sexta-feira, 17 de julho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo V: O Mal e a Redenção

 

 I

 O problema do mal está colocado no centro, não apenas da consciência cristã, como de toda consciência religiosa. O desejo de libertar do mal a existência universal, do sofrimento de ser, criou as religiões. Definitivamente, todas as religiões, e não apenas aquelas da redenção no sentido estrito da palavra, prometem a libertação do mal e do sofrimento gerado por ele. na religião, o homem busca se evadir do estado de isolamento e de solidão no qual se encontra no seio desse mundo hostil e estranho a ele; ele aspira ao retorno à pátria do espírito. Já a adoração do totem designava a busca de um protetor e de um libertador contra o poder do mundo maligno ao redor.

 A consciência racionalista do homem contemporâneo considera a existência do mal e do sofrimento como um obstáculo principal à fé em Deus, como sendo o argumento mais importante em favor do ateísmo. Parece difícil conciliar a existência de Deus, do Clemente e Onipotente Dispensador, com a existência do mal, tão temido e tão poderoso nesse mundo. Esse argumento, o único sério, se tornou clássico. Os homens perdem a fé em Deus e a fé no significado divino do mundo, porque se deparam com o triunfo do mal, porque passam por sofrimentos sem sentido, gerados por esse mal.

 Mas a fé em Deus e a fé nos deuses nasceram na história da consciência humana precisamente porque o homem experimentou grandes sofrimentos e sentiu a necessidade de se libertar do poder do mal. Se esse mal que devasta nosso mundo não tivesse existido, a humanidade se contentaria com esse mundo aqui de baixo, e esse, livre de todo mal e de todo sofrimento, teria sido sua única divindade. A libertação não teria sido indispensável. Os sofrimentos da vida que atestam a existência do mal constituem uma grande escola religiosa, pela qual a humanidade deve passar. A vida que ignora todo mal teria desembocado nesse mundo num contentamento de si. A existência do mal não é apenas um obstáculo à nossa fé em Deus, ela é igualmente uma prova da existência de Deus, a prova de que esse mundo não é o único, nem o último. A experiência do mal orienta o homem para outro mundo, ao provocar um descontentamento com esse mundo. Na base da experiência e da consciência religiosas reside o pessimismo, e não o otimismo. Todas as religiões de libertação são pessimistas em relação à vida universal e ao mundo natural, tanto o Orfismo, como o Budismo, e na mesma medida que o Cristianismo. O sentido positivo da existência reside em outra ordem, no mundo espiritual. Nosso mundo natural se encontra aparentemente em poder da inanidade triunfante; nele reinam a morte e a corruptibilidade, a animosidade e o ódio, o egoísmo e a discórdia. O homem é oprimido pela falta de sentido e pelo mal da vida universal. Na religião, na fé, ele se lança ao mundo do sentido e recebe a força que emana desse mundo, no qual o amor triunfa sobre o ódio, a união sobre a divisão, e a vida eterna sobre a morte.

 A existência do mal coloca o problema da teodiceia, da justificação de Deus. Por que tolera Deus esse mal aterrorizante, por que aceita ele seu triunfo? O universo pinga sangue, ele está feito em pedaços. Satanás, e não Deus, parece ser seu mestre. Onde se encontra a ação da divina providência? Conhecemos a dialética genial de Ivan Karamazov relativa à lágrima de uma criança, que termina com a recusa do bilhete que dá acesso à harmonia universal[1]. O Espírito euclidiano, recusando-se a compreender o mistério irracional da vida universal, pretende edificar um mundo melhor do que o que foi criado por Deus, no qual não haveria mal nem sofrimento, um mundo puramente racional. O homem com espírito euclidiano não é capaz de conceber porque Deus não criou um mundo feliz, sem pecado, incapaz de mal. Mas o “bom” mundo humano, o do espírito euclidiano, se distinguiria do “mau” mundo divino pela ausência nele de toda liberdade; pois essa não teria feito parte de seu desígnio inicial, e o homem seria, assim unicamente um bom autômato. A ausência de liberdade teria tornado impossíveis o mal e o sofrimento, e o homem está ainda hoje pronto a renunciar a essa liberdade, se isso livrá-lo definitivamente de seus tormentos. Nesse mundo euclidiano já não haveriam provas voluntárias, de livre escolha. O mundo que Deus criou está saturado de mal, mas em sua base repousa um bem maior, a liberdade de espírito, que mostra que o homem traz em si a imagem divina. A liberdade é a única solução para o problema da teodiceia. O problema do mal constitui-se no problema da liberdade. Se não compreendermos a liberdade, não poderemos captar o fato irracional da existência do mal no mundo divino. Na origem do mundo se encontra uma liberdade irracional enraizada nas profundezas do nada, um abismo de onde jorram as sombrias torrentes da vida, e onde estão encerradas todas as possibilidades. Essas trevas insondáveis do ser, que precedem todo bem e todo mal, não podem ser racionalizadas até o final; nelas sempre existirão ocultas possibilidades de afluxo de novas energias obscuras. A luz do Logos triunfou sobre as trevas, a harmonia cósmica triunfou sobre o caos, mas sem o abismo das trevas e do caos não existiria, na evolução que se seguiu, nem vida, nem liberdade, nem sentido. A liberdade jaz no abismo sombrio, no nada, mas sem ela tudo é desprovido de significado. Ela gera tanto o mal como o bem. E o mal não contradiz a existência de significado, ele a confirma. A liberdade é incriada, porque ela não é a natureza, ela é anterior ao mundo, ela está enraizada no nada inicial. Deus é onipotente em relação ao ser, mas ele não o é em relação ao nada, à liberdade; e é por isso que existe o mal.

 Toda concepção séria da vida implica a visão do mal e a admissão de sua existência. O fato de não o ver ou de ignorá-lo torna o homem irresponsável e superficial, fechando-lhe, por assim dizer, a profundidade da vida. Negar o mal equivale a perder a liberdade de espírito, significa rejeitar de si o fardo da liberdade. Nossa época está sob o signo de um temível crescimento do mal, acompanhado da negação da sua existência. Ora, o homem permanece desarmado diante dele, a partir do momento em que não o vê. A personalidade se molda e se firma quando faz a distinção entre o bem e o mal, quando é capaz de delimitar esse último. Quando os limites são abolidos, quando o homem se encontra num estado de confusão e indiferença, sua personalidade começa a se corromper e a se desagregar, pois a força de sua consciência está ligada à denúncia do mal. Na confusão e na indiferença, na perda da visão do mal, o homem se vê desprovido da liberdade de espírito, e começa a buscar a necessidade que lhe garante o bem, transferindo o centro de gravidade da vida das suas profundezas para o exterior, e deixando de se determinar desde dentro. O racionalismo nega o mistério irracional do mal, porque nega também o da liberdade. É mais difícil, para uma consciência racionalista, crer no diabo do que crer em Deus; e os homens que têm essa mentalidade elaboram diferentes doutrinas, nas quais se rejeita a existência do mal, onde se transforma o mal numa insuficiência de bem ou num estágio de seu desenvolvimento. O mal é negado tanto pode evolucionistas, como pelos adeptos das doutrinas humanitárias, os anarquistas e os teósofos de araque.

  

II

 A dialética interior da liberdade gera o mal em seu próprio seio. É na primeira liberdade, a irracional, na potência infinita, que reside a fonte do mal, assim como a fonte de toda a vida. A liberdade inicial gera o mal no grau mais elevado do ser. O espírito que se encontrava no degrau supremo da hierarquia do ser foi o primeiro a se separar de Deus por um ato de liberdade; ele afirmou a si mesmo pelo orgulho espiritual e provocou uma alteração, uma corrupção na hierarquia do ser. Foi no cume do espírito, e não nos baixios da matéria, que o mal se manifestou pela primeira vez. O mal original possui uma natureza espiritual e ele se realiza no mundo espiritual. O mal que temos aqui em baixo, que nos encadeia ao mundo material, não é mais do que sua resultante. O espírito que acreditou ser Deus e que se elevou orgulhosamente sobre as alturas, caiu nas regiões baixas do ser. O mundo é um organismo hierárquico no qual todas as partes estão ligadas entre si, onde tudo o que acontece nos cumes repercute nos vales. Não poderia se separar de Deus senão a própria alma do mundo, abarcando com ela toda a humanidade e toda a criação. O mito de Satanás reflete simbolicamente o acontecimento que se desenrolou no ponto mais alto do mundo do mundo espiritual, no mais alto grau da hierarquia do espírito. É lá que as trevas se condensaram originalmente, lá que, pela primeira vez, a liberdade deu uma resposta negativa ao chamado divino, à necessidade que Deus tem do amor do outro que não si-mesmo; é lá que a criação começou a afirmar a si mesma e onde ela tomou o caminho do isolamento, da divisão e do ódio. O homem se separou de Deus junto com toda a criação, com toda a hierarquia universal; ele foi seduzido pelas forças espirituais. O orgulho é a tentação de um espírito superior que pretende se substituir a Deus.

