sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Filocalia - Tomo II Volume 1 - Macário o Egípcio: 150 Capítulos Metafraseados


MACÁRIO O EGÍPCIO



150 CAPÍTULOS METAFRASEADOS








Macário o Egípcio


Nosso Pai entre os Santos Macário o Egípcio, que foi chamado o Grande, viveu sob o reino de Teodósio por volta do ano 370. Por causa das penas extremas da ascese a que se submeteu, ele foi um modelo e um exemplo da vida solitária. Muito versado na sagrada Escritura, ele escreveu textos de grande valia sobre diversos temas, cheios da sabedoria do Espírito, num total de cinquenta. São estes textos que Simeão Metafraste, que viveu sob Basílio da Macedônia por volta do ano 870, admirando seu valor e sabedoria espiritual, traduziu, dividindo-os em cento e cinquenta capítulos para tornar mais fácil sua compreensão. Adornando-os com o encanto e a sedução desta bela língua e com a elegância graciosa da Ática, ele os tornou mais doces do que o mel para o entendimento dos leitores. Assim, do mesmo modo como eles superam muitos outros pela altura de seus significados e a ética dos seus ensinamentos, eles não ficam atrás de nenhum pela beleza das frases e a vivacidade das formulações; encantando pela musicalidade de sua composição os corações de todos os que sobre eles se debruçam, estes textos são lidos em toda ação de graças.


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Monge no deserto de Sceta no século IV, contemporâneo e discípulo de Antônio, vizinho e mestre de Evagro, Macário o Egípcio, muito depois de sua morte, marcou com seu exemplo e com seu nome (e talvez devido ao seu nome, que significa “bem-aventurado”) uma obra da qual não foi o autor. A crítica moderna pode, senão identificar, ao menos situar (no século V, dos lados da Mesopotâmia) o autor real dos “escritos macarianos”: quanto ao essencial da obra, uma centena de logoi ou de homilias, e a Grande Carta, cujo texto é paralelo ao da Instituição Cristã de Gregório de Nysse. Estes escritos representam assim menos um testemunho pessoal preciso do que a transmissão global de uma exigência, de uma experiência e de uma história que era comum a todos os que, desde há um século, haviam se engajado na anacorese ou nas comunidades monásticas.

Os manuscritos nos chegaram sob a forma de “coleções” ou de “florilégios”, prefigurando assim a própria Filocalia. Foi um destes florilégios (extraído da Grande Carta e das homilias), intitulado Cinquenta logoi de são Macário, que foi parafraseado (fielmente, mas não sem refinamentos) no século X, nos 150 capítulos que a antologia filocálica inseriu entre os testemunhos de Pedro Damasceno e de Simeão o Novo Teólogo. O autor da paráfrase, Simeão Metafraste (Simeão o Tradutor), era um dignitário da corte imperial de Constatinopla: belo exemplo da osmose que podia existir em Bizâncio entre a vida monástica e a vida secular.

Assim, nem o autor no título, nem o autor da paráfrase são o autor real. Mas o paradoxo é apenas aparente. Pois um e outro simbolizam  a fonte e o florescimento da corrente monástica: o Evangelho, levado ao deserto até o ponto de incandescência, depois entregue à comunidade cristã e à cidade dos homens, pela interiorização e a irradiação da vida eremítica. Mas a passagem pelo deserto não era isenta de riscos. O movimento monástico pedia e implicava renúncias tais que, na nebulosa ardente de suas origens, podia, com a contribuição do deserto, evaporar nos abismos. Sem jamais perder de vista a “ruptura” mística e profética, os textos macarianos souberam e puderam, esperando tudo do mistério da encarnação e da vinda do Espírito Santo no coração, fazer sair destes abismos o movimento monástico, a fim de mantê-lo e perpetuá-lo dentro da ortodo9xia bíblica e eclesial. Esta manutenção e esta transmissão foram assim, de uma ponta a outra, desde os primeiros Padres do deserto até os nossos dias, aquilo que a experiência dos monges sempre soube guardar, atestar e revelar de mais fiel na origem e na esperança evangélicas.

Pois aqui tudo começa pelos fundamentos do Evangelho. O monge – o cristão, como o chama Macário – perde seu esforço e mesmo sua prece, se não edificar a vida interior e a vida comunitária sobre o amor e a humildade, a simplicidade, a bondade e enfim o trabalho. Macário sublinha isto constantemente: o mal absoluto é a presunção. Satisfazer-se com uma virtude ou um carisma ao invés de se descobrir ainda mais indigente e mais sedento depois de tê-los recebido, é se condenar a transformar a virtude em vício e o carisma em perdição. A vida cristã é acima de tudo uma passagem do visível ao Invisível. “O templo visível, diz ele, é uma imagem do templo do coração”. Tudo, portanto, conduz ao coração, o “lugar de Deus”.

Mas o coração humano não é “lugar de Deus” a menos que esteja quebrantado. Só a partir daí ele poderá ser restaurado e cheio da consolação do Espírito Santo. Macário nos lembra aqui, no fio de prumo do Pentecostes, de que “é impossível adquirir o Espírito Santo senão nos tornando estranhos a todas as coisas deste século e renunciando a nós mesmos para buscar o amor de Cristo”.

Mas se o cristão deve entregar tudo a este amor de Cristo, seu dom se verifica e se cumpre no amor ao próximo. Assim, o amor de Cristo se constitui menos numa fuga mística e mais num real encaminhamento: viver aqui e agora, no meio dos outros, com os outros, as primícias da deificação e da comunhão dos santos. Sobre a experiência das fronteiras onde se opera a osmose do possível com o impossível, sobre a passagem do místico ao real, sobre aunião do divino com o humano, sobre o estado de êxtase, sobre o fluxo e o refluxo da graça, sobre a luz, Macário escreve frases estonteantes de beleza e verdade. Sobretudo, e esta é sua contribuição capital – perfeitamente bíblica e ortodoxa – ele insiste no fato de que a glória – a luz que resplandece no rosto de Moisés ou nos olhos de Paulo a caminho de Damasco – é o próprio poder do Espírito, a própria energia de Deus, e que esta glória nos foi dada. “É por esta luz, dizia ele, que todo conhecimento é revelado”. Portanto, todo conhecimento que não se relaciona com esta luz é truncado, privado de sua fonte. Existe aí um discernimento que dá a medida e precisa o alcance da corrente macariana, tal como ela floresceu no testemunho crucial dos místicos bizantinos dos séculos X ao XV, para se revelar nos dias de hoje secretamente no coração dos dilemas de nosso tempo.







PARÁFRASE DE SIMEÃO METAFRASTE
EM 150 CAPÍTULOS SOBRE OS DISCURSOS
DE SÃO MACÁRIO O EGÍPCIO

DA PERFEIÇÃO NO ESPÍRITO

PRIMEIRO DISCURSO


1. É pela graça e o dom divino do Espírito que cada um de nós obtém a salvação; é pela fé e o amor, e pelo combate da livre resolução, que podemos atingir a medida perfeita da virtude, a fim de, tanto pela graça como pela justiça, herdarmos a vida eterna. Não é apenas pelo poder divino e a graça divina, e sem contribuir com nosso próprio suor, que seremos considerados dignos de progredir até a perfeição. Também não é apenas por nosso próprio esforço e só com a nossa força, sem que a mão divina participe desde o alto, que chegaremos à medida perfeita da liberdade e da pureza. Pois foi dito: “Se o Senhor não edifica a casa e guarda a cidade, aquele que guarda vela em vão, assim como em vão trabalha aquele que se esforça em construir[1]”.

2. Pergunta: Qual é a vontade de Deus, esta vontade que, suponho eu, o Apóstolo exorta e conclama a cada um que a cumpra[2]? Resposta: Consiste na perfeita purificação do pecado, na libertação das paixões desonrosas[3], na aquisição da virtude suprema, ou seja, na purificação e na santificação do coração, que se realiza de maneira perfeitamente real pela participação do Espírito perfeito e divino. Com efeito, foi dito: “Bem-aventurados os de coração puro, por que verão a Deus[4]”. E: “Tornem-se perfeitos, vocês também, assim como o Pai celeste é perfeito[5]”. E: “Que meu coração, disse Davi, seja irrepreensível graças aos seus julgamentos, a fim de que eu não seja confundido[6]”. E ainda: “Agora já não serei confundido diante dos seus mandamentos[7]”. E ainda, ao que perguntou: “Quem subirá no monte do Senhor, ou quem habitará em seu lugar santo?”, ele respondeu: “Aquele cujas mãos são inocentes e cujo coração é puro[8]”. Com estas palavras ele ensinou a eliminar perfeitamente o pecado cometido tanto em ação como em pensamento.

3. O Espírito Santo, sabendo o quanto é difícil a libertação das paixões invisíveis e ocultas enraizadas na alma, mostra com o exemplo de Davi como é possível a purificação. “Purifique-me de minhas faltas ocultas[9]”, disse ele. É isto que podemos fazer, por meio da sinergia do Espírito, se orarmos muito, se for grande a nossa fé e se nos voltarmos perfeitamente para Deus. Mas devemos também nos opor a essas faltas, e manter uma total vigilância no nosso coração[10].

4. Também o bem-aventurado Moisés mostrou por imagens que a alma não deve seguir dois desejos, o do mal e o do bem, mas apenas o do bem, e que ela não deve produzir dois frutos, o bom e o ruim, mas apenas o bom. Ele disse o seguinte: “Quando você semear o trigo não coloque numa mesma junta animais de espécies diferentes, como o boi e o asno[11]”. Faça a semeadura utilizando animais da mesma espécie. Ou seja: não devemos colocar a trabalhar no terreno de nosso coração a virtude e o vício, mas apenas a virtude. “Você não tecerá linho em sua vestimenta de lã, nem lá na sua vestimenta de linho[12]”. “Você não cultivará frutas diferentes numa mesma parcela de terra[13]”. Você não unirá um animal de uma espécie a um animal de outra espécie, mas unirá animais da mesma espécie. Todas estas imagens têm o mesmo sentido místico: como foi dito, não devemos cultivar em nós o vício e a virtude, mas só devemos deixar nascer aquilo que for engendrado pela virtude. Também não devemos deixar que a alma comungue com dois espíritos, o Espírito de Deus e o espírito do mundo, mas somente com o Espírito de Deus. Apenas do Espírito de Deus ela deverá produzir frutos. É por isso que foi dito: “Eu me dirigi a todos os mandamentos e detestei todo caminho injusto[14]”.

5. Não é apenas dos pecados visíveis, como a prostituição, o assassinato, o roubo, a gula, a maledicência, a mentira, o amor ao dinheiro, a cupidez e outros semelhantes, que deve se guardar a alma virgem que escolheu se unir a Deus, mas ainda mais dos pecados secretos de que já falamos: a concupiscência, a vanglória, o desejo de agradar aos homens, a hipocrisia, o amor ao poder, a intriga, o mau caráter, a falta de fé, a inveja, o egoísmo, o orgulho e outros vícios análogos. Pois Deus sabe que estes pecados da alma, como diz a Escritura, estão colocados sobre o mesmo plano dos pecados exteriores. “O Senhor, diz ela, dispersou os ossos daqueles que desejavam agradar aos homens[15]”. E: “O Senhor detesta o homem de sangue e intrigas[16]”, mostrando com isto que Deus sente a mesma aversão diante da intriga e do assassinato. E: “Aqueles que falam de paz ao seu próximo[17]”, etc. E mais: “É no coração que vocês cometem a injustiça sobre a terra[18]”. E: “Infelizes serão vocês quando os homens falarem bem de vocês[19]”, ou seja: quando vocês quiserem ouvir os homens falar bem de vocês, e quando se ligarem na glória e nos elogios que eles lhes fizerem. Com efeito, como é possível que permaneçam totalmente escondidos aqueles que fazem o bem? Ora, o próprio Senhor diz em outra parte: “Que a sua luz brilhe diante dos homens[20]”, no sentido de que é preciso se esforçar para fazer o bem pela glória de Deus e não para a própria glória, e sem nenhum desejo do elogio dos homens. Pois ele demonstrou que aqueles que pensam na própria glória não creem, quando disse: “Como podem vocês crer, vocês que recebem a glória uns dos outros e que não buscam a glória que vem somente de Deus?[21]”. Considerem igualmente todo o rigor que o Apóstolo exige, até no comer e no beber: ele ordena que tudo seja feito para a glória de Deus. “Quer vocês comam, quer bebam, quer façam o que for, façam tudo pela glória de Deus[22]”. E o divino João, assimilando o ódio ao assassinato, diz: “Quem odeia o seu próximo é um assassino[23]”.

6. “A caridade contempla tudo, suporta tudo, a caridade não desfalece jamais[24]”. A expressão “não desfalece jamais” mostra o seguinte: aqueles que obtiveram os carismas do Espírito de que falamos, mas que não chegaram a se liberar completamente das paixões graças à caridade plena e ativa do Espírito, estes ainda não se encontram em lugar seguro. Seu estado ainda se encontra exposto ao perigo, ao combate e ao temor, por causa dos espíritos do mal[25]. O Apóstolo mostrou que o grau da caridade que não está mais submetido à queda e à paixão é tal que mesmo a língua dos anjos, a profecia, todo o conhecimento e até os carismas da cura nada são em comparação com ele[26].

7. Eis por que ele mostrou o objetivo da perfeição: para que cada qual, discernindo o quão pobre é diante de tamanha riqueza, se apresse, tenso e com espírito ardente, na direção do fim último e dispute a corrida espiritual até conquistar o prêmio, conforme foi dito: “Corram, a fim de conquistar o prêmio[27]”.

8. “Renunciar a si mesmo” significa o seguinte: em tudo abandonar-se à Fraternidade, em nada seguir a própria vontade, nada possuir além da própria veste, a fim de, livre de tudo, se ligar com alegria ao que lhe for ordenado, considerando a todos os irmãos, em especial os que dirigem e receberam o encargo do mosteiro, como autoridades e mestres em nome de Cristo, e assim obedecer às palavras de Cristo: “Se alguém dentre vocês quiser ser o primeiro e o maior, antes seja o último e o escravo de todos[28]”, sem jamais receber dos irmãos nem glória, nem honra, nem louvor por seu serviço e sua conduta. Com efeito, foi dito: “Quando vocês servirem, seja com alegria, e não por serem supervisionados ou para agradar aos homens[29]”. Devemos sempre nos considerar devedores do serviço que prestamos aos irmãos com amor e simplicidade.

9. Quanto aos que dirigem a Fraternidade, e que estão encarregados de uma grande obra, devem combater por meio da humildade as intrigas do mal que se opõem a eles, a fim de não se prejudicar ao invés de receber maior ganho, por oprimirem com um orgulho condenável os irmãos que lhes estão submetidos. Ao contrário, como pais misericordiosos que se consagram por Deus ao serviço da Fraternidade de corpo e espírito, que cuidem dos irmãos e velem sempre por eles como filhos de Deus. Na ordem aparente, não recusem o papel de superiores: dar ordens ou aconselhar os que já receberam a confirmação, repreender ou acusar onde for preciso e exortar quando necessário – a fim de que, sob a cobertura da humildade e da mansidão, os mosteiros não sejam atirados à confusão por falta dos graus respectivos que convêm a superiores e subordinados. Mas na ordem invisível dos pensamentos, que os superiores se vejam como indignos servidores de todos os irmãos; e, como bons pedagogos a quem foram confiados os filhos de seu mestre, se esforcem com alegria e temor a Deus em atribuir boas obras a cada um dos irmãos, sem ignorar quão grande e inalienável será a recompensa que Deus lhes reserva por seus esforços.

10. Assim como os que receberam o encargo de serem pedagogos dos jovens, ainda que estes sejam seus patrões, não hesitam, em nome da educação e da ética, em lhes infligir castigos por pura benevolência, também os superiores não devem punir movidos pela cólera e o orgulho, nem para se vingar, os irmãos que necessitam de uma correção; antes, trabalhem eles por sua conversão com uma misericórdia cheia de bondade e com vistas ao benefício espiritual.

11. Todo homem que pretende se formar neste gênero de vida deve procurar antes de tudo o temor a Deus e o santo amor, que é o primeiro e o maior de todos os mandamentos[30]. Que ele peça constantemente ao Senhor para que o infunda em seu coração, e que assim adquira, fazendo-o crescer e progredir a cada dia por meio da graça na contínua e incessante lembrança de Deus. Pois é pelo esforço e a tensão, a sobriedade, a vigilância e o combate que nos tornamos capazes de adquirir o amor a Deus, este amor que a graça e o dom de Cristo geram em nós. Por meio deste fica fácil cumprir o segundo mandamento[31], ou seja, o do amor ao próximo. Aquilo que é primeiro deve, com efeito, ser preferido ao demais e suscitar um esforço maior: assim o que é segundo seguirá o primeiro. Mas se alguém negligenciar este primeiro e grande mandamento – refiro-me ao amor a Deus, que nasce de nossa disposição interior, de uma boa consciência e das ideias sãs a respeito do próprio Deus, a que virá se juntar o socorro divino – e se imaginar liberado exteriormente do cuidado para com o segundo – o serviço ao próximo- ser-lhe-á impossível praticar sã e puramente o primeiro. Pois a armadilha do mal, perturbando o intelecto privado da lembrança, do amor e da busca de Deus, ou bem fará com que as ordens divinas pareçam difíceis e penosas, acendendo na alma murmurações de tristeza e de descontentamento, bem as críticas suscitadas pelo serviço prestado aos irmãos, ou bem, depois de ter enganado o intelecto com a presunção de ser justo, inflará a alma de orgulho e a persuadirá de considerar a si mesma como sendo grande, digna de honra e cumpridora dos mandamentos.

12. Quando um homem tem a presunção de imaginar que ele cumpre os mandamentos por si próprio e com sucesso, está claro que ele se encontra em estado de pecado e que ele falta ao mandamento, por que ele julga a si mesmo sem esperar por Aquele que o julgará em verdade. Com efeito, é quando o Espírito de Deus testemunha com nosso espírito, segundo a palavra de Paulo[32], que nos tornamos verdadeiramente dignos de Cristo e filhos de Deus, e não quando nos auto-justificamos por nossa presunção. Pois foi dito: “Não é aquele que recomenda a si próprio que será aprovado, mas aquele recomendado pelo Senhor[33]”. De fato, quando o homem se despoja da lembrança e do temor a Deus, ele passa necessariamente a desejar a glória e a buscar os elogios daqueles a quem serve. Mas este homem será acusado pelo Senhor por sua falta de fé, como já mostramos. “Como podem vocês crer, disse ele, vocês que buscam a receber a glória uns dos outros e não procuram a glória que vem apenas de Deus?[34]”.

13. É por meio de um longo combate e pelo labor do intelecto, graças a pensamentos nobres e ao cuidado contínuo com todas as formas do bem, que nosso amor por Deus pode desabrochar, conforme foi dito. Pois o adversário entrava nosso intelecto e não lhe permite dedicar-se ao amor a Deus pela lembrança do bem, agradando os sentidos com as concupiscências terrestres. Com efeito, o maligno morre engasgado, por assim dizer, quando o intelecto se agarra efetivamente e sem distração ao amor e à lembrança de Deus. É assim, graças ao primeiro, único e essencial mandamento, o amor a Deus[35], que pode nascer o amor puro pelo irmão, e também por meio dele que a verdadeira simplicidade, a doçura, a humildade, a integridade, a bondade, a prece e toda a maravilhosa coroa das virtudes, recebem a sua perfeição. É assim necessário combater muito, trabalhar secreta e invisivelmente, sondar os pensamentos, exercitar no discernimento do bem e do mal os sentidos embotados de nossa alma, fortificar e reanimar seus membros cansados, sempre orientando atentamente o intelecto para Deus. Assim, nosso intelecto, continuamente ligado em Deus se tornará um só espirito com o Senhor, conforme as palavras de Paulo[36].

14. Os que amam a virtude, disse o Apóstolo, devem conduzir este combate secreto sem cessar, trabalhar e se exercitar noite e dia com vistas a cumprir cada mandamento, seja orando, seja servindo, comendo ou bebendo, ou no que quer que façam[37], a fim de que qualquer bem que obtenham seja para glória de Deus e não para sua própria glória. Toda observância dos mandamentos nos é leve e fácil uma vez que o amor a Deus facilita tudo e dispersa tudo o que ela tem de penoso. Pois é aqui que o adversário coloca todo seu empenho no combate, como mostramos: conseguir distrair o intelecto da lembrança, do temor e do amor a Deus, desviando-o, por meio das transgressões e das seduções terrestres, do bem real para os bens imaginários.

15. É dito que o patriarca Abrahão, quando foi ao encontro do sacerdote de Deis Melquisedeque, ofereceu-lhe as primícias e dele recebeu a bênção[38]. Com isto o Espírito nos eleva a uma contemplação mais elevada: devemos primeiro oferecer a Deus em holocausto, como o sacrifício mais santo, as extremidades e a primeira gordura de todo nosso corpo composto, ou seja, o próprio intelecto, a consciência e a potência do amor da alma. Devemos dar a esta lembrança de Deus as primícias e o começo dos pensamentos direitos, e mantê-los sem descanso na caridade e no amor secreto que ultrapassa a natureza. Assim, a cada dia, ajudados pela graça divina, poderemos crescer e avançar. E o peso da justiça dos mandamentos nos parecerá leve[39], uma vez que os cumpramos pura e irrepreensivelmente, assistidos pelo próprio Senhor por meio da fé que a ele dedicamos.

16. Quanto à ascese visível, qual é a maior e a primeira dentre as boas obras? Saibam, bem-amados, que as virtudes estão ligadas umas às outras e se mantêm como uma corrente sagrada: uma virtude depende da outra. Assim é que a prece depende do amor; o amor, da alegria; a alegria, da mansidão; a mansidão, da humildade; a humildade, do serviço, o serviço, da esperança; a esperança, da fé; a fé, da obediência; a obediência, da simplicidade. Do mesmo modo, seus contrários estão ligados entre si. A aversão está ligada à cólera; a cólera, ao orgulho; o orgulho, à vanglória; a vanglória, à falta de fé; a falta de fé, à dureza do coração; a dureza do coração, à negligência; a negligência, ao descaso; o descaso, à indiferença; a indiferença, à acídia; a acídia, à impaciência; a impaciência, ao amor pelos prazeres. Da mesma forma, todas as demais formas de vício estão ligadas entre si.

17. O que quer que o homem faça de bom, o maligno sempre tentará atrapalhar e manchar misturando à obra as suas sementes: a vanglória ou a presunção, a murmuração ou qualquer outro vício semelhante, a fim de que o bem não seja feito por Deus apenas, nem pela simples decisão do homem. Está escrito que Abel ofereceu a Deus um sacrifício de gordura e dos primogênitos das ovelhas, e que também Caim fez uma oferenda de frutos da terra, mas não os primeiros frutos, e que, por causa disto, Deus se agradou do sacrifício de Abel e deixou de lado as oferendas de Caim[40]. Podemos aprender aqui que é possível não fazer bem um ato bom, quando agimos com negligência, ou com desdém, ou com qualquer outro objetivo que não seja Deus. Então, o bem que tivermos feito não será agradável a Deus.

SOBRE A ORAÇÃO

18. A perseverança na oração é o fundamento de todo esforço bom e o ápice em que se cumprem as boas obras. É por meio dela, quando apelamos para que Deus nos estenda uma mão segura, que podemos adquirir as virtudes. Com efeito, é por meio da oração que se concede aos que dela são dignos de comunicar com a energia mística e reencontrar o estado de santidade que, pelo inefável amor do Senhor, volta para Deus o próprio intelecto. Foi dito: “Você trouxe alegria ao meu coração[41]”. E o próprio Senhor disse: “O Reino de Deus está dentro de vocês[42]”. O que pode significar que o Reino de Deus esteja dentro de nós, senão que a alegria celeste do Espírito grava claramente com sua marca as almas daqueles que são dignos dele? Pois as almas que, pela comunhão eficaz do Espírito, são dignas da graça, recebem as garantias e as primícias do regozijo, da alegria, da felicidade que este Espírito traz consigo, e das quais tomam parte os santos, na luz eterna no coração do Reino de Cristo. É isto, como sabemos, que o Apóstolo divino apontou. De fato, ele disse: “Ele nos consola em nossa aflição, a fim de que, pelo consolo que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar aqueles que estão em depressão[43]”. Mas foi dito também: “Meu coração e minha carne bradam de alegria ao Deus vivo”. E: “Como de gordura e tutano, minha alma será saciada[44]”. Da mesma forma, outros versículos semelhantes querem dizer a mesma coisa, e fazem alusão à alegria e à consolação eficazes do Espírito.

