesta beleza, nesta face, toda inteligência se cobre de alegria, de beleza e de luz. Ela é alegre, bela e luminosa no Espírito, e está para além do mundo. É por meio delas que ela estende, se eleva, transporta até o arrebatamento sua faculdade contemplativa. É por meio delas que a alma é misteriosamente iluminada, que ela é cumulada de regozijo e prazer divinos. Numa palavra, é por meio delas que são glorificados e deificados aqueles que amam contemplar e ouvir a divina Origem, e que se tornam seus amigos, seus discípulos, os iniciados de Deus, mesmo que ainda estejam ligados à carne. É por meio delas enfim que eles veem e refletem como num espelho, pelo sentido do intelecto, a fruição dos bens futuros e, em parte, a condição do século por vir, que o olho não viu, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem realizou[181].


SOBRE: “JERUSALÉM CONSTRUÍDA COMO UMA CIDADE CUJOS HABITANTES VIVEM JUNTOS. PARA LÁ SOBEM AS TRIBOS, AS TRIBOS DO SENHOR EM TESTEMUNHO DE ISRAEL[182]”.

53. Jerusalém se traduz como “lugar de paz”. Ela é o símbolo do lugar de Deus, ou seja, da alma que carrega a paz em Cristo. No entanto, não é a qualquer alma que é dado possuir a paz em Cristo e inscrever em si mesma o nome da paz, mas à alma construída como uma cidade, a alma que possui a pedra angular[183], a pedra venerável que Deus colocou a Sião como promessa. Sião é o lugar de observação, lugar alto de Jerusalém, o símbolo do intelecto contemplativo da alma de paz. Mesmo que procuremos, não vamos encontrar em nenhuma outra parte o intelecto que se eleva, que observa das alturas e contempla a verdade. Ele só pode ser encontrado dentro de um coração que teve a experiência da paz em Cristo e que foi transformado para atingir um estado de vida que dissemina a paz.

A alma que carrega a paz divina possui assim a pedra venerável, a pedra angular e as pedras preciosas envoltas nas Letras sagradas com as quais são lapidadas as feras que tentam atingir a montanha de Deus[184]. Ela possui também o betume, ou seja, a humildade suscitada pelo Espírito Santo, que queima sob o fogo de Deus[185] o coração endurecido como a pedra e aplaina o ser até fazer dele um espírito quebrantado[186] e humilde. Ela possui as águas das chuvas que o Salvador concede para que com elas corram rios do nosso coração[187]. Ela também porta a madeira imputrescível – os pensamentos da ação verdadeira – que permitem a união. Ela traz os pregos e a dura verruma do temor diante dos mandamentos de Deus. Ela tem o Verbo divino como arquiteto, e também os que vêm logo abaixo, vale dizer, aqueles que, com sua ciência, edificam as potências da alma. Ela possui os móveis, que são simplesmente obras de marchetaria, o jejum, a vigília, a salmodia, a leitura e as demais coisas, em uma palavra, aquilo que a razão orgânica nos transmitiu tendo em vista o modo da virtude. Ela possui o cordão vermelho[188], as leis sagradas de Deus que estão nas Escrituras. Ela possui a luz mais que irradiante, o sol do intelecto, que se reflete na vida da alma.

Em suma, a alma que possui divina e espiritualmente todas as coisas que recebeu de maneira sensível para a construção da cidadela, esta alma é a Jerusalém inteligível, e ela é construída como uma cidade para ser a moradia do Deus do universo, da Trindade vivificante que não tem começo. Cristo disse: “Eu e o Pai viremos – espiritualmente – e nele faremos nossa morada[189]”. É como se ele dissesse: “Faremos nele uma cidade, uma cidade verdadeiramente maravilhosa que se estenda até o infinito”. É por isto que se diz: “Jerusalém que se constrói” e não “Jerusalém que foi construída”. Com efeito, uma vez que Aquele que nela habita não tem limites, é natural que também ela se estenda até o infinito. É por isso que não se diz “a cidade que é construída”, mas “ela é construída como uma cidade”. Pois ela se constrói por si mesma. A convergência dos numerosos e variados trabalhos tende a um cumprimento comum numa mesma obra construída em altura, comprimento e largura. Deste modo a cidade pode ser chamada com razão de “Moradia do Reino que não tem começo”. Mas uma vez que o infinito habita nele, não se pode pensar que o edifício possa ter um fim, coisa que não acontece com as cidades que são construídas. É por este motivo que nas Letras sagradas ela é chamada não de “cidade que foi construída”, mas daquilo que é “construído como uma cidade”. E este é o sinal evidente de que ela é Jerusalém e que ela é construída como uma cidade: seus habitantes, ou seja, suas potências têm uma vida comum, elas não estão divididas, elas não erram, não giram no vazio. Mas elas possuem uma mesma e única vida e trazem sem perturbação a paz que está em Cristo.

Outro símbolo representa que este possa concluir com sucesso o edifício que permite aos habitantes da cidade ter uma vida comum. De fato, foi dito: “para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor, em testemunho de Israel[190]”. Aqueles que mais acima foram chamados de habitantes da alma são agora chamados de tribos. Pois as potências da alma que lhe são estranhas não lhe pertencem. As potências que antes eram simplesmente as tribos da alma se tornam as tribos do Senhor. Elas se elevaram na alma de paz sobre os degraus divinos acima do mundo. Todas constituem em Israel – o intelecto que vê a Deus[191] – um testemunho e uma confirmação, e todas colaboram para a obra única de Deus: o conhecimento de Deus. E todas essas tribos inteligíveis se esforçam em conjunto para construir a cidade santa e pacífica de Deus que domina o universo. Pois é verdadeiramente então que as potências da alma galgam os degraus e permitem ao intelecto que vê a Deus tê-lo em si e compreendê-lo. Quando as tribos ou as potências da alma dispersa e submetida à alienação e à divisão não levam uma vida comum, é impossível que se ergam e edifiquem a alma. Pois não existe aí nem um lugar de paz, nem Jerusalém que se construa, para que se possa ver o signo do intelecto. Mas quando as potências se reúnem, é impossível que elas não subam ao alto para o Senhor galgando os degraus intelectuais que conduzem às grandes coisas, defendendo e salvando o intelecto que contempla a Deus. Assim, quando, num estado pacífico e calmo, a alma se constrói no Espírito como uma cidade cujos habitantes – suas próprias potências – vivem em comunidade, as potências intelectuais se elevam nos degraus do Senhor. Elas permanecem na unidade e na solidão, trazendo sua aliança ao intelecto que contempla a Deus. Então, cante: “Jerusalém, construída como uma cidade cujos habitantes vivem juntos. Pois para lá subiram as tribos, as tribos do Senhor, em testemunho de Israel”, em Jesus Cristo nosso Senhor.

54. Sem pretender ir demasiado longe, podemos acrescentar ainda ao que foi dito: procure saber se a luz divina, a luz que provém da paz, começou a cobrir com sua sombra a sua alma. Descubra se sua alma se tornou como Jerusalém, construída como uma cidade. Veja se seus habitantes vivem juntos, se todos os seus pensamentos e suas potências estão unificados e reunidos em seu desejo de construir uma cidade, não separadamente, mas em conjunto; e se a esta Jerusalém, construída como uma cidade, sobem as tribos do Senhor que sejam as potências genéricas da alma, as potências divinas que se elevam juntas em espírito. Se você perceber estas coisas acontecendo em você, não cesse de construir assim. Mas lembre-se da torre de Babel[192], de sua construção e da divisão das línguas, e saiba que nem toda construção é boa, mesmo que pareça assim vista do exterior. Os que têm olhos veem dois modos de construir e de erguer em geral. Um, que é fundamentado sobre o bem e permite que Deus venha a habitar em nós; esta cidade pode ser reconhecida pelo fato de que seus habitantes vivem juntos e que as tribos que sobem para ela são as tribos do Senhor, anunciando as grandes coisas que cumulam a alma de maravilhas, de paz, de amor, de santificação, e que a edificam. O outro está fundado no mal e leva à ruína da alma; ele pode ser reconhecido infalivelmente pela divisão das línguas inteligíveis, pela malfadada confusão, pelas paixões que acabam por habitar em nós como a lacraia na torre de Babel. Compreenda, portanto, o sentido de uma e outras destas construções, e não peque ao escolher a melhor das duas.

Mas se de tempos em tempos a paz, a união dos pensamentos, a luz intelectual não cumulam as profundezas de seu coração, se a contemplação de Deus não faz subir ao seu coração um prazer inefável; se a energia anipostática do Espírito e seu fogo que reanima não escoam continuamente do lugar mais inferior do seu coração, a ponto de parecer esgotá-lo quando o coração traz o regozijo, a alegria intelectual, a visão profunda e mística nos membros superiores do corpo; se sua alma não experimenta em espírito os mistérios inefáveis; se uma alegria indizível e um arrebatamento inconcebível não agem de modo conjunto e uniforme sobre você; se você não recebe em seu interior a santificação de Cristo quando ela se levanta; saiba que sua alma não é Jerusalém, que ela não se constrói como uma cidade, que seus habitantes – os pensamentos – não estão unidos num único ser; que as tribos, as potências universais, não se tornaram tribos de Jesus e não se elevaram até o alto na alma para levar até aí o extraordinário, para iniciar o intelecto e pregar-lhe o que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem[193] que não recebeu o Espírito de Deus. Cuide para não construir em si uma torre de Babel do intelecto, esta torre cujo fim é a queda, a divisão e a confusão das línguas inteligíveis, e a perdição final, como foi dito.

Eu queria ainda lembrar por que razão alguns tem sua alma construída como a cidade de Jerusalém e quais são a causa, a construção e a ruína da torre de Babel. Eu queria ainda dizer por que os habitantes da primeira vivem juntos, e por que a torre de Babel conheceu de tantas maneiras a divisão das línguas. Mas eu me deterei aqui, velando pela brevidade o bom entendimento daqueles que me escutam.


SOBRE “ELES ERAM NOBRES ENTRE OS FILHOS DO ORIENTE[194]”.

55. Nobres dentre os filhos do Oriente são aqueles que, pela contemplação e a visão de Deus, o Oriente – a luz e o esplendor do Sol espiritual e da justiça[195] – tornou livres e melhores em seus pensamentos; os que não nasceram nem do sangue nem da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus[196]; aqueles cujo coração e cujo intelecto amam permanecer nos templos divinos que estão nos céus; os que receberam os mistérios divinos, os mistérios inefáveis do Reino; os que se tornaram o Corpo de Cristo Filho de Deus, e seus membros, cada um de sua parte[197]; os que formam com ele um mesmo corpo, uma mesma herança, uma mesma comunhão[198]; os que dele herdaram e que tem por Pai ao Deus altíssimo, acima dos céus; os que, acima de toda razão, tem parte na natureza divina[199]; os que receberam o selo do Espírito Santo vivificante[200], com o qual comungam, no qual vivem, pelo qual veem. Eles estão cobertos de vestes brancas[201], que receberam do Espírito, e túnicas bordadas de ouro, cerzidas de pedras preciosas e de pérolas, sua touca e sua coroa são feitas de rubis, de diamantes, de toda espécie de pedras escolhidas, e eles comem e bebem à mesa do Rei. Aí o alimento é inesgotável e o néctar abundante. Pois aí todas as coisas estão em espírito, e eles as recebem em espírito.

Nestas moradias reais acontecem inumeráveis coisas maravilhosas. O fogo que refresca e reanima, e os aguilhões do amor atravessam o coração. Uma água viva canta e espalha ondas de vida eterna. O ar é carregado de sopros perfumados, o Espírito dispensa a vida e a luz de esplendor único é aí três vezes luminosa, simples, mais alta do que o ser. Esses homens conheceram estas contemplações e estas delícias. A partir daí eles se separaram das coisas de baixo e se uniram às coisas do alto. Eles superaram o visível e se voltaram inteiramente para o inteligível. Eles ultrapassaram as coisas que passam e se deitaram com as que permanecem. Eles jazem em baixo e circulam em cima. Seus corpos os ligam e atraem para baixo, mas o Espírito os chama e desliga os laços consumidos pelo fogo. Então seus corpos se libertam ao mesmo tempo em que eles se elevam, rapidamente e em arrebatamento, aos céus. Eles se tornam simples pela própria simplicidade de sua tensão para Deus. Eles se separaram de tudo pela contemplação única de Deus, eles são transportados da glória do Espírito a glórias ainda maiores[202], passam de uma riqueza a outra mais abundante e desfrutam das delícias do inefável. Eles dizem a si mesmos: “Maravilhosa é a riqueza da glória e das delícias”. Depois eles são arrebatados por verem coisas ainda maiores do que as primeiras. E como que despojados de tudo, tornam-se cada vez mais empobrecidos. Eles mergulham no êxtase, ou melhor, eles se abrem ao êxtase e cumulam de alegria seu coração. Eles seguem o Rei das Potências, partilham de sua vida, penetram no coração dos anjos, maravilhados pela efusão de tão grande graça, profundamente gozosos desta herança indizível, deste inefável amor pelo homem. Tais são, tanto quanto eu saiba, os nobres dentre os filhos do Oriente[203], em Jesus Cristo nosso Senhor, a ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém[204].