 É assim que na nossa experiência de vida, o mal é originalmente gerado em nós pelas forças espirituais superiores, e somente mais tarde ele se expressa por meio de nossa subordinação aos elementos inferiores, às paixões carnais. O chamado divino é dirigido antes de tudo ao espírito superior, à sua liberdade, e é daí que provém a resposta inicial. A materialização do ser humano e sua submissão aos elementos naturais inferiores não passa do resultado de eventos que já se realizaram no mundo espiritual. A presunção do espírito não eleva o homem aos cumes da divindade, mas sim o precipita no abismo da materialidade.

 O mito da queda é um relato simbólico dos acontecimentos do mundo espiritual, que, por analogia com nosso mundo natural, nos apresenta Satanás e o homem como sendo realidades “extrapostas”. Mas no mundo espiritual, não existe tal extrinsecismo; a própria hierarquia interna do ser possui uma estrutura interna diferente daquela do mundo natural; nela, tudo é interior, tudo é tudo. É por isso que no mundo espiritual Satanás, enquanto ordem superior da hierarquia dos espíritos, e o homem, enquanto rei da criação, são interiores um em relação ao outro, e estão incorporados um ao outro. Satanás é também uma realidade interior ao mundo espiritual do homem, e ele não aparece “extraposto” senão por analogia com o mundo natural. Ele é uma realidade de ordem espiritual e não pode ser concebido no sentido de um realismo simplista. Ele não é a fonte autônoma do mal enquanto ser original, ele não passa da manifestação da liberdade irracional nos cumes do espírito.

 A dificuldade que tem a inteligência em explicar a origem do mal reside no fato de que nem o monismo, nem o dualismo, para os quais a razão se inclina naturalmente, são capazes de captá-lo enquanto fenômeno. A fonte do mal não pode estar em Deus, mas fora de Deus não existe outra fonte de ser e de vida. O mal não provém de Deus, mas não existe outro ser que, existindo paralelamente a Deus, permita explicar a origem do mal. Sendo absolutamente irracional, ele é, consequentemente, inacessível e inexplicável pela razão. Ele não tem nem pode ter razão ou fundamento, e não possui nenhuma fonte positiva. Ele tem sua origem no abismo sem fundo, no nada que não pode sequer ser chamado de ser. O mal, para a razão que se esforça em descobrir o “sentido” das coisas, constitui o limite irracional absoluto. O mal é o não-ser; ele está enraizado nele. Mas o não-ser é inacessível ao “sentido”, o qual é sempre ontológico. O mal a que podemos dar sentido se transforma em bem.

 O monismo puro é obrigado a considerar o mal como um momento do bem, como um bem desconhecido ou insuficientemente revelado. O ser divino é o único ser, tudo está nele e dele procede. O mal extrai sua fonte do ser divino, mas ele só aparece como mal para nós porque não o vemos, e não o compreendemos senão de fora parcial, e não integralmente; na visão e na contemplação do todo, o mal desaparece e se transforma em bem. Assim, o monismo (ou o panteísmo) acaba por desembocar na negação da existência do mal; sendo incapaz de descobrir sua fonte, ele busca explicá-lo invocando nossa ignorância da plenitude e da integralidade do Ser. Ao monismo puro se opõe o dualismo puro.

 O dualismo reconhece que a fonte do mal reside num outro ser que existe paralelamente ao ser divino. um dualismo consequente deve admitir a existência de um deus mau correspondente à do Deus bom. Assim são o dualismo persa, o maniqueísmo, o antigo gnosticismo. Segundo eles o mal possui uma fonte ontológica independente e positiva. Paralelamente ao ser bom do mundo espiritual, existe um outro ser, mau, um mundo material inferior que possui uma realidade independente. Ao supor a existência de um ser inferior qualquer fora de Deus e oposto a ele, ao tentar determinar assim a origem do mal, o dualismo limita o ser divino. Satanás se transforma num deus malvado e independente. Ora, a ideia de Satanás no Cristianismo provém da consciência religiosa persa. A matéria teria sido gerada por um deus mau, e assim ela possuiria uma realidade independente e sujeitaria o espírito. O monismo puro e o dualismo puro não compreendem e rejeitam, por conseguinte, o mistério da liberdade; eles consideram o mal exteriormente, sem entrever sua fonte interior. Ou bem o mal desaparece definitivamente, ou bem ele aparece como uma força absolutamente exterior ao espírito humano. Mas, se o mal não pode ter sua origem em Deus, e se fora de Deus não existe outra fonte do ser, como explicar o fenômeno do mal? Qual é a saída para esse dilema?

 A consciência cristã não dá razão nem ao monismo, nem ao dualismo. Ela traz uma terceira solução ao problema da origem do mal. Para ela esse problema está ligado ao da liberdade e não pode ser resolvido sem ela. A bem dizer, o monismo e o dualismo negam a liberdade na mesma medida, e são de fato incapazes de captar o fenômeno do mal. A interpretação do mistério do mal pelo da liberdade, é uma interpretação suprarracional; ela apresenta uma antinomia para a razão. A fonte do mal não está em Deus, nem num ser positivo que exista paralelamente a Ele, mas na liberdade irracional, insondável, na pura possibilidade, nas potências do abismo tenebroso, anterior a toda determinação positiva do ser. E assim o mal não possui fundamento: ele não é determinado por nenhum ser positivo, ele não possui uma origem ontológica. A possibilidade do mal está oculta nesse misterioso princípio do ser no qual repousam todas as possibilidades. O abismo (o Ungrund de Jacob Boehme) não é o mal, ele é a fonte da vida, de toda atualização do ser. Ele apenas encerra a possibilidade, tanto do mal, como do bem. Na base da vida universal jaz um mistério inicial irracional, um abismo. Esse mistério ultrapassa o alcance da lógica.

 O princípio irracional e sombrio do mundo foi compreendido de maneira genial pelos místicos alemães Eckhart e Boehme, e também pela filosofia alemã do início do século XIX.  Segundo a notável doutrina de Schelling sobre a liberdade, o mal retorna ao estado de potência pura. No começo era o Logos, o Verbo, o Sentido, a Luz. Mas essa verdade eterna da revelação religiosa não significa que o reino da luz e do sentido tenha se realizado inicialmente na existência, que o Logos tenha triunfado desde o princípio sobre todas as trevas. A vida divina é uma tragédia. No começo, antes da formação do mundo, existia igualmente um abismo irracional: a liberdade, que deveria vir a ser iluminada pela luz do Logos. Essa liberdade não é um ser que existiria paralelamente ao ser divino, ao Logos, à Inteligência. Ela é o princípio sem o qual a existência não teria sentido para Deus, e que por si só justifica o desígnio divino do mundo. Deus criou o mundo do nada, mas o mesmo podemos dizer de Ele o ter criado a partir da liberdade. A criação deve repousar sobre a liberdade insondável que, antes da aparição do mundo, já se encontrava encerrada no nada. Sem ela, a criação não tem valor para Deus.

 No princípio havia o Logos, mas havia também a liberdade. Essa última não se opõe ao Logos, pois sem ela o Sentido do mundo não existe. Sem trevas não existe luz. O bem se revela e triunfa pela prova do mal. A liberdade torna possíveis o mal e o bem. O mal que ela gera não é um ser independente, ele é o não-ser, que é preciso distingue do nada original. Mas o não-ser existe e pode até ter uma força considerável, a força do erro. O mal é a caricatura, a deformação e a enfermidade do ser. Ele consiste numa transgressão da hierarquia nascida do não-ser, numa destituição do centro hierárquico, num rebaixamento da que era superior e numa elevação do inferior, uma separação de toda fonte original e desse centro do ser, de onde todas as coisas emanam com suas determinações.

 O mal é antes de tudo um engano: ele sempre se faz passar pelo que ele não é na realidade; ele seduz enganando. O diabo é um impostor, ele não tem sua fonte de vida, ele não tem existência própria, ele empresta tudo de Deus, e a tudo desnaturaliza e torna caricato: sua força é fictícia, ilusória e enganadora. Não existe um reino do mal, como se fosse um ser positivo que exista paralelamente ao Reino de Deus, ao ser divino. o mal possui sempre um caráter negativo, ele nega a vida e o ser, ele destrói a si mesmo, ele não possui nada em si de positivo. Muitos doutores da Igreja ensinaram que o mal é o não-ser; o caráter negativo, não ontológico do mal se revela em nossa própria experiência de vida.

 Tudo o que consideramos como indiscutivelmente mau possui um caráter negativo e não encerra em si nenhuma existência positiva. A animosidade, o ódio, a inveja, a vingança, a depravação, o egoísmo, a cupidez, o ciúme, a desconfiança, a avareza, a vaidade destroem a vida, sacodem as forças do homem que se encontra sob seu império. Toda paixão má consume a si mesma, traz em si uma semente de morte para o homem e para o mundo. Aí se revela o mal infinito. O mal precipita o homem numa vida ilusória, aparente e falsa, na qual nada existe de ontológico. O assassinato e a morte se ocultam no elemento do mal, em toda paixão má. A animosidade e o ódio correspondem ao assassinato e à morte, à destruição do ser, enquanto que o amor é a afirmação da vida, da existência em tudo e todos. O ser positivo não pode ser outra coisa do que um reino de amor. No amor se afirma a imagem de todo ser humano, de toda criatura divina. O sujeito amoroso deseja a vida eterna para o objeto amado, enquanto que aquele que detesta deseja a cessação da vida, deseja a morte; é da extensão do amor ou do ódio que depende o grau de afirmação ou de negação da existência. É por isso que libertação em relação ao mal e à morte aparece como sendo amor infinito.