19. Assim como a obra da prece é maior do que todas as outras, também aquele que está tomado de amor por ela deve se esforçar e cuidar muito mais para que ela não lhe seja inadvertidamente roubada pelo vício. Pois o maligno ataca com mais força os que visam o bem maior. Aquele que tiver este objetivo precisará de uma grande vigilância e uma grande sobriedade para carregar consigo daí em diante os frutos do amor e da humildade, da simplicidade e da bondade, e finalmente do discernimento, perseverando dia a pós dia na oração. Estes frutos lhe mostrarão seu próprio progresso e crescimento nas coisas de Deus, e convidarão outros a experimentar o mesmo fervor.

20. O próprio Apóstolo divino ensina que é preciso orar sem cessar[45] e perseverar na prece[46]. E o Senhor disse: “Quanto mais justiça não fará Deus aos que por ele clamam noite e dia![47]”; e: “Vigiem e orem[48]”. É preciso, pois, “orar sempre, sem relaxar[49]”. Assim como aquele que persevera na oração escolheu a obra mais fundamental, também lhe será necessário conduzir um grande combate e sustentar um esforço contínuo, pois numerosos obstáculos do vício se opõem à perseverança na prece: o sono, a acídia, o peso no corpo, a confusão de ideias, a agitação do intelecto, o relaxamento e outras obras prejudiciais. Depois vêm as aflições, os sobressaltos causados pelos espíritos do mal, que nos combatem e nos resistem encarniçadamente, e que impedem que a alma que busca incansavelmente a verdade se aproxime de Deus.

21. Por meio de todos os esforços, por meio da sobriedade e da vigilância, da paciência e do combate da alma, por meio das penas do corpo, aquele que se dedica à oração deve agir como um homem corajoso, sem relaxar nem se abandonar ao devaneio dos pensamentos, sem dormir demais, sem se deixar dominar pela acídia, pela negligência, pela confusão e as palavras desordenadas e inconsideradas; que nada disto ele permita ocorrer durante sua reflexão, e que não se contente apenas com permanecer logo tempo em pé ou ajoelhado enquanto seu intelecto vagueia distante da realidade. Pois se ele não se preparar por meio de uma estrita sobriedade e vigilância, opondo-se à matéria dos pensamentos vãos, sondando e discernindo um por um e desejando sempre o Senhor, nada poderá impedir que ele seja de muitas maneiras e invisivelmente seduzido pelo vício, ou que venha a se orgulhar diante dos que não são ainda capazes de perseverar na oração. Vítima das armadilhas do vício, ele destruirá seu bom trabalho, oferecendo-o ao demônio ardiloso.

22. Se a humildade e o amor, a simplicidade e a bondade não regram o bom ordenamento de nossa oração, esta, que na verdade consiste apenas numa aparência de oração, fica praticamente incapacitada de nos ajudar. Não dizemos isto apenas da oração, mas de todo esforço, toda pena, como a virgindade, o jejum, a vigília, a salmodia, o serviço e de modo geral todo trabalho feito com atenção por amor à virtude. Se não procuramos ver em nós mesmos os frutos do amor, da paz, da alegria, da simplicidade, da humildade, da doçura, da candura, da fé[50] tal como esta deve ser, da paciência como da benevolência, os esforços que fazemos de nada nos servem. Pois é fato que aceitamos as penas para nos beneficiarmos de seus frutos. Mas se não encontrarmos em nós os frutos do amor, nosso trabalho terá sido feito em vão. Não diferiremos em nada das cinco virgens tolas[51], que não possuíam no coração o óleo espiritual, ou seja, a energia das virtudes de que falamos, esta energia que é dada pelo Espírito. É assim que elas foram chamadas de tolas e rejeitadas lamentavelmente do local das bodas reais, sem receber sua parte dos frutos das penas da virgindade. De fato, quando cultivamos uma vinha, de início prodigalizamos todos os cuidados e esforços para que ela dê seus frutos, mas se não os colhermos nosso trabalho terá sido aleatório. Da mesma forma, se não virmos em nós, graças à energia do Espírito, os frutos do amor, da paz, da alegria e das demais virtudes que forma enumeradas pelo Apóstolo[52], e se não reconhecermos esta graça com toda certeza e por nossa percepção espiritual, os esforços da virgindade, da prece, da salmodia, do jejum e da vigília terão sido manifestamente vãos. Pois estas penas e esforços da alma devem se cumprir, como dissemos, na esperança dos frutos espirituais. Trazer em si os frutos da virtude é um regozijo espiritual, acompanhado de um prazer incorruptível, que o Espírito suscita secretamente nos corações fiéis e humildes. Assim, as penas e os esforços podem ser considerados como aquilo que são – como penas e esforços – e os frutos, como frutos. Mas se alguém, por falta de conhecimento, julga que seu trabalho e seu esforço já são os frutos do Espírito, saiba que se consola e se ilude, e que neste seu estado se priva dos frutos realmente grandes, os frutos do Espírito.

23. Da mesma forma como alguém que se abandona inteiramente ao pecado se entrega com alegria e prazer, como se fossem naturais, às paixões contra a natureza, às paixões da desonra[53] – o despudor, a prostituição, a cupidez, o ódio, a mentira e outros caminhos do vício – também quem é verdadeiramente cristão e segue a perfeição busca com naturalidade, com grande alegria e prazer espiritual, sem penas e com toda facilidade, todas as virtudes e os frutos do Espírito que ultrapassam a natureza: o amor, a paz, a paciência, a fé[54], a humildade e toda espécie de ouro em que consiste a virtude. Este já não precisa combater as paixões do vício, pois dele foi libertado pelo Senhor e o Espirito de bondade cumulou seu coração com a paz e a alegria perfeitas de Cristo. Assim é o homem que se ligou ao Senhor e se tornou um só espírito com ele[55].

24. Os que, por serem ainda crianças, não podem se dedicar até o fim na obra da oração, devem aceitar servir os irmãos com piedade, fé e temor a Deus. Pois eles estão a serviço de um mandamento de Deus e de uma obra espiritual. Mas que não esperem um salário dos homens, honrarias ou um agradecimento. Nem se permitam nenhum murmúrio, nem orgulho, ne negligência, nem relaxamento, a fim de não manchar nem corromper tão boa obra, mas se esforcem em torna-la agradável a Deus pela piedade, o temor e a fé.

25. O Senhor desceu entre nós homens – ó misericórdia divina diante de nós! – com tanto amor e bondade, buscando não deixar por fazer nenhuma obra boa sem receber salário, levando ao todos os seres desde as menores às maiores virtudes, para não privar a ninguém de recompensa, nem que fosse um copo de água fresca. Pois ele disse: “Quem quer que ofereça nem que seja um copo de água fresca a um desses pequeninos, por que são eles meus discípulos, em verdade eu lhes digo, este não perderá sua recompensa[56]”. E também: “Quem o fizer a um deles, a mim o fará[57]”. Mas devemos fazer estes gestos por amor a Deus, não pela glória humana, por que ele acrescentou: “por que ele é meu discípulo”, ou seja: por temor e amor a Cristo. Foi em condenação aos que perseguem o bem ostensivamente, dando às suas palavras a força de uma firme sentença, que o Senhor disse: “Em verdade eu lhes digo, estes já receberam sua recompensa”.

26. Que a simplicidade diante dos demais, a candura, o amor mútuo, a alegria e a humildade sejam de algum modo colocados como um fundamento da Fraternidade, a fim de não tornarmos inútil nossos esforços por nos orgulharmos e murmurarmos uns contra os outros. Que aquele que persevera continuamente na oração não se levante contra o que não consegue o mesmo tanto. E que aquele que se dedica ao serviço dos demais não se revolte contra o que se consagra à oração. Se cada qual se dirigir ao seu irmão com tal simplicidade e estado de alma, o sobejo dos que permanecem em oração virá suprir a falta dos que servem, e o sobejo deste virá suprir a falta dos que consagram à oração. É assim que será preservada a igualdade[58], conforme foi dito: “Aquele que possuía mais não tinha nada de mais; e ao que tinha menos nada lhe faltava[59]”.

27. É deste modo que se cumpre a vontade de Deus na terra como nos Céus[60]: quando não nos levantamos uns contra os outros, como foi dito, quando estamos unidos uns aos outros não apenas sem invejas, mas com simplicidade, na partilha do amor, da paz e da alegria, considerando o progresso do próximo como se fosse nosso, e considerando que aquilo que a ele falta também a nós prejudica.

28.Quem ora com desleixo e se dedica displicentemente e com negligência ao serviços dos irmãos ou a qualquer outra obra consagrada a Deus é precisamente chamado de preguiçoso e condenado pelo Apóstolo como sendo indigno do pão que come. Pois Paulo disse: “Que o preguiçoso que não quer trabalhar não coma[61]”. E em outra ocasião: “Deus detesta a quem não trabalha”. E: “Quem não trabalha não pode ser fiel”. E a Sabedoria disse: “O ócio ensina muitos vícios[62]”. É conveniente, portanto, que toda obra consagrada a Deus, seja qual for, dê seus frutos e conduza com diligência nem que seja a uma só dentre suas benesses, a fim de que o homem não se veja totalmente estéril nem seja excluído por completo dos bens eternos.

29. Aos que afirmam ser impossível chegar à perfeição e se livrar das paixões de uma vez por todas, comungar com o Espírito bom e dele ser cumulado, é preciso opor o testemunho das Escrituras divinas, e mostrar a estes que eles conhecem pouco e que proferem perigosas mentiras. Pois o Senhor disse: “Se tornem perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito[63]”, querendo dizer com estas palavras que a pureza pode ser alcançada. E: “Quero que onde estou estejam eles comigo, para que contemplem minha glória[64]”. É o que afirma Aquele que disse: “Passarão o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão[65]”. E estas palavras do Apóstolo vão no mesmo sentido: “A fim de tornar todo homem perfeito em Cristo[66]”, e: “Até que todos alcancemos a unidade da fé e o conhecimento do Filho de Deus, no estado do homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo[67]”. Assim é que duas coisas de uma beleza perfeita são concedidas àqueles que buscam a perfeição: sustentar o combate intensa e continuamente, perseguir a perfeição até o fim na esperança desta medida – falo da elevação – sem serem tomados pelo orgulho, sendo ao contrário modestos, considerando-se pequenos por não terem ainda atingido o que é perfeito.

30. Os que dizem que é impossível alcançar a perfeição prejudicam a alma de três maneiras. Primeiro por que parecem duvidar das Escrituras inspiradas por Deus. Depois por que, não tendo atingido o fim mais alto, o objetivo perfeito do Cristianismo, e sem fazer nenhum esforço para alcançá-lo, não podem trazer em si as penas e o fervor, a sede e a fome de justiça[68], mas, cheios das formas e dos comportamentos exteriores e por algumas raras ações direitas, estão privados da esperança bem-aventurada[69], da perfeição e da purificação total das paixões. Enfim, por que, acreditando haver chegado ao fim quando apenas alcançaram algumas virtudes, como dissemos, e já não buscando com ardor a perfeição, não apenas não conseguem trazer em si a humildade, a pobreza e a contrição do coração, como ainda, justificando a si próprios[70] como se já houvesse atingido o objetivo, deixam de conhecer dia após dia o progresso e o crescimento.

31. Os que acham impossível este restabelecimento que é concedido aos homens pelo Espírito e que consiste na nova criação do coração puro[71], o Apóstolo mostra que são semelhantes àqueles que, por incredulidade, não foram considerados dignos de entrar na Terra prometida, e é por isso que seus cadáveres tombaram pelo deserto[72]. Naquela ocasião, tratava-se da ordem visível da Terra prometida, mas agora o que é falado secretamente se refere à libertação das paixões. O Apóstolo demonstra à perfeição que este é o objetivo de todos os mandamentos[73]. É aqui que se encontra a verdadeira Terra prometida e é por ela que todas essas coisas nos foram transmitidas figuradamente. O maravilhoso Paulo, buscando afirmar a obra de seus discípulos para que nenhum deles fosse colhido por um sentimento de incredulidade, disse igualmente: “Vigiem, meus irmãos, para que nenhum de vocês tenha um coração enganoso e incrédulo, a ponto de se desviar do Deus vivo[74]”. Ele diz “se desviar” não no sentido de “negar”, mas no sentido de “não crer em suas promessas”. Falando alegoricamente dessas imagens dos Judeus e comparando-as com a verdade, ele acrescenta: “Quais foram os que provocaram a Deus depois de haverem ouvido, senão aqueles que saíram do Egito sob o comando de Moisés? De quem foram eles indignos por quarenta anos? Não são os que haviam pecado, e cujos cadáveres tombaram pelo deserto? A quem jurou Deus que não entrariam em repouso, senão aos que haviam desobedecido? É assim que vemos que eles não puderam entrar na Terra prometida devido à sua incredulidade[75]”. E ele continua: “Temamos pois, enquanto durar a promessa de entrar em seu repouso, e que nenhum de vocês pareça ter chegado tarde demais. Pois a boa nova nos foi anunciada, como foi a eles. Mas a palavra que ouviram não lhes serviu de nada, por que eles não permaneceram unidos pela fé àqueles que escutaram. Quanto a nós, que cremos, nós entraremos no repouso[76]”. E ele acrescenta pouco depois: “Esforcemo-nos para entrar no repouso, a fim de que ninguém tombe seguindo o mesmo exemplo de desobediência[77]”. Ora, que outro repouso é dado aos cristãos senão a libertação das paixões do pecado e a morada plena e ativa do Espírito bom no coração puro? É assim que o Apóstolo, levantando os cristãos para a fé, diz ainda: “Aproximemo-nos com um coração verdadeiro, na plenitude da fé, com os corações purificados que qualquer consciência má[78]”. E também: “Quanto mais não purificará o sangue de Jesus Cristo nossa consciência das obras mortas, para que sirvamos aos Deus vivo e verdadeiro?[79]”. Por causa da incomensurável bondade de Deus para com os homens, a bondade prometida nestas palavras, devemos confessar, como servos reconhecidos, e considerar como certo e verdadeiro o que nos foi prometido. Mesmo que, pela lentidão e a fraqueza de nossa resolução, não sejamos capazes de nos oferecer de uma vez por todas ao Criador e não tenhamos alcançado as grandes e perfeitas medidas da virtude, ao menos pela correção e a justeza do sentimento e pela fé sã possamos encontrar alguma compaixão.

32. Quando cumprida como se deve, a obra da prece e da palavra está acima de toda virtude e de todo conhecimento. O próprio Senhor o atesta. Ele havia entrado na casa de Marta e Maria. Enquanto Marta estava ocupada em servir, Maria estava sentada aos pés do Senhor, degustando como de um santo alimento as palavras daquela língua divina. Mas sua irmã a acusou de não cooperar com o trabalho, e foi falar com Cristo. Ora, este, colocando o principal antes do secundário, lhe disse: “Marta, Marta, você se inquieta e se agita por muitas coisas. Mas somente uma coisa é necessária. Maria escolheu a boa parte, que não poderá lhe ser tirada[80]”. Ele disse isto, como notamos, não por que desprezasse a obra do serviço, mas por que colocava o maior antes do menor. Pois como teria ele aceitado ser servido? Como ele mesmo manifestamente serviu, ao lavar os pés de seus discípulos[81]? Tanto ele não impedia que servissem, como ordenou que os discípulos o fizessem uns aos outros. No entanto, veremos que os apóstolos, depois de primeiro trabalhar no serviço da mesa, preferiram a obra maior, ou seja, a prece e a palavra. “Não é justo, diziam eles, que desleixemos a palavra de Deus para servir às mesas. Escolham homens cheios do Espírito Santo e nós os encarregaremos deste serviço. E nós perseveraremos no serviço da palavra e da oração[82]”. Vê-se que eles preferiram o principal ao secundário, embora não ignorassem que um e outro são brotos da mesma raiz.


SOBRE A PACIÊNCIA E O DISCERNIMENTO

33. Os que querem obedecer a palavra de Deus e produzir bom fruto podem ser reconhecidos pelos seguintes sinais: os gemidos, o pranto, o retraimento, a hesíquia, a cabeça baixa, a prece, o silêncio, a paciência, o pesar doloroso, as penas a que o coração se entrega pela piedade. E estas são as obras: a vigília, o jejum, a temperança, a doçura, a longanimidade, a prece contínua, a meditação das divinas Escrituras, a fé, a humildade, o amor fraternal, a submissão, as penas, a vida dura, a caridade, a bondade, a afabilidade, e, em resumo, a luz, que é o Senhor[83]. Quanto aos que não trazem em si o fruto da vida, eis os sinais pelos quais podem ser reconhecidos: a acídia, a distração, a curiosidade do olhar, a desatenção, os murmúrios de revolta, a tolice. E suas obras: a gula, a cólera, a violência, a injúria, a vaidade, as palavras inoportunas, a infidelidade, a instabilidade, o esquecimento, a confusão, a cupidez, o amor ao dinheiro, a inveja, a briga, a arrogância, a falação, o riso intempestivo, a autossuficiência, numa palavra: as trevas. Ou seja, Satanás.

34. Devido a uma economia[84] divina mais elevada, o maligno não foi enviado imediatamente à Geena que lhe fora assinalada, mas deixado para ser o tormento e a prova do homem e – claro – de seu livre arbítrio, a fim de que, mesmo contra sua vontade, os tornasse mais santos, experientes e justos, tornando-se para eles causa de maior glória, e também para preparar para si mesmo, por sua própria maldade e seus projetos dirigidos contra os santos, um castigo mais justo. Assim é que o pecado, como disse o Apóstolo divino, se tornou desmesuradamente pecador[85].

35. Quando enganou a Adão[86] e assim o dominou, o inimigo despojou-o de seu poder e este inimigo passou a se chamar “príncipe deste século[87]”. Ora, é o homem que originalmente havia sido designado pelo Senhor como príncipe deste século e mestre do mundo visível[88]. Nem o fogo prevalecia contra ele, nem a água o afogava, nem as feras lhe faziam mal, nem os animais selvagens o tinham como presa. Mas desde que ele cedeu diante da mentira[89], ele cedeu ao mentiroso o seu poder. É por esta razão que em virtude de uma energia maléfica e com a permissão de Deus, os mágicos e feiticeiros se tornam capazes de fazer coisas extraordinárias. Eles dominam os animais venenosos e enfrentam o fogo e a água, como os que cercavam Janes e Jambres e se opunham a Moisés[90], ou como Simão que resistiu a Pedro o Corifeu[91].

36. Penso que o inimigo foi gravemente ferido por ter visto a glória primitiva de Adão brilhar novamente no rosto de Moisés[92], como se reconhecesse por este sinal que seu próprio reino lhe estava sendo tirado. E nada impede que também esta palavra do Apóstolo seja interpretada assim: “A morte reinou de Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não haviam pecado[93]”. Parece-me com efeito que a face glorificada de Moisés conservava a marca e a assinatura do primeiro homem criado pelas mãos de Deus e que, ao vê-la, a morte (ou seja, o diabo, autor da morte) logo suspeitou que havia perdido ser reino; mas foi no momento da vinda do Senhor que ela teve certeza desta perda. É desta glória que a partir de então se revestiram os cristãos verdadeiros. Eles destruíram a morte internamente, ou seja, as paixões desonrosas[94], que então se tornam incapazes de agir por que a glória do Espírito brilha em suas almas com toda consciência e toda certeza. Mas é no momento da ressurreição que a morte será verdadeiramente destruída[95].

37. Quando enganou a Adão por meio da mulher, por ser ela um ser semelhante a ele[96], o inimigo conseguiu roubar-lhe a glória com a qual se revestia. Assim é que Adão se viu nu e viu também sua própria vergonha[97], que antes não enxergava por que seu coração desfrutava das belezas do céu. Pois após a transgressão seus pensamentos se abaixaram até a terra e aí se aninharam. O sentimento simples e bom foi ligado ao carnal da malícia. Que o Paraíso tenha sido fechado, que tenha sido permitido à espada flamejante e ao Querubim interditar a entrada ao homem[98], tudo isto acreditamos ter se passado na ordem visível, como foi dito, mas estas coisas também se encontram em cada alma, secretamente. Pois é em torno do coração que se enrola o véu de trevas, vale dizer, o fogo do espírito do mundo, que não permite ao intelecto descobrir a Deus, nem à alma orar, ou crer, ou amar a Deus como gostaria. Tudo isto a experiência ensina àqueles que verdadeiramente confiaram-se ao Senhor pela perseverança na oração e pelo vigor no impulso que os atira contra o adversário.

38. O príncipe deste século é a vara que castiga e a chibata que fustiga os que ainda são espiritualmente crianças. Mas como foi dito anteriormente, por meio das aflições e tentações ele lhes traz grande glória e honra. Pois é através destas coisas que eles chegam a se tornar perfeitos. Mas ele próprio torna seu castigo cada vez maior e mais pesado. Numa palavra, uma imensa economia passa por ele, como já foi mencionado: o mal contribui para o bem apesar de sua intenção não ser boa. Com efeito, para as almas que são boas e cuja intenção é nobre, mesmo as aflições aparentes terminam em bem. É o que disse o Apóstolo: “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus[99]”.

39. Estas varas do castigo foram permitidas por que, por meio delas, como num forno, os vasos passados no fogo se tornem mais sólidos e os defeituosos revelem sua fragilidade por não suportarem o calor do fogo. O príncipe deste século é também um servidor e uma criatura do Senhor: ele não tenta tanto quanto gostaria, nem provoca aflições como quer, mas só age na medida da ordem que lhe é dada pelo Mestre em autorização. Pois Deus, que conhece exatamente as possibilidades de cada um, permite que cada qual seja tentado dentro dos limites de suas forças. É o que pensa também o Apóstolo: “Deus é fiel e não permitirá que vocês sejam tentados além das suas forças. Mas com a tentação ele dará também o meio de escapar, para que vocês a possam suportar[100]”.

40. Aquele que procura e bate à porta, e que não cessa de pedir, conforme disse o Senhor, este acabará por ser atendido[101]. Apenas este homem deve ter a liberdade de pedir sem negligência alguma, com sua inteligência e sua língua, permanecendo sem descanso ligado a Deus adorando-o com seu corpo, sem se misturar com os negócios do mundo nem se comprazendo com as paixões da malícia. Pois não mentiu aquele que disse: “Tudo o que pedirem com fé pela oração, vocês receberão[102]”. Os que dizem: “Ainda que tenhamos feito tudo o que foi ordenado, se permanecermos neste século sem recebermos a graça, não teremos ganhado coisa alguma”, sabem pouco e falam em desacordo com as divinas Escrituras. Pois Deus não é injusto a ponto de negligenciar o que lhe é devido, uma vez que tenhamos cumprido tudo o que devemos fazer. Apenas esteja atento, quando sua alma deixar seu pobre corpo, para se encontrar então combatendo, se esforçando, aguardando a promessa, perseverante, crente, buscando com discernimento. Eu lhe digo, e você deve acreditar, você então partirá com alegria, terá a segurança e se mostrará digno do Reino. Pois com sua delicadeza, ou seja, por sua fé e sua resolução, tal homem já estará em comunhão com Deus. Com efeito, assim como alguém que vê uma mulher e a deseja já comete adultério com ela em seu coração[103] (ainda que não manche seu corpo) também aquele que rejeitou de seu corpo as coisas do mal e que se ligou ao Senhor[104] com todo o seu desejo e toda sua busca, vale dizer, com assiduidade e amor a Deus, já está em comunhão com Deus e já recebe dele este grande dom: a perseverança na prece, o bom fervor e a vida virtuosa. Pois se a dádiva de um copo de água fresca não fica sem recompensa[105], quanto mais não dará Deus o prometido àqueles que por ele suplicam dia e noite.