Quando o intelecto viu em Cristo a verdade divina em toda sua simplicidade, é tempo de se calar[205]. É tempo de beber o néctar de Deus, a bem-aventurança e o regozijo espiritual. É o tempo das visões místicas, de usufruir das coisas sobrenaturais. Pois o intelecto vê então manifestamente na mão do Senhor a copa cheia de uma mistura de puro vinho[206]. Ele vê na luz este vinho que se derrama de uma borda à outra, e sabe com toda evidência que é inesgotável. Pois o fundo da copa que a bondade divina nos concede dividir e por assim dizer a profundidade da riqueza e o cumprimento da graça ainda não são visivelmente consumidos na vida presente, por maiores que sejam a elevação a Deus e a deificação. O cumprimento e a perfeição ainda estão guardados para o igual usufruto de todos no século futuro. Segundo o discípulo bem-amado: “Aquilo que seremos ainda não foi revelado[207]”. E conforme Paulo, agora nós conhecemos em parte[208], mas então virá a perfeição, quando todos os pecadores beberão com os justos da copa mística de Deus e descobrirão o fim, os espelhos abolidos e a verdade claramente revelada, por terem alcançado a perfeição do mistério que por ora se mantém secretamente velado. Os justos conhecerão uma felicidade ainda mais perfeita: eles receberão a recompensa de sua esperança em Deus e trarão os frutos das obras virtuosas, conforme está escrito: “Estarão embriagados pela beleza de sua casa, e você os embebedará com as torrentes de suas delícias[209]”. É deles que o Senhor disse que abrirá o Reino do Pai e os servirá[210]. E é com eles que ele prometeu que beberá a nova copa e se regozijará em seu Reino[211].

Mas os pecadores beberão a bile da amargura e do luto eterno. E beberão até que saibam de que se privaram para sua infelicidade ao recusarem o néctar dulcíssimo que o divino Davi pediu e ordenou que se beba neste século presente, quando disse: “Provem e vejam que o Senhor é bom[212]”. Ora, os pecadores não alcançam este néctar. Mas os que o alcançam, os que se deixam persuadir pelo mandamento, veem a copa e observam o vinho transbordar de uma borda à outra[213]. Na bondade da graça, eles o bebem e experimentam da borda da qual ele entorna, cumulam de doçura os sentidos da alma, e cantam naturalmente a Deus odes de ação de graças. Eles dizem: “Sua copa que nos embriaga nos enche de delícias[214]. E a partir daí sua inconcebível piedade, como o vinho, como o que permanece no fundo do cálice, nos seguirá por todos os dias de nossa verdadeira vida[215], a vida imutável e imortal do século futuro”. Trazendo sempre em nós estes divinos bens futuros, estaremos de fato neles, certamente provaremos da libação de parte e de outra da copa nova e vivificante que está na mão do Senhor. Pois os que bebem desta copa todos os dias compreendem verdadeiramente o que está oculto naquilo que veem. Eles descobrem o fundamental no que está disperso, e se tornam parcialmente, como em garantia, o século futuro. É claro que os justos terão no além uma parte mais abundante e mais total daquilo que eles já têm em parte, mesmo estando ainda ligados ao peso da carne e às trevas inferiores.

Também é claro que Davi não disse que todos beberão, sejam justos ou pecadores. Ao contrário, ele considerava duvidoso que os pecadores bebam. E ele deixou subentendido que certamente os justos beberão. Com efeito, podemos nos perguntar se os pecadores beberão, mas não se os justos beberão. Pois para os justos isto é evidente, tão saciados estão eles desde já pela libação, a ponto de se regozijarem e dizer: “Você me cumulou de alegria, Senhor, pelo que me fez, e eu me regozijo pelas obras de suas mãos[216]”. Como “obras de suas mãos”, ele quer dizer que Deus segura e oferece a copa cheia de uma mistura de vinho puro; que em seu grande amor pelo homem ele a inclina de uma borda à outra[217]; e que ele guarda para o século futuro o vinho que ela contém. Mas desde já eles cantam a Deus em sua embriaguez: “Seu cálice que nos embriaga faz delícias em nós[218], em Jesus Cristo”.

A você que me criou eu cantarei e louvarei, Altíssimo que por sua graça distribui sobre mim suas compaixões. Rei mais do que bom que ama as almas, seu dedo sagrado toca no mais profundo de meu coração, como você sabe, você, o único que faz maravilhas e prodígios[219]. Você conduz aquele a quem você levantou a ver naturalmente as letras que sua santa mão escreveu no livro da vida por intermédio de seu Espírito divino, e a contemplar com seu próprio sentido do intelecto a beleza que ultrapassa todo arrebatamento, a beleza de sua mão, e tudo o que enche de regozijo e de alegria mística em Jesus Cristo nosso Senhor.

Existe uma paz, mais aparente do que real, que quando o corpo vive o prazer, provoca na alma muita perturbação, chegando a imitar a serenidade por algum tempo. E existe uma paz dos sentidos que buscam a fuga de tudo e a hesíquia. Mas esta, embora seja incomparavelmente melhor do que a primeira, dura pouco. Pois uma vez que a alma é perturbada pelo pensamento, o corpo e o homem inteiro sofrem e são naturalmente perturbados. Mas existe uma terceira paz, uma paz mais elevada dos sentidos e da alma. Uma conduta e um esforço sutis a suscitam na hesíquia das potências da alma e de todo o homem interior, quando se alcança a prece pura, as mais doces lágrimas e o acolhimento prazeroso das palavras de Deus. Mas mesmo esta ainda não é a perfeição da paz.

Com efeito, é impossível que o flautista ou o citarista tocarem continuamente as árias mais maravilhosas, pois eles suportam nas mãos a privação e a pena, e uma vez que lhes advém a fraqueza e a dor eles rapidamente cessam de tocar; do mesmo modo, quando a alma dispõe as harmonias fundamentais de suas próprias potências, o imutável não permanece todo o tempo com ela, mas relaxa pouco a pouco; por si ou por força o ardor diminui, ou a agitação e a acídia própria das criaturas se aliam ao peso e à rudeza do corpo contra a perseverança.

Mas quando a alma recebeu pela graça a vinda do Incriado que criou o universo, quando ela comungou com o Espírito imutável e vivificante, ela se torna maravilhada e cheia de uma outra vida, ela é trazida naturalmente à vida pelo sopor vivificante do Espírito, ela desfruta daí por diante de uma vida sobrenatural e verdadeiramente imutável. E, assim como ela vive pelo poder vivificante, ela vê que o criou a vida é a luz, e se regozija em contemplar as obras sobrenaturais d’Aquele que está acima da natureza, ela se enche de uma paz que ultrapassa toda inteligência[220], pela incompreensível ação vivificante d’Aquele que criou a vida além do entendimento, pela iluminação, pela visão, pela alegria daquilo que ela enxerga dentro do mistério. Ela já não se altera, não relaxa, não se preocupa com as armadilhas e as mentiras do inimigo. Ao contrário, sempre em movimento para Deus, elas contemplam as coisas que cercam a Deus, não por sua própria vontade, mas pelo poder e a impulsão, direi mais: pela vontade do infatigável Espírito divino que, por sua energia e sua hipóstase, age no coração, não como imaginamos, mas como só o próprio Espírito sabe, ele que sonda e conhece as profundezas de Deus e que inicia os sentidos da alma que o recebem. Portanto, quanto maior for o tempo que guardarmos atentamente iluminada sobre nós mesmos a graça do Espírito e quanto mais vigiarmos para que ela não se extinga, vivendo sempre na hesíquia, tanto mais seremos cumulados com a santidade e a paz inefável e sobrenatural, em Deus, na Trindade, e traremos então verdadeiramente sem esforço, com humildade, amor e oração, a paz do corpo, do espírito e da alma, conforme dissemos. Pois a paz que vem com esforço ainda não é a paz perfeita, mas esta a suscita. A paz perfeita, segundo o que nos foi transmitido, vem sem o menor esforço corporal na calma e na perfeita celebração do sábado, e no repouso que existe em Cristo.

Você que entendeu que não era nada, que aprendeu com facilidade a conhecer Aquele que o criou e formou, que discerniu em sua imobilidade o movimento que foi a causa de sua passagem ao ser, você que, em seu desejo de amor, com toda sua disposição e de todo o seu ser, se ofereceu ao dulcíssimo Jesus, seu Criador que o formou, você que não age senão para contemplar sua face, você que, graças aos numerosos carismas de Deus, vive este movimento pela ação e a contemplação, você           que é criatura se tornará Deus, espiritual, em tudo semelhante ao Criador, e se regozijará eternamente com seu Senhor e Pai na calma do desejo de Deus, no repouso que está em Deus, por Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos, pois você estará além das coisas visíveis. Amém.

56. Quando eu vi, ou seja, quando eu aprendi a conhecer pela visão do intelecto de onde eu vim para chegar aqui de modo tão maravilhoso, e como eu me dirijo ao meu fim, em terceiro lugar eu imagino Aquele que me conduz, me carrega, me realiza, eu penso no Pai inefável, nem por um momento ignoro seu amor, e vejo assim de toda maneira o mistério do fim que me envolve. Eu me regozijo com estas três coisas, mais do que posso expressar. Mas a tamanho regozijo às vezes se segue uma tristeza não menor, quando eu compreendo que levo uma vida incontestavelmente indigna de minha vocação. Pois quando eu vejo, pela criação, como você me mostra sua glória inacessível, quando eu considero o modo como, pela encarnação de seu Filho único, você me revelou seu inefável amor por mim, quando eu conheço a inefável união sobrenatural que você me oferece permitindo-me tomar parte indizivelmente da contínua efusão do Espírito, eu admiro profundamente sua glória, me maravilho com a nova compaixão que você tem por mim, pois você me permitiu escapar a todas as coisas visíveis, elevou-me a todas as coisas inteligíveis e me fez repousar e me regozijar inefavelmente em você, santa Trindade mais alta que o ser.

Pretendendo Deus em sua grande sabedoria fazer do homem um novo anjo sobre a terra, em ente celeste que a ele se assemelhasse, nele colocou uma alma dotada de intelecto e capaz de compreender o conhecimento e a ciência divina. É por isso que ele disse: “Eu afirmo: vocês são deuses e filhos do Altíssimo[221] pela graça” Vale dizer: vocês são como anjos segundos, que contemplam a Deus em silêncio e se elevam amorosamente para ele na luz espiritual. Mas é impossível que o homem nascido sobre a terra possa se elevar até o estado angélico, pois claramente ele não é puro espírito como os anjos. É pela fé que o crente, por meio de Deus Todo-Poderoso que doa infinitamente, se torna espírito, como que transformado em criatura divina e mística. O Salvador nos revelou isto ao dizer que o que nasce do Espírito é espírito[222]. E o fiel João testemunha que nascem em espírito aqueles cuja alma se presta a isto, quando diz: “Ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que creem em seu nome, que nasceram não do sangue do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus[223]”, para se tornarem o homem interior, ou seja, o homem à imagem do Deus que o criou.

É este nascimento, não segundo a natureza, mas segundo a graça, que estão ligados aqueles que nascem do Espírito, segundo a doutrina segura que recebemos. É por isso que o intelecto que participa da graça se torna naturalmente o trono do Espírito Santo. Da mesma forma, com efeito, que o ferro aquecido ao fogo se torna ele próprio fogo – não que ele se transforme naturalmente em fogo, mas ele participa do fogo por transmissão até que ele se assimile ao fogo, que ele se torne o trono do fogo e que o fogo repouse nele – também o intelecto, ao nascer do Espírito, ao se unir a ele ou ao se comunicar com ele, se torna Espírito e trono do Espírito: claramente, Deus o envolve. Ele se assenta e repousa sobre ele como num trono. Isto representa para a alma o maravilhoso início do progresso, embora ela não penetre na ordem dos anjos – da qual se diz ser a mais baixa das potências celestes – mas ela penetra na ordem do Deus Altíssimo. A seguir ela penetra na ordem dos tronos, depois na dos querubins, depois na dos serafins, até receber na totalidade a propriedade da ordem angélica, portanto da ordem mais baixa, anunciando aos que estão próximos em Espírito os gloriosos mistérios de Deus. Pois se, de acordo com os sábios divinos, a participação deve preceder a transmissão, é claro que primeiramente é preciso participar do Espírito, na medida em que o intelecto é seu trono, e assim transmitir as coisas espirituais – como acontece com os querubins – no Espírito que revela a efusão e a amplitude da sabedoria espiritual, para então desejar passar a sabedoria a outros, e assim realizar-se com os serafins pelo conhecimento da sabedoria, e, graças ao cálice e à bebida que são dados por este conhecimento, alcançar os ardentes amores de Deus que nos despertam. É isto que nos mostra a ordem dos serafins. Poderemos então transmitir a outros seres o calor dos amores divinos, reanimando seu próprio fogo e atingindo a ordem que permite ensinar aos que são próximos: a ordem dos anjos. É por isso que, antes de se tornar Deus no Espírito e tronos de Deus, querubins e serafins, aqueles que passam pelas ordens espirituais inferiores não estão certos de se tornarem anjos, nem de servirem a Deus e ensinar em espírito e verdade as coisas, como exige o verdadeiro progresso da alma, que recebe seu início da participação do Deus Altíssimo e, conforme foi dito, se dirige a nosso Senhor Jesus Cristo.