 As promessas do mal jamais podem ser cumpridas. O mal não pode criar um reino de vida, porque, ainda que seduza pelo bem, ele rompe com a própria fonte da vida. Marx, para tomarmos um exemplo, considerava que seu objetivo era bom; mas, para atingi-lo, ele preconizava meios nefastos. Era pelo mal, o ódio e a animosidade, pela cobiça e a vingança, pela desunião e a destruição violenta, que ele pretendia chegar a um reino de harmonia, de unidade e de fraternidade entre os homens. Mas os meios maus acabam se tornando o único conteúdo da vida e, assim, terminam triunfando definitivamente. O ódio jamais pode conduzir ao amor, nem a divisão à união, nem o assassinato à vida, nem a violência a liberdade. Não existem caminhos maus que conduzam ao bem; em todos eles o mal sempre triunfará. Quando o ódio se apodera do coração humano e o contamina, ele não pode realizar senão obras de destruição. Quando você sente animosidade contra os que fazem o mal, você se torna impotente para vencer o mal, você está em seu poder. A luta contra o mal pode facilmente degenerar em mal. A vitória do bem é sempre positiva, ela não nega a vida, mas a confirma. É preciso começar por combater o mal que está em nós, e não aquele que vemos nos outros. Em geral, nossos sentimentos de animosidade em relação aos bandidos não passam de uma maneira de afirmar a nós mesmos.

 A causa do mal reside na falsa e ilusória afirmação de si, no orgulho espiritual que situa a fonte da vida, não em Deus, mas em si mesmo. Tal afirmação desemboca sempre na destruição de si, na negação da personalidade humana enquanto imagem e semelhança divinas; ela retorna ao nada de onde o mundo foi tirado. O orgulho e o egoísmo levam ao abismo, ao não-ser, à morte. A existência é hierárquica e só se afirma na conservação da harmonia que resulta de uma hierarquia verdadeira. A afirmação de si e o egoísmo destroem essa harmonia e, ao fazê-lo, destroem a personalidade humana, privando-a das suas fontes de vida. O homem já não encontra seu lugar no mundo divino, e sai à sua procura alhures e fora de si. Mas fora de Deus e do mundo divino não existe nada que não seja o não-ser, o reino da ilusão e da mentira. Estabelecer a vida sobre o orgulho e ao egoísmo equivale a estabelecê-la sobre o nada, como queria Max Stirner. Por esse caminho o homem sai dos limites da existência e penetra no reino do não-ser.

 Cada um de nós sabe, por sua própria experiência, que o egoísmo e a afirmação de si esgotam as forças e exterminam a vida. O infinito maligno, o abismo da sede e das concupiscências da vida se entreabre, e a própria vida desaparece. Um desejo egoísta, interesseiro, luxurioso, manifesta sempre a perda das fontes autênticas da vida e a separação da vida original. O mal reside na negação do amor, o qual afirma toda a vida em Deus. Existe um desejo insensato de vida, fora da vida real, fora de Deus, uma necessidade de emprestar ao não-ser o caráter de existência. O mal extrai sua fonte da liberdade não iluminada, e é por meio dela que ele seduz, mas ele termina sempre pela destruição da liberdade de espírito e se encontra sob o império da necessidade e da tirania. A consequência do mal é sempre a desunião, o distanciamento recíproco das partes do ser e a violência exercida por uma dessas partes sobre as demais. O mundo se “atomiza”: todas as coisas se tornam estranhas e, por conseguinte, hostis.

 O ser não é livre a menos que esteja unido no amor, nesse amor no qual se estabelece um parentesco com Deus. É somente em Deus e por Deus, que tudo se torna aparentado e próximo. Fora de Deus tudo é estranho e distante, tudo é constrangimento. Satanás, a força espiritual superior, seduz os homens sugerindo a eles que serão semelhantes a Deus. Mas, ao se engajar no caminho do mal, substituindo-se a Deus, o homem não se torna o deus que sonhou ser, mas sim escravo da natureza inferior, ele perde sua natureza superior, se submete à necessidade natural, deixa de se determinar desde o interior do espírito: sua liberdade é solapada. O mal consiste nesse deslocamento do centro do ser, nessa inversão da hierarquia universal que faz com que o princípio material se apodere do espírito orgulhoso e se substitua ao princípio espiritual. O espírito orgulhoso, egoísta, se acha precipitado na matéria, a qual não passa do despedaçamento e da dissociação do mundo, filha da animosidade e do ódio. A concupiscência infinita, as paixões insaciáveis, se apoderam dos seres que são jogados no mundo da desunião e do ódio. O homem não pode ter em si mesmo a fonte da vida: ele a extrai, ou bem daquilo que lhe é superior, ou bem do que lhe é inferior. Satanás não é uma fonte de vida independente, ele não pode senão colocar o homem num estado no qual a fonte da vida bebe da natureza inferior.

 Quando essa natureza inferior ocupa seu lugar na hierarquia universal, ela não constitui um mal em si. É somente quando ela usurpa da natureza superior que ela se torna um mal e um engano. A natureza animal ocupa seu lugar na escala de valores, e está destinada à vida eterna; mas, quando ela se apodera do homem, quando esse submete seu espírito ao elemento inferior, ela se torna um mal. O mal é determinado pela direção escolhida pelo espírito, não pela própria natureza. As tentações do mal terminam no vazio, na morte, no desgosto do não-ser. O mal sempre satura, sem entretanto se saciar, pois ele não possui o que poderia saciá-lo. É nisso que reside todo seu mistério. Mas o homem dificilmente consegue distingui-lo quando se encontra num estado de erro. Ele não consegue explicar o porque de estar sob o jugo do infinito maligno da vida, o porque de não conseguir obter a própria vida. As más paixões o subjugam: ele está possuído. Quando elas o submetem, o homem já não consegue determinar-se pela liberdade e, quando ele imagina ser livre em suas paixões, ele está sob o domínio de uma terrível ilusão, no reino dos enganos e das aparências. Ele toma como sendo liberdade a mais terrível escravidão, pois uma vida má é uma vida de mentiras, de aparências, uma vida sem realidade, uma vida na qual ele é objeto. O mal repousa nas profundezas da natureza humana, nas profundezas do espírito. E, quando o espírito humano escolhe o mal, já não é a partir de si mesmo, a partir de sua liberdade, que ele determina sua vida; ele se torna escravo, ele fica à mercê de forças que ele não enxerga, e a serviço de um mestre que ele desconhece. O homem não é capaz de se libertar do jugo desse mestre, apenas por meio de suas forças naturais. Isso não quer dizer que forças espirituais, criativas e positivas, forças do bem, não subsistam nele. A natureza espiritual do homem pode estar deformada, contaminada, estremecida, mas ela ainda se conserva, ela não é definitivamente extinta. Na natureza humana, no desígnio divino, a ideia, a imagem e a semelhança divinas se confundem com o nada original, com o não-ser inicial, desde onde o ato criador de Deus chamou o homem à vida. Mas a natureza humana permanece receptiva à luz; nela subsiste uma ardente aspiração pelo divino, que torna possíveis a revelação e a salvação. O mal não é capaz de se apoderar dela definitivamente, porque ela é dupla, ela pertence a dois mundos, e mesmo depois de sua queda o homem nunca rompeu totalmente com Deus, que continua a agir sobre ele e a lhe comunicar sua energia regeneradora. O homem não pertence exclusivamente ao reino do não-ser; ele mantém um laço com o ser, que exerce sua ação sobre ele. Deus e o diabo lutam no coração humano, e o homem decaído conserva, apesar de tudo, a imagem divina; ele passa pela experiência do mal como um ser de ordem superior.

 As consequências negativas do mal no homem indicam precisamente sua predestinação a uma vida superior. Mesmo antes da vinda de Cristo, já eram possíveis uma vida espiritual elevada e uma intensidade de força criativa no mundo pagão. A cultura helênica é a prova empírica e indiscutível disso. A natureza espiritual superior do homem agia em Platão. Nele se manifestou a sede de Deus e da vida divina que os homens experimentam. A natureza humana conserva sua independência, pois essa é necessária para a obra divina no mundo. Mas a vitória definitiva sobre o mal não poderá ser obtida pelas forças naturais do homem que permanece separado de Deus.