41. Aos que colocam a seguinte questão: “Por que em certos dias me ocorre ter raiva do meu irmão ou de ter consciência de outras coisas que me acontecem contra a minha vontade?”, é preciso dizer o seguinte: que o homem nunca cessa de lutar e de se esforçar para se contrapor ao maligno e aos maus pensamentos. Mas onde estão as trevas das paixões e da morte, e falo aqui dos cuidados com a carne, é impossível que, secreta ou visivelmente, não se produza o mal como seu fruto mais apropriado. Do mesmo modo como uma ferida no corpo, na medida em que não for completamente curada, não deixa de se putrefazer pelos humores do corpo, não deixa de umedecer e purgar, ou de inchar e entumecer, ainda que tenha sido cuidada e que não lhe tenhamos recusado nada do que fosse indicado pela tratá-la (e se continuar sendo negligenciada poderá corromper e até destruir o corpo inteiro), creiam-me, também as paixões da alma, ainda que tenham sido objeto de muitos cuidados, continuam a queimar por dentro. Mas pela atenção perseverante e com a graça e a sinergia de Cristo estas paixões podem vir a receber sua cura total.  Pois existe uma mancha secreta e existem paixões estrangeiras – as trevas das paixões – que, contra a natureza pura do homem e por causa da transgressão de Adão penetraram toda a humanidade. E isto perturba e mancha o corpo e a alma. Mas assim como o ferro passado no fogo é batido e purificado, ou como o ouro misturado ao cobre e ao ferro só pode ser separado deles pelo fogo, também a alma, passada no fogo bom do Espírito e batida pelos santos sofrimentos do Salvador, é purificada de todas as paixões e de todos os pecados.

42. Assim como diferentes lamparinas iluminadas graças a um mesmo e único azeite e a uma mesma é única chama não projetam em igual medida a luz do fogo, também os carismas ligados às diferentes boas obras difundem de modo diverso a luz viva do Espírito bom. Também numa cidade onde moram juntas numerosas pessoas que comem do mesmo pão e bebem da mesma água, algumas são adultos, outras adolescentes, outras crianças, outras idosos, e entre eles existem grandes distâncias e diferenças; também o trigo semeado no mesmo campo dá espigas diferentes, mas que são reunidas num mesmo are e guardadas no mesmo paiol; também, creio eu, quando vier a ressurreição dos mortos diferente glória será atribuída aos que se levantaram e se revelará em função de suas boas obras, conforme a participação do Espírito divino que desde aqui de baixo terá habitado neles. É o que disse o Apóstolo: “Mesmo uma estrela difere em glória de outra estrela[106]”.

43. Mesmo que algumas estrelas sejam menores do que outras, todas brilham com uma luz que é exatamente a mesma. A imagem, assim, é bem clara. Devemos nos dedicar exclusivamente a isto: quando um homem nasce do Espírito Santo ele deve se lavar do pecado que habita nele. Pois este mesmo nascimento pelo Espírito Santo traz em si a imagem da perfeição sob um aspecto: na forma e nos membros, certamente não no poder, ou inteligência, ou coragem. Quem chega ao estado de homem perfeito e na medida da idade adulta[107] suprime em si naturalmente tudo o que pertencia à criança[108]. É o que diz o Apóstolo: “Desaparecerão das línguas e as profecias[109]”. Com efeito, do mesmo modo que o homem maduro não aceita nem os alimentos nem as palavras que convêm à criança, recebendo-as com indignação por que sua vida é outra, também o que cresce para a perfeição das obras evangélicas deixa o estado infantil para a perfeita maturidade. É o que diz o Apóstolo divino: “Tornado homem, eu suprimi o que era infantil[110]”.

44. Aquilo que nasce do Espírito é de certa maneira, como já dissemos, perfeito, da mesma forma como dizemos que uma criança é perfeita por que integra todas as partes da totalidade. Mas o Senhor não concede o Espírito e a graça para que tombemos nos pecados. Os próprios homens são responsáveis pelo mal que fazem por não se conformarem com a graça. Por isto se tornam presa do mal. Por causa de seus próprios pensamentos naturais o homem pode escorregar quando é negligente, desdenhoso ou presunçoso. Escute o que disse Paulo: “E para que eu não me orgulhasse ele me colocou um aguilhão na carne, um anjo de Satanás[111]”. Como se vê, mesmo os homens que alcançaram grandes alturas precisam estar em guarda. Se o homem não dá ocasião a Satanás, este não pode dominá-lo pela força. Então este homem considera que o q eu faz não pertence nem a Cristo nem ao adversário. Somente quando ele se confiar até o fim à graça do Espírito é que ele pertencerá a Cristo. Se ele não fizer isto, ainda que tenha nascido do Espírito, ainda que participe do Espírito Santo, ele seguirá a vontade de Satanás por seu próprio alvitre[112]. Com efeito, se o Senhor ou Satanás o houvessem tomado pela força, o homem não seria responsável por cair na Geena ou por obter o Reino.
45. Quem ama a virtude deve velar para adquirir o grande discernimento que lhe permita conhecer a diferença entre o bem e o mal e as diversas armadilhas do maligno, que costuma enganar a muito com aparições espetaculares. O discernimento também deve permitir-lhe provar e compreender o que existe de útil em cada coisa, quando lhe faltar a certeza. Com efeito, se, querendo testar a castidade de sua esposa, um homem se apresenta a ela à noite como sendo um estranho, mesmo que ela o repila, ele se alegrará por saber que ela é avessa a este tipo de abordagem, e saudará sua fidelidade. Da mesma forma, devemos nos colocar em guarda contra as intervenções dos seres dotados de inteligência. Você deve repelir mesmo os próprios seres celestes, e estes se alegrarão muitíssimo, e lhe permitirão ter uma parte ainda maior da graça. Eles o encherão de alegria espiritual reconhecendo seu puro amor pelo Senhor. Não se entregue depressa demais, pela leviandade do espírito, às intervenções dos seres espirituais que vêm ao seu encontro, ainda que sejam anjos, mas permaneça ponderado, submetendo estas coisas ao exame mais atento, unindo-se ao bem e expulsando o mal. É assim que você fará crescer em si os efeitos da graça, coisa que o pecado é incapaz de produzir, ainda que se disfarce com a aparência do bem. Pois Satanás, como disse o Apóstolo, sabe muito bem se transformar em anjo de luz para nos enganar[113]. Mas ainda que ele se cerque de aparições brilhantes ele não será capaz de suscitar a menor energia positiva, como já foi dito. É assim que sua marca se revela com precisão. Pois ele não pode fazer funcionar nem o amor a Deus, nem o amor ao próximo, nem a mansidão, nem a humildade, nem a alegria, nem a paz, nem a calma dos pensamentos, nem o desprezo pelo mundo, nem o repouso espiritual, nem o desejo dos bens celestes, nem a detenção das paixões e dos prazeres, coisas estas que são todas manifestamente efeitos da graça. Pois foi dito que o fruto do Espírito é o amor, e também a alegria, a paz[114], etc. O maligno coloca toda a sua habilidade e todo o seu poder em suscitar a vaidade e o orgulho. A luz do intelecto que brilhou em sua alma, terá ela vindo da energia de Deus ou da de Satanás? Mas se a ação do discernimento foi vigorosa, os sinais da diferença aparecerão claramente à própria alma, desde que a ela tenha sido dado o sentido espiritual. Com efeito, assim como o vinagre e o vinho parecem ser iguais para a visão, mas são distintos ao paladar, que julga o que é próprio de um e de outro, também a alma, por meio deste sentido espiritual e desta energia, pode julgar os carismas do Espírito e os fantasmas do estrangeiro.

46. A alma deve, com seus próprios olhos, examinar e observar o melhor que puder para ver se não caiu, ainda que só um pouco, sob o poder do adversário. Com efeito, quando um animal é pego numa armadilha por um de seus membros, é preciso abatê-lo inteiro para que ele possa cair nas mãos dos caçadores. É isto que os inimigos costumam fazer com a alma, e que o Profeta revelou claramente quando disse: “Eles colocaram armadilhas sob meus pés e abateram a minha alma[115]”.

47. Quem quiser entrar pela porta estreita do poderoso e levar seus bens[116] não deve se refestelar nos prazeres e no fastio do corpo, mas se fortalecer no Espírito bom lembrando-se d’Aquele que disse que a carne e o sangue não herdarão o Reino de Deus[117]. E como fazer para nos fortalecer no Espírito? É preciso estarmos atentos ao Apóstolo, quando ele diz que os homens consideram como loucura a sabedoria de Deus[118]. E o Profeta disse: “Eu vi o Filho do homem. Sua aparência era desprezível e decadente, mais do que todos os filhos dos homens[119]”. Assim, é preciso a quem quiser se tornar filho de Deus, que primeiro se humilhe da mesma maneira, que passe por louco e desonrado, que não proteja seu rosto das cusparadas[120], que não busque nem a glória nem a beleza deste século, nem nada de semelhante, que não tenha onde repousar a cabeça[121], que seja ultrajado, considerado como nada, visto por todos como algo a ser desprezado e pisoteado, combatido secreta e visivelmente e atacado em seus pensamentos. Só então o Filho de Deus – ele, que disse: “Eu habitarei e caminharei no meio de vocês[122]” – surgirá em seu coração, e então este homem receberá o poder e a força de amarrar o poderoso, de levar seus bens[123], de caminhar sobre a áspide e o basilisco[124], sobre os escorpiões e as serpentes[125].

48. Não é pequeno o combate que nos é proposto: Destruir a morte. Pois foi dito: “O Reino de Deus está dentro de vocês[126]”. Mas de certa maneira aquele que nos combate e nos cativa está também dentro de nós. Que a alma não fraqueje em nada enquanto não levar à morte aquele que a mantém cativa! Então passará toda dor, toda tristeza e todo gemido[127], pois a água brotará na terra sedenta[128] e no deserto surgirá um transbordamento de água[129]. De fato, o Senhor prometeu encher de água viva o coração deserto, primeiro por intermédio do Profeta, que disse: “Darei água aos que têm sede e caminham na aridez[130]”; depois, em pessoa, quando disse: “Quem bebe da água que eu dou não voltará a ter sede[131]”.

49. É claro que uma alma vítima da acídia é também uma vítima da falta de fé. É por isso que ela procrastina dia após dia, sem receber o Verbo. Muitas vezes ela alça voo em sonhos, sem compreender o combate interior, por que se deixa levar pela presunção. Ora, a presunção é uma cegueira da alma, pois não permite que ela veja sua própria enfermidade.

50. Assim como a criança recém-nascida conserva a imagem do homem perfeito, também a alma é uma imagem de Deus que a criou. Assim, enquanto a criança cresce, ela conhece parcialmente a seu pai. Mas quando a criança chega à idade madura, então o pai conhece o filho e o filho ao pai, e o tesouro do pai é revelado no filho. Do mesmo modo a alma antes da desobediência deveria progredir e chegar ao homem perfeito[132]. Mas por causa da transgressão ela foi engolida pelo oceano do esquecimento e caiu num abismo de erros, estacionando nas portas do inferno. Estando afastada a grande distância de Deus, a alma estava incapacidade de se aproximar e de conhecer seu Criador. Mas, primeiramente por intermédio dos Profetas, Deus a fez voltar-se, chamou-a, atraiu-a para o seu conhecimento. Finalmente ele próprio veio e arrancou-a do esquecimento e do erro. Depois de haver destruído as portas do inferno ele foi até a alma desgarrada e deu a si próprio como exemplo: e é desta maneira que se tornou possível à alma chegar à medida da idade madura e à perfeição do Espírito. O Verbo de Deus se deixou voluntariamente tentar pelo maligno, suportou as injúrias e os ultrajes, as violências e as bofetadas de suas mãos insolentes, e, por fim, a morte na cruz[133], mostrando, como dissemos, a disposição que devemos ter diante daqueles que nos insultam, que nos ultrajam ou que nos levam à morte, a fim de que o próprio homem se coloque também diante deles como um surdo e  um mudo que não abre a boca[134] e que, vendo a ação e a sutileza da malícia, perfurado por pregos como na cruz, grite com voz forte para Aquele que pode livrá-lo da morte[135] e diga: “Purifique-me de minhas faltas ocultas[136]”, e: “Se eles não prevalecerem sobre mim ei serei irrepreensível”. Então, tornando-se absolutamente irrepreensível, que ele encontre Aquele que a ele tudo submeteu[137], que ele reine[138] e repouse com Cristo. Pois foi por causa da desobediência que a alma, afogada em pensamentos materiais e imundos, perdeu a razão. Assim, não será para ela um pequeno esforço emergir de tamanho caos, compreender as sutilezas da malícia e correr a se unir ao intelecto que é sem começo.

51. Se você pretende retornar a si mesmo, homem, e recuperar a glória primeira que você possuía e que a desobediência o fez perder, do mesmo modo pelo qual no começo você negligenciou os mandamentos de Deus e deu atenção às ordens e ao conselho do inimigo, agora se afaste daquilo que escutou e volte para o Senhor. Porém saiba que será com muito esforço e suor do seu rosto, como foi dito[139], que você recuperará sua riqueza. Não há vantagem para você em adquirir o bem sem penar. Pois o que você recebeu sem esforço e suor você sua herança entregou ao inimigo. Reconheçamos assim aquilo que perdemos e retomemos a lamentação do Profeta: “Nossa herança foi entregue aos adversários, e nossa casa aos estrangeiros[140]”, pois nós transgredimos o mandamento, cedemos às nossas próprias vontades, nos comprazemos em nossos pensamentos imundos e terrestres a ponto de termos afastado nossas almas a uma enorme distância de Deus e de nos termos tornado como órfãos sem pai. Portanto, quem quiser cuidar de sua alma deverá combater tanto quanto puder para destruir os maus pensamentos e derrubar toda altura que se tenha levantado contra o conhecimento de Deus[141]. Para o homem que se esforça sem descanso para guardar o templo de Deus[142] virá Cristo, ele que prometeu permanecer conosco e juntos caminharmos[143]. Então a alma recuperará sua herança e será julgada digna de se tornar templo de Deus. Pois ele próprio, depois de haver expulsado o maligno em semelhante combate, passará a reinar em nós.

52. As palavras que o Criador disse a Caim na ordem visível: “Você andará errante pela terra, gemendo e tremendo[144]”, constituíram, na ordem oculta, uma figura e uma imagem de todos os pecadores. Foi assim que a raça de Adão, depois de se ter separado do mandamento e se tornado culpada de seus pecados, se tornou sacudida por pensamentos instáveis e se encheu de medo, negligência e perturbação. O próprio inimigo assalta com todas as sortes de concupiscências e prazeres todas as almas não nascidas de Deus e as despeja como grãos numa peneira. Não obstante, o próprio Senhor, para mostrar o quanto perpetuam a imagem da malícia de Caim os que seguem as vontades do maligno, disse repreendendo-os: “Vocês querem satisfazer os desejos de seu pai, o assassino do homem. Pois ele feriu o homem desde o início e não permaneceu na Verdade[145]”.

53. É importante compreender o quanto a visão do rei terrestre é desejada e procurada pelos homens. Qualquer um que passe pela cidade em que reside o rei deseja ver pelo menos a magnificência e a distinção de suas vestes, a não ser que outros bens, espirituais, o façam desprezar e desdenhar destas coisas: este homem foi alvejado por uma outra beleza e deseja outra glória. Então, se os homens carnais se esforçam assim para ver o rei mortal, quanto mais não serão estimulados a ver o Rei imortal aqueles nos quais correu uma gota do Espírito bom e cujos corações foram tomados pelo amor divino? É por isso que eles se afastam de todo amor pelo mundo, a fim de poder levar continuamente em seu coração tanto desejo por Deus e não ter nada nem ninguém antes dele. São poucos, bem poucos os que desta maneira coroam um bom começo com um fim igual e que permanecem até o final sem cometer nenhuma falta. Por que muitos são penetrados pela compunção, muitos têm participação na graça celeste e são tocados pelo amor a Deus[146], mas por não suportarem as inevitáveis penas e as tentações do maligno que nos assalta com suas artimanhas diversas e multiformes, permanecem no mundo e são engolidos pelo abismo, por negligência e fraqueza de pensamento, ou por que são prisioneiros de um pendor passional pelas coisas terrestres. Com efeito, os que querem seguir até o fim com toda certeza não suportam que qualquer outro desejo ou amor venha se misturar ao seu amor celeste.

54. Assim como são grandes e indizíveis os bens prometidos por Deus, do mesmo modo eles não vêm a nós sem numerosas penas e muitos combates conduzidos com esperança e fé. Cristo disse claramente: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e venha[147]”. E também: “Se alguém não detesta seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua esposa e filhos e até sua própria alma, não pode ser meu discípulo”. Mas a maior parte dos homens é de tal modo inconsciente que pretende obter o Reino, herdar a vida eterna e reinar continuamente com Cristo – este grande bem que ultrapassa o entendimento – vivendo segundo suas próprias vontades e seguindo-as, ou melhor, seguindo aquele que espalha estes pensamentos vãos e manifestamente nocivos.

55. Renunciar a si mesmo implica escapar da queda até o final, desprezando totalmente a si mesmos e a todas as concupiscências do mundo, suas distrações, seus prazeres e as ocupações que são aí suscitadas. Cada um é expulso do Reino por sua própria vontade, por não ter em verdade escolhido as penas nem renunciado a si mesmo, buscando, ao contrário do amor divino, a auto-complacência nas coisas deste século e não entregando a Deus todas as inclinações de sua própria vontade. Um único exemplo bastará para ajudar quem nos escuta a entender. Pois cada qual discerne com cuidado e sem dúvida não ignora se o que tentou fazer convinha ser feito. A incerteza se manifesta primeiro no coração. Os pratos da balança revelam antes de tudo no interior à consciência de cada um aquilo que pende para o amor a Deus ou para o amor ao mundo, e só então a coisa é declarada exteriormente. Como foi dito, cada qual discerne com cuidado, por exemplo, se lhe acontecer ter que disputar com seu irmão. Começa uma luta consigo mesmo, e a pessoa se interroga: “Falarei com ele? Não falarei? Responderei aos ultrajes que dele suportei? Será melhor calar-me?”. Ele segue o mandamento de Deus, sem entretanto se afastar de sua própria glória, e não escolhe a total renúncia a si mesmo. Se então a inclinação do amor pelo mundo fizer, ainda que por muito pouco, pender a balança do coração, logo as más palavras avançarão até seus lábios. Assim, o intelecto, tensionado interiormente como um arco, ferirá o próximo pela língua, e o mal progredirá: a coisa acabará em briga, talvez em feridas e até morte. Devemos assim considerar simultaneamente por onde começou e a que temível fim levou este breve movimento da alma. Creia-me, é isto que acontece com todo pecado e todo hábito: a malícia agrada e acaricia a vontade da alma por meio das concupiscências do mundo e dos prazeres da carne. É assim que acontece o adultério, o roubo, a cupidez, a vanglória e toda espécie de mal.

56. Os próprios bons hábitos podem acabar na vanglória, o que é considerado por Deus na mesma gravidade do roubo, da injustiça e de outros grandes pecados. Pois foi dito: “Deus dispersou os ossos daqueles que tentaram agradar aos homens[148]”. É assim que, mesmo através do bem, o inimigo quer ser servido e honrado, a tal ponto é ele mentiroso, múltiplo, tortuoso e fértil em armadilhas.

57. Aquilo que um homem ama do mundo torna sua reflexão pesada, puxa-a para baixo atraindo-a e não a deixando emergir. A balança destas coisas, que faz pender a vontade para um ou outro prato, que a pesa, está como que suspensa no coração. É aí que é submetido ao exame e posto à prova todo o gênero humano, e seguramente os cristãos, quer vivam nas cidades ou nas montanhas, em mosteiros, nos campos ou nos desertos. Pois é claro que quem se deixa atrair por sua plena vontade para aquilo que ama, não dedicou a Deus todo o seu amor. Assim é que um ama os domínios que adquiriu, outro ama o ouro, outro ama encher o ventre, outro se comprazer nas concupiscências da carne, outro ama a sabedoria das palavras para adquirir uma glória efêmera. Um ama o poder, outro as honrarias que vêm dos homens, outro ama a cólera e o ressentimento; pois atirar-se totalmente à paixão demonstra o amor que se tem por ela. Alguém ama falar sem necessidade, outro ama simplesmente divagar, ou a se dedicar a discursos ociosos, ou a ser um mestre que ensina, tudo pela glória que provém dos homens. Um se deixa levar pelo relaxamento e a inconsequência, outro se compraz com enfeites e roupas, este no sono, aquele nos divertimentos. Outro se agarra a qualquer coisa do mundo, pequena ou grande, possuído por elas sem conseguir se levantar. Pois quem não combate nobremente uma paixão e não se opõe a ela, nela se comprazendo e sendo por ela possuído, é por ela atraído como num laço e coloca sua reflexão sob seu jugo, impedindo-se de se dirigir para Deus e de adorar a ele somente[149]. Pois a alma que verdadeiramente dirige para o Senhor seu impulso se volta para ele com todo seu dinamismo, renuncia a si própria e não mais segue as vontades de sua própria inteligência.

58. Vamos ensinar por meio de alguns exemplos o modo como o homem se perde por sua própria vontade. Pois é por amor a qualquer coisa do mundo que ele se atira no fogo, mergulha no mar ou se entrega ao cativeiro. Suponhamos que a casa de alguém comece a se incendiar. Quem quiser se salvar, uma vez que se dá conta do incêndio, foge nu se preciso, abandonando tudo o que possuía dentro da casa e só cuidando de preservar a própria vida. Mas alguém pode resolver salvar os móveis e se por a carregá-los. Atarefado com eles enquanto a casa pega fogo, acabará por ser queimado junto com as coisas que tentava salvar. Vemos assim que o amor a uma coisa passageira à qual ele amou mais do que a si mesmo o atirou ao fogo por sua própria vontade. Outro exemplo: durante um naufrágio, um homem se despoja de tudo e se atira ao mar para salvar sua vida, enquanto outro tenta conservar suas roupas e é engolido pelas águas; por causa de um pequeno ganho, este perde a si mesmo junto com o que tentava conservar. Ou ainda: supomos que seja anunciado um ataque inimigo. Um, assim que ouve a notícia, foge a toda pressa, sem se preocupar com nenhum de seus bens; outro, por não crer na notícia, ou por querer terminar algum negócio, demora-se e é capturado quando chegam os adversários. Vemos assim que é pela própria vontade, pela negligência e pela ligação a certos bens do mundo, que podemos perder o corpo e a alma.

59. São poucos os que realmente adquiriram o perfeito amor a Deus, considerando como nada os prazeres e as concupiscências do mundo e suportando pacientemente as tentações do maligno. Mas nem por isso se deve desesperar, nem negligenciar a boa esperança. Mesmo que muitos navios naufraguem, sempre haverá os que conseguem atravessar o mar e chegar ao porto. É por isso que precisamos de muita fé, muita paciência, muita atenção e muitos combates. Também precisamos ter fome e sede do bem, com inteligência e discernimento, e ao mesmo tempo sermos resolutos e insistirmos em obter aquilo que pedimos. Pois a maior parte dos homens, como dissemos, pretendem alcançar o Reino sem penas e sem suores. Eles chamam de bem-aventurados os santos e desejam suas honrarias e seus carismas, mas não querem tomar parte de suas aflições, de suas penas e de seus sofrimentos. É isto que todos os homens desejam, mesmo os prostituídos e os publicanos, mas é então que lhes chegam as tentações e as provas, a fim de que se distingam os que de fato amaram o Mestre e para que estes alcancem com toda a justiça o  aquilo que

60. Considere que é nas aflições e nos sofrimentos, na paciência e na fé, que estão escondidas as promessas, a própria glória e a recuperação dos bens celestes. Pois eu afirmo, é preciso que o trigo lançado à terra ou que a planta enxertada encontre primeiro um estado de podridão e de aparente desonra, para que possam depois recuperar a nobreza de suas vestes e a multiplicação de seus frutos. Com efeito, se não lhes fosse dado passar por esta podridão e por aquilo que, por assim dizer, os desonra, eles não poderiam se revestir com a nobreza última e com a beleza da contemplação. É o que pensa igualmente o Apóstolo: Ele disse: “É por meio de muitas aflições que entraremos no Reino dos céus[150]”. E o Senhor: “É pela paciência que vocês salvarão suas almas[151]”. E ainda: “Vocês serão afligidos pelo mundo[152]”.