Eu o confessarei, Senhor, inefável Trindade, não segundo o quanto lhe cabe, Mestre, mas segundo a minha medida, tanto quanto me é possível. Com o que lhe pertence, Deus indizível; é, com efeito, Senhor, e se estende infinitamente acima de toda palavra e de todo intelecto que pretenda compreende-lo ou falar-lhe. Você me criou do nada pela grandeza de sua vontade, você me formou com suas mãos como um outro nada, e me fez à sua imagem e semelhança[224]. Mas eu sou vão diante de tais coisas preciosas e glorificadas. Falta-me miseravelmente o reconhecimento para com seus mandamentos cheios de santidade, de alegria verdadeira e de criação divina. Pois é maravilhoso que antes mesmo de ter me concedido ser você tenha, por mim, pela minha vida, para que eu possa vê-lo, conhecê-lo e experimentar o extremo prazer espiritual das coisas que o cercam, criado um mundo de tamanha grandeza de beleza e de glória, de tamanho poder, tamanha sabedoria criadora, um mundo coberto de coisas tão abundantes e diversas sem as quais eu não poderia viver sequer uma hora, e com as quais eu vivo feliz em meu corpo, das quais usufruo e com as quais me alimento. É por intermédio delas, quando eu as contemplo em minha alma, que eu compreendo e admiro o oceano de sua providência e de seu amor feito de sabedoria e poder.

Mas, Deus inefável, até agora eu levei uma vida de desordem, contra seus mandamentos verdadeiramente doces e amados pelos sábios. Oh, minha alma, quão grandes são minha insensibilidade e meu endurecimento! Você não compreende, homem impuro, que para viver apenas em seu corpo e para viver essas coisas perecíveis, o pobre servidor depende do rico e deve se submeter sem tardança aos mandamentos de seu Senhor, por pesados que sejam às vezes. Pois a origem dessas coisas não está em quem age, mas manifestamente n’Aquele que ordena. Homem sem inteligência, como você recusa vilmente os mandamentos de tal Criador, de tamanho benfeitor, tamanho provedor, quando eles foram feitos para você e para sua glória imortal? Como, ao contrário, você se volta contra eles? Quanta insolência, e que mal eterno você atrai para si!

Quando eu me aproximei do Senhor, Deus mais que bom, na direção da inefável felicidade, oh Senhor que ama as almas, eu disse à sua criatura, à minha pobre alma verdadeiramente pecadora: “Minha alma, você possui muitas coisas espirituais, coma, beba, regozije-se[225]”. E quando o pecador se levantou contra mim, eu fui maltratado e humilhado[226]. Mas oh!, riqueza da sua bondade, Deus benfazejo! Quando perigosamente eu me desviei do caminho reto e belo, você me concedeu seus dons sem medida, e logo me fez retornar. Eu comi e bebi verdadeiramente e me regozijei naturalmente no Espírito por sua compaixão. Mas novamente fui banido, deixei-me perder pela mentira maléfica de um demônio ou por minha desatenção, não sei, ou sem dúvida por ambas as coisas. Talvez ainda tenha sido seu julgamento mais profundo que me levou aos abandonos, às faltas e aos castigos. De novo e sempre eu afundo no lodo do abismo sem nada que me segure[227], e sofro, me inclino até que em mim penetre o espinho[228] ou o aguilhão do pecado que traz a morte, em suma, todas as coisas más que o inimigo tramou grosseiramente contra minha alma por causa de minha triste negligência e de minha lamentável loucura. Porém você jamais me abandonou totalmente. Meu Deus mais do que bom, você me chamou com sua voz espiritual no mais secreto de meu coração e disse à minha alma esvaziada: “Eu sou a sua salvação[229]. Não tenha medo. Volte a repousar. Não se perca”. Assim você me consolou, Jesus paciente, você se tornou para mim o sustentáculo da salvação. Você me recebeu com toda sua força, como a direita do Pai, como a direita do Senhor, e seu castigo me restabeleceu novamente[230], como tantas vezes, na enorme alegria dos segredos inefáveis.

Então venha, Verbo de Deus, como um selo certo em meu coração, pela inefável contemplação de sua beleza sobrenatural. Venha para meus braços, pela ação de seus santos mandamentos vivificantes. Venha, Jesus Cristo, Rei mais alto do que o céu. Venha para que em você eu viva eternamente. Aproxime-se invisivelmente de mim que a você retorno com toda minha alma. Felicidade além do mundo, alegria daqueles em quem você vive inefavelmente, envie seu brilho, Deus infinitamente sábio, para que minha alma dotada de inteligência retorne a si, para que ela se volte para você e se percam e se dispersem os que em vão me combatem[231], os que me perseguem por nada, os que me fazem mal impiedosamente. Guarde-me continuamente. Senhor, eu lhe peço, como a menina dos olhos[232], a fim de que eu o contemple eternamente, Mestre inefável, glorioso acima de tudo.

57. Que sou eu, terra e cinzas[233]? E quando eu passo como uma sombra[234], um sonho rápido, que vale meu tempo diante de você, Senhor incriado que não teve começo, a cujos olhos mil anos são com o dia de ontem que passou e como uma vigília noturna[235]? E o que é minha consciência diante de você, que com toda consciência criou os céus e a terra[236], que com sabedoria fundou num instante o universo em sua abundância, para que eu me mantenha íntegro diante de você que tanto ama as almas? Não, Mestre, não, eu lhe peço, eu lhe suplico, os pais não julgam o que fazem os recém-nascidos, nem lhes pedem nenhuma obra, mas, de um modo ou de outro, provêm simplesmente, com toda misericórdia e zelo o que lhes cabe, alimentam-nos e cuidam deles tanto quanto possível.

É por isso, Deus santo que é verdadeiramente nosso Pai eterno profundamente amoroso, o Criador que tirou do nada tudo o que somos, que eu lhe peço que não se irrite com minhas altas e injustiças; você que ama o homem, não exija de mim obras análogas à sua graça. Mas como convém às criancinhas, e até mais, seja indulgente diante daquilo que eu faço, e aumente em mim seu puro dom, em mim que peço seu socorro, pois me falta a sabedoria. Sim, você me criou, você me conformou e você me formou de novo[237] em vista a um objetivo infinitamente bom, Deus cantado acima de tudo, a fim de que, depois de me haver criado para o melhor e de me haver paramentado com as belezas da criação divina, como uma imagem fiel, você me glorifique nas coisas mais puras e mais altas, pois você veio não para me julgar, mas para salvar o mundo[238]. Amém.

58. Eu condeno a mim mesmo. Você vê, Senhor que conhece o que está dentro dos corações, Deus mais do que sábio. Eu não preciso de nenhum juiz. Quanto às coisas incertas, Deus mais do que bom, o julgamento se faz com justiça. Quem a ele se opõe não faz senão se condenar previamente. Na verdade ele vê e confessa não ser simplesmente pecador, mas ainda que peca a cada dia e a cada hora. Senhor que ama o homem, proteja-me do castigo. Fonte abundante de piedade e de graça, eu imploro sua piedade e peço sua graça. Você quis se tornar homem por mim. Em sua transbordante bondade, você nada nos faz seguindo nossas faltas. Em seu imenso amor por nós, você nada nos devolve segundo nossos pecados[239]. Antes você se deixa vencer por seu amor, e, tão distante quanto está o oriente do ocidente, você afasta de nós nossas iniquidades[240]. Eu lhe suplico então, Jesus Cristo, Senhor paciente, Mestre misericordioso, eu lhe imploro. Embora eu seja indigno, esqueça toda minha injustiça e todo meu pecado, coloque em meu coração o selo perfeito do seu Espírito Santo, conceda-me o dom verdadeiramente santo, em seu poder e sabedoria, a fim de que, pelo poder de sua graça, na sabedoria e na contemplação espiritual, eu faça aquilo que lhe agrada, tanto quanto estiver ao meu alcance, para que novamente o fluxo espiritual de sua pura sabedoria escorra de meu coração, no conhecimento da verdade e na luz que a acompanha, e para que eu me encontre a partir daí em comunhão com você e com o que lhe pertence, iluminado pelos séculos dos séculos e desde já por sua luz mais do que gloriosa, na incomparável compaixão de sua graça inefável. Amém.

59. Não podemos saber com toda clareza se uma mentira, ou aquilo que podemos chamar de “sugestão”, é fundamentalmente diabólica, a menos que tenhamos fugido dos demônios e escapado a seus ataques. E ninguém foge dos demônios nem deles se livra, como eu disse, se não tiver recebido na solidão de seu coração o impulso fundamental e contínuo da respiração divina. É isto que a fé ativa unida à humildade, ao amor a Deus e aos homens, engendra por meio da vida voltada à hesíquia e à vigília, e pela leitura consagrada à prática e à contemplação, enfim, à teologia acompanhada da oração. Quanto ao amor ativo, podemos dizê-lo com razão, ele é o cumprimento dos santos mandamentos de Deus, na medida do possível. Não apenas este amor torna a compreensão mais pura e mais clara, como ele propicia daí por diante um conhecimento exato e um discernimento mais seguro das mentiras dos demônios e de sua irrupção na alma. Porém a inveja dos demônios ultrapassa todos os limites, eles combatem cada vez mais, rivalizando no ardor da luta e comportando-se furiosamente, sem tomar fôlego e com a maior selvageria, usando de tudo o que pode prejudicar a alma devotada a Deus. E se Cristo, o verdadeiro Salvador de seu povo, não vier, em seu amor pelo homem, tomar a defesa dos fiéis, nenhum homem será salvo, quem quer que seja, mesmo que santo.

60. Com toda evidência eu o reconheço e confesso, Senhor: por minha desatenção, minha ingratidão, minha conduta absurda, eu, que era dotado de razão, desgraçadamente me coloquei abaixo das feras sem razão, pois estas mantêm sua natureza e vivem segundo ela, enquanto que eu sequer conheço, seja por um instante, a pura e verdadeira energia de minha natureza, por estar marcado pela sujeira das más paixões, por minha tendência às transgressões e à confusão que elas provocam. Assim é que eu perco a inteligência e deixo de saber em verdade, como deveria, qual é minha natureza. Em minha malícia eu ultrapassei a própria tribo dos demônios e carrego em minhas intenções todos os seus vícios. Pois se eu pudesse viver como eles vivem, desembaraçados de toda doença, morte ou necessidade, não há dúvida que eu transbordaria de vícios, miserável de mim, incapaz de reter meus impulsos doentios. Não somente eu não sou imortal, mas ainda permaneço por longo tempo enfermo e mesmo assim eu  transgrido, me exponho aos pecados e me regozijo com isto. O pior é que eu não tendo para um dado vício deixando os outros de lado, como faz cada demônio. Pois o demônio do amor ao Cada um trabalha uma paixão diferente, ou melhor, faz-se amigo e colaborador daqueles a quem convence que se dedique a esta ou àquela paixão. Somente eu amo e coloco em ação todas as paixões ao mesmo tempo e de todas as maneiras, com tanto ardor que, mesmo sem que os demônios se aproximem ou me assaltem do exterior eu me dirijo para elas, e nelas caio lamentavelmente. E mesmo as faltas que não cometo não é por ter delas fugido por minha vontade ou por tê-las rejeitado voluntariamente, mas, no fundo, apenas porque não tive possibilidade.