  

III

 O Cristianismo é a religião da Redenção e, por conseguinte, ele pressupõe a existência do mal, a existência dos sofrimentos. E não há de ser invocando-os que se poderá combater a fé cristã. Cristo veio ao mundo precisamente porque esse jazia no pecado, e o Cristianismo nos ensina que o mundo e o homem devem carregar sua cruz. Se o sofrimento é consequência do mal, ele é também o caminho que deve nos libertar dele. Para a consciência cristã, o sofrimento não é necessariamente um mal; existe também um sofrimento divino, o do próprio Deus, aquele de Cristo. Toda a criação suspira e chora, e espera por sua libertação. Os adversários do Cristianismo costumam se apoiar sobre o fato de que a vinda de Cristo Salvador não libertou o mundo dos sofrimentos e do mal. Quase dois mil anos se passaram desde a vinda do Redentor e o mundo continua a pingar sangue; a humanidade se contorce de dor; o mal e o sofrimento chegaram mesmo a aumentar. Parece que o antigo argumento judaico irá prevalecer. O Messias autêntico será aquele que irá libertar a humanidade definitivamente do mal e dos sofrimentos aqui de baixo.

 O que se esquece é que o Cristianismo reconhece o valor positivo dos sofrimentos que a humanidade padece em seu destino terrestre, e que ele jamais prometeu a felicidade e a beatitude sobre a terra. As profecias cristãs referentes aos destinos da humanidade são, aliás, bastante pessimistas. O Cristianismo jamais afirmou que uma força coercitiva viria realizar a harmonia universal e o Reino de Deus sobre a terra. Ele reconhece a liberdade do espírito humano em seu mais alto grau, e estima que sem sua participação a realização do Reino de Deus é impossível. Se a justiça de Cristo não se realiza no mundo, não é a ela que cabe inculpar, mas à justiça humana. A religião do amor não é responsável pelo fato de que reine o ódio em nosso mundo natural. É impossível invocar, para refutar o Cristianismo, a existência de sofrimentos incalculáveis e de males nessa vida. O Cristianismo é a religião da liberdade, e é por isso que não se pode admitir que o mal e o sofrimento sejam extirpados pela violência e o constrangimento. Ele dá sentido ao sofrimento, e liberta do mal. Mas a libertação em si implica a participação da liberdade humana.  

 É impossível conceber racionalmente o mistério da Redenção, tanto quanto qualquer outro mistério da vida divina. A doutrina jurídica da redenção, que, começando por Santo Anselmo de Canterbury, desempenha uma papel de tanto destaque na teologia católica – e da qual a teologia ortodoxa não se libertou totalmente – consiste numa racionalização desse mistério, que é interpretado a partir de analogias que existem no mundo natural. Essa concepção jurídica não foi mais do que uma adaptação da verdade celeste para o nível do homem natural. Não existe aí uma concepção espiritual; é indigno considerar a tragédia universal como sendo um processo jurídico movido por um Deus colérico contra o homem transgressor de sua lei. Pensar assim equivale a adaptar a vida divina, sempre misteriosa e insondável, a concepções pagãs, a um espírito de vingança gregária. Deus, na concepção pagano-judaica, é concebido como um tirano temível, que castiga e se vinga de toda desobediência, que exige como indenização uma vítima propiciatória e um derramamento de sangue. Representa-se a Deus à imagem da antiga natureza humana, à qual a ideia de cólera era inerente, bem como as de vingança, de resgate, de punição cruel. Sobre a teoria jurídica da redenção foi sobreposto o selo indelével das concepções romanas e feudais relativas à reabilitação do homem. a transgressão da vontade divina leva a um processo divino, e Deus exige um reembolso: é preciso pagar-Lhe alguma forma de compensação, cuja natureza seja capaz de aplacar Sua cólera. Nenhum sacrifício humano é suficiente para satisfazê-lo e fazê-lo se acalmas. Somente a imolação do Filho foi proporcional ao delito cometido e à ofensa provocada por esse.

 Todas essas concepções não passam de imagens pagãs transpostas para o Cristianismo. Tal concepção do mistério da Redenção se reveste de um caráter exotérico. O mundo pagão se encaminhou para a Redenção manifestada pelo Cristianismo. Ele tinha em si uma grande esperança, mas sua concepção de redenção era naturalista e não espiritual; sua expectativa, esse pressentimento, era perturbado pela limitação do mundo natural. O paganismo reconhecia desde sempre o caráter expiatório do sacrifício sangrento, que apaziguava e alimentava os deuses. A divindade reclamava, de certa forma, o sangue humano e os sofrimentos humanos. Nessa concepção se expressava toda a limitação das religiões naturalistas. A divindade era percebida através da natureza e estava impregnada de relações e de propriedades do mundo natural. Por intermédio do Filho, o Pai Celeste se revela não como juiz ou soberano, mas como amor infinito. “Deus não enviou Seu Filho ao Filho para que Ele julgue o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele[2]”. “Eu vim não para julgar o mundo, mas para salvá-lo[3]”.

 A Redenção realizada pelo Filho de Deus não constitui uma sentença, mas uma salvação; ela não é um julgamento, mas uma transfiguração e uma iluminação da natureza, sua santificação. A salvação não é uma justificação, mas a aquisição da perfeição. Representar a Deus como um juiz não é típico do homem espiritual, mas do homem psíquico. A compreensão jurídica da Redenção não faz sentido senão para o homem natural. Para o homem espiritual o que se revela é um aspecto totalmente diferente da divindade. É impossível atribuir a Deus sentimentos que os próprios homens consideram repreensíveis: orgulho, egoísmo, rancor, vingança, crueldade. O homem natural tornou monstruosa a imagem de Deus. Segundo a concepção jurídica da Redenção, a religião de Cristo permanece sendo uma religião da lei; nela, a graça não pode ser compreendida ontologicamente.

 No Cristianismo a Redenção é obra do amor, não obra da justiça, ela é o sacrifício do amor divino infinito e não um sacrifício propiciatório, ou um acerto de contas. “Pois Deus amou tanto o mundo que lhe deu Seu Filho único, a fim de qualquer um que creia Nele não pereça, mas tenha a vida eterna[4]”. Boukhareff supõe que o cordeiro foi imolado desde o começo do mundo, e estabeleceu a ideia notável de que o sacrifício voluntário do Filho de Deus fazia parte do desígnio inicial da criação[5]. O próprio Deus deseja sofrer com o mundo. A interpretação jurídica da evolução universal transformou a Redenção num acordo judiciário. Deus exige que lhe seja feita justiça, ele exige uma compensação pela perda que lhe foi ocasionada. Nessa concepção, subsiste ainda a ideia pagã do sacrifício. A consciência humana tem dificuldade em entender o sacrifício de Cristo e o mistério da Redenção. A cruz, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os pagãos, continua a perturbar o mundo cristão; a interpretação que lhe é dada testemunha uma refração da consciência judaico-pagã. A teologia católica conservou em especial a marca do paganismo romano com seu formalismo jurídico.

 É difícil vencer o estado de espírito jurídico dentro do Cristianismo. Cristo não rejeita a lei, mas ele nos revela um mundo espiritual no qual o amor e a liberdade, iluminados pela graça, conquistaram efetivamente a lei. A liberdade não regenerada pela graça, a liberdade inferior, não pode negar a lei: ela está submetida à sua ação. O Cristianismo não é a religião da lei, mas isso não significa que devamos confessar a “anomia[6]”. A lei da Antiga Aliança e a graça da Nova possuem esferas de atuação completamente diferentes. E é precisamente por isso que é impossível conceber essa última de um ponto de vista jurídico. A lei e a justiça não podem compreender o mistério das relações que existem entre Deus e o homem. O Novo testamento nos revela um Deus que espera, não a execução formal da lei, mas o livre amor do homem. a lei e a acusação do pecado, ela é a refração da vontade divina na natureza pecadora, e não a expressão original dos sentimentos de Deus para com o homem. esse mistério é revelado na Redenção.

 A concepção jurídica da Redenção pressupõe que o pecado pode ser perdoado ao homem, que a cólera divina pôde ser aplacada depois do sacrifício oferecido pelo Filho. Nessa concepção, as relações entre Deus e o homem se tornaram exteriores; nada de essencial pode, nem deve, ser perdoado. Não é Deus que não pode perdoar o homem, mas o homem que não pode perdoar a si mesmo, assim como ele não pode absolver a si próprio de sua apostasia em relação a Deus e ao desígnio divino. Deus ignora toda e qualquer cólera, e Sua misericórdia é ilimitada. O homem conserva sua natureza espiritual superior criada à imagem de Deus, e é essa que não pode se reconciliar com a degradação e a queda; ela é ferida por essa infidelidade cometida contra Deus, por essa traição do antigo  homem, por essa preferência concedida ao sombrio nada, mais do que à luz divina. O homem tem sede de resgatar seu pecado; ele sente sua impotência, ele aguarda o Redentor e o Salvador que o enviará a Deus. A natureza espiritual do homem não exige o perdão do pecado, mas sua derrota definitiva e seu extermínio, vale dizer, a transfiguração da natureza humana.