61. Na mesma medida com que cada um de nós for julgado por sua fé e esforço digno de participar do Espírito Santo, será neste dia glorificado seu corpo. Pois aquilo que hoje ele reservou dentro de si, por sua alma, será igualmente revelado fora, em seu corpo. O exemplo disto nos é dado pelas árvores: quando passa o inverno e o sol brilha mais claro e forte e sopram os ventos, elas crescem desde dentro e, como se se os ventos, elas crescem desde dentro e, como se se vestissem, se cobrem de folhas, flores e frutos. Da mesma forma, neste momento as flores da ervas saem do seio da terra que as cobria e a revestem com um véu de beleza. É a este respeito que falou o Verbo de Deus, quando disse: “Mesmo Salomão em toda glória jamais se vestiu como uma delas[153]”. Pois todas estas coisas são símbolos, exemplos e imagens daquilo que será dado aos que serão salvos na ressurreição. Pois para todas as almas que amam a Deus, ou seja, para os verdadeiros cristãos, o primeiro mês, o xântico[154] ou mês de Abril, é aquele em que se revela o poder da ressurreição. A divina Escritura diz: “Este mês será para vocês o primeiro dos meses do ano[155]”. É ele que recobrirá as árvores nuas revestindo-as com a sua glória original, escondida dentro de seu corpo. Também os cristãos serão glorificados por esta luz inefável que neles habita desde agora, vale dizer, pelo poder do Espírito, o qual será para eles vestimenta, alimento, bebida, regozijo, alegria, paz e, para resumir, vida eterna.


SOBRE A ELEVAÇÃO DO INTELECTO

62. Pela glória de Deus que brilhava em sua face e que nenhum homem conseguia fitar[156], o bem-aventurado Moisés ilustrou o modo como os corpos dos santos, na ressurreição dos justos, serão glorificados com esta glória que as almas fiéis dos santos são consideradas dignas de carregar desde hoje no homem interior. Pois até nós, como foi dito, mesmo com o rosto descoberto, mas no homem interior, refletimos a glória do Senhor, transfigurados na mesma imagem, de glória em glória[157]. Também está escrito que Moisés não procurou alimento nem bebida durante quarenta dias e quarenta noites[158]. Esta é uma obra impossível para a natureza humana, a menos que ela comungue com a natureza espiritual, a mesma que os santos já recebem do Espírito.

63. A glória com que se enriquecem aqui em baixo as almas dos santos, conforme foi dito, cobrirá e revestirá os corpos nus na ressurreição e os elevará aos céus. Então eles repousarão de forma ininterrupta, corpos e almas, no Reino de Deus. Com efeito, quando criou Adão, Deus não lhe deu asas corpóreas, como aos pássaros. Isto por que ele lhe enviaria as asas do Espírito no momento da ressurreição, a fim de que, graças a elas, ele se tornasse leve e fosse arrebatado até onde o levasse o Espírito. Mas aos santos foram dadas desde já asas inteligíveis que os elevam até a inteligência celeste.  Pois outro é o mundo dos cristãos, outras suas vestes, outra sua mesa, outro seu regozijo. Pois sabemos que Cristo virá do céu, que ele ressuscitará aqueles que estão adormecidos desde o começo do mundo – como o atestam as divinas Escrituras – e que, dividindo-os em dois grupos[159], ele chamará aqueles que portam seu sinal, o selo do Espírito divino, e os colocará à sua direita. Com efeito, ele disse: “Minhas ovelhas ouvem minha voz e a conhecem[160]”. Então seus corpos serão revestidos de glória divina, as das boas obras e as do Espírito, que ele concedeu aos santos trazer em si desde aqui em baixo. Assim glorificados pela luz divina e levados ao céu ao encontro do Senhor, conforme está escrito[161], com ele permanecerão para sempre.

64. Aos que se preocupam em levar o melhor possível a vida cristã, convém antes de tudo vigiar com todo ardor a parte da alma que rege a reflexão, à que rege o julgamento e à que rege a conduta, a fim de, depois de alcançar o discernimento do bem e do mal e de haver separado da natureza pura as paixões introduzidas nela contra a natureza, possam viver sem ferir a ninguém, como vivem aqueles que possuem o olho do discernimento. Pois existe na alma uma vontade de conservar os membros puros dos danos dos sentidos, de se manter à distância das distrações do mundo, e de evitar que o coração estenda para o mundo os braços de seus pensamentos, guardando-os e preservando-os das preocupações e dos prazeres vulgares. Assim, quando o Senhor ver alguém levar deste modo sua vida, mantendo-se rigorosamente disposto a servi-lo com temor e tremor[162], ele aumentará o socorro que provém de sua graça. Com efeito, que pode Deus fazer por aquele que se entregou ao mundo voluntariamente e que só segue seus próprios prazeres?

65. As cinco virgens prudentes que receberam nos vasos de seus corações o azeite estranho à sua própria natureza – ou seja, a graça do Espírito – puderam entrar no local das núpcias com o Esposo. Mas as outras, as tolas, más, que permaneceram em sua própria natureza, não eram sóbrias e vigilantes, não se deram ao trabalho de abrir o coração a tal azeite de felicidade[163], uma vez que ainda estavam na carne. Mas elas estavam como que adormecidas pela negligência, o relaxamento e a presunção da justiça, e por isso o lugar das núpcias do Reino[164] foi fechado para elas. Pois está claro que elas foram retidas por um laço e uma ligação com o mundo, uma vez que não levaram ao Esposo celeste seu amor total e seu desejo ardente. De fato, as almas que buscam o que é estranho à natureza, esta santificação do Espírito, e que dedicam a Cristo todo o seu amor, aí elas caminham, aí oram, aí pensam, aí agem, depois de se haverem separado de todo o resto. Pois os cinco sentidos da alma, a compreensão, o conhecimento, o discernimento, a paciência e a piedade, ao receberem a graça do alto e a santificação do Espírito, tornam-se verdadeiramente como as virgens sábias[165]. Mas se eles se abandonam à própria natureza, comportam-se como as virgens tolas e se mostram como filhos do mundo e da ira[166].

66. Assim como recebemos um mal que é estranho à nossa natureza, este mal que se introduziu em nós pela transgressão do primeiro homem[167] e que com o tempo se tornou para nós como que uma natureza, do mesmo modo, por meio desta graça também estranha à nossa natureza, vale dizer, pelo dom celeste do Espírito, o mal será expulso desta e seremos restabelecidos na pureza original. Mas se não chegarmos a este ponto através de muita oração, fé e atenção, desviando-nos das coisas do mundo, e se nossa natureza manchada pelo mal não for santificada por este amor que é o Senhor[168], se até o fim não nos guardarmos de toda falta assumindo para nós os mandamentos divinos, não poderemos alcançar o Reino celeste.

67. Quero expor, na medida do possível, uma questão delicada e profunda. O Senhor infinito e incorpóreo se fez corpo em sua infinita bondade. Ele, que é grande e maior do que o ser, se fez pequeno, se podemos dizê-lo, a fim de poder se aliar às suas criaturas intelectuais, ou seja, às almas dos santos e dos anjos, para que elas fossem capazes de participar da vida imortal de sua Divindade. Pois cada criatura – anjo, alma, demônio – é um corpo conforme à sua natureza própria. Com efeito, se estes seres são sutis, nem por isso eles deixam de ser substância, caráter e imagem, corpos sutis conforme a sutileza de sua natureza. Com efeito, assim como o corpo terrestre é denso por sua substância, também a alma – que é um corpo sutil – envolve e reveste os membros deste corpo terrestre. Ela envolve o olho, por intermédio do qual também ela vê. Ela envolve o ouvido, por meio do qual também ela escuta. Ela envolve a mão, o nariz, e, por assim dizer, todo o corpo e seus membros. Assim a alma permanece unida a todo o corpo, por meio do qual ela executa tudo o que faz ao longo da vida. Do mesmo modo, a inexprimível e incompreensível bondade de Cristo se fez pequena, tomou um corpo para si, uniu-se às almas fiéis que o amaram, as envolveu e se tornou um só Espírito com elas, segundo as palavras de Paulo[169], alma dentro de outra alma, como foi dito, hipóstase dentro de hipóstase, como se ela ordenasse a esta alma que viva na sua Divindade, que atinja a vida imortal, e que desfrute do prazer incorruptível e da glória inefável.

68. Para esta alma, o Senhor, quando quiser, pode se tornar um fogo que consome tudo o que nela é vil e supérfluo, como o disse o Profeta: “Nosso Deus é um fogo devorador[170]”, pode se mostrar como um inexprimível e indizível repouso[171], ou como uma alegria e uma paz[172] que aquecem e envolvem a alma. Basta que nos decidamos ardentemente a amá-lo e agradá-lo com nossas boas obras, e quem tocar os bens inefáveis verá por experiência própria e pela sensação mesma “aquilo que o olho não viu, o que o ouvido não ouviu, o que não subiu até o coração do homem[173]”, tudo o que se torna o Espírito do Senhor, seja pelo repouso, pelo regozijo, as delícias e a vida da alma que se mostra digna dele. Pois ele se fez corpo para se tornar tanto alimento como vestimenta e inexprimível beleza, e assim cumular a alma da felicidade do Espírito. De fato, ele disse: “Eu sou o pão da vida[174]” e “Aquele que beber da água que eu lhe der, esta água se tornará para ele uma fonte a jorrar a vida eterna[175]”.

69. É assim que Deus apareceu a cada um dos padres e dos santos, como ele queria e segundo o benefício que dele receberia aquele que o visse. Por exemplo, ele apareceu de um modo a Abrahão e de outro a Isaac, e diversamente também a Jacó, a Noé, a Daniel, a Moisés, a Davi e a cada um dos profetas[176], fazendo-se pequeno e tomando um corpo como foi dito, transfigurando-se e se revelando aos que o amavam, não como ele é, pois nada o pode conter, mas de acordo com o que eles eram capazes de captar, através do grande e incompreensível amor que tinha por eles.

70. A alma que foi considerada digna de que nela habite a Potência do alto e o fogo divino, e que traz misturado aos seus membros o amor celeste do Espírito bom, é totalmente desembaraçada do amor do mundo. Com efeito, assim como o ferro ou o chumbo, o ouro e a prata, fundem quando levados ao fogo, passando sua natureza do sólido ao maleável, tornando-se moles e fluidos ao calor da chama e perdendo sua dureza natural sob o poder do fogo, também a alma quando recebe este fogo celeste do amor do Espírito se desliga de todo pendor passional pelo espírito do mundo, se liberta dos laços da malícia e deixa a dureza natural do pecado, por que passa a considerar tudo como nada e de pouca valia. O que quero dizer é o seguinte: ainda que ame ao extremo alguns irmãos, se estes impedirem seu amor por Deus, a alma tomada deste amor se separará deles. Pois se o amor presente na conjunção carnal do casamento afasta o homem do pai, da mãe e dos irmãos, ainda que a estes ele ame, seu amor ainda é superficial: ele dirigiu todo o seu afeto e todo o seu desejo para aquela que permanece a seu lado. Se, portanto, o amor carnal afasta assim todo o demais amor do mundo, menos ainda aqueles que foram tocados pelo desejo impassível de Deus trarão em si um amor, qualquer que seja, pelas coisas do mundo.
71. Deus é bom e ama o homem, ele é paciente, espera longamente pelo arrependimento de cada pecador, e faz do retorno de cada arrependido uma festa celeste. Com efeito, ele próprio disse: “Existe alegria no céu por um único pecador que se arrepende[177]”. Mas, vendo esta bondade e esta paciência e considerando que o Senhor não castiga os contínuos pecados aguardando o arrependimento, como dissemos, as pessoas negligenciam inteiramente os mandamentos e, tomando a bondade divina como pretexto para deixá-los de lado, acrescentam um pecado ao outro, construindo ofensa sobre ofensa, juntando negligência a negligência e ultrapassando os limites do pecado. Daí diante se tornam presas desta falta, já não conseguem se restabelecer e, submetidas à última ruptura e definitivamente entregues ao maligno, se perdem. É o que aconteceu com Sodoma. Os habitantes da cidade haviam enchido as medidas e ultrapassado as fronteiras do pecado. Quando já não havia para eles a menor possibilidade de arrependimento, a justiça de Deus os transformou em presas do fogo[178]. É o que aconteceu nos tempos de Noé. Levados ao mal por seus impulsos desenfreados e sem manifestar nenhuma espécie de arrependimento, os homens de então acumularam tamanha massa de pecados que toda a terra foi devastada de um só golpe[179]. Do mesmo modo Deus foi bom para com os egípcios que cometeram muitas faltas e trataram com arrogância o povo de Deus. Ele não entregou os egípcios à ruína total, mas os conduziu ao arrependimento castigando-os com pragas progressivas. Mas apenas eles eram deixados por si e voltavam-se e acabando por perseguir o povo do Senhor que saía do Egito. Então a justiça de Deus os destruiu totalmente e os fez perecer[180]. Da mesma forma, quando Israel cometeu tantos pecados e matou os profetas de Deus, o Senhor deu provas de sua paciência habitual. Mas, como eles progrediram no mal até o ponto de não mais reverenciar a dignidade do Mestre, mas de colocar suas mãos assassinas sobre ele, mãos assassinas sobre ele[181], também foram rejeitados e derrubados. A profecia, o sacerdócio e o culto lhes foram tirados e confiados às nações que creram[182].

72. Corramos ardentemente para Cristo que nos está chamando. Derramemos sobre ele nosso coração e não desesperemos de nossa salvação nos deixando abater. Pois este é o sofisma do maligno: levar-nos ao desespero pela lembrança de nossos antigos pecados. Mas é preciso compreender o seguinte: se Cristo veio a nós cuidando e curando os cegos, os paralíticos e os surdos, e ainda ressuscitando mortos já decompostos, quanto mais não curará ele o ceticismo dos pensamentos, a negligência da alma e a surdez do coração preguiçoso? Pois não foi nenhum outro, mas ele mesmo quem criou o corpo, e ele mesmo quem criou a alma. E se ele é tão benevolente e compassivo para com aquilo que se dissolve e morre, quanto mais não amará ele com todo seu amor pelo homem, quanto mais não curará ele a alma imortal que foi presa da doença da malícia e da ignorância, e que a ele se dirige em oração? Pois foi ele quem disse: “Não fará meu Pai celeste justiça aos que por ele chamam noite e dia? Sim, eu lhes digo, ele fará justiça rapidamente[183]”. E: “Peçam, e lhes será dado. Procurem, e acharão. Batam, e lhes será aberto[184]”. E ainda: “Mesmo que ele não lhe dê por ser seu amigo, ele se levantará por causa do incômodo e lhe dará aquilo de que tem necessidade[185]”, encorajando o pedido, ainda que importuno e perseverante. Pois ele veio também para os pecadores, a fim de fazê-los voltar a ele[186]. Basta que nós mesmos, nos afastando das predisposições más, na medida de nossa capacidade, consagremo-nos ao Senhor: e ele não desdenhará de nós, mas estará pronto a nos levar o socorro que dele provém.

73. Quando o corpo daqueles que são vítimas de uma enfermidade ou de uma angústia já não consegue tomar alimento e bebida, todos entram em desespero por ser isto um indício de morte e os amigos e parentes começam a se lamentar sobre o estado do enfermo. Também Deus e os anjos veem com muita tristeza e lamentações as almas que não são capazes de tomar o alimento celeste. Assim, se você se tornou trono de Deus, se ele em pessoa se assenta em você, se sua alma inteira se tornou olho espiritual, inteira luz, se você provou deste alimento do Espírito, se bebeu da água viva[187] e do vinho espiritual que alegra o coração, se você vestiu sua alma com as vestes da luz[188] inefável, se seu homem interior alcançou a experiência e a certeza de todas estas coisas, você vive a vida eterna e repousa com Cristo longe deste século presente. Mas se você ainda não recebeu estas coisas, se ainda não as adquiriu, chore lágrimas ardentes e se lamente por ainda não haver descoberto tamanha riqueza. Traga em si todo o cuidado com sua pobreza e ore por ela continuamente. Quanto àquele que já possui essas coisas, que se deixe penetrar pelo sentimento de sua própria indigência e que não fique se se preocupar com nada, como se estivesse saciado de riqueza divina. Pois foi dito que quem procura achará, e que àquele que bate ser-lhe-á aberto[189].

74. Se este óleo composto[190] tinha tal potência que elevava à glória real aqueles a quem ungia, quanto mais elevados serão aqueles cujo intelecto e cujo homem interior são ungidos pelo azeite santificante da alegria[191] e que recebem as garantias do Espírito bom, até o  grau da perfeição, vale dizer, até o Reino e à adoção filial de Cristo, tornados companheiros do próprio Rei, entrando e saindo da companhia do Pai como e quando lhes aprouver. Pois, embora não tenham ainda recebido a herança perfeita por estarem ainda cobertos pelo peso da carne, pelas garantias do Espírito[192] têm a certeza dos bens que aguardam e não duvidam por um instante de que reinarão com Cristo[193], e de que serão cumulados com a superabundância e o transbordamento do Espírito. Então, mesmo permanecendo ainda na carne, eles têm a experiência deste outro poder e deste outro prazer. Pois pela purificação do homem interior e do intelecto, a graça que vem retira totalmente o véu que Satanás colocara sobre os homens depois da desobediência, rejeitando da alma toda mancha e todo pensamento vil, tornando-a pura e fazendo com que ela, após reencontrar sua própria natureza, com os olhos claros e já não impedidos de ver, possa contemplar a glória da verdadeira luz[194]. A partir daí esses homens se revestirão do século futuro e verão as belezas e as maravilhas que lá se encontram. Pois, assim como o olho corporal são e sadio vê com toda confiança a irradiação do sol, também estes homens, com o intelecto luminoso e purificado, contemplam incessantemente a irradiação inacessível do Senhor.

75. Não é fácil para os homens atingir este degrau. Existem muitas penas, infinitos combates e suores. Existem numerosos seres nos quais a graça se encontra e age. Mas a malícia permanece oculta no interior, sem que tenha sido afastada. Os dois espíritos, o espírito da luz e o espírito das trevas, agem num só e mesmo coração. Mas você poderá me dizer: “O que existe em comum entre a luz e as trevas? Qual acordo pode haver entre o templo de Deus e os ídolos?[195]”. Eu lhe responderei: “O que existe em comum entre a luz e as trevas?”, ou melhor, onde está a luz divina entenebrecida, perturbada ou manchada, ela que é rigorosamente pura e límpida? Pois foi dito: “A luz brilhou em meio às trevas e as trevas não a receberam[196]”. Também não devemos compreender as coisas de forma parcial e unilateralmente. Alguns há que repousaram de tal modo na graça de Deus que são capazes de se dominar e não serem vencidos pelo pecado que neles habita. Mas existem outros que se habituaram a uma prece assídua e ao repouso, mas que são torturados por pensamentos vis e que são abusados pelo pecado, ainda que a graça permaneça neles. Aqueles, portanto, que são levianos e que ainda não adquiriram o rigor, ao sentirem que a graça age neles desta ou daquela maneira, pensam estar livres do pecado de uma vez por todas. Mas os que têm discernimento e inteligência não podem negar que, estivesse a graça de Deus neles, não seriam perturbados por pensamentos maus e fora de propósito.

76. Já vimos muitos irmãos desfrutarem de uma graça tão rica, que após cinco ou seis anos haviam subjugado e extinguido em si toda concupiscência. Depois, como pensassem haver alcançado o porto e atingido a serenidade, o mal, que permanecera emboscado, se manifestou atacando-os com tamanha malevolência e selvageria que os apavorou e os encheu de ansiedade. É por isso que os que possuem um olhar penetrante e sensato jamais têm a audácia de dizer: a graça está comigo, portanto daqui para diante estou também livre do pecado. Como foi dito, ambas as coisas – a graça e o pecado – operam num só e mesmo intelecto, mesmo que aqueles que se deixam levar pela facilidade e os ignorantes, ao sentirem um pequeno movimento espiritual, digam apressadamente: vencemos. Quanto a mim, vejo as coisas de outra maneira: enquanto o sol brilha em toda sua pureza, subitamente uma nuvem escura ou uma bruma invasiva cobre de trevas sua bela luz. Pela mesma razão, aqueles que receberam a graça de Deus mas que ainda não foram rigorosamente purificados, estão num estado quase idêntico. Nas suas profundezas eles ainda estão submetidos ao pecado. Eles precisam de muito discernimento para obter uma experiência real dessas coisas.

77. Da mesma forma como sem olhos, sem língua, sem orelhas e sem pés é impossível ver, falar, ouvir ou caminhar, também sem Deus e sem a energia que ele dispensa é impossível comungar os mistérios divinos, conhecer a sabedoria do Senhor ou receber a riqueza do Espírito. Pois os sábios gregos se exercitam com palavras e se dedicam encarnecidamente às discussões. Mas os servidores de Deus, mesmo sem dizer uma palavra, estão continuamente envoltos pelo conhecimento divino e pela graça de Deus.

78. Creio poder afirmar que mesmo os apóstolos, que estavam cheios da bondade do Consolador, nem por isso se viam inteiramente isentos de preocupações. Mas além do regozijo e da alegria inefável, um certo temor provinha da própria graça, sem ter origem no mal. Pois a própria graça os colocava em segurança. Quem caminhava bem não tinha como se desviar, por pouco que fosse. Assim como uma criança que atira uma pedra contra uma muralha nada consegue, ou uma flecha sem ponta não é capaz de ferir uma couraça, também quando um elemento do mal assaltava os apóstolos ele se revelava sem efeito e vão, pois eles estavam bem protegidos pelo poder de Cristo. Mas, por perfeitos que fossem eles e livres para fazer eu quisessem, não se deve crer, como o fazem inconsideradamente alguns, que após a graça chegasse o fim das preocupações e o repouso. Pois o Senhor ordena que entre os perfeitos a vontade da alma esteja a serviço do Espírito, de sorte que as duas coisas andem de par. Com efeito, o Apóstolo disse: “Não extingam o Espírito[197]”.

79. Confiar as coisas à simples palavra é fácil e natural. É fácil, por exemplo, dizer que o pão é feito de trigo; mas expor em detalhe como se prepara o pão não está ao alcance de todos, mas apenas a quem já fez pão e tem experiência. Da mesma forma, simplesmente falar de impassibilidade e perfeição é fácil. Mas expor a coisa por experiência e com verdade implica compreender em ato e verdade como se edifica a perfeição.

80. Aquele que profere palavras espirituais sem tê-las provado e sem ter a experiência, digo que este se assemelha a um homem que, em pleno verão e ao meio-dia, atravessa uma planície deserta e ressecada. Quando sua sede se torna grande e abrasadora, ele se representa em espírito uma fonte fresca e próxima, da qual corre uma água doce e límpida da qual ele bebe até a saciedade sem nenhum impedimento. Ou ele se assemelha ao homem que, sem jamais haver provado o mel tenta descrever sua doçura aos outros. Pois em verdade o mesmo acontece com aquele que, sem ter obtido por suas próprias obras e sua própria certeza a perfeição, a santificação e a impassibilidade, pretende explicá-las aos outros. Mas se Deus lhe permitisse sentir, ainda que pouco, aquilo de que fala, ele certamente consideraria que a verdade e as próprias coisas não correspondem à sua explicação, diferindo muito dela. O cristianismo assim arriscaria, me parece, se deixar levar pouco a pouco além das suas fronteiras e acabar por ter o mesmo sentido do ateísmo. O cristianismo é como um alimento e uma bebida: quando mais um homem come e bebe, mais ele queima de desejo. Seu intelecto se torna insaciável e nada pode retê-lo: é como se, ao oferecer uma bebida agradável a um homem sedento o tornássemos mais ávido de beber, não pela sede, mas pelo prazer. Como dissemos, não é por simples palavras que compreendemos as coisas. Elas devem ser cumpridas misteriosamente no intelecto por obra do Espírito Santo, e é assim que podemos falar delas.

81. O Evangelho ordena a todo homem fazer isto ou evitar aquilo, para se tornar amigo do Rei que ama os homens. De fato, ele diz: “Não se irrite[198]”, ou “Não cobice[199]”, ou “Se alguém lhe bater na face direita, ofereça-lhe também a esquerda[200]”. O Apóstolo, que veio pouco tempo depois que estas ordens foram dadas, ensinou como fazer pouco a pouco, com paciência e longanimidade, a obra da purificação. Primeiro ele nutria com leite, como se faz com as crianças[201], para depois conduzir ao crescimento[202] e finalmente à perfeição[203]. Assim, para ilustrar a coisa com um exemplo, o Evangelho diz que a túnica deve ser feita inteiramente de lã, e o Apóstolo explica como fiar a lã, tecê-la e confeccionar a túnica.