Assim é que eu tenho secretamente mais vícios do que estes seres imortais insensíveis às doenças e às carências da vida, e no entanto cada um deles não carrega mais do que uma única espécie de pecado. Mas eu, cujos dias não são apenas curtos mas, como já disse, ainda submetidos às doenças, à fraqueza, à malícia, eu que sou atraído por todos os pecados e que estou pronto a cometê-los o mais depressa possível, eu estou na realidade bem pior do que os próprios demônios. Mas Senhor, Senhor, nada está acima da compaixão com a qual você nos salva, pois sem nenhum ressentimento você a concede mesmo aos demônios arrependidos. Dê-me a força, a sabedoria e tudo o que devo fazer para que eu me arrependa como devo pelos pecados que cometi e para que sua santa Face me acalme, Mestre, suprema vida, vida benfazeja, regozijo contínuo dos justos para além do mundo, impensável amor absoluto, amor pelo homem e misericórdia inefável. Cumule com sua grande e maravilhosa compaixão minha alma que diz: “Tenha piedade, você que perdoa”, a fim de que fique claramente demonstrado aos que sabem que mesmo os demônios que retornaram e que, como tais, disseram: “Tenha piedade” à sua infinita bondade, não foram abandonados por você para longe de sua compaixão, nem deles você se afastou, fonte das graças. Pois se você tem piedade de mim que sou pior do que eles e pior do que as feras sem razão, não existe em verdade nenhum homem nem demônio culpado de pecado que, prosternando-se diante de você e dizendo: “Tenha piedade”, não tenha se encontrado imediatamente junto de você, na eminência de sua bondade infinita e além de toda esperança, da mais rica e mais maravilhosa compaixão. Tenha piedade de mim, Jesus, que é nosso Pai e fonte de toda compaixão.

61. Muitas coisas me vieram ao espírito, Senhor, sobre as quais refleti. Mas nenhuma que eu tenha realmente compreendido e sobre a qual possua uma certeza definitiva. Nada existe que, de um modo ou de outro, deixe de escapar ao meu conhecimento. Com toda evidência, eu sou incapaz de conhecer de forma simples e total, e isto é bem natural. Eu vejo o céu e, é claro, a terra. Mas o que eles são, sobre o quê estão fundamentados, de que modo todas essas coisas giram umas ao redor das outras, qual é sua natureza, tudo isso eu ignoro, mesmo sendo fácil apontar o ar, a água e o fogo a quem quiser ver. Mas quem poderá saber a natureza de cada um, e por que a água desce e o fogo sobe, e por que o ar se espalha por toda parte? Posso murmurar sem sequer abrir a boca; mas renuncio a falar do conhecimento dessas coisas. Sequer um cabelo, a coisa aparentemente mais comum, quase não toca nossos sentidos. Como poderia? Alguns vêm com o tempo, progressivamente. Mas que sei eu dos cabelos em sua própria natureza?

É por isso que eu lhe peço, Mestre, que me livre da presunção que me faz julgar e condenar o próximo e não importa quem. Segure-me com seu braço poderoso, pois eu não possuo nem a inteligência nem a força para adquirir essa sabedoria. Quem conhece a medida dos céus, o volume e o peso da terra, o curso do sol, tão rápido e infatigável, maravilhosamente pontual e regrado? Quem jamais compreenderá o poder que essas coisas carregam em tamanha sabedoria? Como é possível conhece-las, se não somos capazes de entender sequer o que é um mosquito? Eu não tenho nenhuma inteligência, perdi o poder da sabedoria, mas pela graça eu me confio a clamar pela deificação em você, pela união sobrenatural com Deus, que provém da ação divina que lhe é própria e da intelecção que está suspensa em você.

62. Somente aqueles que, pela visão que vem com a graça, conhecem o sentido espiritual, podem assistir aos que não adquiriram este sentido e se deixam levar, no plano psíquico, por sinais visíveis, ou ao menos pelos mais manifestos. Segundo o divino Paulo este homem, com efeito, discerne tudo, enquanto que ele próprio não é julgado por nenhum outro[241], enquanto que os outros não apenas não veem quem é desprovido do Espírito de Deus, como ainda em sua loucura chegam a chamar de bem-aventurados aqueles na verdade lamentam não ter recebido da graça o sentido espiritual e de serem levados pelo espírito do mundo, estes a quem a palavra divina chama de psíquicos[242]. Pois os espirituais que, por terem tocado o divino, conhecem tal sentido, não julgam absolutamente nada, nem com precipitação, nem conforme as aparências, como o faz a maioria. Eles julgam de acordo com a verdade imutável e eterna que está neles, pois eles são iniciados em tudo pelo Espírito vivificante que os ilumina, lhes concede uma vida sobrenatural inteiramente diversa da vida habitual e lhes dá a luz e o conhecimento aos olhos da maioria, aos quais ele se revela assim manifestamente.

Assim foi Jacó o patriarca, que se mudou para permanecer num único lugar, que viu com seu olhar penetrante muitas coisas e que pronunciou palavras admiráveis a seus filhos[243].

Também assim foi Isaías, esta grande voz dentre os profetas que, vendo Jesus ser levado à imolação como um cordeiro[244], não se sentiu oprimido por este sofrimento, nem ferido por este rebaixamento e por suas consequências, mas contemplou misticamente, com o olho espiritual, a glória que naturalmente se ocultava nestas coisas. Ele viu que Jesus não mais possuía forma nem beleza[245], e tudo o que ele sofreu além disso; e, no entanto, foi nisto que ele reconheceu a sua divindade.

Numa palavra, assim foram todos os profetas que, pela iluminação do Espírito, se ligaram com todo o intelecto às coisas inteligíveis. Quanto aos que trazem o espírito do mundo, ou, para dizer mais exatamente, que são levados pelo espírito do mundo, quem quiser reconhecê-los com facilidade deve se lembrar da raça dos escribas e dos fariseus nos Evangelhos, lembrar-se como eles só se ocupavam com as aparências, como só viviam para serem vistos, e como, pretendendo se fazer chamar doutores de Israel pela sua maneira de ser, pela gravidade de sua postura e de seu caminhar, não viam outra coisa do que esta pose, e com belas palavras simulavam a vida virtuosa[246]. Foi assim – ó cegueira! – que, pela inveja causada pelo espírito do mundo, eles condenaram cruelmente Jesus Cristo à morte, a ele que era o Filho verdadeiro do Deus do universo, a vida divina, a verdadeira vida. Pois se, como está escrito, o Espirito Santo não nos fala por inveja[247], é evidente que o espírito do mundo o faz, e também julga na iniquidade e nas trevas. É por isso que eles se lamentarão[248], conforme está escrito, quando vier o Juízo final de Deus, e se atormentarão a si próprios, pois verão Aquele que eles trespassaram[249], e então eles se perguntarão, dizendo: “Não é este aquele a quem consideramos como nada e cuja vida pensamos ser uma loucura? Como é possível que ele tenha sido contado entre os filhos de Deus?[250]”. Enganados pelas trevas da presunção às quais foram levados pelo espírito do mundo, eles não conheceram a verdade, nem se deixaram levar a ela, para onde vão os que possuem a prontidão no Espírito, o qual os guia e atrai. Quanto aos espirituais, Paulo diz: “Não sabem vocês que nós julgaremos os anjos? E como mais razão ainda as coisas da vida?[251]”. É assim que julga todo aquele que traz em si o Espírito[252], este Espírito que o mundo, como diz o Senhor, não pode conceber nem contemplar[253].

Portanto, aqueles que, pelo verdadeiro sentido da alma, não se revestiram do Espírito Santo mais do que celeste e tampouco conheceram Aquele que cumpre o inefável e diz o inexprimível dentro do mistério, possuem apenas o espírito do mundo. Mas, diz São Paulo, “vocês não estão na carne, mas no Espírito, se o Espírito de Deus habitar em vocês. Ora, se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é de Cristo[254]”. Veem como aqueles que têm em si mesmos o Espírito não são carnais? E como aqueles que, miseravelmente, são privados do Espírito, não apenas são incapazes de fazer um juízo correto a respeito das coisas divinas, mas sequer podem ser de Cristo? O Apóstolo mostra ainda mais claramente em outra parte como se opõem o espírito do mundo e o Espírito Santo quando diz: “Nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, a fim de conhecer aquilo que, pela sua graça, Deus nos deu[255]”. Compreendem que só os que receberam o Espírito de Deus podem conhecer o divino e a verdade? É o que diz o Senhor quando afirma: “Quando vier o Espírito da verdade, ele os conduzirá a toda a verdade[256]”.

Você percebe de onde emerge naturalmente a verdade total? Não é quando o julgamento é justo e livre de todo e qualquer erro? É por isso que o Espírito Santo é chamado de Espírito de aconselhamento, Espírito de ciência, de inteligência, de sabedoria[257], Espírito condutor[258], Espírito de prontidão[259], Espírito de verdade[260]. O Espírito também é chamado em Isaías de Espírito de Julgamento[261]. Pois é nele que a alma se comporta resolutamente naquilo que dissemos. É por meio dele que ela é julgada, quando opera em si essas virtudes e as recebe. Sem ele, tudo é cheio de trevas e falta de verdade. Quem não possui o Espírito de verdade e logo se esforça por discernir o que é falso naquilo que lhe dizem não pode alcançar a verdade. “Ninguém, já foi dito, conhece o que há no outro, senão o Espírito que nele habita[262]”. Pois o Espírito sonda tudo[263]. Se fosse permitido descobrir a verdade sem ele, jamais o Espírito poderia ser chamado de Espírito Santo de verdade e de Espírito de julgamento, ele jamais teria estes nomes pelos quais o chamamos. Se aquele que julga fala sem o Espírito de verdade, ele se tornará o advogado da mentira sem saber; numa palavra, ele terá decaído da verdade (pois o Espírito da verdade e o do julgamento são o mesmo), ele estará se exilando para longe de Deus e da glória de Deus, ele estará dividido. Julgando e se explicando precipitadamente na falta da verdade, em sua ignorância e sua grosseria ele entregará o justo, como um novo Judas. Ora, este último, o três vezes miserável, foi condenado por ter traído displicentemente, em detrimento de seu dever, nosso Senhor Jesus Cristo, a quem o Pai nos enviara, e que era, ele próprio, a justiça[264] e a verdade[265], conforme ele mesmo nos disse.

Fariseu miserável, cego, indo e vindo sem possuir o Espírito que ilumina os olhos espirituais da alma, julgando pelas aparências, apressada e falsamente o que há no homem como se o contemplasse com olhos espirituais, se você visse as ressurreições paradoxais e os milhares de milagres divinos que Jesus fazia por si só, por seu verdadeiro Deus, você deveria venerá-lo, celebrá-lo e crer nele, ao invés de se irritar e se aborrecer por que ele, com imensa sabedoria e amor pelo homem, rompia o sábado e porque seus discípulos, os discípulos do Esposo, não jejuavam[266] nem lavavam as mãos[267]. Fariseu sem Inteligência nem coração, podemos dizê-lo, e cheio de trevas, você pretendia dirigir a fonte da sabedoria e de tantas graças maravilhosas e inefáveis? Mas se você despreza as obras mais simples de um tão grande poder, estas obras cuja razão é inconcebível para você, como pretende você ainda enxergar? Você é muito ignorante, ingrato e insensível. Ademais, você se ilude a um ponto que a ninguém é permitido, podemos dizer. Por acaso você admirou as obras extraordinárias, as maiores que ele realizou, você o glorificou tanto quanto possível e celebrou Aquele que as realizou, dirigiu-se a ele humildemente e com a retidão dos que, em sua opinião, negligenciaram a tradição, você pediu a ele que lhe explicasse a razão pela qual ele rompeu o sábado? Mas a presunção, com a malícia que a acompanha, é aparentemente a coisa mais nefasta e mais penosa, e tanto mais tenebrosa na medida em que pretende saber. E tanto lhe falta a inteligência, que ela ignora sua própria ignorância.

Além disso, fariseu cego que não procura saber se o interior do cálice está limpo, mas que se preocupa em deixar brilhando o exterior do prato[268] para que seja visto, você não ouviu o que Cristo, a verdadeira sabedoria, ordenou a respeito do julgamento quando disse: “Não julguem segundo as aparências, mas segundo a justiça[269]”? Não compreende que é impossível julgar com justiça e tomar as decisões corretas se nos fiamos apenas nas aparências? Com efeito, a aparência representa aqui aquilo que qualquer um pode ver. Como, insensato, o mesmo que não teme a ordem do Pai, nem compreende, ao que parece, que o homem verdadeiro não julga o visível a partir do visível, como não sente ele vergonha? Como não esconde ele a sua face? É o que você deveria fazer, uma vez que, privado da verdadeira vida, você próprio vive longe da luz, da sabedoria, da verdade, do conhecimento dado pela verdade, e de tantos outros bens que o Espírito Santo dispensa e distribui, e sem os quais não apenas é impossível que você possa julgar infalivelmente as coisas que lhe são estranhas, como também não é capaz de ver em que espécie de mal você está enredado. Se você quiser acreditar em mim, retire a trave de seu olho, ou seja, retire de seu intelecto a ostentação e a presunção. Então você verá racionalmente se pode retirar a palha[270] e eventualmente captar o pecado, secretamente aliviando o olho do seu próximo. Mas enquanto seu olho interior não vir a luz inteligível, é evidente que a trave colocada nele o encherá de trevas. Portanto, antes de buscar por si mesmo, antes de rejeitar para longe de você todo o mal, não pretenda combater as ofensas do demônio nem as provas da ignorância. Isto só p podem fazer os que receberam a luz. Pois a empresa é fortemente aleatória e os impulsos são perigosos. Que só falem e, no fundo, só julguem – conforme o conselho do bem-aventurado Davi – aqueles a quem o Senhor libertou das mãos dos inimigos – os inimigos inteligíveis – e a quem ele reuniu longe dos locais hostis[271] – os estados passionais, estranhos, divididos – unindo-os a si mesmos e à sua glória. Que assim falem e julguem, libertos e salvos, os que foram reunidos, unificados, iluminados pela luz.