 O sentido da Redenção reside no advento do Novo Adão, do Novo Homem Espiritual, na vida do amor ignorado pelo Antigo Adão, na transfiguração da natureza inferior em natureza superior. Ela não reside na regulamentação das relações exteriores, entre o antigo adão e Deus, nem no perdão e na satisfação concedidos por uma das partes à outra. O sentido da vinda de Cristo ao mundo está na transfiguração real da natureza humana, na formação de um novo tipo de homem espiritual, e não na instituição de leis cujo cumprimento traria a vida espiritual. Graças à vinda de Cristo, a vida espiritual pode realmente ser obtida. Aqui não é uma questão de relações exteriores: tudo deve ser realizado espiritualmente, vale dizer, do ponto de vista da imanência. O homem é sedento de uma vida nova, de uma vida espiritual, eterna, relacionada com a sua dignidade. É nisso que consiste a revelação da Nova Aliança. No Cristianismo, a ideia central é a da transfiguração, não a da justificação. Essa última ocupa um espaço demasiado grande no Cristianismo ocidental. No Cristianismo oriental, na patrística grega, ao contrário, a ideia se modifica na natureza humana. Assim, a ideia da transfiguração, da theosis, é fundamental.

 A vinda de Cristo e a Redenção não podem ser compreendidas espiritualmente senão como uma continuação da criação do mundo, como o oitavo dia dessa criação, vale dizer, enquanto processo cosmogônico e antropogênico, enquanto manifestação do amor divino na criação, como um novo estágio na liberdade do homem. o advento do novo homem espiritual não pode resultar unicamente da evolução da natureza humana. Esse advento pressupõe que o mundo espiritual passe da eternidade para o nosso mundo natural, para o nosso tempo. A evolução natural da humanidade nos mantém dentro dos limites estreitos da realidade natural. O pecado original, o mal que está na raiz do mundo, continua a isolar, a amarrar o mundo terrestre. A libertação não pode vir senão do alto. A energia do mundo espiritual e divino deve se inserir em nossa realidade natural decaída e transfigurar nossa natureza, rompendo as barreiras que separam os dois mundos. A história celeste deve penetrar a história terrestre.

A história do gênero humano, a do antigo Adão, deveria preparar a recepção ao novo Homem Espiritual, que procede de outro mundo; deveria se realizar um desenvolvimento espiritual preparatório. Na humanidade e no mundo natural deveria nascer uma receptividade imaculada do elemento divino, um princípio feminino iluminado pela graça. A Virgem Maria, a Mãe de Deus foi precisamente a manifestação desse princípio, por intermédio do qual o gênero humano deveria receber o Filho de Deus e o Filho do Homem. Em Cristo, Deus-Homem, o amor divino infinito encontra o amor recíproco do homem. O mistério da Redenção é o do amor e da liberdade. Se Cristo não é somente Deus, mas também homem, o que nos é ensinado pelo dogma da natureza teândrica, então não é apenas a natureza divina que atua na Redenção, como também a natureza humana, vale dizer a natureza celeste da humanidade. Cristo, enquanto Deus-Homem, revela que nós pertencemos não apenas ao gênero terrestre, que, graças a Ele o homem espiritual habita a profundeza da realidade divina. Em Cristo, que, como Homem Absoluto, compreendia em si todo o gênero humano espiritual, o homem faz um esforço heroico para vencer, pelo sacrifício e o sofrimento, o pecado e sua consequência. Ele realiza esse esforço para responder ao amor divino. Em Cristo, a natureza humana coopera com a obra de redenção. O sacrifício é a lei da ascensão espiritual e, pela geração de Cristo, uma nova era começa na vida da criação. Adão passou pela prova de liberdade e não respondeu ao chamado divino por um amor livre e criativo. Nele ainda não se havia revelado o homem espiritual. Cristo, o novo Adão, deu essa resposta ao amor divino e indicou a toda a sua geração espiritual o caminho dessa resposta. A Redenção é um processo teândrico, ao mesmo tempo duplo e único. Sem a natureza humana, sem a liberdade do homem, ela não pode se cumprir. Aqui, como em tudo no Cristianismo, o mistério da humanidade teândrica de Cristo é a chave de todo conhecimento autêntico. Esse mistério não encontra solução definitiva senão na Trindade divina: é no Espírito que são resolvidas as relações entre Pai e Filho. Não se pode vencer o mal sem a participação da liberdade do homem. Ora, o mal sabota e deforma essa liberdade, a única que nos permite vencê-lo.

 Eis aí a antinomia fundamental, que encontra sua solução no mistério teândrico de Cristo. O Filho de Deus, a Segunda Hipóstase da Trindade Divina, sobrepuja os sofrimentos da cruz, a oposição entre a liberdade humana e a necessidade divina. No Gólgota, da paixão do Filho de Deus e do Filho do Homem, a liberdade se torna a força do amor divino, e essa força, salvadora do mundo, ilumina e transfigura a liberdade humana. A Verdade, aparecida como sofrimento e amor, nos torna livres sem imposição; ela cria uma nova liberdade superior. A liberdade, que a Verdade de Cristo nos concede, não é a filha da necessidade. A Redenção não pode ser compreendida como um retorno da natureza humana ao estado primitivo, ao estado de Adão antes da queda. Tal concepção privaria de sentido todo o processo universal. Mas o novo homem espiritual é superior, não apenas ao Adão decaído, como ao Adão anterior à queda, e ele designa um novo estágio na criação do mundo. O mistério do amor infinito e da nova liberdade não poderia ser conhecido pelo antigo Adão. Ele só se revelou em Cristo.

 Não se pode subordinar a vinda de Cristo apenas a causas exclusivamente negativas, como a existência do mal e do pecado; na verdade, ela é a revelação positiva do estágio supremo da criação. A redenção não constitui um retorno ao estado paradisíaco, mas é a passagem a um estado superior, à manifestação da natureza espiritual do homem, de uma liberdade e de um amor criativos, desconhecidos até então. A Redenção constitui, assim, um novo momento da criação. A criação não foi completada em sete dias; esses não consistem senão em um éon de seu destino. O mundo é dinâmico e não estático. Sempre é possível atingir novos cumes. A descrição da criação do mundo dada pelo Antigo Testamento não revela a plenitude do ato criador de Deus; e, na interpretação da criação, a consciência da Nova Aliança não pode ser sufocada pelos limites da Antiga. A criação do mundo prossegue, o mundo penetra em novos éons.

 A aparição de Cristo marca um novo éon no destino do mundo, um novo momento, a um tempo antropogônico e cosmogônico. Não apenas a natureza humana, mas todo o universo, toda a vida cósmica se transformou depois da vinda de Cristo. Quando a gota de sangue derramada por Cristo no Gólgota tocou a terra, essa se tornou outra coisa, ela se renovou, e se nós a vemos apenas com nossos olhos terrestres, isso se deve à limitação de nossas faculdades receptoras. Toda a vida universal, toda a vida humana, tudo se tornou diferente depois da vinda de Cristo, que representou uma nova criação. Isso só pode ser compreendido por uma teologia livre do espírito da Antiga Aliança. A redenção é precisamente a única teodiceia possível, a justificação de Deus e de Sua criação. Sem a liberdade como abismo do nada, como potência infinita, não poderia existir nem a evolução universal, nem novidade alguma no mundo.

  

IV

 Na compreensão espiritual da Redenção, o sentimento “vampiresco” em relação a Deus é superado. Todo o universo pagão se encaminhava para esse mistério e pressentia a vinda do Redentor. Já no totemismo existia uma eucaristia naturalista. Mas a redenção antecipada e aguardada, refletida de modo confuso nos elementos naturais, estava ligada ao sacrifício sangrento. O deus pagão tinha sede de sangue, e o homem despedaçava e comia seu deus. O paganismo conheceu deuses sofredores redentores, e Dionísio foi feito em pedaços pelas bacantes. No Cristianismo, no qual a redenção é autenticamente realizada, o sacrifício eucarístico se reveste de um caráter essencialmente diferente. Cristo é o Cordeiro oferecido em holocausto pelos pecados do mundo. Mas é o mal, são os malfeitores do mundo que sacrificam Cristo e que fazem jorrar Seu sangue; quanto aos cristãos, eles oferecem um sacrifício incruento, o sacrifício do amor. A comunhão da carne e do sangue de Cristo não possui o caráter de “vampirismo” das religiões da natureza. Na Redenção e na Eucaristia, o espírito se eleva acima do turbilhão natural. Na Redenção de Cristo atuam forças sobrenaturais, forças de um outro mundo que penetram nosso mundo e o transfiguram.

 Mas na consciência cristã, obsedada ainda pela necessidade natural, a concepção pagã do sacrifício sangrento permanece ainda insuperada. Jean de Maïstre, por exemplo, chega quase a identificar o sacrifício eucarístico de Cristo com o sacrifício cruento do paganismo. O sangue de um inocente resgata os pecados dos culpados. O homem deve compensar Deus por tudo o que cometeu. Essa concepção é particularmente característica da consciência católica. Nela subsiste um elemento “vampiresco” no que se refere ao sangue dos inocentes. Mas esse sangue é o grande sacrifício do amor, para o qual somos chamados a cooperar. O sacrifício se reveste de um caráter espiritual. Nós comungamos interiormente, misticamente, com Cristo, participamos da obra realizada por ele. o espírito de Cristo já atuava no mundo antigo, nos pontos mais altos das religiões pagãs, nas vitórias do espírito sobre a natureza, no Orfismo, em Platão; mas apenas no Cristianismo ele se manifestou definitivamente na carne.