82. Alguns se afastam da prostituição pública, do roubo, da cupidez e de outros vícios semelhantes. Assim eles concordam com os santos. Mas ainda falta muito para que eles alcancem as realidades e a verdade. Pois muitas vezes a malícia vigia, chega e irrompe no seu intelecto: ela ainda não os deixou e desapareceu. O santo é aquele que que santificou e purificou totalmente seu homem interior. Havia um irmão que, num dia em que orava com os demais, foi transportado pelo poder divino e, em seu arrebatamento, viu a cidade de Jerusalém celeste, com suas moradias iluminadas e a luz infinita e misericordiosa. Ele ouviu uma voz que dizia ser aquele o lugar de repouso dos justos. Depois ele se inflou de orgulho e concebeu uma alta opinião sobre si mesmo; então ele caiu nas profundezas do pecado e depois em numerosos vícios. Então, se um homem como este chegou a tanto, como é possível ao novato dizer: “Desde que eu jejuo e vivo no exílio, que eu dou de comer aos outros o que eu tenho, que eu me guardo dos vícios e que nada me falta, eu também sou santo”. Pois a perfeição não é a abstenção dos vícios manifestos. É a purificação dos pensamentos que é perfeita.

83. Entre, você que captou estas coisas pela sobriedade e a vigilância dos seus pensamentos, debruce-se sobre seu intelecto prisioneiro e escravo do pecado e veja aquela que está ainda mais abaixo de si mesma e mais profunda do que seus pensamentos, a serpente agachada ali onde estão os chamados tesouros de sua alma e que o coloca em perigo por meio dos membros mais vulneráveis desta. Pois na verdade o coração é um abismo incompreensível. Portanto, se você destruiu esta serpente, se você se purificou de toda iniquidade que existe em você, se você rejeitou o pecado, glorifique-se da pureza à qual você chegou em Deus. Senão, humilhe-se, por que você ainda é indigente e pecador; avance orando a Cristo por todas as suas faltas escondidas. Pois tanto o Antigo como o Novo Testamentos falam manifestamente da pureza. Mesmo que nem todos possam chegar até aí, todo homem, grego ou judeu, é presa da pureza. Mas isto – a pureza do coração – não pode nos ser dado senão por Cristo. Pois ele próprio é a verdade anipostática, a verdade real. Sem esta verdade, é impossível conhecer a verdade ou alcançar a salvação.

SOBRE O AMOR

84. Assim como na ordem visível você renunciou ao homem exterior dando aos outros e distribuindo seus bens, é também preciso renunciar aos seus maus hábitos. Se você aprendeu a sabedoria carnal, ou se adquiriu o conhecimento das coisas, rejeite tudo. Se você se confiou aos julgamentos da carne, afaste-se deles, faça-se humilde e pequeno. É assim que você poderá se deixar instruir pela loucura da predicação[204]. É nesta, e não em discursos bem torneados, mas no poder da cruz, que você encontrará a verdadeira sabedoria, a que age realmente naqueles considerados dignos de adquiri-la. “Pois a cruz, disse Paulo, é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos. Mas para nós que fomos salvos ela é o poder e a sabedoria de Deus[205]”.

85. Se você provou daquilo que vem do céu, se você tomou parte desta sabedoria, se conheceu o repouso em sua alma, não se orgulhe, não fique seguro de si como se já tivesse alcançado e compreendido toda a verdade, para que não ouça: “Vocês já estão ricos e satisfeitos e se sentem reis sem nós! Tomara mesmo que se tivessem tornado reis; assim nós também poderíamos reinar com vocês![206]”. Mas quando você provar, considere que você ainda não atingiu o cristianismo. E que esta convicção não seja superficial em você, mas esteja implantada continuamente e decidida em seus pensamentos.

86. Da mesma forma como um homem que ama a riqueza, ainda que tenha juntado uma enorme fortuna, nunca está saciado e tudo o que ele acrescenta a cada dia a seus bens faz crescer ainda mais nele o desejo de possuir mais e mais, ou como um homem privado de uma bebida agradável antes que se tenha saciado aumenta ainda mais sua sede, também o gosto por Deus não conhece saciedade nem fim, mas ao contrário, quanto mais um homem é cumulado com esta riqueza, mais ele se considera indigente. Os cristãos não atribuem preço algum às suas próprias vidas[207], mas se colocam diante de Deus como seres rigorosamente desprezíveis e se consideram como escravos dos outros homens. Deus se regozija com estas almas e nelas repousa por causa de tanta humildade. Portanto, se um homem possui algum bem ou se enriqueceu, que não pretenda, por causa disto, ser qualquer coisa ou ter qualquer coisa. Pois a pretensão é uma abominação diante do Senhor. Foi ela quem, no início, expulsou do Paraíso o homem que dera ouvidos a estas palavras: “Vocês serão como deuses[208]”, e que assim confiou-se a esta vã esperança. Aprendam como seu Deus e seu Rei, que é também o Filho de Deus, se despojou de si próprio tomando a forma de um escravo[209], como ele se fez pobre[210], como foi contado entre os humildes[211], como sofreu. Assim aconteceu com Deus. E quanto a você, homem, feito de carne e sangue, terra e cinzas[212], que parte alguma tem com o bem, que é todo impurezas, você se orgulha e se vangloria? Mas, se você tiver alguma inteligência, em especial a que recebeu de Deus, diga: “O que eu possuo não é meu, mas recebi de outro. E se a ele isto pareceu bom, aquilo que me foi dado me elevou totalmente”. Assim sendo, atribua todo bem ao Senhor, e impute o mal à sua própria fraqueza.

87. O Apóstolo diz que transportamos em vasos de barro[213] este tesouro: o poder santificante do Espírito, que ele próprio foi digno de receber quando ainda estava revestido de carne. Ele diz também: “Ora, é por iniciativa de Deus que vocês existem em Jesus Cristo, o qual se tornou para nós sabedoria que vem de Deus, justiça, santificação e redenção[214]”. Portanto, quem encontrou e traz em si este tesouro celeste do Espírito pode atingir não somente com pureza e sem mácula, mas independente de qualquer pena ou fadiga, toda a justiça dos mandamentos, toda a prática dos mandamentos, enquanto que antes era preciso muito para poder fazê-lo sem esforço. Mesmo querendo, ninguém pode colher o fruto do Espírito antes de haver recebido o Espírito bom. Que cada qual se esforce em todas as ocasiões para correr[215] com paciência e fé, e que ore com fervor a Cristo a fim de obter este tesouro celeste. E assim poderá cumprir com toda justiça, como foi dito, nele e por ele, pura e perfeitamente, sem pena e, repito-o, sem fadiga.

88. Os que trazem em si a divina riqueza do Espírito, quando comunicam aos outros propósitos espirituais, o fazem como quem retira de seu próprio tesouro[216] para dar àqueles a quem falam. Mas os que não recolheram esta riqueza no fundo de seu coração de onde brota a bondade dos pensamentos de Deus, de seus mistérios e de suas palavras transbordantes, com dificuldade conseguiram colher uma flor em uma ou outra das duas Escrituras e a colocam na ponta da língua; ou então ouviram coisas de homens espirituais e se vangloriam em palavras, as expõem como se fossem suas e se apropriam de frutos que não são seus. Estes homens oferecem sem esforço aos demais o ornamento de suas palavras; mas, após haver discursado, permanecem como se fossem pobres, pois cada palavra proferida retorna para o lugar de onde foi tirada. Eles próprios não possuem um tesouro seu de pudessem extrair e do qual lhes fosse possível servir aos outros, transmitindo-lhes. É por isso que é preciso em primeiro lugar pedir a Deus que coloque em nós esta verdadeira riqueza. Então se tornará fácil para nós ajudar aos demais e lhes transmitir palavras espirituais e mistérios divinos. É assim que a bondade de Deus habita em todo homem que crê. Com efeito, ele disse: “Quem me ama será amado por meu pai, e eu o amarei e me revelarei a ele[217]”. E também: “Eu e meu Pai viremos e nele faremos nossa morada[218]”.

89. Os que foram considerados dignos de se tornar filhos de Deus e que têm em si a irradiação de Cristo se consagram aos modos vários e diferenciados do Espírito e são aquecidos pela graça no secreto do coração. O melhor aqui é expor algumas das alegrias que podemos ter no mundo, para compará-las com os caminhos divinos pelos quais a graça conduz a alma. Às vezes estes homens se regozijam e exultam com uma alegria indizível e inexprimível, como num festim real. Às vezes eles experimentam o prazer do Espírito, como a esposa com o esposo. Às vezes sentem-se como anjos incorpóreos, tão leves, tão livres que pensam não mais estar revestidos de um corpo. Às vezes, animados como que por uma bebida, ficam ébrios da inefável embriaguez dos mistérios do Espírito. Às vezes a lamentação e a dor os fazem implorar pela salvação dos homens. Inflamados pelo amor divino do Espírito por todos os homens, eles tomam sobre si inteiramente o luto de Adão. Às vezes eles se deixam consumir pelo Espírito com um prazer que não pode ser descrito pela palavra, e com tanto amor, que, se fora possível, eles recolheriam todos os homens em suas próprias entranhas[219], sem fazer a menor distinção entre o ruim e o bom. Às vezes eles desprezam a si próprios de tal maneira que pensam não existir ninguém abaixo deles, considerando a si mesmos como os últimos dentre todos. Acontece também deles serem engolidos por uma alegria inefável do Espírito. Ou, como guerreiro revestido da armadura real e que derrubou seus adversários no combate, eles, da mesma forma protegidos pelas armas do Espírito, atacam os inimigos invisíveis e os colocam debaixo de seus pés. Ora uma grande serenidade os envolve, a hesíquia e a paz os aquecem, e eles se veem sob o império de um prazer maravilhoso, ora recebem a inteligência e a sabedoria divinas e o insondável conhecimento do Espírito. Numa palavra, a graça de Cristo lhes confere tamanha sabedoria que língua alguma é capaz de expressar. Também pode acontecer que às vezes eles apareçam como um homem entre os homens. Assim a graça divina, se transformando e se diversificando neles de muitas maneiras, instrui e exercita a alma, a fim de apresentá-la perfeita ao Pai celeste, sem mácula e toda pura.

90. Estes efeitos do Espírito de que falamos se situam em altos níveis, nos degraus mais próximos da perfeição. Pois as diversas consolações da graça age nestes homens diferentemente, embora continuamente, a partir do Espírito, sendo que as energias do Espírito sucedem umas às outras. Quando alguém chega à perfeição do Espírito, a partir do momento em que se purificou rigorosamente de todas as paixões, a partir do momento em que se uniu e mesclou ao Espírito Consolador pela completa e inefável comunhão,  a partir do momento em que a própria alma é considerada digna de se tornar espírito por se unir ao Espírito, neste instante o homem se torna inteiro luz, inteiro espírito, inteiro alegria, inteiro repouso, inteiro regozijo, inteiro amor, inteiro compaixão, inteiro bondade e doçura. Ele foi por assim dizer engolido pelas virtudes do poder do Espírito bom, como uma pedra envolvida de todos os lados pela água nos abismos do mar. Desta maneira estes homens, unidos de todas as maneiras ao Espírito de Deus, se tornam semelhantes a Cristo. Eles trazem em si mesmos as virtudes imutáveis do Espírito, e mostram seus frutos a todos. Com efeito, por terem sido interiormente tornados irrepreensíveis e puros de coração[220] pelo Espírito, se torna impossível para eles produzirem externamente frutos de malícia. Ao contrário, sempre, continuamente, os frutos do Espírito brilham neles. É assim que se progride para a perfeição espiritual, para a plenitude de Cristo, para a qual nos exorta correr o Apóstolo quando diz: “A fim de que vocês sejam cumulados até trazer em si a plenitude de Cristo[221]”. E também: “Até que cheguemos todos ao homem perfeito, à altura da plenitude de Cristo[222]”.

91. Pode acontecer a um homem de entrar e se ajoelhar, com o coração cheio de energia divina, e que sua alma se regozije no Senhor, assim como já mostramos, como a esposa se regozija diante do esposo. É o que disse o grande Isaías: “Assim como a esposa faz a alegria do esposo, assim você fará a alegria do Senhor[223]”. Talvez ainda este homem esteja ocupado durante todo o dia e depois se volte para a oração durante uma hora; seu homem interior será arrebatado enquanto ora, e ele se sente tomado pela profundidade infinita do século futuro. Um prazer secreto e incomensurável o toma, a ponto de tornar seu intelecto maravilhado, suspenso e arrebatado, enquanto seu coração esquece neste momento todo conhecimento terrestre ao mesmo tempo em que seus pensamentos recebem todos os bens, como foi dito, e são levados cativos para as coisas infinitas e incompreensíveis. Assim é que, nesta hora, graças à oração, o homem vê sua alma partir junto com sua prece.

92. A quem pergunta se é de fato possível ao homem permanecer neste estado, devemos responder o seguinte: a graça está sempre presente e enraizada, ela é como algo de físico, que faz corpo com o homem no qual está presente. Ela é uma, mas ela ordena tudo de diferentes maneiras, como bem lhe apraz, para benefício do homem. O fogo se acende neste, mais ou menos forte. Pode também ocorrer de a luz brilhar primeiro, depois se retrair e ensombrecer segundo uma economia inteiramente divina, embora a chama arda sem jamais se extinguir. Mas quando a luz começa por brilhar o homem é tomado de uma embriaguez maior, a do amor por Deus. Às vezes também esta luz que brilha continuamente no coração abre para uma luz mais interior e mais profunda. Neste caso, o homem inteiramente absorto nesta doçura e nesta contemplação já não é ele mesmo. Para o mundo, ele aparece como um louco ou um bárbaro, a tal ponto em sua alma transbordam e se desdobram o amor, o prazer e as profundidades dos mistérios com os quais lhe foi dado comunicar.  Acontece muitas vezes de que nestes momentos ele alcance as medidas perfeitas e se torne irrepreensível livre de todo pecado. Depois disto, a graça se retrai de certo modo, e o véu da potência contrária o recobre.

93. Imagine a ação da graça da seguinte maneira. Suponha que a perfeição se eleva até o décimo-segundo degrau. Portanto, é possível atingir esta medida. Mas a graça se retira novamente e, descendo um degrau, para no décimo-primeiro, por assim dizer. Assim são as maravilhas que foram mostradas a este homem e que ele experimentou. Se ele as trouxesse consigo em igual nível, não lhe seria possível assegurar o ministério e o encargo da palavra, nem ouvir ou dizer o que fosse, nem se preocupar com nada, ainda que por um instante: ele apenas permaneceria imóvel, retirado num canto, suspenso e embriagado. É por isso que a medida perfeita não lhe foi dada, a fim de que ele tenha tempo para se consagrar também ao cuidado com os irmãos e ao serviço da palavra.

94. Quando escutamos a palavra do Reino e somos levados a chorar, não nos detenhamos nas lágrimas que vertemos, nem nos nossos ouvidos por havermos escutado, nem nos nossos olhos por termos visto: não consideremos que isto nos basta. Pois existem outros ouvidos, outros olhos, outras lágrimas, assim como existe outra reflexão e outra alma, que é o Espírito divino, o próprio Espírito celeste, que escuta e chora, que ora, que conhece, que faz em verdade a vontade de Deus. O Senhor, ao prometer aos apóstolos o imenso dom do Espírito, disse: “Eu me vou. Mas o Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome lhes ensinará tudo[224]”. E também: “Eu ainda teria muitas coisas a lhes dizer, mas vocês ainda não as podem receber. Quando ele vier, o Espírito da verdade, ele os conduzirá por toda a verdade[225]”. Será, portanto, ele a orar e ele a chorar. “Pois não sabemos orar como se deve, disse o Apóstolo divino. Mas o próprio Espírito intercederá por nós com suspiros inefáveis[226]”. A vontade de Deus só se manifesta ao Espírito. Pois ele disse: “Ninguém conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus[227]”. Quando, segundo a promessa, o Consolador veio no dia de Pentecostes[228] e o poder do Espírito bom fez sua morada nas almas dos apóstolos, estes foram libertos do véu da malícia, as paixões desapareceram e os olhos dos seus corações se abriram. Então, cheios de sabedoria e tornados perfeitos pelo Espírito, por meio dele eles aprenderam a fazer a vontade de Deus daí por diante, e por meio dele foram conduzidos por toda a verdade. Ele dominou e reinou sobre suas almas. Assim, quando nos acontecer chorar ao ouvirmos a palavra de Deus, oremos a Cristo esperando com uma fé sem falhas que virá a nós o Espírito que escuta e ora verdadeiramente, segundo a vontade e o desígnio de Deus.

95. Considere como acontecem as coisas. Uma espécie de potência tenebrosa vem cobrir levemente o intelecto, como uma atmosfera sutil. Embora a lâmpada permaneça sempre acesa e brilhando, conforme foi dito, esta luz agora está recoberta por um véu. Um homem neste estado não nega ser imperfeito e sabe que não está totalmente liberto do pecado. Ele é por assim dizer livre e não livre. Isto certamente não acontece sem o socorro de Deus, mas acontece por uma certa economia divina. Tanto o muro da separação[229] se desconjunta e desaba, tanto ele permanece inamovível. O ritmo da prece tampouco é regular, mas às vezes a graça inflama, consola e repousa, às vezes ela se torna sombria e se retira, na medida em que ela dirige o homem para seu benefício. No entanto, já me aconteceu em alguns momentos encontrar a medida perfeita, e assim provar e conhecer a experiência do século futuro. Mas eu ainda não vi nenhum cristão perfeito ou livre de uma vez por todas. Se alguém pode repousar na graça, ser considerado digno de mistérios e revelações, tomar parte delas e entrar na imensa doçura da graça, nem por isto o pecado deixa de estar oculto em algum lugar dentro dele. Homens assim, devido à superabundância da graça e da luz que neles brilha, às vezes acreditam, por falta de experiência, serem perfeitos e livres. Quanto a mim, como disse, nunca encontrei quem fosse absolutamente livre. Pois já me aconteceu alcançar em parte, algumas vezes, esta medida de que falei, e eu sei, por haver aprendido, o que é um homem perfeito.

96. Quando você ouvir falar da união do esposo e da esposa[230], dos coros, dos cantos e das festas, considere que nada existe aí de material nem de terrestre. Com efeito, estas coisas são tomadas apenas como exemplos para nos ajudar a captar as realidades invisíveis. Pois estas são inefáveis e espirituais: os olhos da carne não as podem tocar, mas elas são dadas a entender às almas santas e fiéis. Esta comunhão do Espírito Santo, os tesouros celestes, os coros e as festas dos santos anjos, não se manifestam senão a quem já recebeu a experiência. Não é possível concebê-las sem ter sido iniciado. Assim, escute com piedade se lhe falarem destas coisas, até que a você também aconteça, por sua fé, ser considerado digno de descobri-las. Então você verá, pela própria experiência dos olhos de sua alma, com quais bens e mistérios as almas dos cristãos podem comungar ainda aqui em baixo. Pois na ressurreição mesmo o corpo de tais homens se tornará digno de descobrir, de ver e como que segurar estas coisas, quando o próprio corpo se tornar espírito.

97. As belezas próprias de nossa alma e os bons frutos que são a prece, o amor, a fé, a vigília, o jejum e outras práticas de virtudes, quando se misturam e tomam parte da comunhão com o Espírito, exalam um rico perfume, como o de um incenso atirado ao fogo. Então, até a nós se torna fácil viver segundo a vontade de Deus. Ao contrário, sem o Espírito Santo, como já dissemos, ninguém é capaz de compreender a vontade de Deus. Assim como a mulher que se une a um home pelo casamento, antes de se unir a ele segue seu próprio pensamento e faz suas próprias vontades, mas ao entrar em união passa a viver totalmente sob a autoridade de seu marido e até deixa de prestar atenção a si mesma, também a alma possui uma vontade própria, leis e obras próprias, mas quando se torna digna de se unir ao homem celeste, a Cristo, passa a se submeter à lei deste homem[231]: ela já não segue sua vontade, mas a de seu esposo, Cristo.

98. Considere que a vestimenta das bodas, da qual Cristo fornece uma explicação divina[232], é a graça do Espírito Santo. Quem não se torna digno de se cobrir com ela não tomará parte das bodas celestes, nem deste festim espiritual.

99. Esforcemo-nos por beber o vinho espiritual de Deus e por nos tornarmos ébrios desta vertigem. Do mesmo modo como aqueles que estão saciados de vinho se tornam mais loquazes, também nós, cheios deste vinho espiritual, falaremos dos mistérios de Deus. “Pois sua taça que me embriaga, disse o divino Davi, como é boa![233]”.

100. Esta é a alma pobre de espírito[234]. Ela reconhece suas feridas. Ela reconhece também as trevas das paixões que a cercam. Ela busca continuamente a redenção que vem do Senhor. Ou ela traz em si as penas, e não se regozija com os bens que existem sobre a terra. Ela busca o único bom médico e não se entrega senão aos seus cuidados. Como poderá esta alma ferida ser bela, graciosa e apta a viver com Cristo? Como, senão reencontrando sua antiga criação e reconhecendo claramente suas próprias feridas e sua pobreza? Pois se a alma não se compraz com suas feridas e as agressões das paixões, se ela não encobre suas faltas, o Senhor não lhe imputa a causa do mal, mas vem para tratar dela, curá-la e restabelecer nela uma beleza impassível e incorruptível. É preciso apenas que ela não escolha permanecer ligada ao que ela faz, como foi dito: que não se compraza nas paixões que foram suscitadas nela, mas que chame pelo Senhor com toda força, a fim de que ele, por intermédio de seu Espírito bom, lhe conceda libertar-se de todas as paixões. Desta maneira esta alma se tornará feliz. Mas infeliz daquela que não percebe suas feridas e que, levada por um grande vício e por um endurecimento sem medida, não acredite que exista um mal dentro dela. A esta alma o bom médico não visita nem cura. Pois ela não o busca, nem se preocupa com suas feridas, considerando estar bem e sã. Pois foi dito: “Não são os de boa saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes[235]”.

101. São verdadeiramente bem-aventurados e ferventes adeptos da vida e do regozijo sobrenatural aqueles que, votando-se ao ardor da fé e à conduta virtuosa, receberam por experiência e pela percepção o conhecimento dos mistérios celestes do Espírito e que possuem assim sua cidadania nos céus. Estes são os melhores dentre todos os homens. A prova é evidente: a quais, dentre os homens poderosos, sábios ou prudentes foi concedido subir aos céus enquanto ainda permaneciam sobre a terra? A quais dentre eles foi dado desde o alto fazer a obra espiritual e contemplar as belezas do Espírito? Pois um homem pobre em aparência, pobre ao extremo, desconhecido por seus vizinhos, prosternando-se com o rosto ao chão diante do Senhor, sobe aos céus conduzido pelo Espírito e na plenitude de sua alma desfruta em seu pensamento das maravilhas do alto, segundo o dito do Apóstolo: “Nossa cidade fica nos céus[236]”. E também: “O que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem, o que Deus preparou para os que o amam”. E ele acrescenta: “Ele nos revelou por seu Espírito[237]”. Estes são dos sábios e poderosos verdadeiramente, estes os homens nobres e prudentes[238].

102. Mas se, fora destes dons celestes, você julgar os santos a partir das coisas presentes, também não hesitará em dizer que eles estão acima de todos. Senão, julgue o seguinte: Nabucodonosor, soberano da Babilônia, havia reunido todas as nações para que se prosternassem diante da estátua que havia erguido[239]. Mas Deus, em toda sua sabedoria, conduziu as coisas de tal maneira que a virtude das Crianças fosse conhecida de todos e que todos aprendessem que somente um é o verdadeiro Deus que está nos céus. Três Crianças, prisioneiras e privadas de sua liberdade enfrentaram abertamente o rei. Enquanto todos se prosternavam medrosamente e não ousavam desobedecer, tanto estavam quase sem voz e conduzidos pelo nariz como animais, as três Crianças estavam tão longe de sentir o que aceitavam os outros que, em sua piedade, não quiseram ser ignoradas e não suportaram permanecer escondidas, mas disseram para que todos ouvissem: “Ó Rei, não adoraremos seu Deus e não nos prosternaremos diante da imagem de ouro que você ergueu”. E a fornalha terrível que os recebeu não funcionou como fornalha: ela não fez seu trabalho. Como se também ela os respeitasse, ela protegeu as Crianças de sofrerem o menor mal. Todos, inclusive o próprio rei, reconheceram, graças a elas, o verdadeiro Deus[240]. Não apenas os habitantes da terra, mas mesmos os coros que estão nos céus as admiraram. Quanto às ações corajosas dos santos, o Apóstolo divino mostra que elas não são desconhecidas daqueles que habitam os céus, mas que também eles as veem. De fato, ele diz: “Nós nos tornamos um espetáculo para os anjos e os homens[241]”. Você pode ver coisas semelhantes na história de Elias. Enquanto ele era um só, ainda assim prevalecia sobre muitos fazendo descer o fogo celeste[242]. Também Moisés venceu todo o Egito e mais o tirano faraó[243]. Também na história de Lot[244], na de Noé[245] e nas de muitos outros que, embora sendo comuns na aparência, dominaram inúmeros poderosos e príncipes.