Mas se você não se encheu de luz espiritual, como foi dito, fortifique-se pelo silêncio e não tema aprender primeiro e confessar que você ignora se o que lhe acontece lhe traz a salvação ou a perdição. Como não o faz refletir as palavras de Cristo: “Eu não julgo ninguém[272]”? Mas você, o que diz? “Eu julgo todo mundo”. Quanta ignorância, para não dizer: quanta inconsciência! Foi dito: “O Pai entregou todo julgamento ao Filho[273]”. O Filho recebeu do Pai o poder de julgar. E você, de onde tirou aquilo que não lhe foi dado? A Trindade habita tão claramente assim em você? Ela caminha[274] em você visivelmente como diz a promessa? Você se vê em Deus o Verbo e vê o Deus Verbo em você? Você está em Deus? As águas do rio do Espírito Santo correm ou jorram claramente em luzes inacessíveis no interior de seu coração? Você recebeu todas as outras graças pelas quais Deus age manifestamente nos seus santos? Ou você não tem necessidade de mediador? Proteja, portanto, sua língua do mal. Guarde seus lábios para que não digam mentiras. Procure, interrogue os outros com prudência, instrua-se, mas não ensine, deixe-se questionar pelos homens, e quanto a você, não julgue nada. [275]É ingênuo e cego quem crê poder ler as palavras nos livros. Mais tolo ainda é aquele que, sem possuir o Espírito vivo, pretende conhecer o que há dentro do próximo. Pois onde as coisas não são aprofundadas, não podemos saber sequer o que há em nós, nem tampouco as armadilhas e os obstáculos que o demônio invejoso e maligno que desdenha do bem opõe ostensivamente a nós que, por presunção, caímos no mal e, contra nosso dever, nos deixamos persuadir e começamos a julgar.

E assim, por não nos deixarmos instruir nós nos iludimos, desgraçadamente não alcançamos a verdade e, ao invés de avançar e aprender, não servimos para nada. E ao mesmo tempo em que prejudicamos a nós mesmos, nos tornamos causa de escândalo e de males para aqueles que nos são próximos e nos tornamos passíveis do enorme julgamento de Deus. Mas se discernirmos as intrigas do demônio, se obedecermos à ordem que nos deu o grande Paulo no sentido de não julgarmos nada nem ninguém antes do tempo[276], até que venha a nós em Espírito o Senhor que nos ilumina, que nos revela abundantemente as profundezas, que nos ensina com toda certeza os conhecimentos e as revelações das visões divinas e dos bens místicos, e que faz de nós sem falta seres verdadeiramente espirituais, portadores de Deus – ou antes, que faz de nós deuses – então ele nos desculpará. Ele nos restabelecerá em sua glória quando tivermos recebido a graça do discernimento, quando com pureza soubermos a que mal nos conduzem os julgamentos que fazemos sem que tenhamos o dom de Cristo. Somente então poderemos julgar corretamente sem o risco de cairmos.

63. Desde o princípio Deus assistiu a Israel em muitas coisas. Ele o cercou de uma grande e maravilhosa solicitude, e dentre todos os homens fez dele partícipe de sua herança[277]. Mas Deus também cumulou os fiéis em Cristo com esta assistência e esta solicitude, por meio de grandes e extraordinárias obras, que ultrapassam aquelas que fez por Israel, assim como a alma ultrapassa o corpo. Elas as cobrem, assim como o sol cobre as estrelas. As coisas dos cristãos superam as de Israel como o corpo supera a sombra. Pois, se bem compreendermos, os feitos de Israel são realmente a sombra dos nossos. Para eles o Faraó foi um senhor amargo e impiedoso, e cavaleiros selvagens[278] foram a imagem de Satanás e dos seus, não porque pudessem fazer grande mal aos corpos, mas porque se esforçavam para atormentar impiedosamente as almas.  Para eles foi Moisés quem conduziu o povo de Deus[279]. Mas nós temos em nós mesmos – e como isto nos eleva! – o Filho verdadeiro de Deus, o Verbo em pessoa[280], que supera infinitamente a letra da Lei. Lá havia o bastão[281], aqui a cruz[282]. A madeira, mudando paradoxalmente de aspecto, devorou as serpentes[283]. Mas a cruz se transformou de instrumento do mal em signo de bondade, destruindo os demônios. Eles roubaram o ouro, a prata, os ornatos das vestes[284] do Egito. Mas nós fazemos secretamente em espírito a mesma coisa, mas sabemos que o subtraindo ao pecado conduzimos a Deus a beleza sensível. Lá, uma coluna de nuvens e de fogo conduziu Israel ao mar[285]. Aqui, a visão de Deus e de seu amor abrasador permite ao intelecto fiel e contemplativo chegar às lágrimas nas quais se perdem e morrem todas as coisas do ódio, quando este intelecto se afasta dele, do mesmo modo como antes o Faraó e os egípcios se perderam no mar[286] milagrosamente enquanto os judeus conseguiam atravessar.

Resumindo, se quisermos considerar e, por conseguinte, contemplar, tudo o que os judeus realizaram então, encontraremos a sombra e a imagem daquilo que seria cumprido daí por diante pelos verdadeiros cristãos. Assim, se quisermos saber do modo mais global e mais claro o que nos diferencia dos judeus, devemos pensar no que anunciava a Lei antiga e no que anuncia a nova Lei que os cristãos trazem. Deste modo podemos discernir sem erro. Pois a primeira predicação diz das criaturas, e das criaturas visíveis, que elas vieram de Deus, ao afirmar: “No princípio Deus fez o céu e a terra[287]”, etc. Quanto à predicação dos cristãos, ela não fala apenas das criaturas sensíveis, mas das criaturas inteligíveis. De fato, é ao inteligível que ela se refere, quando diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus[288]”. A predicação dos judeus afirma: “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança[289]”. Mas a dos cristãos diz: “O Verbo se fez carne e habitou entra nós[290]”. Uma diz: “Que ele domine sobre os peixes do mar, os pássaros do céu e sobre os animais, por toda a terra[291]”. A outra diz: “Nós recebemos tudo de sua plenitude[292]”. Uma afirma: “Deus disse: Faça-se a luz[293]”. E a outra: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no meio das trevas’, brilhou ele próprio em nossos corações[294]”.

Portanto, aquele que está indeciso entre uma e outra dessas duas predicações de que falamos, pode constatar com clareza: a experiência que os cristãos têm de Deus supera os bens dos judeus e os ultrapassa de longe. Ele dirá que tais bens não passam da sombra e da imagem de uma verdade sobrenatural, a verdade que os cristãos carregam, ou a verdade de Cristo. E ele celebrará e glorificará a abundância da graça e da providência divinas que, pela compaixão supra-essencial das coisas mais elevadas do que o mundo, eleva lentamente a humanidade das sombras e das imagens até Jesus Cristo nosso Senhor.



QUE DEUS, POR SEU AMOR PELO HOMEM, SE TORNA ACESSÍVEL A TODOS OS SENTIDOS DOTADOS DE INTELIGÊNCIA.

64. Ó santíssimo Verbo enipostático, Sabedoria e Poder de Deus! Como poderei eu, Senhor, louvar sua essência, ou sua glória inacessível? Como poderei celebrar a sua bondade, que é infinita? Eu não passo de um homem, e minha inteligência é limitada. Mas eu o louvarei e celebrarei aquilo que eu puder alcançar.

Pois me foi permitido de todas as maneiras sentir sua glória e sua bondade e minha alma a você se ligará com toda sua força[295] e o seguirá. Assim, quando eu o ouvir, eu temerei como é natural, e a partir de então serei arrebatado por tudo o que está em você, conforme o profeta que disse: “Eu ouvi, Senhor, o que me anunciou, e eu temi. Compreendi suas obras, e fui arrebatado[296]”. Altíssimo, Verbo incompreensível, que bateu à porta, ou seja, aos ouvidos da Esposa do Cântico dos Cânticos, cujo coração foi então revolucionado. Ela estava fora de si e procurava vê-lo com todo ardor, dizendo: “Mostre-me seu rosto, faça-me ouvir sua voz. Pois seu rosto é belo, e sua voz é doce[297]”. Também gosto do que disse Jacó: “Primeiro eu ouvi falar do Senhor, mas agora meu olho o viu[298]”. Pois assim como você é Verbo e Sabedoria, é também a verdadeira luz que ilumina todos os homens que vieram ao mundo[299]. Você é a luz que ilumina e se revela por toda parte desde a origem. Pois tal como, em Espírito, o Sol de Justiça[300], você é a luz deslumbrante que dá a visão a quem, em toda a beatitude e pela graça das virtudes, contempla os mistérios divinos e sobrenaturais do Deus púnico, e a natureza inefável das coisas ligadas ao eros divino e que ultrapassam o mundo. É o que João proclama claramente: “Nós vimos sua glória, a glória do Filho único provindo do Pai, cheio de graça e de verdade[301]”. Pois assim como você é o verdadeiro Deus, é também verdadeira luz, conforme João testemunha. A partir daí, aqueles que, por um intermédio de um dom indizível receberam de sua plenitude, Deus inefável, dizem abertamente: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no meio das trevas’, brilhou ele próprio em nossos corações[302]”.

Você irradia inefavelmente, ilumina com toda sua luz, a fim de nos permitir ver as coisas da graça e da verdade mais altas do que o céu, as coisas que ultrapassam a natureza e o mundo, e a fim de nos oferecer delas o maravilhoso regozijo. É por isso que em seu amor pelo homem você não apenas se tornou acessível ao ouvido e à vista, mas também ao tato. Disse o discípulo bem-amado: “Aquilo que ouvimos, o que vimos, o que contemplamos, o que nossas mãos tocaram do Verbo da vida[303]”. Se você revestiu os fiéis, dando o repouso de uma vez por todas aos seus, é claro, bom Deus, que você se deixou tocar por eles em espírito e milagrosamente. Segundo Paulo, o santo predicador da verdade, os que por felicidade foram batizados no Senhor e na fé que nele possuíam, dele se revestiram com mais felicidade ainda[304], do Deus que nos cumula de dons. Assim é que Isaías, a trombeta profética, a grande voz, se regozijou com toda sua alma em Deus, o Pai e o Senhor. Pois o Pai lhe permitiu que de você ele se revestisse maravilhosamente, Senhor, como de um manto de salvação e uma túnica de alegria[305], e com você ele se cobriu além de toda inteligência. Vê-lo ao redor dele, abraçando-o como a luz inacessível e maravilhosa, deu ao inspirado de Deus tamanho regozijo, tanta alegria, e tanto mais na medida em que ele compreendeu que ali estava a salvação, pois você é a própria salvação.

Assim é que na infinita abundância de seu amor, você mais uma vez se deixou sentir pelas narinas inteligíveis que tiveram a santa fé, e com isto você concedeu maravilhosamente o repouso aos que o celebram e louvam, cantando que seu nome é um perfume que se espalha[306] e anunciando isto aos seus próximos. “Pois meu bem-amado é um fruto bonito de se ver, bom em sentir e doce para provar. E seu perfume espalha o bom odor de sua mirra[307]”. É por isso que Paulo, que lhe tinha em si, dizia que nós somos o bom odor de Cristo[308].

Mas você também de comer e de beber aos seus fiéis. Você é o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida da alma[309]. Você maravilhosamente vivifica e nutre, faz crescer progressivamente e misteriosamente alegra aquele que o recebe. É isto que Davi, o santo profeta, dizia aos seus próximos quando sentiu que o provara ao trazer Deus em si: “Provem e vejam que o Senhor é bom[310]”. Pois você não somente se revelou como um fruto, mas ainda os pobres em espírito[311], os humildes, aqueles a quem tudo falta, o comem como a um bom alimento e são saciados, e os que o procuram incansavelmente no desejo de encontrá-lo e comê-lo o louvarão[312], Senhor, pela imensa doçura que experimentarão ao prová-lo. Pois àquele que é reconfortado pelo seu poder que dá a vida, são oferecidos um santo alimento e uma bebida santa. Os corações dos que o comem viverão pelos séculos dos séculos[313]. Você é eterno e incorruptível e torna incorruptíveis aos que o comem. Por sua transbordante ação natural, você os transporta para a eternidade. É por isso que, em sua infinita bondade que suscita tanta beleza e bem-aventurança, você chama e clama aos seres providos de razão, dizendo: “Venham, comam do meu pão e bebam do vinho que preparei para vocês[314]”. Ora, é a si próprio em sua santidade que você chama assim. Pois você diz também: “Eu sou o pão da vida[315]”, e “Eu me entreguei como a fonte da vida[316]”. Assim você nos propõe que comamos seu santo corpo e seu sagrado sangue[317].