 Existem no Cristianismo dois tipos espirituais que colocam seu selo na compreensão dos mistérios da fé cristã. O primeiro vive antes de tudo sob o medo de se perder, ele se sente sob a espada da justiça e busca sua própria salvação, sua libertação. O segundo procura acima de tudo a vida superior, a verdade e a beleza divinas, a transfiguração de toda a criação, a aparição de uma nova cultura, de um novo homem espiritual. O primeiro se agarra à Antiga Aliança, ele se inclina para a compreensão jurídica da redenção. O segundo é inspirado pela Nova Aliança, ele pende para a compreensão ontológica da redenção, que ele encara como um novo momento na criação, como o advento de um novo homem espiritual. Essas duas orientações do espírito estão em luta dentro do Cristianismo. Assim é que Clemente de Alexandria, helenista por espírito, aspirava menos ao perdão de seus pecados do que à contemplação de Deus e à união com Ele, enquanto que Santo Agostinho, ao contrário, buscava antes de tudo aquele perdão, aquela justificação.

  

V

 Para vencer o mal é preciso desmascará-lo. A ignorância do mal, sua negação, enfraquece a resistência. O homem deve aprender a discernir os espíritos, uma vez que ele se encontra sob o império de demônios que frequentemente se apresentam sob o aspecto de anjos de luz. Mas existe também um outro perigo, o de uma concentração demasiadamente exclusiva sobre o mal, e que consiste em vê-lo por toda parte, em exagerar sua força e sua atração, e que acaba por desembocar numa obsessão ininterrupta. O homem mergulha numa atmosfera de suspeitas e desconfiança. Parece existir mais fé na força de Satanás do que na de Deus; ele crê mais no anti-Cristo do que em Cristo. Ele cultiva uma tendência espiritual das mais nefastas, que destrói toda vida positiva e criativa. O mal age sobre o homem não apenas quando ele o nega, mas também quando ele exagera seu alcance. É nocivo envolvê-lo em uma auréola. Na luta contra o mal, muitas vezes o homem é contaminado por ele, e de certo modo ele imita seu inimigo. A desconfiança e o ódio ao mal degeneram numa nova forma de mal. A luta gera facilmente um novo mal em razão do estado de pecado da natureza humana. A história dos povos está saturada de um mal provocado pela luta contra ele, quer se trate de uma luta conservadora, quer se trate de uma luta revolucionária. A atitude em relação ao mal não pode comportar o ódio, mas ela necessita ser iluminada (é preciso ser um gentleman, um nobre, mesmo diante do diabo). Satanás se regozija quando inspira sentimentos diabólicos contra ele próprio. Ele triunfa quando empregamos seus próprios meios contra ele. É ele quem inspira aos homens a ideia enganadora de que o mal se combate com o mal. O homem que luta contra o mal se encontra muitas vezes presa de suas armadilhas, que o retêm indefinidamente prisioneiro. Os meios de luta substituem imperceptivelmente os objetivos que se buscava atingir. Aquilo que o homem acredita ser a luta contra o mal se torna, para ele, o próprio bem. O Estado é chamado a limitar as manifestações do mal no mundo, mas os meios que ele emprega facilmente se transformam em mal. Mesmo a moral possui a capacidade de degenerar em seu contrário, extinguindo a vida criadora do espírito. O direito, os costumes, a lei eclesiástica, podem deformar a vida. A obsessão com o mal e a necessidade de lutar contra ele pela imposição e a violência submetem o homem ao pecado e o impedem de se libertar dele. A verdadeira higiene espiritual não consiste em se deixar absorver pelo mundo do mal, mas em se concentrar no bem, no mundo divino, na visão da luz.

 Quando um homem se torna obcecado pela conspiração universal maçônica ou judaica, quando ele vê agentes desse complô por toda parte, ele se suicida espiritualmente, ele deixa de ver o mundo da luz, ele se enche de sentimentos de ódio, de desconfiança e de vingança. Trata-se de uma tendência de espírito estéril, destrutiva. Não se deve ver Satanás por toda parte, abandonando o mundo a ele. Uma acusação contínua ao mal e àqueles que são seus servidores favorece seu desenvolvimento no mundo. Isso foi suficientemente revelado no Evangelho, mas nós persistimos em continuar cegos. É preciso discernir, antes de tudo, o mal e si próprio, e não nos outros, e a autêntica espiritualidade consiste em crer na força do bem, mais do que na força do mal, crer em Deus mais do q eu em Satanás. No mundo, os bons sentimentos desenvolvem a força do bem, enquanto que os maus sentimentos aumentam o montante do mal. Essa verdade sobre a higiene espiritual elementar é desconhecida dos homens. A animosidade contra o mal destrói tanto o mundo espiritual do homem quanto a animosidade contra o bem. O que estamos dizendo não contradiz a atitude implacável que devemos ter em relação ao mal, assim como não contradiz a impossibilidade de pactuar com ele. o erro provém da elaboração e da cristalização do reino do inferno em nome da luta pelo bem. Não podemos lutar contra o mal apenas cortando e exterminando, é preciso conseguir superá-lo e vencê-lo.

 A vitória mais radical sobre o mal é adquirida pela convicção de seu vazio, de seu não-ser, de sua vacuidade. Exagerar suas forças de sedução não constitui um meio positivo de lutar contra ele. a atração do mal é um engano e uma ilusão, e todas as forças do espírito devem se esforçar por dissipar essa ficção. O diabo não possui um talento, ele é enjoativo. O mal é o não-ser; ora, o não ser é o sumo do tédio, do vazio e da impotência, coisa que, aliás, constatamos sempre nos limites extremos de nossa experiência do mal. Quando, lutando contra ele, nós o imaginamos não como sedutor e forte, mas como proibido e temível, não conseguimos ainda a vitória radical e definitiva sobre ele. o mal, quando considerado como forte e sedutor, constitui-se num mal que não pode ser vencido e que permanece invencível. Somente a consciência de sua absoluta inanição e de seu aborrecimento pode triunfar sobre ele e extirpá-lo com sua raiz. Nenhuma paixão má, levada até o limite, contém uma forma de ser. Todo mal consume a si próprio e desmascara sua nulidade em seu desenvolvimento imanente. O mal é o mundo dos fantasmas. Santo Atanásio o Grande desenvolveu essa ideia de modo admirável. O mal é o mal, não porque ele seja proibido, mas porque ele é o não-ser.

 O Antigo Testamento considerava o mal acima de tudo como uma transgressão da lei divina. Mas ele não explicava o porquê de o mal ser o mal, nem sobre o que repousa a oposição entre o bem e o mal. A concepção normativa do bem e do mal não é uma concepção profunda. É preciso compreender o bem e o mal ontologicamente, somente a demonstração imanente de seu não-ser pode nos dar o conhecimento do mal e nos revelar o significado da oposição que existe entre ele e o bem. O mal não pode ser conhecido senão através da experiência de seu conhecimento, na vitória interior obtida sobre ele; somente por meio dessa experiência é possível entrever sua goela escancarada. Quando o homem colhe o fruto da árvore do conhecimento da ciência do bem e do mal, ele segue a via do mal, ele transgride formalmente a vontade divina. Mas nesse caminho, ele aprende a conhecer a nulidade e o vazio do mal, e ele compreende por sua própria experiência o motivo de que ele fosse proibido.

Será possível uma gnose do mal, um conhecimento seu será admissível? O Antigo Testamento, no qual predomina a lei, responde negativamente a essa questão. O mal é um limite, ele não pode ser outra coisa do que uma interdição. Mas o homem, uma vez engajado no caminho do conhecimento, não pode retornar ao estado de ignorância original. Por isso o vazio do mal deve se tornar conhecido, porque precisamos nos convencer de seu não-ser. É nisso que reside a antinomia fundamental que ele comporta.

 O mal é o mal, ele irá queimar no fogo do inferno; não podemos nos reconciliar com ele. É assim que se apresenta a primeira de duas teses. A segunda lhe é antinômica. O mal é o caminho que conduz ao bem, à experiência da liberdade de espírito, à vitória imanente sobre as tentações do não-ser. A primeira tese é de uma limpeza cristalina, e não apresenta nenhum perigo. A segunda é perigosa, e pode se tornar perturbadora. Não conduz o conhecimento do mal à sua justificação?

 Se consideramos o mal como uma necessidade indispensável, que possui um sentido, nós o estamos justificando. Se, ao contrário, ele é um nonsense absoluto que não pode ser explicado de maneira nenhuma, ele é incognoscível e não podemos lhe atribuir um sentido. Como sair dessa dificuldade? E eis aqui mais uma antinomia. Cristo veio ao mundo porque ele jazia no pecado. A Redenção, ou seja, o maior evento da vida universal, que deveria determinar uma nova geração de  homens espirituais, nasceu da existência do mal, pois, se não houvesse mal, não teria havido um Libertador, e a vinda de Cristo não teria acontecido: o Amor celeste não teria se manifestado.

 O mal se coloca, assim, como o móvel e o instigador da vida universal. Sem ele, o estado primitivo do primeiro Adão teria subsistido de século em século, e todas as possibilidades da existência teriam permanecido em estado latente – o novo Adão não teria aparecido. O bem que vence o mal é superior ao bem que precede o mal.