103. Se uma natureza de fora não viesse em socorro de cada uma das coisas visíveis, estas, deixadas à própria sorte, não teriam como ser cultivadas e enfeitadas. Com efeito, a inefável sabedoria divina revela através das coisas visíveis mistérios e imagens, significando com isto que a natureza humana não é capaz por si só de carregar em si a perfeita vestimenta das virtudes e a beleza espiritual da santidade, se não as receber também das mãos de Deus. O mesmo acontece com a terra: se ela permanece tal como é, se não é cuidada pelos cultivadores e se não recebe logo o auxílio das chuvas e do sol, ela é incapaz de dar frutos e não é autossuficiente.  Toda casa precisa da luz do sol, que não é da mesma natureza que ela, para não se encher de trevas. Você verá que o mesmo acontece com muitas outras coisas. Da mesma maneira a natureza humana, incapaz de por si só dar os frutos perfeitos da virtude, precisa do Cultivador espiritual de nossas almas, ou seja, do Espírito de Cristo, que por sua vez é absolutamente estranho à nossa natureza: pois nós somos criados, mas ele é incriado. Assim, cultivando com sua própria arte, se assim posso dizer, os corações dos fiéis que se entregaram de boa vontade ao Cultivador espiritual, ele os prepara para dar os frutos perfeitos do Espírito e faz brilhar sua própria luz na morada de nossa alma entenebrecida pelas paixões.


104. Dupla é a guerra que fazem os cristãos, e duplo o combate que conduzem. Primeiro eles devem enfrentar as coisas visíveis aos olhos do corpo. Estas excitam e provocam a alma, convidando-a a se afeiçoar e a se comprazer nelas. Depois, eles têm que lutar contra os poderes e as potências do maligno que mantém o mundo[246].

105. A glória que Moisés exibia em seu rosto[247] era a imagem da verdadeira glória do Santíssimo Espírito. Pois assim como então ninguém conseguia fixar nele o olhar, também agora as trevas das paixões não suportam esta glória que brilha nas almas dos cristãos, mas são banidas e expulsas por tamanha luz.

106. O cristão que ama a verdade e ama a Deus, que provou da doçura celeste, que mesclou sua alma à graça, que se confiou totalmente às vontades da graça, sente aversão por tudo o que é deste século. Pois daí em diante ele é mais forte do que todas as coisas do mundo. Que se lhe apresentem ouro, prata, honra e glória, elogios e homenagens: nada disto o poderá prender. Com efeito, ele possui a experiência de outra riqueza, de outra honra, de outra glória, e nutre sua alma com o prazer incorruptível cuja sensação possui e com a plena certeza que lhe concede a comunhão com o Espírito.

107. Da mesma forma como o pastor, que é dotado de razão, se distingue dos animais irracionais, também o cristão é diferente dos homens pela compreensão, o conhecimento e o discernimento. Pois ele participa de outro Espírito, de outro intelecto, de outra compreensão e outra sabedoria, que não são as deste mundo. “É uma sabedoria, diz o Apóstolo, que anunciamos entre os perfeitos, uma sabedoria que não é deste século nem dos príncipes deste século que vão todos desaparecer; nós anunciamos a sabedoria de Deus no mistério[248]”. É por isso que o cristão difere totalmente de todos os homens que possuem o espírito do mundo, doutos e sábios, como foi dito. Ele julga a todos os homens, conforme está escrito, ele sabe do que fala, onde se encontra e em que estado está. Mas nenhum dos que têm o espírito do mundo tem o poder de reconhecê-lo ou de julgá-lo. Somente pode fazê-lo aquele a quem foi dado o Espírito da Divindade, que lhe é semelhante, segundo o Apóstolo divino: “É aos espirituais que explicamos as coisas espirituais. O homem psíquico não recebe as coisas do Espírito de Deus: elas lhe parecem loucura. Mas o homem espiritual julga a tudo e não é julgado por ninguém[249]”.

108. É impossível receber o Santíssimo Espírito senão se fazendo estrangeiro a todas as coisas deste século e renunciando a si mesmo para buscar apenas o amor de Cristo, a fim de que o intelecto, desembaraçado de todas as preocupações materiais, não mais se consagre senão a este único objetivo e seja assim considerado digno de se tornar com Cristo um só Espírito, como disse o Apóstolo: “Aquele que se liga ao Senhor será com ele um só Espírito[250]”. Mas a alma que está ligada a qualquer coisa deste século, como a riqueza, a glória ou a amizade mundana, e se vê levada por elas, será incapaz de fugir e atravessar as trevas das potências negativas.

109. As almas que amam a verdade, as almas que amam a Deus não suportam o menor relaxamento do amor que dedicam ao Senhor. Inteiramente ligadas à cruz, elas sentem e reconhecem o progresso espiritual que se constrói nelas. Feridas por tal desejo, e por assim dizer com fome da justiça[251] das virtudes e da iluminação do Espírito bom, mesmo sendo dignas dos mistérios divinos, mesmo participando da alegria celeste e da graça, elas não confiam em si mesmas[252] e não se consideram grande coisa. Mas quanto mais são cumuladas dos carismas do Espírito, mais se esforçam por buscar insaciavelmente os bens celestes. Quanto mais sentem em si o progresso espiritual, mais desejam participar de suas benesses. Cumuladas das riquezas do Espírito, consideram a si próprias como indigentes. É o que diz a divina Escritura: “Os que comem terão ainda mais fome, e os que bebem ainda mais sede[253]”.

110. Estas almas são consideradas dignas de ser libertadas das paixões. Elas trazem em si plenamente a iluminação do Espírito divino e a total comunicação com a graça. Mas existem almas que se deixam levar pela preguiça e não fazem qualquer esforço, que não buscam com paciência e longanimidade receber a santificação do coração aqui em baixo, quando ainda se encontram na carne, e isto não em parte, mas totalmente: elas não esperam comungar com o Espírito Consolador, senti-lo com plena certeza e ser libertadas por ele das paixões do mal. Embora lhes tenha sido dada a graça divina, estas almas levadas pelo mal deixaram de velar por si mesmas. Depois de haver recebido a graça, elas obtêm a consolação que provém dela, e desfrutam da doçura espiritual. Por isto elas estão prontas para se tornarem orgulhosas, por que não têm o coração quebrantado, não se humilham em espírito, não estão sedentas nem voltadas para a medida perfeita da impassibilidade. Ao contrário, elas permanecem nesta pequena consolação da graça, e progridem mais em presunção do que em humildade; assim acontece de serem despojadas até do carisma que haviam recebido. Com efeito, como mostramos, a alma que verdadeiramente ama a Deus, ainda que tenha realizado milhares de atos justos, ainda que tenha utilizado o corpo para jejuns e vigílias extremas, ainda que lhe tenha sido dado receber diferentes carismas do Espírito, revelações e mistérios, esta alma é tão modesta que considera sequer ter começado a se conduzir segundo Deus, sequer ter adquirido ainda qualquer bem espiritual: ela tende sempre e com todo seu desejo, insaciavelmente, para o amor divino de Cristo.

111. A ninguém é possível alcançar estas medidas de um só golpe e com facilidade. É preciso passar por muitas penas e combates, é preciso haver consagrado tempo e esforço, haver conhecido as provas e toda espécie de tentações para alcançar enfim a medida perfeita, a medida da impassibilidade. Depois de havermos sido provados em todas as penas e toda fadiga, depois de suportarmos corajosamente todas as tentações suscitadas pelo mal, somente então seremos considerados também dignos das grandes honrarias, dos grandes carismas do Espírito e da riqueza divina, para então recebermos a herança do Reino celeste.

112. Se uma alma não tem em si esta exatidão rigorosa da vida cristã, se não sentiu a santificação que se opera no coração, que implore e peça ardentemente ao Senhor para obter este bem e a energia do Espírito que é concedida ao intelecto pelas contemplações inefáveis. Da mesma forma como, segundo a lei da Igreja, aqueles que são presa dos pecados do corpo são num primeiro momento descartados pelo sacerdote para que, depois de manifestar seu arrependimento, serem considerados dignos da comunhão, enquanto que os que se mantêm sem faltas e em toda pureza avançam para o sacerdote e, da parte externa passam ao interior, até próximo do altar, a fim de celebrar a liturgia junto ao Senhor, da mesma forma consideremos a comunhão mística com o Espírito, da qual o Apóstolo falou quando disse: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo[254]”: você verá que ela obedece à mesma lógica. A divina Trindade, com efeito, habita na alma que leva a vida pura, quando a bondade de Deus a assume. E ela aí permanece, não tal como é – pois nem toda a criação poderia contê-la – mas na medida em que o homem é capaz de concebê-la. Ora, quando o intelecto se afasta em qualquer ponto da conduta prescrita por Deus e entristece o Espírito divino[255], ele é rejeitado e afastado da alegria espiritual. Então a graça divina, o amor e toda a boa energia do Espírito se retraem, e o próprio intelecto é entregue às aflições, às tentações e aos espíritos do mal, até que a alma volte a caminhar retamente de modo a agradar ao Espírito. Pois quando ela prova seu arrependimento por meio de uma confissão e de uma humildade perfeitas, ela volta a ser considerada digna de ser visitada pela graça e recebe a alegria celeste ainda mais abundante do que antes. E, se ela já não entristece o Espírito, mas vive para agradá-lo, opondo-se a todos os pensamentos maus e agarrando-se continuamente ao Senhor[256], então esta alma progredirá com justiça e responsabilidade, será honrada com dons inefáveis, será transportada de glória em glória[257] e de repouso em repouso cada vez mais perfeito. Depois, chegando à medida perfeita do cristianismo, ela será reunida àqueles que trabalharam com perfeição por Cristo e que celebraram irrepreensivelmente sua liturgia, em seu Reino eterno.

113. Considere que estas coisas aparentes são as imagens e as sombras das coisas ocultas, que o templo visível é a imagem do templo do coração, que o sacerdote é a imagem do verdadeiro sacerdote da graça de Cristo, e assim por diante. Da mesma forma como na Igreja visível, sem as prévias leituras, salmodias e tudo o que constitui o ofício da instituição eclesial, não é normal que o padre celebre o mistério divino em si, o mistério do corpo e do sangue de Cristo, e, reciprocamente, mesmo que o cânon eclesial tenha sido dito, se a eucaristia mística oferecida pelo sacerdote e a comunhão do corpo de Cristo não acontecerem, a instituição da Igreja não foi cumprida e a celebração do mistério se torna deficiente, considere da mesma forma que o mesmo acontece com o cristão. Se ele bem conduziu o jejum, a vigília, a salmodia, o conjunto da ascese e todas as virtudes, mas se a energia mística do Espírito não foi posta a operar pela graça sobre o altar de seu coração, se ela não foi totalmente sentida como um repouso espiritual, toda esta ordem da ascese permanece inacabada e quase estéril, pois ela não traz em si a alegria do Espírito, esta alegria que age misticamente dentro do coração.

114. O jejum é uma coisa boa, a vigília é uma coisa boa, assim como a ascese e o exílio são coisas boas. Mas estas coisas não passam jamais do começo e das primícias da vida amada por Deus. Confiar-se pura e simplesmente a estas coisas é completamente irrazoável. Pode acontecer que tenhamos alguma parte na graça, e então, o mal que está oculto em nós, como já foi dito, matreiro, se retira voluntariamente e deixa de fazer as coisas de costume. Mas ele leva o homem a imaginar que seu intelecto foi purificado, logo o conduz a se pretender perfeito, para depois atacá-lo como o faria um salteador e manda-lo para mais baixo do que a terra. Com efeito, se homens, sobretudo homens de vinte anos, saltadores ou mercenários, colocam armadilhas para seus adversários, montam emboscadas e outros truques, tomam os inimigos de surpresa, derrubam-nos sem deixar esperança e os matam, quanto mais o mal, que tem milhares de anos e que se dedica como obra principal a fazer com que as almas se percam, saberá iludir no secreto do coração, ficar quieto quando convém, e não fazer nenhum movimento a fim de levar a alma a se imaginar perfeita. O fundamento do cristianismo, ainda que se tenham cumprido todas as formas de justiça, consiste em não repousar sobre ela, não confiar nela, não considerar que se tenha feito o que quer que seja de grande. E, ainda que tenhamos parte na graça, não consideremos ter ganhado seja lá o que for, nem nos mostremos saciados, mas tenhamos sempre mais fome e mais sede, tomemos o luto e choremos, com o coração totalmente quebrantado.

115. Considera que o estado espiritual é tal como segue. Suponha uma mansão real: ela é feita de diferentes pátios, portões, habitações, alguns mais exteriores, outros mais e mais interiores, nos quais se guarda a púrpura e os tesouros; depois vem a habitação que fica no coração do palácio e que é reservada à vida do rei. Do mesmo modo como alguém, por ter chegado aos pátios e às habitações exteriores, se engana se crer haver atingido o coração do palácio, também na ordem espiritual, aqueles que combatem o ventre e o sono devem se aplicar continuamente aos salmos e às orações sem imaginar que tenham chegado ao fim e ao repouso. Pois sua vida se passa ainda nos portões e nos pátios, não onde estão guardadas as púrpuras e os tesouros reais.  E ainda que eles sejam considerados dignos de receber alguma graça espiritual, que isto não os engana como se já houvessem atingido o objetivo final. Convém verificar se tal tesouro foi encontrado neste vaso de barro[258], se fomos revestido da púrpura do Espírito, se vimos o Rei, se entramos no repouso. Creia-me ainda: a alma possui profundidade e diferentes membros; ora, o pecado, insinuando-se, investe sobre todos os membros e todos os pensamentos do coração, e depois, quando o homem busca a graça do Espírito, esta lhe vem e pode acontecer que envolva duas partes da alma. Aquele que não tem experiência, ao se ver consolado por tal graça, tem a impressão de que ela penetrou em todos os membros da alma e que o pecado foi totalmente desenraizado. Mas este homem não sabe que o pecado ainda mantém sob seu jugo a maior parte da alma. Pois é possível, como já mostramos outras vezes, que a alma aja continuamente tal como o olho age em relação ao corpo, e que o mal que rouba os pensamentos se encontre igualmente aí. Aquele que não sabe discernir, ao receber um grande carisma, adquire uma alta opinião a seu próprio respeito e se infla de orgulho como se tivesse recebido a última purificação; mas ainda falta muito para que a verdade lhe dê razão. Como já mostramos, existe aí mais uma das armadilhas de Satanás, que em certos momentos se retira de propósito e não age coo de costume, certamente com o objetivo de inspirar nos ascetas a presunção de se terem tornado perfeitos. Mas quem planta uma vinha colhe imediatamente seus frutos? Quem lança as sementes na terra já pode fazer a colheita? E então? O recém-nascido se torna adulto instantaneamente? Veja como foi com Jesus. Cristo era Filho de Deus e Deus. Veja de que glória ele veio e a que sofrimentos desceu, para a desonra, a cruz, a morte, para só depois, ser por sua humildade elevado acima de tudo, indo sentar-se à direita do Pai[259]. A serpente maligna, ao contrário, depois de haver semeado em Adão o desejo de divindade[260], a quanta desonra não o fez descer por causa desta presunção? Considere, portanto, estas coisas, guarde-se tanto quanto puder e se esforce para ter sempre o coração humilde e quebrantado[261].


SOBRE A LIBERDADE DO INTELECTO

116. Quando você ouve que Cristo desceu aos infernos e libertou as almas que lá se encontravam detidas, não pense que estas coisas estão longe daquilo que acontece hoje em dia. Considere, com efeito, que o coração é um sepulcro no qual, retidos por pesadas trevas, foram enfurnados os pensamentos e o intelecto. O Senhor vem às almas que o chamam desde o inferno, ou seja, das profundezas de seu coração, e lá, comandando a morte, ele lhe diz: “Envie-me as almas presas que me procuram, a mim que as posso libertar”. Depois, erguendo a pesada pedra que recobre a alma, ele abre o túmulo, ressuscita aquele que estava verdadeiramente morto e liberta da prisão escura a alma que ali estava encerrada.

117. Acontece muitas vezes que Satanás venha deliberadamente falar ao seu coração e dizer: “Entenda o mal que você fez. Sua alma está cheia de iniquidades. Você está pesado de tantos e graves pecados”. No entanto, não o ignore: ele age assim para empurrá-lo ao desespero sob pretexto de humildade. Por que, depois que o mal entrou em nós pela transgressão ele abriu uma passagem para falar à alma todos os dias, como um homem fala a outro homem de certa maneira para lhe sugerir ações inconvenientes. Responda-lhe, portanto: “Eu tenho as garantias escritas de Deus, que disse: Eu não quero a morte do pecador, mas que ele retorne por meio do arrependimento, e que viva[262]”. Senão, por que teria ele descido, a não ser para salvar os pecadores, iluminar os que estavam nas trevas e dar a vida aos que estavam mortos?

118. Com a graça divina acontece a mesma coisa que a potência contrária: ela manifestamente incita, mas não constrange. Desta maneira permanecem salvaguardados nosso poder de decisão e nossa liberdade. Quando o homem desorientado por Satanás faz o mal, não é Satanás, mas o próprio homem que recebe o castigo. Pois ele não foi forçado ao mal, mas se deixou levar ao vício por sua própria vontade. Coisa semelhante acontece com relação ao bem. A graça não imputa a si mesma o bem que faz, mas ao homem. Por isto ela o reveste de glória, pois ele se colocou na própria origem do bem. Tampouco é, como dissemos, por um poder de constrangimento que a graça, amarrando a vontade do homem, a torna indefectível. Embora presente, ela deixa espaço para a liberdade, a fim de que fique bem claro que é a vontade do homem que o dirige para a virtude ou o vício. Com efeito, a lei não é aplicada à natureza, mas à livre resolução, que pode se voltar para o bem ou para o mal.

119. É preciso guardar a alma e preservá-la de relação com pensamentos profanos e maus. Com efeito, assim como um corpo que se une a outro se mancha com a impureza, também a alma se corrompe quando se junta a pensamentos sujos e maus, por concordar e por se entregar a eles, não apenas aos que trazem a malícia e a prostituição, mas também os ligados a quaisquer outros vícios, como a infidelidade, a mentira, a vanglória, a cólera, a inveja e a disputa. É preciso purificar-se de toda mancha da carne e do espírito[263]. Considere por exemplo que exista uma corrupção e uma prostituição que agem no secreto da alma por pensamentos inconvenientes. Da mesma forma como, segundo o grande Apóstolo, “Deus destruirá aquele que destrói o templo de Deus[264]”, ou seja, o corpo, também será passível de castigo aquele que corrompe a alma e o intelecto concordando e consentindo em pensamentos inconvenientes. Portanto, assim como convém guardar o corpo do pecado visível, é preciso guardar a alma dos pensamentos errados, pois ela é a esposa de Cristo. “Pois, disse ele, eu os entreguei a um só esposo, para apresentá-los a Cristo como uma virgem pura[265]”. Escute a Escritura quando esta diz: “Guarde seu coração com toda a vigilância, pois é de lá que partem as fontes da vida[266]”. E aprenda o que ensina a divina Escritura: “Os pensamentos tortuosos separam de Deus[267]”.

120. Que cada qual, examinando e aprovando sua própria alma, exija dela que lhe diga ao quê ela está ligada. E, se por um acaso seu coração não estiver de acordo com as leis de Deus, que se dedique com todas as forças, assim como guarda seu corpo, em guardar o intelecto de se corromper e de consentir com os maus pensamentos, caso queira que, segundo a promessa, o Puríssimo venha a habitar nele. Pois ele prometeu habitar e caminhar[268] nas almas puras que amam a beleza.

121. Da mesma forma como alguém que cultiva cuidadosamente sua própria terra começa por revirá-la e arrancar os espinheiros, para só então espalhar as sementes, também aquele que espera receber de Deus as sementes da graça deve primeiro purificar a terra de seu próprio coração para que, ao cair nele, a semente do Espírito possa dar frutos maduros e superabundantes. Se não começar por aí, se não houver a purificação completa das machas da carne e do espírito[269], permanecemos ainda como carne e sangue, distantes da vida[270].

122. Precisamos examinar com grande penetração e de todos os lados as fraudes do inimigo, suas mentiras e trapaças. Com efeito, assim como o Espírito Santo disse por intermédio de Paulo que ele se faz tudo em todos para ganhar a todos os homens[271], também o mal se esforça em se disfarçar de todas as maneiras para enviá-los à perdição. Com os que oram, o inimigo faz cara de reza, com o objetivo de enganá-los levando-os à presunção sob pretexto de oração. Com os que jejuam ele faz cara de jejum, para enganá-los levando-os a se vangloriar do jejum. Ele age da mesma forma com os que têm conhecimento das Escrituras, para fazê-los se perder sob a máscara do conhecimento. Perante os que foram considerados dignos de uma revelação da luz ele finge possuir algo semelhante. De fato, foi dito que Satanás se trasveste de anjo de luz[272] a fim de atrair os homens para si depois de enganá-los com a aparência da luz correspondente. Numa palavra, ele toma toda espécie de formas, se assemelha a tudo, a fim de submeter os homens com imitações e fazê-los perder-se com pretextos falaciosos. Está escrito: “Derrubaremos os raciocínios e toda altura que se ergue contra o conhecimento de Deus[273]”. Veja até que ponto estende sua audácia aquele que se vangloria, quando pretende derrubar até a quem, por seu conhecimento da verdade, traz em si o divino. Assim, cada qual deve, com toda atenção, guardar seu próprio coração, pedir a Deus muita penetração, a fim de que seja possível perceber as intrigas do mal. Mas convém igualmente modelarmos continuamente o intelecto e os pensamentos, exercitá-los em compreender, e também nos colocarmos sob a vontade de Deus. Pois não existe obra maior nem mais preciosa do que esta. Com efeito, foi dito: “Sua obra é ação de graça e esplendor[274]”.

123. Mesmo praticando ao máximo todas as virtudes, a alma que ama a Deus costuma não imputar nada a si mesma, mas relacionar tudo a Deus. Por sua vez, Deus, atento à saúde e à retidão do intelecto e do conhecimento desta alma, lhe atribui tudo. Como é ela que se esforça e faz todo o trabalho, ele lhe concede em troca as recompensas, mesmo que no homem não se encontre nada de verdadeiramente justo quando ele vier a nós em sua glória no dia do Juízo. Por que tudo o que o homem possui, todos estes bens aparentes por meio dos quais ele pode fazer o bem, a terra e tudo o que nela existe, o corpo e a própria alma, tudo isto pertence a Deus. Até a existência o homem a recebe por uma graça. O que resta a ele de seu, de que ele possa razoavelmente se vangloriar ou se justificar? E, no entanto, Deus recebe dos homens esta graça imensa, que lhe agrada mais do que tudo o que possamos lhe oferecer: que a alma que conhece bem como funcionam os seres reporte apenas a Deus tudo o que ela possa fazer de bom, todo o esforço feito por ele, tudo o que ela compreende, tudo o que ela conhece, atribuindo tudo somente a ele.

124.  Quando uma mulher desposa um homem para viver em comunhão com ele, tudo o que pertence aos dois se torna comum. Eles passam a ter uma mesma casa, os mesmos bens, os mesmos meios de existência. A mulher pode dispor não apenas dos bens do marido, mas também de seu corpo. Pois o esposo, como diz o Apóstolo divino, não tem autoridade sobre seu próprio corpo, que pertence à sua esposa[275]. O mesmo acontece com a verdadeira e misteriosa união da alma com Cristo: a alma se torna com ele um só Espírito[276]. E por que se torna sua esposa, segue-se que se torna também senhora de seus tesouros inefáveis. Uma vez que Deus se deu a ela, é claro que tudo o que é dele é dela, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, ou os anjos, as dominações, o passado e o futuro[277].