Assim, nutrindo-os pelos sentidos intelectuais, você alegra os seus, Senhor que tanto ama as almas, você para eles se torna a luz e a vida, como os cumula de toda alegria, das coisas boas e belas acima do ser. Bendito seja Jesus, maná espiritual, celeste, alimento infinito. Glória, Mestre, ao indizível amor com que você nos envolve, glória à sua inefável misericórdia e à sua paciência. Amém.


QUE O ESPÍRITO DE DEUS HABITA NOS FIÉIS

65. É uma coisa maravilhosa para o sentido intelectual, ou a respiração, a efusão do Espírito vivificante proveniente de Deus Pai nos corações carnais que santamente acolheram a fé em economia do Verbo encarnado. Que o dom se espalha, que o poder divino, a energia da Divindade incriada mais elevada que o ser se espalha, é maravilhoso, dissemos. Mas que a energia se uma ao coração e no coração se torne um movimento perpétuo, isto é sobrenatural e pede que sintamos temor.

66. Outra coisa maravilhosa: que o Pai, no Espírito e pelo Verbo divino de Deus tenha criado por seu intermédio tudo o que existe de sensível e inteligível[318], e que esta Trindade possa conjuntamente habitar, caminhar[319] e claramente fazer sua moradia na reflexão humana. É um grande milagre que para todo fiel votado à piedade, a Divindade em três Pessoas envie um anjo. Mas que a própria Trindade, infinitamente poderosa e vivificante, queira o bem do homem e lhe comunique a força e a energia espiritual de Deus, isto ultrapassa todo milagre.

67. É uma coisa verdadeiramente maravilhosa que o coração seja capaz de portar o santo raio do Deus Altíssimo que domina o universo, e confiar-se a ele continuamente. Num momento, do exterior, pelas santas Escrituras, Deus ilumina o intelecto, o torna doce e solícito, e o cumula de amor pelos homens e pelos milagres; noutro, a luz – ó alegria! – se entrega real e verdadeiramente ao fiel, de dentro do coração, não de fora, e sempre, sem fenecer. Isto está acima de toda admiração e ultrapassa o entendimento.

68. Mais uma coisa maravilhosa: o coração do fiel transporta em si também Àquele a quem os serafins e as potências celestes carregam miraculosamente. Isto é admirável. Porém além de transportar, unir-se a ele, tornando-se com ele um só corpo, como não seria isto além de toda admiração?

69. É verdadeiramente um milagre além de toda medida que, pela graça, a alma possa ser o trono, o leito, o carro de Deus infinitamente sábio e infinitamente poderoso, cujo trono é o céu. Mas que a alma seja a tal ponto amada por ele que possa se tornar um único sopro com ele, que ela comungue das coisas mais altas do céu e que lhe sejam confiados os maiores mistérios, quem jamais poderá admirar-se disto na medida justa?

70. É uma coisa realmente maravilhosa e estupidificante: Deus, que não tem sequer um lugar para repousar[320], repousa divinamente no coração. Um rei terrestre, que tem seus limites, se adota alguém por amor, se o sustenta com sua mão generosa, busca plenamente e concede justamente àquele a quem adota ou sustenta, como dissemos, a glória e a honra, e com ela o regozijo e a alegria. Mas não se trata de um rei terrestre de quem falamos aqui, mas do Deus sem começo, do Deus incriado, do Criador e do Senhor do universo, a quem miríades e miríades e milhares e milhares de anjos servem com temor[321], é deste Deus mesmo que, longe de simplesmente sustentar de quem se compadece, o toca no interior do coração e nele vem habitar, não por um tempo, mas pela eternidade, unindo-se assim àquele que o acolheu e recebeu sua graça, glorificando-o imensamente, deificando-o maravilhosamente e cumulando-o de miríades de bens misteriosos. Que glória inefável, que honra, que regozijo, que felicidade, quantas coisas maravilhosas ele lhe concede sempre! Senhor, Trindade, tenha piedade!

71. É uma coisa maravilhosa: Deus, que criou o universo, e que o contém em si, se deixa conter de modo incompreensível, e não obstante claro e contínuo, pelo coração do fiel. Um rei mortal, cujo poder é bem pequeno, se bate à porta de alguém, se entra em sua casa, se come e bebe à sua mesa e compartilha de sua vida, cumula naturalmente de glória, de honra, de alegria, de prazer e de um grande reconforto a quem o recebeu. Mas que o Rei eterno, o Senhor do universo, o Criador das coisas sensíveis e inteligíveis, entre discretamente, não na casa, mas no coração daquele de quem se compadece, e não para usufruir dos bens que estão em seu coração, mas para lhe dispensar a força do céu, a consolação mais alta que o mundo e a glória sobrenatural e durável, que pensa disto aquele que recebeu tal graça? Qual não será sua alegria? Quanta felicidade, quanto prazer não sentirá ele? Numa palavra, quanta beatitude? Ela será imensa e benfazeja. Pois é verdadeiramente uma maravilha incomparável que Aquele que a tudo preenche e que se encontra acima de tudo faça do coração do homem sua morada e seu templo eterno.

72. Deus que disse: “A luz brilhará no meio das trevas[322]” brilha de alegre luz no coração dos fiéis. O amor de Deus se espalha nos corações pelo Espírito Santo a quem ele foi dado[323]. Pois Deus envia aos corações o Espírito de seu Filho, que clama: “Abba, Pai[324]”. Ligados assim ao Senhor – ó união maravilhosa! – os fiéis se tornam com Deus um só e mesmo Espírito[325]. Que outra coisa, dentre tudo o que dissemos, nos fará sentir tão de perto a graça?

73. É claro que os fiéis são herdeiros de Deus, herdeiros com Cristo[326]. Eles são como Cristos segundos, comungando com a natureza divina[327] como filhos de Deus e deuses por adoção e por graça, coisa que ultrapassa toda inteligência e transborda o pensamento. Eles contemplam e experimentam sobrenaturalmente o que está acima do mundo, ou melhor, eles o desfrutam. Eles desfrutam daquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou, daquilo que não chega naturalmente ao coração do homem[328]. Glória ao amor incompreensível de Deus Pai que nos ama verdadeiramente. Glória ao amor da Trindade, em sua extrema e inefável bondade, mais alta do que o céu.


QUE TODO FIEL É EMINENTEMENTE HONRADO POR DEUS

74. Quem nasce do Espírito é Espírito[329], declarou Cristo. Ó incomensurável graça! Ó dom inefável! Deus criou o homem com numerosas graças verdadeiramente maravilhosas. Desde que foi criado, o homem é naturalmente uma criatura. Mas em sua transbordante generosidade, o Senhor todo compassivo, a Trindade mais alta que o ser e que criou o universo concedeu no limite à criatura – ó felicidade! – a graça do Espírito incriado. Coisa jamais concebível, ele próprio se uniu ao homem, o deificou, fez dele seu filho e lhe concedeu tornar-se Espírito. De fato, ele disse: “Eu disse: Vocês todos são deuses, filhos do Altíssimo[330]”. A respeito de Deus está escrito: “Eu dei uma ordem, e esta ordem não passará[331]”. E: “Tudo o que quis, o Senhor fez[332]”. E: “A vontade do Senhor permanece pela eternidade, e os pensamentos de seu coração por todos os séculos[333]”. Pois sua natureza é verdadeiramente inalienável e imutável. E seu Verbo em pessoa veio nos trazer sua palavra, sua ordem, sua vontade, seu conselho. Ele foi o anjo deste grande e maravilhoso conselho sobrenatural[334]. E ele deu o sopro do Espírito aos seus discípulos[335], e assim os fez renascerem espiritualmente. Ele os incorporou misteriosamente ao Espírito e fez deles filhos de Deus. Pois os que são conduzidos pelo Espírito de Deus se tornam filhos de Deus[336]. Ora, se eles são filhos de Deus, é claro que são também deuses. O filho carrega necessariamente o ser daquele que o engendrou. É por isso que o Salvador ensinou aos discípulos a chamarem a Deus de Pai[337], uma vez que eles possuíam a comunhão do Espírito. A Santíssima Trindade tornou assim deuses, Filho e Espírito, os fiéis, mas escondeu ao extremo todos os dons maravilhosos que até agora só o pensamento pode captar. Amém.


SOBRE: “ELE ESTENDEU SUAS ASAS, RECOLHEU OS SEUS E OS COLOCOU SOBRE SEU DORSO[338].”

75. Compreenda pelo sentido intelectual o que vou dizer agora. Saiba que você ficará maravilhado, cheio da alegria do Espírito e indubitavelmente penetrado pelo prazer divino.

O Espírito Santo falou pela boca de Davi: “Revele-se, ó você que assenta sobre os querubins[339]”. E também: “Aquele que vê os abismos, que assenta sobre os querubins[340]”. E ainda: “Ele está sobre os querubins[341]”. Porque então vem ele sobre os fiéis? Que coisa excepcional, além de toda medida, sucedeu no intervalo? Pois não apenas Deus se coloca sobre nós como a galinha que protege a vida de seus pintinhos e os aquece, maravilhosamente guardando-nos e alegrando-nos, como ainda – ó arrebatamento da ordem do amor divino! – nos colocando sobre si e, tornando-se para nós como que um carro novo que na abundância de seu amor divino ultrapassa todo entendimento, nos guarda em toda segurança e nos conduz inefavelmente para as coisas da vida mais elevada que o céu, as coisas indizíveis que estão além do mundo. Ele nos dispõe para viver acima do ser nas delícias, na paz, no repouso, inefavelmente, para nos regozijarmos em espírito na alegria divina e conhecer sua doçura. O bem-aventurado Moisés disse com efeito no Espírito: “Ele – ou seja, Deus – abriu suas asas, recolheu os seus e os levou sobre seu dorso[342]”. Ó amor inefável! Ora, que ele tenha estendido suas asas, que tenha recolhido os fiéis, que tenha tornado a si mesmo aquele que os carrega, isto realmente vai além da honra dos querubins, e em verdade cumula de uma alegria imensa e inefável. Que ele receba a carga destes fiéis, que os receba sobre seu dorso, que os cubra com sua sombra, esta é uma coisa que, segundo o divino Davi, mesmo o intelecto dos querubins não é capaz de ver e celebrar dignamente. Assim como sua grandeza, sua compaixão é incomparável[343], ó Santíssima Trindade, a você a glória!

76. O hábito dos monges, as promessas que o acompanham e a vida monástica exigem um intelecto votado à solidão. Pois somente Deus anima este intelecto e nele age com toda atenção possível e com toda justiça. Ele o anima transmitindo-lhe a graça vivificante. Age nele permitindo-lhe contemplar a unicidade e a simplicidade de sua glória e de seu Reino que domina o universo. Pois só ele é o Altíssimo, de uma outra ordem do que a de todos os seres, diferente deles por sua incomparável preeminência. Só ele é soberanamente poderoso, e ele comunica a todas as coisas uma parte de seu poder. Só ele é verdadeiramente sábio, e dispensa aos sábios toda a sabedoria. Só ele é, real e eternamente, e de todas as maneiras o Pai e o Criador de todos os seres. Assim, é com toda a justiça e mérito que foi dito: “Todas as coisas vêm dele e são por ele e nele. A ele a glória por todos os séculos[344]”.

Se assim é, numa palavra, todas as coisas boas e belas recebem de Deus sua existência de uma vez por todas, nele se guardam e se protegem, tendem para ele e nele encontram seu fim. Estas coisas unem e ligam a Deus como a seu Pai todos os que delas vivem como convém. São a bondade, o amor, a prudência, a sabedoria, o conhecimento, a contemplação e a ação correspondente, a deificação, o prazer divino e a santa alegria que ele proporciona, a paz acima do céu, o temor religioso, a força, o conselho, a via de piedade, a ciência, tudo o que é próprio à natureza dotada de razão, tudo o que encanta, dá glória, alegra, identifica a Deus e deifica.