 A dificuldade desse problema jamais pôde ser superada pela consciência teológica, que teme abordar essa questão. Para encontrar uma solução para essa dificuldade, é preciso começar por reconhecê-la, ou seja, por admitir a antinomia do mal para a nossa consciência religiosa. Essa dificuldade não pode ser resolvida pelo conceito e o pensamento racional: ela está ligada ao mistério da liberdade. A antinomia do mal não pode ser resolvida senão pela experiência espiritual. Dostoievsky compreendeu isso de maneira notável. A experiência do mal, a denúncia de sua vacuidade, pode nos levar ao cúmulo do bem. Tendo vencido o mal, eu posso conhecer toda a plenitude da verdade e do bem. A bem dizer, tanto o homem, como povos inteiros e toda a humanidade seguem esse caminho, experimentando o mal e adquirindo o conhecimento da força do bem, da elevação da verdade. o homem aprende a inanidade do mal e a grandeza do bem, não por meio de uma lei formal, nem por uma interdição, mas pelas experiências vividas no caminho da vida. O caminho espiritual experimental é, de resto, o único caminho do conhecimento. Mas que dedução posso extrair disso para meu caminho espiritual? Poderei eu dizer: eu me engajarei no caminho do mal a fim de enriquecer meu conhecimento, a fim de chegar a um bem superior?

 A partir do instante em que eu começo a conceber o mal como o caminho que conduz ao bem, como o método positivo de conhecimento da verdade, estou perdido, vejo-me importante para divulgar suas mentiras, suas trevas e seu vazio. A experiência do mal pode me levar ao bem, mas com a condição de que eu conheça e desmascare suas mentiras, sua nulidade, seu não-ser; ele não pode me enriquecer, senão na medida em que eu o denuncie e negue de modo absoluto como modo de enriquecer meu espírito. Só assim a antinomia do mal encontra solução em minha experiência espiritual. Não é o mal em si que enriquece a vida, pois o não-ser não pode trazer enriquecimento algum, mas é a denúncia imanente, o sofrimento no qual ele se consome, que enriquece, é a tragédia vivida, a luz entrevista em meio as trevas. Toda autossuficiência no mal, toda contemplação do mal que o considera como um caminho que conduz a um estado superior, é uma perda, um movimento em direção ao não-ser que priva o homem da experiência capaz de enriquecê-lo. Conhecer o mal significa conhecer seu não-ser e assim isso não implica justifica-lo. Somente a denúncia implacável e cruel e sua destruição em si próprio podem transformá-lo num caminho que conduza ao bem. Assim, sem temor do paradoxo, somos obrigados a reconhecer que o mal possui um sentido positivo. Esse sentido está ligado à liberdade, sem a qual toda teodiceia seria impossível. Nós nos veríamos obrigados a dizer que a criação divina fracassou. A inocência imposta do paraíso não poderia ser mantida, ela não tinha nenhum valor e não podemos retornar a ela. O homem e o mundo passam por uma prova voluntária, e pelo livre conhecimento se dirigem livremente a Deus, em direção ao Seu Reino.

 O Cristianismo nos ensina acima de tudo a sermos implacáveis em relação ao mal que existe em nós. Mas, ao exterminá-lo, devemos ser indulgentes ara com nosso próximo. Eu não posso exigir o máximo senão de mim mesmo, e não dos outros. Primeiramente devo realizar a força e a beleza do bem em mim, e nunca impor aos demais aquilo que não fui capaz de me obrigar a fazer. O engano das revoluções políticas e sociais consiste em que elas desejam exterminar o mal exterior, mas deixando-o subsistir interiormente. Tanto os revolucionários como os contrarrevolucionários jamais começam por desenraizar o mal em si próprios; eles pretendem extirpá-lo nos outros, nas suas manifestações secundárias e exteriores. Uma atitude revolucionária em relação à vida é uma atitude superficial, sem profundidade. Não existe nada de radical nas revoluções: em grande medida elas não passam de mascaradas, nas quais acontece uma mudança de hábitos. As revoluções triunfam sobre o mal que elas extirpam ao provocar outros.

 As revoluções também apresentam consequências positivas, elas determinam uma nova era, mas aqui o bem nasce não da energia revolucionária, mas da energia pós-revolucionária. Ele é fruto da compreensão da experiência vivida. O mal não pode ser superado senão interior e espiritualmente. A vitória obtida sobre ele está ligada ao mistério da Redenção; ela não pode acontecer senão em Cristo e por Cristo. Triunfamos do mal unicamente comungando com Cristo, cooperando em sua obra, tomando Sua cruz sobre nós. Para quem emprega a violência, o mal se torna invencível.

 Se a doutrina de Tolstoy sobre a não-violência ao mal é falsa, isso acontece unicamente porque ele confundiu duas questões que são muito distintas: a da vitória interior sobre o mal e a dos limites exteriores que é preciso lhe impor. Exteriormente, podemos e devemos limitar as suas manifestações, não podemos admitir que um homem possa matar seu semelhante; mas apenas com isso a fonte interior do mal não se cala, o desejo de morte e de violência não é vencido. Na história do mundo cristão, muito se abusou da resistência ao mal pela força; acreditava-se ser possível vencê-lo pela espada. Isso provinha da confusão entre os dois reinos, o Reino de Deus e o reino de César, e resultava da violação dos limites que deviam separar a Igreja do Estado. O mal não pode ser vencido pelo Estado, o qual pertence ele próprio ao mundo natural, que só existe porque existe o mal, e que frequentemente é quem cria o próprio mal.

 O problema do mal nos conduz a uma última antinomia. O mal é a morte, e a morte consiste na consequência do mal. Extirpar o mal com sua raiz equivale a arrancar o aguilhão da morte. Cristo venceu a morte, e nós devemos aceitar a morte como sendo o caminho que conduz à vida, como um momento interior da vida. É preciso morrer para renascer. A morte é um mal na medida em que ela e uma violência exercida sobre mim pelo mundo natural inferior e exterior, ao qual eu me encontro submetido por meu pecado, pela minha separação em relação à fonte da vida; mas ao aceitar a morte voluntariamente e sem revolta, como consequência inevitável do pecado, eu chego a vencê-la espiritualmente. Ela se torna para mim um momento de mistério interior do espírito. A morte tem um significado diferente interior e espiritualmente, do que exteriormente e como um fato do mundo natural. Cristo, que ignorava todo pecado, aceitou livremente o Gólgt5a e a morte. E eu devo seguir esse caminho; cooperando com a vida e a morte de Cristo eu me torno vitorioso sobre a morte. Interiormente, do ponto de vista espiritual e místico, a morte não existe, ela é apenas meu caminho em direção à vida, o caminho da crucificação de minha vida pecadora, o caminho que deve me conduzir à vida eterna. Ao comungar com a fonte original da vida, eu triunfo sobre as consequências destrutivas da morte. Para a consciência cristã, a morte não é unicamente um mal, ela é também um bem. Atroz seria uma vida infinita nesse mundo pecador e mentiroso, nessa carne. Semelhante existência seria a morte espiritual.

 A transfiguração de nossa natureza e a ressurreição para a vida eterna, para a vida em Deus, é o limite extremo ao qual aspira a vontade orientada pela o bem, a verdade e a beleza. A transfiguração da vida do mundo em vida eterna é o objetivo final. O caminho que leva até aí passa pela livre aceitação da morte, pela cruz, pelo sofrimento. Cristo foi crucificado sobre o abismo sombrio no qual o ser e o não-ser se confundem. E a luz que emana do Crucificado é o raio que brilha na noite. É essa luz que ilumina a obscuridade do ser; é ela a vitória sobre as trevas do não-ser.



[1] Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov, tomo I, capítulo III.

[2] João 3: 17.

[3] João 12: 47.

[4] João 3: 16.

[5] Cf. A. Boukhareff - Des besoins spirituels contemporains de la pensée et de la vie.

[6] A ausência de lei ou de regra, o desvio das leis naturais; anarquia, desorganização.



sexta-feira, 10 de julho de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo IV: A Liberdade do Espírito




I


O espírito é liberdade, ele desconhece a obrigação, o constrangimento das coisas objetivas; nele, tudo é determinado pelo interior, pela profundidade. Estar no espírito equivale a estar em si mesmo. A necessidade do mundo natural não é, para o espírito, mais do que o reflexo de seus processos interiores. O pathos religioso da liberdade é um pathos de espiritualidade; adquirir a liberdade autêntica implica penetrar no mundo espiritual.

A liberdade significa a liberdade de espírito, e é ilusório e quimérico buscá-la exclusivamente no mundo natural. Pois a ordem da liberdade e a ordem da natureza se opõem uma à outra. E os pensadores mais profundos tiveram consciência da diferença que existe entre elas. A natureza e sempre um determinismo, e minha própria natureza não pode ser a fonte da minha liberdade. As tentativas feitas com vistas a fundar e afirmar a liberdade na metafísica naturalista foram sempre artificiais; elas são análogas às tentativas feitas para fundar ou afirmar a imortalidade sobre o terreno da metafísica naturalista. Na alma, no homem e no mundo da natureza, é tão difícil encontrar a liberdade quanto a imortalidade. É preciso distinguir e manifestar a liberdade na vida e na experiência espirituais; jamais podemos demonstrá-la ou deduzi-la da natureza das coisas. Em cada objeto conhecido por nós, na medida em que seja um objeto natural, a liberdade desaparece e se torna impalpável. Toda racionalização da liberdade mata a liberdade.