125. Enquanto Israel buscou agradar ao Mestre, embora nunca o tenha feito como devido, mas em todo caso enquanto pareceu dedicar-lhe uma fé quase sã, uma coluna de fogo se colocou à sua frente[278], o mar se retirou diante de si[279], e ele desfrutou de maravilhas sem conta. Mas quando se afastou da boa disposição para com Deus, foi entregue aos inimigos e submetido à escravidão mais amarga. Eu lhe suplico, considere que o mesmo acontece com sua alma. Por meio da graça ela conheceu a Deus, logo foi purificada de muitas manchas e depois foi considerada digna de receber os dons. Mas se ela não guardou a benevolência que deveria ter até o final pelo Esposo celeste, ela decairá da vida da qual tomou parte. Com efeito, é possível ao adversário sequestrar por meio do orgulho até os que alcançaram tais medidas. Por isso é preciso combater com todas as forças e tomar cuidado com a própria vida com temor e tremor[280], sobretudo aqueles a quem foi concedido participar do Espírito de Cristo: que nada façam com negligência, de pequeno ou grande, para não afligir com isto o Espírito do Senhor[281]. Com efeito, assim como existe alegria no céu, como diz a Verdade, por um só pecador que se arrepende[282], existe tristeza por uma única alma que decai da vida eterna.

126. Quando uma alma é considerada digna da graça, Deus lhe concede aquilo que lhe será mais útil: o conhecimento, a inteligência e o discernimento. Tudo isto Deus concede se ela lhe pedir, para servi-lo e para agradá-lo, o Espírito que ela foi considerada digna de receber, sem se deixar perder pelo vício, sem se deixar enganar pela ignorância, sem se deixar desviar pela negligência e por uma vida estranha ao temor a Deus, e sem fazer nada que seja contra a vontade do Mestre.

127.  Assim como a energia das paixões, ou seja, o espírito do mundo, o espírito do erro, das trevas, do pecado, vem habitar no homem que está imbuído do sentimento da carne, também a energia e o poder do Espírito luminoso vem habitar no homem santificado, segundo aquele que disse: “Se vocês buscarem uma prova de que Cristo fala em mim[283]”, e também: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim[284]”, e ainda: “Vocês que foram batizados em Cristo, de Cristo se revestiram[285]”. E o Senhor: “Nós viremos, eu e meu Pai, e nele faremos nossa morada[286]”. Não é nem em segredo, nem sem revelar sua energia, mas em potência e verdade, que estas palavras são cumpridas nos que são considerados dignos. Com efeito, primeiro a lei converteu os homens por uma palavra sem realidade, impondo a eles um jugo pesado e difícil de carregar, sem lhes prestar nenhum socorro: é por que esta lei não era capaz de liberar o poder do Espírito. Está escrito: “Aquilo que era impossível à lei, por que a carne lhe retirava toda a força[287]”, etc. Mas depois da vinda de Cristo, a porta se abriu para os que creram em verdade, e o poder de Deus e a energia do Espírito lhes foram concedidos.

128. Desde quando Cristo enviou aos discípulos divinos o dom da bondade primeira e natural, o dom do Espírito Santo[288], a partir daí o poder de Deus, recobrindo com sua sombra todos os que creram e habitando assim em suas almas, curou as paixões do pecado e libertou os homens das trevas e da morte. Até então a alma estava morta, havia sido aprisionada e retida pela escuridão do pecado. Ainda agora, a alma que ainda não foi considerada digna de habitar com o Senhor e com o poder do Espírito bom que vem com suas energias morar com ela em toda sua força e toda sua plenitude, está ainda no seio das trevas. Mas naqueles a quem a graça do divino Espírito visitou para permanecer no mais profundo de seu intelecto, o Senhor se encontra daí em diante como se fosse sua própria alma. “Quem se une ao Senhor, disse o Apóstolo divino, fará com ele um só Espírito[289]”. E o próprio Senhor disse: “Como eu e você somos um, que todos também sejam um[290]”. Oh, quanto benevolência e bondade pode experimentar a natureza humana tão humilhada pelo mal! Pois a alma presa ao fardo das paixões, que era como que uma só coisa com este, embora tendo vontade própria, não podia fazer o que lhe aprouvesse. É o que disse Paulo: “O que eu quero não é o que eu faço[291]”. Com mais razão, quando o poder de Deus se une à alma santificada e que se tornou digna dele, a alma se torna uma com a vontade divina. Tal como a própria alma do Senhor em verdade, ela deixará espontaneamente que reine em si o poder do Espírito bom, e deixará de caminhar segundo sua própria vontade. Pois “quem nos separará do amor de Cristo[292]”, ou seja, da alma unida ao Espírito Santo?

129. Portanto, aos que querem imitar a Cristo para serem também chamados de filhos de Deus, nascidos do Espírito, convém antes de tudo suportar corajosa e pacientemente as aflições que podem acontecer, as enfermidades do corpo ou as injúrias e os ultrajes dos homens, bem como os assaltos dos inimigos invisíveis. É por uma economia de Deus que as provas das diferentes aflições são concedidas às almas, a fim de que dentre elas sejam iluminadas as que verdadeiramente amam o Senhor. É o que em todos os tempos provaram os Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e os Mártires: eles não fizeram outra coisa do que passar pelo caminho estreito das tentações e das aflições, assim agradando a Deus. “Meu filho, diz a Escritura, se você pretende servir ao Senhor, prepare sua alma para a prova, torne reto seu coração e seja paciente[293]”. E em outra parte ela afirma que se deve receber como um bem tudo o que nos acontece, sabendo que nada se faz sem Deus. A alma que pretende agradar a Deus deve se ligar antes de tudo à paciência e à esperança. Pois o mal só possui um único recurso: fazer penetrar em nós a acídia nos tempos de aflição, a fim de nos cortar a esperança no Senhor. Jamais permitiu Deus que a alma que nele espera[294] tenha sido oprimida pelas tentações a ponto de se desconsertar por completo. “Deus é fiel, disse o Apóstolo, ele não permitirá que vocês sejam tentados além de suas forças. Com as tentações, ele também fornecerá um meio de saída, para que vocês as possam suportar[295]”. O maligno não aflige a alma tanto quanto quer, mas na medida em que Deus o permite. Com efeito, se os homens sabem o peso que uma mula, um asno ou um camelo são capazes de carregar, eles colocarão em cada uma a carga que o animal pode suportar. Também o oleiro sabe muito bem quanto tempo deve deixar no fogo os vasos para que estes não se quebrem por aí permanecer demasiado, nem para que fiquem inutilizados por terem sido retirados antes que o cozimento tenha terminado. Se esta é a ciência do homem, quanto mais, e infinitamente, não saberá a ciência de Deus quanta tentação deverá suportar cada alma para se tornar provada e ser capaz de alcançar o Reino dos céus?

130. Se a matéria do cânhamo não for quebrada longamente, não pode ser utilizada no trabalho das tramas mais delicadas. Quanto mais quebrada e cardada ela for, mais se torna pura e mais facilmente pode ser utilizada. Da mesma forma, o vaso moldado mas ainda não exposto ao fogo não pode ser utilizado pelo homem. O mesmo acontece com a criança: ela ainda não tem experiência das obras do mundo, é incapaz de construir, plantar, semear ou concluir com sucesso qualquer das tarefas do mundo. O mesmo acontece com as almas. Embora participem da graça divina e estejam cheias da doçura e do repouso do Espírito pela benevolência do Senhor devido ao seu estado de infância, ainda lhes falta a experiência, ainda não foram testadas pelos diferentes tormentos que os espíritos do mal infligem, ainda estão como que na infância e por assim dizer não são capazes de alcançar o Reino dos céus. Pois “se fossem forem isentos da correção da qual todos participam, disse o Apóstolo divino, vocês serão bastardos e não filhos[296]”. Assim é que o homem recebe para seu benefício as tentações e aflições, que tornam sua alma mais experiente e sólida. E, se perseverarmos até o fim esperando no Senhor, será impossível que tal esperança fique de lado na promessa do Espírito e na libertação das paixões do mal.

131. Os mártires enfrentaram inúmeros tormentos e perseveraram até a morte, e foram dignos das coroas e da glória. Quanto mais duros e numerosos seus sofrimentos, maiores eram sua glória e sua certeza diante de Deus. Do mesmo modo, quando as almas são atiradas a diferentes aflições, sejam estas provocadas pelos homens na ordem visível, ou que venham de pensamentos deslocados na ordem do intelecto, ou que nasçam de enfermidades do corpo, elas receberão as mesmas coroas e a mesma garantia dos mártires, caso mantenham a paciência até o fim. Pois o martírio que aqueles sofreram por causa dos homens, os ascetas sofrem por causa dos espíritos do mal que agem por intermédio destes mesmos homens. E quanto mais numerosos forem os sofrimentos que lhes inflija o inimigo, maior será a glória que receberão de Deus, não apenas no século futuro, mas desde já, aqui em baixo, onde serão considerados dignos da consolação do Espírito bom.

132. É sabido que o caminho que conduz à vida do alto é muito estreito e fechado, e é por isso que são pouco numerosos os que o seguem. Ora, em vista da esperança que se fundamenta nos céus é preciso suportar firmemente todas as provações do maligno. De fato, quaisquer que sejam as aflições que tenhamos que sofrer, que poderemos oferecer que corresponda à promessa do século futuro, ou à consolação com que aqui em baixo o Espírito bom cumula nossas almas, ou à libertação das trevas das paixões do mal, ou à multidão de dívidas nas quais incorremos por nossos pecados? Com efeito, foi dito: “Os sofrimentos do tempo presente não são comparáveis à glória que deverá se manifestar em nós[297]”. Devemos então, como se diz, a tudo suportar pelo Senhor, como nobres combatentes prestes a morrer por nosso Rei. Por que, com efeito, quando estávamos ligados ao mundo e às coisas desta vida, caímos nós em tantas penas, e agora, depois que viemos servir a Deus, ainda temos que suportar tantas tentações? Mas você não percebe que é por Cristo que somos afligidos? Pois o adversário inveja a recompensa dos bens que esperamos, ele quer colocar a preguiça e o desleixo em nossas almas para que não sejamos considerados dignos destes bens que merecemos por termos vencido como agrada a Deus. Então o maligno se arma contra nós na mesma medida em que resistimos corajosamente aos seus ataques. Mas todas as armadilhas que ele nos coloca são desarmadas com a ajuda de Cristo. Pois temos em Jesus nosso protetor e defensor. Lembremo-nos de que foi assim mesma que ele próprio atravessou este século: ultrajado, perseguido, ridicularizado e finalmente assassinado por uma morte desonrosa sobre a cruz[298].

133. Se quisermos suportar facilmente toda a aflição e as provas, queiramos morrer por Cristo, tenhamos continuamente esta morte diante de nossos olhos. Com efeito, recebemos esta ordem de segui-lo tomando nossa cruz[299], ou seja, estando prontos e resolvidos a morrer. Se estivermos assim dispostos, como se diz, suportaremos com facilidade toda aflição, secreta ou visível. De fato, para quem deseja morrer por Cristo[300], que mal haverá em suportar algumas penas e aflições? Ao contrário, para quem não deseja morrer por Cristo, para os que não ligam continuamente seus pensamentos a Cristo, as aflições são sempre pesadas. Mas quem deseja ser herdeiro de Cristo, que deseje igualmente imitar seus sofrimentos. Desta forma, os que dizem amar ao Senhor serão reconhecidos assim: pela esperança que depositam nele, carregam todas as aflições não apenas com coragem, mas ardentemente.

134. Quem avança na direção de Cristo deve antes violentar-se para atingir o bem, mesmo que seu coração não o queira. Pois “o Reino de Deus é tomado pela força, disse o Senhor que não mente, são os violentos que se apoderam dele[301]”. Ele disse também: “Esforcem-se para entrar pela porta estreita[302]”. É preciso, como já foi dito, que, contra nossa própria vontade, forcemos um caminho para a virtude, que os que não possuem a caridade se esforcem por alcançá-la, que aqueles a quem falta mansidão se esforcem por adquiri-la, que os que ainda não chegaram a este estado se esforcem por ter um coração compassivo e cheio de amor pelo homem, por suportar a desonra e a indiferença, por se manter firme sob a pecha do desprezo, enfim, que os que ainda não trazem em si a oração do Espírito se esforcem por recebê-la. Se Deus nos faz lutar assim e nos obriga a violentar-nos para alcançar o bem, ainda que nosso coração se oponha, ele nos concede a oração verdadeira, um coração compassivo, a paciência, a longanimidade, numa palavra, ele nos cumula de todos os frutos do Espírito[303]. E se um homem a quem faltam também as demais virtudes se violenta para atingir, por exemplo, apenas a oração a ponto de receber não só o carisma da oração, mas ainda o da mansidão, da humildade, do amor, e mais toda a nobre raça das virtudes e até a certeza da fé e a confiança em Cristo, fora de toda negligência e de todo desleixo, este homem poderá receber também o Espírito bom, segundo seu pedido, e parcialmente, na alegria e no repouso, a prece fecundada pela graça. Mas ele permanecerá privado dos demais bens, por que não se violentou para adquiri-los também, como foi dito, e por que não os pediu a Cristo. Pois, ainda que ele não queira, precisará não somente forçar um caminho para os bens de que falamos, pedindo a Deus que lhe seja concedido recebê-los, mas ainda considerar indignas de serem pronunciadas palavras inúteis e ociosas. Ele deverá ter sempre na boca e no coração as palavras de Deus e renunciar, por outro lado, a se encolerizar e gritar. De fato, foi dito: “Que todo azedume, toda cólera e toda gritaria seja banida de entre vocês[304]”. Ele deverá se esforçar para não medir ninguém, não julgar, não se orgulhar[305], a fim de que o Senhor, vendo assim este homem prender a si mesmo e se violentar, lhe permita cumprir sem esforço e facilmente aquilo que antes, mesmo como todo seu esforço, não lhe era possível obter, por causa da malícia que nele habitava. Toda esta prática da virtude se tornará para ele como que uma natureza. Pois daí em diante, conforme a promessa, o Senhor virá e habitará nele[306], e ele no Senhor, que nele fará cumprir os mandamentos com a maior facilidade.

135. Aquele que se violenta apenas para alcançar a oração, como foi mostrado no capítulo anterior, mas que não se dedica nem se força para alcançar a humildade, o amor, a mansidão e as demais virtudes, fica reduzido a este extremo: às vezes a graça divina o visita enquanto ora. Pois Deus, em sua bondade, ama tanto o homem que ele concede aos que oram aquilo que pedem. Mas se este homem não está nem acostumado nem exercitado mas virtudes de que falamos, ou bem ele decai da graça recebida, se orgulha e tomba, ou se detém sem progredir nem crescer nesta graça. Pois a moradia e o repouso do Espírito bom são, ao que parece, a humildade, o amor, a mansidão e os demais santos mandamentos de Cristo. Portanto, quem quiser, por meio destes mandamentos, progredir em crescimento e perfeição, deve trazer em si antes de tudo o primeiro de todos, e que se esforce por amar, como foi dito, e que se dedique a tornar compassivo e dócil a Deus seu coração propenso à discussão e à disputa. Pois naquele que começou a se violentar, que de certa forma aprisionou toda resistência da alma, que, por um bom hábito, se fez obediente a Deus, que implora e pede em tal estado de alma, cresce e floresce o carisma da oração dada pelo Espírito, carisma que repousa na moderação dos sentimentos: aquilo que o homem buscava, além do amor e da afetuosa mansidão. Então o Espírito lhe concede também estas coisas e lhe ensina a verdadeira humildade, o amor verdadeiro e a doçura: é o que ele buscava ao se violentar. Assim crescendo até a perfeição exigida pelo Senhor, ele se mostra digno do Reino. Pois o humilde não tomba jamais. Onde cairá ele, que está abaixo de todos, ao menos na medida em que isto depende dele? Assim é que o orgulho é um grande rebaixamento, e, ao contrário, a humildade é uma grande elevação e uma honra certa.

136. Aqueles que amaram a Deus verdadeiramente não se decidiram a servi-lo com vistas ao Reino, como se procurassem fazer disto um mercado ou um benefício próprio, nem para escapar do castigo reservado aos pecadores. Eles o amaram como o único Deus e como seu próprio Criador. Consequentemente, eles reconheceram que o servidor deve agradar ao Mestre que o criou. E deram prova de grande discernimento diante do que lhes aconteceu. Pois o desejo de agradar a Deus logo encontra muitos obstáculos, que não se resumem à indigência e ao descrédito, mas incluem ainda a riqueza e as horarias que constituem tentações para a alma. Num certo sentido, mesmo a consolação e o reconforto que a alma recebe da graça podem facilmente se transformar em prova e impedimento, se a alma que foi considerada digna não os percebe ou os utiliza sem medida e discernimento. Pois o mal, sob o disfarce desta graça, se empenha em relaxar a tensão dentro desta alma, e a fazê-la cair na preguiça e na negligência. É por isso que a própria graça precisa, para se comunicar, de uma alma piedosa e perspicaz que saiba honrá-la e trazer em si frutos dignos dela. Portanto, não são apenas as aflições, mas também o reconforto, que pode se transformar em provação para a alma. Pois por intermédio de uns e de outros as almas são testadas pelo Criador, a fim de que dentre elas se manifestem claramente aquelas que não o amam apenas para obter um benefício, mas que o consideram como o único digno de afeto e honra verdadeiramente grandes. Assim é que, para quem é negligente, para quem não tem fé, que pensa ainda como uma criança, as circunstâncias tristes e penosas, como a doença, a indigência, o descrédito, ou, ao contrário, a riqueza, a glória, o elogio dos homens, tudo isto constitui um obstáculo à vida eterna, além da guerra oculta que o maligno faz contra nós. Inversamente, você verá que estas mesmas circunstâncias auxiliam o homem fiel, perspicaz e nobre, a alcançar o Reino de Deus. “Para os que amam a Deus, segundo o Apóstolo divino, tudo concorre para o bem[307]”. Prova-se assim que o homem que verdadeiramente ama a Deus, que rompeu, venceu e superou tudo o que é considerado obstáculo no mundo, se liga unicamente ao amor divino. “As armadilhas dos pecadores me cercaram, disse o Profeta, mas eu não esqueci a sua lei[308]”.

137. O divino apóstolo Paulo mostrou com precisão e clareza a todas as almas crentes que o mistério perfeito do cristianismo consiste em alcançar a experiência da energia divina, ou seja, a irradiação da luz celeste na revelação e no poder do Espírito. Assim não corremos o risco de, por ignorância ou negligência, deixar de lado o mistério perfeito da graça, considerando que tal iluminação do Espírito não provém senão de um conhecimento dos pensamentos. É por isso que Paulo também reportou o exemplo da glória do Espírito envolvendo o rosto de Moisés, a fim de expor o conhecimento em acordo com o mistério. Assim, disse ele: “Se o ministério da morte, gravado em letras sobre tábuas de pedra, foi glorioso a ponto de os filhos de Israel não poderem mirar o rosto de Moisés por causa da glória – passageira, é verdade – de sua face, quão maior não será a glória do ministério do Espírito? E se o ministério da condenação foi uma glória, quanto mais não abundará em glória o ministério da justiça? Assim, o que antes foi glória já não o é mais, por causa desta nova glória muito superior. Pois, se o que passa foi glória, quanto mais será aquilo que permanece[309]”. Ele disse “o que passa”, por que a glória da luz envolvia o corpo mortal de Moisés. Mas ele acrescenta: “Tendo assim tal esperança, dispomos de uma grande liberdade[310]”, e mais adiante ele demonstra que esta glória indissolúvel, incorruptível, reveladora do Espírito, brilha agora para aqueles que dela são dignos, eterna e indefectivelmente, no ser imortal do homem interior. É por isso que ele diz: “Todos nós – ou seja, nós que, por uma fé perfeita, nascemos do Espírito – que, com o rosto sem véu, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na mesma imagem, de glória em glória, como pelo Senhor, o Espírito[311]”. O rosto sem véu é evidentemente o rosto da alma. E: “Quando nos voltamos para o Senhor, o véu é retirado. Ora, o Senhor é o Espírito[312]”. Com isto ele mostra claramente que um véu de trevas foi jogado sobre a alma. É o véu que, depois da transgressão de Adão, recebeu o poder de penetrar na humanidade. Mas agora, depois que resplandeceu o Espírito, acreditamos que este véu foi retirado das almas fiéis e verdadeiramente dignas. É por esta razão que aconteceu a vinda de Cristo. Quis Deus que aqueles que creem em verdade alcancem tais medidas de santidade.

138. Este flamejamento do Espírito não é somente uma revelação dos pensamentos e uma iluminação da graça, como foi dito, mas uma irradiação certa e contínua da luz hipostática nas almas. “Pois aquele que disse: a luz brilhará do seio das trevas, [a mesma luz] brilhou em nossos corações para iluminá-los com o conhecimento e a glória de Cristo[313]”. E: “Ilumine meus olhos, para que eu não adormeça no sono da morte[314]”, ou seja, para que a alma não seja entenebrecida pelo véu da morte da malícia, quando se dissolver a carne. Igualmente: “Abre ainda meus olhos, e eu contemplarei as maravilhas de sua lei[315]”. E: “Envie a luz e sua verdade. Elas me conduzirão e me levarão até a montanha santa e às suas moradas[316]”. E também: “A luz de sua face se imprimiu em nós, Senhor[317]”. Estes versos, e muitos outros, conduzem todos ao mesmo fim.

139. A luz que brilhou sobre o caminho diante do bem-aventurado Paulo[318], esta luz por meio da qual ele foi elevado ao terceiro céu e esteve diante de mistérios inefáveis[319], não era uma iluminação dos pensamentos e do conhecimento, mas uma resplendência dentro da alma do poder pessoal do Espírito bom[320]. Os olhos da carne, incapazes de suportar a superabundância de tamanho esplendor, ficaram cegos[321]. É por meio desta luz que todo conhecimento é revelado, e que Deus se dá a conhecer em verdade à alma que é digna e bem-amada.

140. Toda alma que, por seu próprio esforço e sua fé, foi considerada digna de se revestir perfeitamente de Cristo desde aqui de baixo na potência e na plenitude da graça e que se uniu à luz celeste da imagem incorruptível, está desde já pessoalmente iniciada[322] no conhecimento de todos os mistérios do céu. E no dia da ressurreição, seu corpo glorificado com esta imagem celeste da glória[323], elevado aos céus pelo Espírito, conforme está escrito[324], e tornado digno de ser conforme o corpo de sua glória[325], terá também o Reino eterno que durará para sempre e que será o quinhão de Cristo.

141. Na mesma medida em que um homem, por seu próprio esforço e pela fé, comungar da glória celeste e do Espírito Santo e tiver adornado sua alma de boas obras, nesta medida naquele dia seu corpo também será digno de ser glorificado. Por que aquilo que até então foi guardado no interior, como um tesouro, sairá para o exterior. Acontece aqui o mesmo que sucede aos frutos das árvores: penetrando no interior durante o inverno, ele saem para fora na primavera. Entre os santos, a imagem do Espírito, esta imagem semelhante a Deus, que desde agora está como que impressa no seu interior, tornará igualmente semelhante a Deus e celeste o corpo exterior. Mas entre os impuros e os pecadores, o véu opaco do espírito do mundo envolverá a alma, tornando tenebroso e disforme o intelecto pelo peso das paixões: também o corpo se revelará então, exteriormente, tenebroso e coberto de vergonha.

142. Quando, depois da transgressão de Adão, a bondade de Deus se decidiu por sua morte[326], a coisa aconteceu primeiro na alma, nos sentidos imortais, estes sentidos penetrados pelo intelecto, que se extinguiram nele pela privação da alegria celeste e espiritual e se tornaram como mortos; depois veio a morte do corpo, após novecentos e trinta anos[327]. Também agora, depois de se haver reconciliado com a humanidade pela cruz e a morte do Salvador, Deus restabeleceu na alegria das luzes e dos mistérios do céu a alma que acreditou em verdade, mesmo estando ela ainda na carne, e, pela luz divina da graça ele tornou novamente clarividentes os sentidos penetrados pelo intelecto; e a seguir ele revestirá também de glória imortal e incorruptível o próprio corpo.