Se tudo o que de bom e belo de que falamos provém de Deus e dele apenas quem ama estas coisas belas e boas ama em vão, por estar dividido e separado de Deus, a raiz e a fonte de toda beleza e de todo bem. Pois ao dar as costas tão pouco nobremente àquele que a tudo criou, manteve e fundou tantas boas e belas coisas, ele jamais terá em si mesmo aquilo que por natureza é belo e bom. E o que ele imagina possuir de belo e bom jamais será verdadeiramente belo e bom: tudo não passará de engano e cruel desilusão. É de Deus, e somente de Deus, que poderemos esperar com todo coração, se nos aplicarmos com ardor e nos ligarmos fortemente à sua lei, e apenas a ela. Somente assim, com efeito, descobriremos a glória sem mescla, o prazer inalterado, a inalienável riqueza infinita, e traremos em nós plenamente a série de coisas belas e boas de que falamos, e também, ó milagre, o próprio Deus que habita e caminha com elas[345], e desfrutaremos destas coisas que estão além do mundo e que os sentidos exteriores não podem ver nem ouvir. É assim que viveremos com toda simplicidade, em toda solidão, em Jesus Cristo nosso Senhor.

77. Quando o coração que traz em si o Espírito leva humildemente uma vida votada à hesíquia e se deixa animar pela graça, o intelecto alegremente concorde com a verdade de Deus se põe a contemplar um grande número de visões divinas, inicia-se nas coisas inefáveis que estão além do mundo, considera a si mesmo como um novato, como um estrangeiro entre os seres. Ele vive entre delícias, desfruta com clareza em espírito das coisas que ultrapassam a inteligência e que estão além de todo pensamento. Numa palavra, muitas vezes ele vê a Deus de maneira diversa, experimenta os arrebatamentos extáticos que o unem a ele, se lança pelo silêncio e a visão para a deificação, na medida em que esta é um estado feliz, e se eleva acima de si mesmo ao receber o eros, sob o impulso e o ardor do Espírito que dá a vida e a luz em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

78. Aquele que, conforme a providência, leva sua vida permanecendo apenas em Deus, e que vê a Deus em espírito claramente caminhar e habitar em si, manifestamente cumpriu com o mandamento divino do Senhor Jesus que disse: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês[346]”. Este se uniu a Deus, como um estranho no mundo, e com ele morreu maravilhosamente e em toda felicidade, tornando-se assim para o Salvador o operário seguro de todos os mandamentos. Pois aquele que permanece em mim e eu nele, disse o Salvador, traz em si muitos frutos[347], ou seja, muitas virtudes. Que ele se apresse, se quiser, no amor divino, pela contemplação, a prece e a vida mais divina, portar as virtudes, habitar e perseverar em Deus tanto quanto possível. Então Deus, vendo o combate sagrado da alma, inclinará os céus, ó milagre, contra toda expectativa. Ele caminhará e permanecerá nesta alma para conceder àquele que o recebe a fruição de toda sorte de coisas boas e belas e a satisfação dos santos mandamentos. Pois foi ele que disse: “Sem mim vocês nada podem[348]”, pensem vocês fazer o que quiserem.

79. Se, por amor e no interesse de todos não se deve esconder um tesouro, nem a sabedoria, é claro que tampouco se deve guardar no intelecto, sem colocar por escrito, a obra intelectual votada a Deus, a contemplação e a tensão, mas, ao contrário, por amor e no interesse de todos, devemos transmiti-la por escrito e por sinais visíveis. Pois o homem é um animal dotado de razão, que recebeu o intelecto e a ciência. É por isso que, quando ele pensa em Deus e considera os frutos da fé em si mesmo, ele recolhe o intelecto divino que lhe é próprio e penetra com ciência e coragem no lugar dos santos mandamentos. Mas para chegar até aí, ele tem necessidade da ajuda e do socorro de Deus, ou mais exatamente de sua proteção. Ele reza muito, pedindo com suas lágrimas a compaixão de Deus através dos mandamentos.

Mas quando quer ter compaixão por aquele que ora, como um pai tem compaixão por seu filho, ó milagre, Deus logo espalha sobre ele seu Espírito em seu coração. Ele traz assim maravilhosamente ao estado de amor ardente aquele que o recebeu. E, não é preciso dizê-lo, como pode um pai fazer a seu filho, ele lhe concede toda sua confiança, como uma garantia vivificante, pela efusão e a energia do Espírito, e o cumula de transbordante doçura e bondade. Ele lhe concede a humildade, mas pela união ele de outro modo o eleva para a glória e a honra, e o leva de tal modo ao fogo do eros que tudo o que ele vê ao redor de Deus, e do modo como o vê, lhe aparece verdadeiramente como seu próprio ser. Pois, numa palavra, as moradas do Pai, a riqueza, a glória, a força, a beleza, a sabedoria, o poder, o conhecimento total, todas as coisas boas e belas, são naturalmente a glória e o louvor, as delícias, a honra e a felicidade do filho. Assim, quando a alma, nas contemplações naturais, participa do Espírito, ou seja, quando ela contempla a Trindade em Deus, como reporta o grande Basílio, ela é em verdade tomada de um imenso amor, ela vê a Deus verdadeiramente como seu próprio Pai e vê as coisas de Deus como seu próprio ser, conforme dissemos. Basta-lhe simplesmente ver a Deus e nada mais. Sua felicidade é imensa, e ela exulta em Jesus Cristo nosso Senhor.


O QUE É O PRAZER NO SENTIDO PRÓPRIO

80. Eu penso que ninguém, quando se vê com conhecimento de causa diante destas coisas que se referem ao que podemos chamar de prazer no sentido próprio, ignora que, na sua ação mais elevada, elas não são condenadas nem pela natureza nem pela razão. Elas enchem o coração de alegria e regozijo, assim que são realizadas. Pois elas estão muito longe daquilo que chamamos e prazer da carne, que é o prazer idólatra e não o prazer em sentido próprio. Quem deseja o prazer puro, o indissolúvel prazer espiritual do intelecto, deve busca-lo não pecando mas fazendo passar das coisas da terra às coisas do céu aquilo que ele considera seu ser, e depois toda a sua alma. Com efeito, este é o prazer verdadeiro, o imutável prazer do coração que a alma dotada de razão tem em si inato, que permanece eterno, luminoso, que jorra sempre e que ninguém condena, desejável, que conduz à beatitude porque habita com os santos desde a origem dos séculos, silencioso, pacífico, bom, aberto, radioso, sorridente, divinamente sábio, transparente, consolador, cheio de alegria, ativo e tudo o mais. Se você conheceu por experiência este prazer, intelectual e espiritualmente, você concordará com tudo o que escrevemos. Caso contrário, guarde com fé essas palavras.


DO PRAZER DA CARNE

81. Quanto ao prazer que não é do intelecto e do espírito, mas da carne, é incorreto chama-lo de prazer. Pois, uma vez obtido, ele traz consigo a amargura e o arrependimento. Com toda evidência, é falso chama-lo prazer. Ele é alterado, distante da alma racional, ele próprio desprovido de razão, baixo, irresponsável. Ele se delicia nas trevas, perturba, atormenta, passa e murcha depressa. Ele se vai contra sua vontade e envergonhado quando o corpo envelhece. Ele condena a si próprio, torna a vida penosa e difícil, é prisioneiro de si mesmo, cheio de infâmia e não pensando senão na corrupção, ele é desleixado, sem rosto, sem esperança e não se deixa ver. Uma vez obtido, ele cobre de tristeza tenebrosa aquele que se entregou em ato. Se você conheceu este prazer, saiba ao menos que é verdade o que dizemos. E se, graças a Deus, você se guardou, persuadido de que minhas palavras são a expressão da verdade, saiba colher os frutos gloriosos da vida.

82. Eu possuo a irradiação contínua da luz espiritual, a vida mais elevada que o mundo, o alimento e as delícias divinas, a tensão e o desejo, a união e a fruição da Divindade em três Pessoas, eu possuo o amor inefável e maravilhoso que me liga a Jesus Cristo, o Senhor do universo. Mas, ó minha miséria e minha loucura, ó mal de minha irracionalidade, minha inteligência que foi elevada pela graça acima do céu se deixa enganar, inclina-se para o que a faz cair, para as coisas terrestres, para a composteira, enchendo-se de mau odor. Quem não se espantaria com minha infelicidade e não choraria por mim, pedindo em sua piedade a Deus, que ama o homem inefavelmente, para que me conceda um maior poder divino por meio do Espírito vivificante que espalha a luz, para que eu escape mais facilmente ao diabo ardiloso e ao inimigo maligno, para que eu siga em minha vida santa e maravilhosa? Todos os sábios anjos e todas as almas dos justos, rezem por mim a Deus, por mim que vivo na insensibilidade do intelecto e na baixeza.

83. Meu Deus, meu Deus, nada á maior do que você, que não tem limites. Você carrega em si o todo, pois é o Criador do universo. Você está infinitamente acima de tudo, por ser mais alto do que o ser. Senhor, meu Senhor, santa união indizível, sopro inefável concedido aos cristãos de quem você tem piedade, eu lhe dou glória. Como, Mestre, vendo-o eu brilhar em meu coração dia e noite, não fico todo o tempo fora de mim sob o transbordamento da graça? Como posso ser negligente e insensível diante da imensidão de tal dom, Deus todo-poderoso? Oh, quão pecador eu sou!

Se você soubesse quem foi que me consagrou, e por quem e a quem minha vida foi consagrada, em seu arrebatamento você celebraria a obra do Deus mais alto que o ser, rendendo-lhe graças no mais alto grau pelas coisas gloriosas que ele fez em sua bondade, além de toda medida. Porém, se, antes mesmo de declarar seu maravilhamento, você compreendeu o quanto eu estou longe do verdadeiro mistério que existe em Cristo, você conhecerá minha irresponsabilidade, minha pesandez, minha negligência, para não dizer minha insensibilidade e minha manifesta loucura.

Naquele tempo, Jesus disse: “Eu o louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque você escondeu estas coisas aos sábios e aos inteligentes, mas as revelou às crianças. Ouve, Pai, eu o louvo porque você quis assim[349]”. Ore, peça que nos seja concedido nada experimentar que vá contra o amor pela sabedoria. Tanto nas aflições da vida como nas coisas de Deus, e para nada fazer que seja indigno dos dois. E me perdoe.