143. Os que se afastaram deste mundo e levam uma vida nobre no amor pela virtude, mas que ainda estão sob o véu das paixões, ao qual fomos todos condenados pela transgressão do primeiro homem, vale dizer, o cuidado da carne – chamado pelo Apóstolo de “morte”, quando ele disse: “O cuidado com a carne é a morte[328]” – estes homens são como alguém que caminha à noite à luz das estrelas, que são os santos mandamentos de Deus. Eles ainda não estão totalmente desembaraçados das trevas. É impossível a eles discernir todas as coisas. Convém, portanto, que, dedicando-se à virtude, se esforçando e com muita fé, chamem por Cristo, o Sol de justiça, para que este brilhe em seus corações, a fim de que possam ver tudo com precisão: a agressão das feras inteligíveis contra nós, que varia e toma todas as formas, e as belezas do mundo incorruptível, cujo aspecto é impossível descrever e cuja alegria impossível expressar. Tudo isto então se tornará para eles visível e manifesto, como aos que atingirão o cume das virtudes, e como àqueles cuja luz intelectual, com toda sua energia, iluminou o coração. Pois o alimento sólido, como disse o bem-aventurado Paulo, é para os perfeitos que, por hábito, possuem os sentidos exercitados no discernimento do bem e do mal[329]. E o divino Pedro disse: “Também vocês dispõem da palavra profética à qual fazem bem em prestar atenção como a uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que o dia comece a nascer e a estrela da manhã se levante em seus corações[330]”. Ora, a maior parte não difere em nada dos que caminham na noite sem o auxílio de uma luz e sem dispor da menor claridade (ou seja, da palavra divina que pode brilhar em nossas almas). Estes homens não estão longe de se assemelhar a cegos: eles estão inteiramente presos na trama dos afazeres materiais e nos laços desta vida. Eles não se mantém no temor a Deus nem seguem nenhuma das boas obras. Mas aqueles que, dentre os homens do mundo, como foi dito, se iluminam com a luz dos santos mandamentos, como com a luz das estrelas, atentos à fé e ao temor Deus, estes não estão totalmente mergulhados nas trevas, e ainda podem ter uma esperança de salvação.

144. Eu afirmo, os homens adquirem a riqueza no mundo por diferentes meios e diferentes práticas. Um é rico por que possui o cargo de governador; outro, por que faz comércio; outro, por que trabalha com suas mãos e cultiva a terra; e outros, por outras vias. Considere, eu lhe peço, que a mesma ordem vale para os bens espirituais. Uns os adquirem por diversos carismas, como mostra a frase do Apóstolo: “Nós possuímos carismas diferentes, segundo nos conferiu a graça de Deus[331]”. Outros, por diferentes asceses, diferentes ações justas e diferentes virtudes praticadas por amor ao Deus único, recolhem em si a riqueza do céu. Por isso lhes é proibido julgar o próximo, desprezá-lo ou condená-lo. E não são menos reconhecíveis os que buscam ouro na terra, vale dizer, os que correm com longanimidade e paciência e se enriquecem em parte, com grande regozijo, pela boa esperança. Igualmente reconhecíveis são os que, como mercenários, tolos e embrutecidos, devoram logo tudo o que recebem, não permitindo crescer com paciência aquilo que têm em mãos. Os vemos sempre nus e indigentes. Com efeito, estão sempre prontos e ardentes para receber a graça, mas são negligentes e desleixados quando é necessário agir para adquiri-la. Eles são inconstantes e se cansam quando postos a trabalhar, e a graça que receberam logo lhes é tirada. Pois a vontade negligente, preguiçosa, fraca e desleixada, que não se conforma à graça e é desprovida de boas obras, que é sempre reprovada por Deus e desacreditada, é reconhecível desde já, e ficará a descoberto no século futuro.

145. Quando o homem transgrediu o mandamento de Deus e decaiu da vida que levava no Paraíso, logo foi preso a duas cadeias. Uma é a dos afazeres desta vida e dos prazeres da carne: a riqueza, a glória, a amizade, a mulher, as crianças, os parentes, a pátria, as posses, numa palavra, estas coisas visíveis das quais a palavra de Deus mandou que nos separássemos por nossa própria resolução. A outra é invisível e oculta. Com efeito, a alma foi amarrada pelos próprios espíritos do mal aos laços das trevas. Desta forma não lhe é possível amar a Deus, nem crer, nem orar como gostaria. Pois, nas coisas visíveis como nas ocultas, tudo se opõe a nós e nos persegue desde a transgressão do primeiro homem. Assim, quando alguém, dando ouvidos dóceis à palavra de Deus, se separa das coisas desta vida, se separará também de todos os prazeres da carne. Então, consagrando-se ao Deus e vivendo com ele, ele receberá a força para aprender que no secreto do coração está escondido um outro combate, outra guerra: a dos pensamentos. Assim perseverando e orando ao Cristo compassivo, desde que este lhe envie uma grande fé unida à paciência, e que o ligue ao socorro de Deus, ele poderá se libertar destes laços e destes entraves interiores e das trevas dos espíritos do mal, que são as energias das paixões secretas. Nós somos capazes de deter esta guerra pela graça e o poder de Cristo. Mas sem o socorro de Deus, por nós mesmos, é impossível nos libertarmos e nos livrarmos da luta contra os pensamentos. Somente nos é possível nos opor ao mal e não nos comprazermos nele.

146. Se alguém se vê retido pelos afazeres deste mundo e pelos lações de todo tipo, se se deixa desviar pelas paixões do mal, é muito necessário, como já dissemos, que ele saiba que existe outro combate e outra guerra que se passam em segredo. Pois é bom que, desembaraçando-nos de todo o visível e nos afastando dos prazeres da carne para começar a nos consagrarmos a Deus, possamos conhecer o combate interior das paixões e discernir a guerra secreta que existe em nós. Se não agirmos assim com toda nossa alma, se não colocarmos todo nosso amor em nos consagrarmos a Deus, não saberemos reconhecer estas paixões secretas do mal e as ligações interiores. Enquanto somos feridos e permitimos que em nós queimem as paixões secretas, nos arriscamos a acreditar que estamos com boa saúde e não doentes. Ao contrário, a quem despreza a concupiscência e a vanglória, torna-se logo possível reconhecer estas paixões e combatê-las, desde que chame por Cristo com fé, que receba do céu as armas espirituais, a couraça da justiça, o capacete da salvação, o escudo da fé e a espada do Espírito[332].

147. O adversário, que se empenha em nos cortar de nossa esperança e de nosso amor em Cristo, inventa milhares de armadilhas. Por meio dos espíritos do mal ele traz à alma grandes aflições. Desenterrando a lembrança de antigos pecados, ele suscita na alma pensamentos sujos e desregrados. Pois ele quer fazê-la cair no desleixo mandando-lhe pensamentos de desespero, persuadindo-a de que é impossível alcançar a salvação. E quando é a própria alma que engendra estes pensamentos, e não um espírito estrangeiro que nelas os semeia maldosamente ao mesmo tempo em que permanece oculto, ou bem o adversário a leva ao desespero, ou bem suscita as penas do corpo, ou ainda projeta os ultrajes e as aflições que vêm dos homens. Mas, quanto mais o maligno atira sobre nós suas flechas envenenadas[333], mais devemos nos agarrar à esperança que temos em Deus, sabendo exatamente que esta é a sua vontade: colocar à prova as almas presas de amor por ele, para que se revele se estas o amam verdadeiramente.

148. Mil anos deste mundo, comparados com a eternidade do mundo incorruptível, são como um grão de areia no mar. Eu lhe peço que considere o seguinte: suponha que você possa se tornar o único rei sobre a terra, que você seja o único mestre de todos os tesouros do mundo inteiro. Digamos que o começo da vinda dos homens ao ser seja para você o começo do seu reinado, e que o limite deste seja a transformação e a renovação de todas as coisas visíveis e do mundo inteiro. E então? Se lhe for dada escolha, você trocaria por este o Reino verdadeiro e certo que não tem em si absolutamente nada que passe e se dissolva? Não, posso afirmar, se seu juízo for são e se você for prudente em tudo o que lhe diz respeito. “Qual é o ganho para o homem, está escrito, se para ganhar o mundo inteiro ele perder sua alma?[334]”, esta alma que aprendemos que não pode ser trocada por nada? Pois somente esta alma – sem falar do Reino dos céus – é por si só mais preciosa do que o mundo inteiro e mais o reinado sobre este mundo. A alma, como dissemos, é mais preciosa por que: a nenhum dos outros seres criados Deus quis conceder a união e a comunhão com sua própria natureza, a do Espírito, nem ao céu, nem ao sol, nem à lua, nem às estrelas, nem ao mar, nem à terra, nem a qualquer outra criatura do mundo visível, mas unicamente ao homem, a quem ele ama mais do que tudo. Assim, se estas grandes coisas do mundo, a riqueza e o reinado sobre toda a terra, na retidão de nosso julgamento não as trocarmos pelo Reino eterno, qual a loucura da maior parte dos homens que o estimam comparável às coisas vis e comuns, como uma mera concupiscência, uma bajulação, um proveito medíocre e coisas do gênero? É que na verdade aquilo que o homem ama neste século, aquilo a que está ligado, é isto que ele troca pelo Reino dos céus. E o pior é que ele considera que isto é Deus. Como já foi dito: “Cada qual é escravo daquilo que triunfou sobre ele[335]”. É preciso pois lançar-se inteiramente para Deus, agarrar-se a ele e crucificar a si mesmo de alma e corpo, caminhando sobre a via de seus santos mandamentos.

149. Pois bem, parece-lhe justo que esta glória corruptível, este reino efêmero e tantas outras coisas perecíveis do gênero, pertençam aos que buscam obtê-las com enormes esforços e suores, enquanto que reinar indefinidamente com Cristo e descobrir seus bens inexprimíveis seja um prêmio pequeno e fácil, que qualquer um que o queira possa alcançar sem esforço e sem fadiga?

150. Qual é a economia da vinda de Cristo? O retorno de nossa natureza a si mesma e sua restauração. Pois Cristo devolveu à natureza humana a dignidade de Adão, o primeiro homem. E além disto, ó graça verdadeiramente divina e grande, ele deu também a herança celeste do Espírito bom, fazendo-a sair da prisão das trevas. Ele mostrou o caminho e a porta da vida: a quem passou por esta porta, a quem bateu nesta porta, se tornou possível entrar no Reino. Foi dito, com efeito: “Peçam e lhes será dado; batam, e serão atendidos[336]”. Por esta porta pode entrar qualquer um que deseje encontrar a liberdade de sua alma e que queira que esta recupere seus próprios pensamentos, se enriqueça no habitar com Cristo e o tenha por esposo na comunhão do Espírito bom. Você vê aqui o amor inefável do Mestre pelo homem que foi por ele criado à sua imagem[337]!
  




[1] Salmo 126 (127): 1.
[2] Cf. Romanos 12: 2; I Tessalonicenses 4: 3.
[3] Cf. Romanos 1: 26.
[4] Mateus 5: 8.
[5] Mateus 5: 48.
[6] Salmo 118 (119): 80.
[7] Salmo 118 (119): 6.
[8] Salmo 23 (24): 4.
[9] Salmo 18 (19): 13.
[10] Cf. Provérbios 4: 23.
[11] Deuteronômio 22: 10.
[12] Deuteronômio 22: 11.
[13] Deuteronômio 22: 9.
[14] Salmo 118 (119): 128.
[15] Salmo 52 (53): 6.
[16] Salmo 5: 7.
[17] Salmo 27 (28): 3. “...mas guardam o mal em seu coração”.
[18] Salmo 57 (58): 3.
[19] Lucas 6: 26.
[20] Mateus 5: 16.
[21] João 5: 44.
[22] I Coríntios 10: 31.
[23] I João 3: 15.
[24] I Coríntios 13: 7-8.
[25] Cf. Efésios 6: 12.
[26] Cf. I Coríntios 13: 1 e ss.
[27] I Coríntios 10: 24.
[28] Mateus 16: 24.
[29] Efésios 6: 6.
[30] Cf. Mateus 22: 38.
[31] Cf. Mateus 22: 39.
[32] Cf. Romanos 8: 16.
[33] II Coríntios 10: 18.
[34] João 5: 44.
[35] Cf. Mateus 22: 38.
[36] Cf. I Coríntios 6: 17.
[37] Cf. I Coríntios 10: 31.
[38] Cf. Gênesis 14: 19.
[39] Cf. Mateus 11: 30.
[40] Gênesis 4: 4.
[41] Salmo 4: 8.
[42] Lucas 17: 21.
[43] II Coríntios 1: 4.
[44] Salmo 83 (84): 3.
[45] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[46] Cf. Romanos 12: 12.
[47] Lucas 18: 7.
[48] Mateus 26: 41.
[49] Lucas 18: 1.
[50] Cf. Gálatas 5: 22.
[51] Cf. Mateus 25: 1-3.
[52] Cf. Gálatas 5: 22.
[53] Cf. Romanos 1: 26.
[54] Cf. Gálatas 5: 22.
[55] Cf. I Coríntios 6: 17.
[56] Mateus 10: 42.
[57] Mateus 25: 40.
[58] Cf. II Coríntios 8: 14.
[59] Êxodo 16: 18.
[60] Cf. Mateus 6: 10.
[61] II Tessalonicenses 3: 10.
[62] Eclesiastes 33: 28.
[63] Mateus 5: 48.
[64] João 17: 24.
[65] Mateus 24: 35.
[66] Colossenses 1: 24.
[67] Efésios 4: 13.
[68] Cf. Mateus 5: 6.
[69] Cf. Tito 2: 13.
[70] Cf. Lucas 16: 15
[71] Cf. II Coríntios 5: 17 e Salmo 50 (51): 12.
[72] Cf. Hebreus 3: 17.
[73] Cf. I Timóteo 1: 5.
[74] Hebreus 3: 12.
[75] Hebreus 3: 16-19.
[76] Hebreus 4: 1-3.
[77] Hebreus 4: 11.
[78] Hebreus 10: 22.
[79] Hebreus 9: 14.
[80] Lucas 10: 42.
[81] Cf. João 13: 5.
[82] Atos 6: 2-4.
[83] Cf. João 8: 12.
[84] Designa a ordem e a lei do projeto divino.
[85] Cf. Romanos 7: 13: “...a fim de que o pecado, por meio do mandamento, aparecesse em toda sua gravidade”.
[86] Cf. Gênesis 3: 13.
[87] Cf. João 12: 31.
[88] Cf. Gênesis 1: 26.
[89] Cf. Gênesis 3: 1-6.
[90] Cf. Êxodo 7: 11-12; II Timóteo 3: 8.
[91] Cf. Atos 8: 9-10.
[92] Cf. Êxodo 34: 30-31.
[93] Romanos 5: 14.
[94] Cf. Romanos 1: 26.
[95] Cf. I Coríntios 15: 26. 54.
[96] Cf. Gênesis 3: 12-13.
[97] Cf. Gênesis 3: 10.
[98] Cf. Gênesis 3: 24.
[99] Romanos 8: 28.
[100] I Coríntios 10: 13.
[101] Cf. Mateus 7: 7-8.
[102] Cf. Mateus 21: 22.
[103] Cf. Mateus 5: 28.
[104] Cf. I Coríntios 6: 17.
[105] Cf. Mateus 10: 42.
[106] I Coríntios 15: 41.
[107] Cf. Efésios 4: 13.
[108] Cf. I Coríntios 13: 11.
[109] I Coríntios 13: 8.
[110] I Coríntios 13: 11.
[111] II Coríntios 12: 7.
[112] Cf. I Timóteo 5: 15.
[113] Cf. II Coríntios 11: 14.
[114] Cf. Gálatas 5: 22.
[115] Salmo 56 (57): 7.
[116] Cf. Mateus 12: 29.
[117] Cf. I Coríntios 15: 50.
[118] Cf. I Coríntios 1: 21-24.
[119] Isaías 53: 3.
[120] Cf. Isaías 50: 6.
[121] Cf. Mateus 8: 20.
[122] Levítico 26: 12.
[123] Cf. Mateus 12: 29.
[124] Cf. Salmo 90 (91): 13.
[125] Cf. Lucas 10: 19.
[126] Lucas 17: 21.
[127] Cf. Isaías 35: 10.
[128] Cf. Isaías 43: 20.
[129] Cf. Isaías 41: 18.
[130] Isaías 44: 3.
[131] João 4: 14.
[132] Cf. Efésios 4: 13.
[133] Cf. Hebreus 12: 22.
[134] Cf. Salmo 37 (38): 14.
[135] Cf. Hebreus 5: 7.
[136] Salmo 18 (19): 13.
[137] Cf. Salmo 8: 7.
[138] Cf. II Timóteo 2: 12.
[139] Cf. Gênesis 3: 19.
[140] Lamentações 5: 2.
[141] Cf. II Coríntios 10: 15.
[142] Cf. Tiago 1: 2.
[143] Cf. Levítico 26: 12.
[144] Gênesis 4: 12.
[145] João 8: 44.
[146] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5.
[147] Mateus 16: 24.
[148] Salmo 52 (53): 4.
[149] Cf. Deuteronômio 6: 13.
[150] Atos 14: 22.
[151] Lucas 21: 19.
[152] João 16: 33.
[153] Mateus 6: 29.
[154] Xanthos, louro, designa o mês de Abril.
[155] Êxodo 12: 2.
[156] Cf. Êxodo 34: 30-31.
[157] Cf. II Coríntios 3: 18.
[158] Cf. Êxodo 34: 28.
[159] Cf. Mateus 25: 31-33.
[160] João 10: 14.
[161] Cf. I Tessalonicenses 4: 17.
[162] Cf. Salmo 2: 11.
[163] Cf. Salmo 44 (45): 8.
[164] Cf. Mateus 25: 10.
[165] Cf. Mateus 25: 2.
[166] Cf. Efésios 2: 3.
[167] Cf. Gênesis 3: 6.
[168] Cf. I João 4: 8.16.
[169] Cf. I Coríntios 6: 17.
[170] Deuteronômio 4: 24.
[171] Cf. Mateus 11: 28.
[172] Cf. Gálatas 5: 22.
[173] I Coríntios 2: 9.
[174] João 6: 35.
[175] João 4: 14.
[176] Cf. Gênesis 18: 1-2; 26:2 4; 28: 13; 9: 12-13; Daniel 7: 13; Êxodo 3: 4; 33: 22-23; II Samuel 24: 16-17; I Reis 19: 12-13.
[177] Lucas 15: 7.10.
[178] Cf. Gênesis 19: 28.
[179] Cf. Gênesis 6: 7.
[180] Cf. Êxodo 14: 27-28.
[181] Cf. Marcos 14: 26.
[182] Cf. Mateus 21: 43.
[183] Lucas 18: 8.
[184] Mateus 7: 7.
[185] Lucas 11: 8.
[186] Cf. Mateus 9: 13.
[187] Cf. João 4: 10.
[188] Cf. Salmo 103 (104): 15 e 2.
[189] Cf. Mateus 7: 8.
[190] Cf. Êxodo 32: 23-25.
[191] Cf. Salmo 44 (45): 8.
[192] Cf. II Coríntios 1: 22.
[193] Cf. II Timóteo 2: 12.
[194] Cf. II Coríntios 3: 18.
[195] II Coríntios 6: 16.
[196] João 1: 5.
[197] I Tessalonicenses 5: 19.
[198] Mateus 5: 22.
[199] Mateus 5: 28.
[200] Mateus 5: 39.
[201] Cf. I Coríntios 3: 12.
[202] Cf. Efésios 4: 4-16.
[203] Cf. Hebreus 5: 14; 6: 1.
[204] Cf. I Coríntios 1: 21.
[205] I Coríntios 1: 23-24.
[206] I Coríntios 4: 8.
[207] Cf. Atos 20: 24.
[208] Gênesis 3: 5.
[209] Cf. Filipenses 2: 7.
[210] Cg. II Coríntios 8: 9.
[211] Cf. Isaías 53: 12.
[212] Cf. Gênesis 18: 27.
[213] Cf. II Coríntios 4: 7.
[214] I Coríntios 1: 30.
[215] Cf. Hebreus 12: 1.
[216] Cf. Mateus 12: 35.
[217] João 14: 21.
[218] João 14: 23.
[219] Cf. Filipenses 1: 8.
[220] Cf. Mateus 5: 8.
[221] Efésios 3: 19.
[222] Efésios 4: 13.
[223] Isaías 62: 5.
[224] João 14: 26.
[225] João 16: 12-13.
[226] Romanos 8: 26.
[229] CF. Efésios 2: 14.
[230] Cf. Isaías 62: 5.
[231] Cf. Romanos 7: 2.
[232] Cf. Mateus 22: 11.
[233] Salmo 22 (23): 5.
[234] Cf. Mateus 5: 3.
[235] Mateus 9: 12.
[236] Filipenses 3: 20.
[237] I Coríntios 2: 9-10.
[238] Cf. I Coríntios 1: 26.
[239] Cf. Daniel 3.
[240] Daniel 3: 28.
[241] I Coríntios 4: 9.
[242] Cf. II Reis 18: 38.
[243] Cf. Êxodo 7-12.
[244] Cf. Gênesis 19.
[245] Cf. Gênesis 6-7.
[246] Cf. Efésios 6: 12.
[247] Cf. Êxodo 34: 29-30.
[248] I Coríntios 2: 6-7.
[249] I Coríntios 2: 13-15.
[250] I Coríntios 6: 17.
[251] Cf. Mateus 5: 6.
[252] Cf. II Coríntios 1: 9
[253] Eclesiastes 24: 21.
[254] II Coríntios 13: 13.
[255] Cf. Efésios 4: 30.
[256] Cf. I Coríntios 6: 17.
[257] Cf. II Coríntios 3: 18.
[258] Cf. II Coríntios 4: 7.
[259] Cf. Efésios 1: 20.
[260] Cf. Gênesis 3: 5.
[261] Cf. Salmo 50 (51): 19.
[262] Cf. Ezequiel 33: 11.
[263] Cf. II Coríntios 7: 1.
[264] I Coríntios 3: 17.
[265] II Coríntios 11: 2.
[266] Provérbios 4: 23.
[267] Sabedoria 1: 3.
[268] Cf. II Coríntios 6: 16.
[269] Cf. II Coríntios 7: 1.
[270] Cf. I Coríntios 15: 50.
[271] Cf. I Coríntios 9: 19.
[272] Cf. II Coríntios 11: 14.
[273] II Coríntios 10: 5.
[274] Salmo 110 (111): 3.
[275] Cf. I Coríntios 7: 4.
[276] Cf. I Coríntios 6: 17.
[277] Cf. Romanos 8: 38.
[278] Cf. Êxodo 13: 21.
[279] Cf. Êxodo 14: 21.
[280] Cf. Filipenses 2: 12.
[281] Cf. Efésios 4: 30.
[282] Cf. Lucas 15: 7.
[283] II Coríntios 13: 3.
[284] Gálatas 2: 20.
[285] Gálatas 3: 27.
[286] João 14: 23.
[287] Romanos 8: 3.
[288] Cf. Atos 2: 3.
[289] I Coríntios 6: 17.
[290] João 17: 22.
[291] Romanos 7: 15.
[292] Romanos 8: 35.
[293] Eclesiastes 2: 1-2.
[294] Cf. II Coríntios 4: 8.
[295] I Coríntios 10: 13.
[296] Hebreus 12: 8.
[297] Romanos 8: 18.
[298] Cf. Hebreus 2: 10.
[299] Cf. Mateus 16: 24.
[300] Cf. Filipenses 1: 23.
[301] Mateus 11: 12.
[302] Lucas 13: 24.
[303] Cf. Gálatas 5: 22.
[304] Efésios 4: 31.
[305] Cf. I Coríntios 4: 6.
[306] Cf. João 15: 5.
[307] Romanos 8: 28.
[308] Salmo 118 (119): 61.
[309] II Coríntios 3: 8-11.
[310] II Coríntios 3: 12.
[311] II Coríntios 3: 18.
[312] II Coríntios 3: 16-17.
[313] II Coríntios 4: 6.
[314] Salmo 12 (13): 4.
[315] Salmo 118 (119): 18.
[316] Salmo 42 (43): 3.
[317] Salmo 4: 7.
[318] Cf. Atos 9: 3.
[319] Cf. II Coríntios 12: 14.
[320] Ou: “uma resplendência do poder do Espírito bom na substância da alma”, conforme o sentido dado ao termo hipóstase e segundo a atribuição deste termo ao Espírito Santo ou à alma humana.
[321] Cf. Atos 9: 8.
[322] Ou: “iniciada em seu ser profundo”.
[323] Cf. Romanos 8: 17.
[324] Cf. Tessalonicenses 4: 17.
[325] Cf. Filipenses 3: 21.
[326] Cf. Gênesis 3: 19.
[327] Cf. Gênesis 5: 5.
[328] Romanos 8: 6.
[329] Cf. Hebreus 5: 14.
[330] II Pedro 1: 19.
[331] Romanos 12: 6.
[332] Cf. Efésios 6: 14-17.
[333] Cf. Efésios 6: 16.
[334] Mateus 16: 26.
[335] II Pedro 2: 19.
[336] Mateus 7: 7.
[337] Cf. Gênesis 1: 27.