[1] Salmo 62 (63): 9
[2] Cf. João 4: 14.
[3] João 4: 14.
[4] Inácio de Antioquia, Cartas, Aos Romanos VII, 2.
[5] Cf. I Coríntios 3: 2.
[6] Cf. Gálatas 4: 6.
[7] Salmo 45 (46): 11.
[8] Cf. Gênesis 2: 8.
[9] Cf. Gênesis 2: 6.
[10] João 4: 14.
[11] Romanos 5: 5.
[12] Cf. Isaías 11: 2.
[13] Cf. I Pedro 4: 8.
[14] Cf. I Reis 18: 40.
[15] Cf. Números 25: 8.
[16] Gálatas 5: 22.
[17] Romanos 11: 8.
[18] Cf. Êxodo 17: 6.
[19] Cf. I Coríntios 10: 4.
[20] Cf. João 3: 8.
[21] João 7: 38.
[22] João 7: 39.
[23] Cf. Gênesis 2: 7.
[24] Cf. João 15: 5.
[25] Cf. Salmo 48 (49): 13.
[26] Cf. Salmo 106 (107): 10.
[27] Salmo 42 (43): 3.
[28] Cf. João 20: 22.
[29] Cf. Gálatas 5: 22.
[30] Cf. II Coríntios 5: 15.
[31] Cf. Mateus 9: 20s.
[32] Cf. Marcos 1: 30s.
[33] Cf. Eclesiastes 24: 12-13.
[34] Eclesiastes 24: 16.
[35] Eclesiastes 24: 15.
[36] II Coríntios 2: 16.
[37] Cf. Gálatas 5: 22.
[38] Cf. Mateus 5: 8.
[39] Cf. Efésios 1: 14.
[40] Isaac o Sírio, Obras espirituais, pg. 91.
[41] Ibid.
[42] Máximo o Confessor, Sobre o Amor II, 3; II, 47; IV, 15, 80 e 86.
[43] Cf. João 4: 24.
[44] Cf. I Timóteo 2: 4.
[45] Cf. João 14: 2.
[46] Cf. Isaías 9: 5.
[47] Cf. João 4: 24.
[48] João 6: 33.
[49] Cf. Salmo 93 (94): 10.
[50] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[51] Atos 1: 8.
[52] João 14: 26.
[53] Cf. I Coríntios 12: 8-9.
[54] Cf. I Coríntios 12: 11.
[55] João 15: 5.
[56] Mateus 23: 8-10.
[57] João 14: 16.
[58] Cf. I Coríntios 12: 8-9.
[59] Hebreus 4: 16.
[60] Gênesis 12: 1.
[61] Marcos 10: 21.
[62] Cf. Salmo 50 (51): 14.
[63] Lucas 11: 20.
[64] Mateus 12: 28.
[65] Êxodo 8: 15.
[66] Cf. Mateus 5: 5; Salmo 36 (37): 11.
[67] Cf. I Coríntios 12: 3.
[68] Cf. Salmo 35 (36): 10.
[69] Cf. I Coríntios 1: 29.
[70] Cf. Isaías 58: 5.
[71] Cf. Efésios 4: 10.
[72] Salmo 130 (131): 1-2.
[73] Jeremias 1: 8.
[74] Salmo 102 (103): 10.
[75] Efésios 2: 5.
[76] Cf. Salmo 118 (119): 128.
[77] Efésios 4: 13.
[78] Cf. Isaías 40:23; 26: 7.
[79] Salmo 103 (104): 2.
[80] Cf. Salmo 103 (104): 32.
[81] João 4: 42.
[82] João 20: 25. 28.
[83] Cf. II Coríntios 3: 18.
[84] Cf. 4: 12.
[85] Cf. João 20: 29.
[86] Cf. Salmo 83 (84): 6.
[87] Salmo 103 (104): 24.
[88] Salmo 86 (87): 3.
[89] Cf. Isaías 9: 6.
[90] Cf. Isaías 10: 23.
[91] I Coríntios 13: 13.
[92] “É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a plenitude da divindade.” (Colossenses 2: 9)
[93] I Coríntios 6: 17.
[94] Cf. I Coríntios 14: 19.
[95] Cf. João 1: 3.
[96] Cf. Colossenses 1: 15.
[97] Cf. Hebreus 1: 3.
[98] Cf. João 16: 15.
[99] Cf. João 14: 10.
[100] Cf. João 1: 14.
[101] Cf. João 1: 16.
[102] Cf. Efésios 2: 17.
[103] Cf. Efésios 2: 15.
[104] Cf. Colossenses 1: 20.
[105] Cf. Efésios 2: 6.
[106] Gênesis 22: 17.
[107] Gálatas 3: 7.
[108] Cf. Gênesis 16: 1-2; Gálatas 4: 22.
[109] Gênesis 21: 12; cf. Hebreus 11: 18.
[110] Cf. Isaías 9: 6.
[111] Cf. Salmo 35 (36): 7.
[112] Cf. Romanos 11: 33.
[113] Cf. Gênesis 12: 3.
[114] Cf. Êxodo 33: 18s.
[115] Cf. I Reis 5: 9.
[116] Cf. Colossenses 2: 9.
[117] Cf. I Colossenses 2: 3.
[118] Salmo 145: 1.
[119] Cf. João 3: 16.
[120] Salmo 91 (92): 6.
[121] Cf. Isaías 6: 1.
[122] Salmo 32 (33): 11.
[123] Cf. Isaías 14: 26-27.
[124] Salmo 89 (90): 11.
[125] Cf. Salmo 138 (139): 6.
[126] Cf. Efésios 1: 3.
[127] Cf. Efésios 2: 6.
[128] Cf. Efésios 1: 21.
[129] Romanos 8: 17.
[130] Provérbios 9: 4-5.
[131] Cf. Gálatas 3: 27.
[132] Cf. Romanos 8: 29; Filipenses 3: 21.
[133] Cf. Romanos 8: 17.
[134] Cf. Colossenses 1: 24.
[135] Cf. Salmo 111 (112): 1.
[136] Salmo 31 (32): 7.
[137] Salmo 2: 11.
[138] Cf. Atos 9: 15.
[139] Cf. II Coríntios 12: 2-4.
[140] Cf. I Coríntios.
[141] Salmo 96 (97): 10.
[142] Cf. Juízes 3: 3.
[143] João 1: 1.
[144] Atos 9: 15.
[145] Cf. II Coríntios 12: 4.
[146] No original falta o capítulo 49.
[147] Cf. Cânticos 5: 2.
[148] Cf. I Coríntios 13: 7.
[149] Cf. Salmo 131 (132): 4-5.
[150] Eclesiastes 10: 4.
[151] Marcos 14: 15.
[152] Cf. João 14: 31.
[153] Cf. Mateus 5: 3.
[154] Cf. Lucas 10: 41.
[155] Cf. Lucas 10: 42.
[156] Cf. I Coríntios 13: 12.
[157] Cf. II Coríntios 5: 7.
[158] I Coríntios 13: 12.
[159] I Coríntios 13: 10.
[160] I Coríntios 9: 26.
[161] Realidade fundamental (hypokeimenon): designa o que é inerente à hipóstase, ao fundamento     do criado, à pessoa.
[162] Juízes 13: 22.
[163] Números 12: 8.
[164]Ele cresceu como broto na presença de Javé, como raiz em terra seca. Ele não tinha aparência nem beleza para atrair o nosso olhar, nem simpatia para que pudéssemos apreciá-lo.” (Isaías 53, 2-3)
[165] Cf. Lucas 22: 33.
[166] Cf. Salmo 44 (45):3.
[167] Ibid.
[168] Salmo 29 (30): 8.
[169] Salmo 26 (27): 9.
[170] Salmo 50 (51): 11.
[171] I Coríntios 9: 26.
[172] Cf. Salmo 104 (105): 4.
[173] Salmo 16 (17): 15
[174] Questões a Thalassius, 16.
[175] São Basílio, Grande Regra, 2
[176] Homilia sobre o Salmo 44.
[177] Cf. II Coríntios 10: 6.
[178] Êxodo 33: 13.
[179] Cf. II Coríntios 5: 7.
[180] Cf. I Coríntios 13: 10.
[181] Cf. I Coríntios 2: 9.
[182] Salmo 121 (122): 3-4.
[183] Cf. Isaías 28: 16.
[184] Cf. Êxodo 19: 13.
[185] Cf. II Macabeus 1: 20s.
[186] Cf. Salmo 50 (51): 19.
[187] Cf. João 7: 38.
[188] Cf. Josué 2: 18.
[189] João 14: 23.
[190] Salmo 121 (122): 4.
[191] Cf. Orígenes, Tratado dos Princípios IV, 3, 8; Nicolas Cabasilas, A vida em Cristo III, 24.
[192] Cf. Gênesis 11: 1-9.
[193] Cf. I Coríntios 2: 9.
[194] 1: 3.
[195] Cf. Malaquias 3: 20.
[196] Cf. João 1: 13.
[197] Cf. I Coríntios 12: 27.
[198] Cf. Efésios 3: 6.
[199] Cf. II Pedro 1: 4.
[200] Cf. Efésios 1: 13.
[201] Cf. Apocalipse 4: 4.
[202] Cf. II Coríntios 3: 18.
[203] Cf. 1: 3.
[204] I Pedro 4: 11.
[205] Cf. Eclesiastes 3: 7.
[206] Salmo 74 (75): 9.
[207] Cf. I João 3: 2.
[208] Cf. I Coríntios 13: 9.
[209] Salmo 35 (36): 9.
[210] Cf. Lucas 12: 37.
[211] Cf. Mateus 26: 29.
[212] Salmo 33 (34): 9.
[213] Salmo 74 (75: 9.
[214] Salmo 22 (23): 5.
[215] Salmo 22 (23): 6.
[216] Salmo 91 (92): 5.
[217] Salmo 74 (75): 9.
[218] Cf. Salmo 22 (23): 5.
[219] Salmo 71 (72): 18.
[220] Cf. Filipenses 4: 7.
[221] Salmo 81 (82): 6.
[222] João 3: 6.
[223] João 1: 13.
[224] Cf. Gênesis 1: 26.
[225] Cf. Lucas 12: 19.
[226] Cf. Salmo 37 (38): 9.
[227] Cf. Salmo 68 (69): 3.
[228] Cf. Salmo 31 (32): 4.
[229] Salmo 34 (35): 3.
[230] Cf. Salmo 17 (18): 36.
[231] Cf. Salmo 3: 8.
[232] Cf. Salmo 16 (17): 8.
[233] Cf. Gênesis 18: 27.
[234] Salmo 143 (144): 4.
[235] Salmo 89 (90): 4.
[236] Salmo 135 (136): 5.
[237] O batismo (anaplasis)
[238] Cf. João 3: 17.
[239] Cf. Salmo 102 (103): 10.
[240] Cf. Salmo 102 (103): 12.
[241] Cf. I Coríntios 2: 15.
[242] Cf. I Coríntios 2: 14.
[243] Cf. Gênesis 49: 1ss.
[244] Cf. Isaías 53: 7.
[245] Cf. Isaías 53: 2.
[246] Cf. Mateus 23: 3-7.
[247] Cf. Tiago 4: 5.
[248] Cf. Apocalipse 1: 7.
[249] Cf. Zacarias 12: 10.
[250] Sabedoria 5: 4-5.
[251] I Coríntios 6: 3.
[252] Cf. I Coríntios 2: 15.
[253] Cf. João 14: 17.
[254] Romanos 8: 9.
[255] I Coríntios 2: 12.
[256] João 16: 13.
[257] Cf. Isaías 11: 2.
[258] Cf. Salmo 50 (51): 14.
[259] Cf. Salmo 50 (51): 12.
[260] Cf. João 14: 17.
[261] Cf. Isaías 4: 4.
[262] I Coríntios 2: 11.
[263] Cf. I Coríntios 2: 10.
[264] Cf. I Coríntios 1: 30.
[265] Cf. João 14: 6.
[266] Cf. Mateus 9: 15.
[267] Cf. Marcos 7: 2
[268] Cf. Mateus 23: 26.
[269] João 7: 24.
[270] Cf. Mateus 7: 5.
[271] Cf. Salmo 105 (106): 2s.
[272] João 8: 15.
[273] João 5: 22.
[274] Cf. II Coríntios 6: 16.
[275] Cf. Salmo 33 (34): 14.
[276] Cf. I Coríntios 4: 5.
[277] Cf. Deuteronômio 32: 9.
[278] Cf. Êxodo 1: 8-11.
[279] Cf. Êxodo 3: 10.
[280] Cf. João 1: 14.
[281] Cf. Êxodo 7: 9-20 e 8: 2s.
[282] Cf. Mateus 27: 32.
[283] Cf. Êxodo, 7: 12.
[284] Cf. Êxodo,12: 35-36.
[285] Cf. Êxodo,13: 21.
[286] Cf. Êxodo,14: 28.
[287] Gênesis 1: 1.
[288] João 1: 1.
[289] Gênesis 1: 26.
[290] João 1: 14.
[291] Gênesis 1: 26.
[292] João 1: 16.
[293] Gênesis 1: 3.
[294] II Coríntios 4: 6.
[295] Salmo 62 (63): 9.
[296] Habacuque 3: 1-2.
[297] Cânticos 2: 14.
[298] 42: 5.
[299] Cf. João 1: 6.
[300] Cf. Malaquias 3: 20.
[301] João 1: 14.
[302] II Coríntios 4: 6.
[303] I João 1: 1.
[304] Cf. Gálatas 3: 27.
[305] Cf. Isaías 61: 10.
[306] Cf. Cânticos 1: 3.
[307] Cânticos 1: 12.
[308] Cf. II Coríntios 2: 15.
[309] Cf. João 6: 55.
[310] Salmo 33 (34): 9.
[311] Cf. Mateus 5: 3.
[312] Cf. Salmo 21 (22): 27.
[313] Salmo 21 (22): 27.
[314] Provérbios 9: 5.
[315] João 6: 35.
[316] Jeremias 2: 13.
[317] Cf. Mateus 26: 26s.
[318] Cf. Colossenses 1: 16.
[319] Cf. II Coríntios 6: 16; citando Levítico 26: 11s.
[320] Cf. Isaías 66: 1.
[321] Cf. Daniel 7: 10.
[322] II Coríntios 4: 6.
[323] Cf. Romanos 5: 5.
[324] Cf. Gálatas 4: 6.
[325] Cf. I Coríntios 6: 17.
[326] Cf. Romanos 5: 5.
[327] Cf. II Pedro 1: 4.
[328] Cf. I Coríntios 2: 9.
[329] João 3: 6.
[330] Salmo 81 (82): 6.
[331] Salmo 148: 6.
[332] Salmo 134 (135): 6.
[333] Salmo 32 (33): 11.
[334] Cf. Isaías 9: 6.
[335] Cf. João 20: 22.
[336] Cf. Romanos 8: 14.
[337] Cf. Mateus 6: 9.
[338] Deuteronômio 32: 11.
[339] Salmo 79 (80): 2.
[340] Salmo 98 (99): 1.
[341] Salmo 17 (18): 11.
[342] Deuteronômio 32: 11.
[343] Cf. Eclesiastes 2: 18.
[344] Romanos 11: 36.
[345] Cf. II Coríntios 6: 16.
[346] João 15: 4.
[347] Cf. João 15: 5.
[348] João 15: 5.
[349] Mateus 11: 25-26.