O problema religioso e espiritual da liberdade não pode ser identificado com a questão do livre arbítrio. A liberdade está enraizada, não na vontade, mas no espírito; e o homem se liberta, não pelo esforço da vontade abstrata, mas pelo esforço da consciência integral. Quando existe interesse nas provas da existência do livre arbítrio, nunca é questão do pathos da liberdade. Temos necessidade do livre arbítrio a fim de justificar os méritos ligados às boas obras, a fim de motivar os castigos desse mundo e do mundo do além. O interesse que temos pelo livre arbítrio é pedagógico e utilitário, mas não essencialmente espiritual.

A metafísica espiritualista, que tantas vezes foi a filosofia oficial e predominante, sempre inseria nos seus programas a defesa do livre arbítrio, mas ela jamais foi uma filosofia da liberdade. A doutrina substancialista da alma pretendia fundamentar a imortalidade e o livre arbítrio, mas ela era uma forma de naturalismo, uma compreensão racionalista da vida espiritual. A natureza substancial aparece como a fonte do determinismo, não da liberdade. A doutrina da liberdade de escolha, compreendida como liberdade de indiferença, é evidentemente a que nos satisfaz ainda menos.

É interessante constatar que, nas polêmicas sobre a conciliação entre o livre arbítrio e a graça, que dividiram o pensamento religioso ocidental a partir de Santo Agostinho e Pelágio, foram os jesuítas, provados do pathos da liberdade de espírito e que rejeitavam a liberdade de consciência, que se tornaram os partidários mais ferrenhos do livre arbítrio. Os jansenistas, assim como Lutero, negavam o livre arbítrio e remetiam tudo à graça, mas eles reconheciam a liberdade religiosa bem mais do que os jesuítas. Pelágio, partidário fanático do livre natural e inalterável, era um racionalista incapaz de compreender o mistério da liberdade. A própria oposição entre a liberdade e a graça continha em si um vício e um erro, uma racionalização da liberdade, que se encontrava remetida à ordem do mundo natural.

Essa falsa oposição entre liberdade e graça introduziu a divisão entre o protestantismo e o catolicismo. Nesse choque se manifestaram diferenças paradoxais. O protestantismo proclamava a todo tempo o princípio da liberdade de consciência e defendia a liberdade religiosa, ao mesmo tempo em que negava o livre arbítrio em favor da graça; ele recusava reconhecer a liberdade do homem em relação a Deus.

O catolicismo, ao contrário, nega a liberdade da consciência religiosa – esse princípio foi formalmente condenado pelo Vaticano como princípio de liberalismo – e sustenta o livre arbítrio, no mesmo nível que a ação da graça. É sobre esse terreno que se desenrola da controvérsia sobre a fé e as obras. O protestantismo e o catolicismo opuseram sem querer a liberdade à graça, as ações à fé. O problema religioso da liberdade do espírito se encontra assim mal colocado e insuficientemente esclarecido. A questão da liberdade não é absolutamente a questão da liberdade do querer, segundo a definição que dão a ela uma psicologia naturalista e uma pedagogia moralizante. É a questão do princípio fundamental do ser e da vida. A própria percepção do ser depende da liberdade. A qual é anterior ao ser. A liberdade é uma categoria espiritual e religiosa e não naturalista e metafísica. Sobre a questão da liberdade, as tendências filosóficas e as doutrinas religiosas se dividem. Em Dostoievsky, esse problema da liberdade do espírito alcança toda sua profundidade e agudeza. Mas o que torturava Dostoievsky não era a questão do livre arbítrio, mas um problema infinitamente mais profundo.

A ideia da liberdade é uma das ideias centrais do Cristianismo. Sem ela, a criação do mundo, a queda e a Redenção são incompreensíveis, e o fenômeno da fé permanece inexplicável. Sem a liberdade, a teodiceia é impossível, o processo universal e desprovido de sentido. O espírito de liberdade infinita inunda nos Evangelhos e as Epístolas católicas. A liberdade não deve ser unicamente o objeto de nossa investigação, mas em nossas buscas devemos manifestar a liberdade de espírito, devemos colocar o problema da liberdade na atmosfera espiritual que lhe seja favorável.

“Assim os filhos são livres[1]”. “Assim, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres[2]”. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará[3]”. “Já não vos chamo mais servidores, porque o servidor não sabe o que faz seu mestre, mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que aprendi de meu Pai[4]”. “Quem pousar seus olhos na lei perfeita, a lei da liberdade...[5]”. “Vos fostes resgatados por um alto preço, não vos torneis mais escravos dos homens[6]”. “Onde estiver o Espírito do Senhor, ali estará a liberdade[7]”. “Não és mais escravo, mas filho[8]”. “Irmãos, fostes chamados à liberdade[9]”. “Ele não deseja que ninguém seja Seu escravo contra sua vontade ou por constrangimento; mas quer que todos O sirvamos livre e voluntariamente, sabendo da doçura de servi-Lo[10]”. “Eu jamais obrigo a quem não quer, mas desejo que o serviço daqueles que Me obedecem seja livre e espontâneo[11]”. E em Dostoievsky, o Grande Inquisidor diz a Cristo: “Tu desejaste o livre amor do homem, a fim de que ele vá livremente a Ti, seduzido e cativado por Ti”.

Aqui não se trata de uma questão diferencial de livre arbítrio, mas da questão integral da liberdade do espírito. Aqui, a liberdade é toda a atmosfera da vida espiritual, ela é seu princípio essencial. À liberdade se liga uma certa espécie de sentimento e de compreensão da vida. O Cristianismo pressupõe o espírito de liberdade e a liberdade de espírito; sem essa atmosfera espiritual, ele não existe, e fica desprovido de todo sentido.


II

O problema religioso da liberdade de espírito não pode ser resolvido por uma filosofia racional. Os melhores pensadores tiveram consciência de seu mistério insondável. Bergson disse que todas as definições de liberdade racionalizam e conduzem à sua desaparição. É impossível elaborar um conceito lógico e positivo da liberdade, capaz de penetrar inteiramente em seu mistério. A liberdade é a vida, a qual não é acessível senão dentro da experiência da vida, pois em seu mistério interior ela escapa às categorias da razão. A filosofia racional desemboca na doutrina estática da liberdade, enquanto que esta é dinâmica por essência, e só pode ser concebida dinamicamente. É preciso analisar a liberdade em seu destino interior, em sua dialética trágica, em suas diferentes épocas espirituais e nos meandros nos quais ela se arruína e se transmuta em seu contrário.

A liberdade não é uma categoria fixa e estática, ela é a dinâmica interior do espírito, o mistério irracional do ser, o mistério da vida e do destino. Isso não quer dizer que ela seja incognoscível e que seja preciso se reconciliar com o agnosticismo. Mas os caminhos que conduzem ao seu conhecimento são complexos e em nada se assemelham àqueles seguidos pela metafísica naturalista, que conduz às doutrinas do determinismo e do livre arbítrio.  Na realidade, o determinismo tem razão quando se trata da física e da metafísica do mundo natural; nesses casos, é quase impossível refutá-lo pela via racional.

 Fora do Cristianismo não existe liberdade; o determinismo sempre obtém a vitória. A liberdade do espírito, como a imortalidade, não é um estado natural do homem, ela é um novo nascimento e nela aparece o homem espiritual, pois ela só se revela na experiência e na vida espirituais. Sua fonte não reside na alma, e menos ainda no corpo do homem, em seu ser natural, sempre submetido as leis da natureza e limitado de todos os lados por forças exteriores determinantes, mas no espírito, na aquisição da vida espiritual, a liberdade é uma penetração em uma outra ordem de existência e do ser, numa ordem espiritual.

Existe uma definição clássica da liberdade que permanece indiscutivelmente verdadeira, ainda que seja incapaz de nos dar a percepção positiva de seu mistério. A liberdade é uma autodeterminação nascida de dentro, das profundezas, e ela se opõe a toda determinação exterior que constitui para ela própria uma necessidade. Hegel a definiu nesses termos: Freiheit ist bei sich selbst zu sein[12]. A autodeterminação é precisamente aquilo que procede das profundezas do espírito, da força espiritual, e não de um impulso natural exterior, sob a pressão de uma natureza que me é estranha, nem mesmo sob a pressão de minha própria natureza; eu determino a mim mesmo desde a profundeza de minha vida espiritual, a partir de minha própria energia de espírito; eu me encontro em meu próprio mundo espiritual.

A causalidade física não nos oferece nenhuma explicação relativa ao encadeamento interior de suas causas e de seus efeitos. Ela segue sendo uma lei totalmente exterior. Não é sem razão que Mach propõe substituir o princípio da causalidade, princípio mitológico, pelo das relações funcionais. As ciências que tratam do mundo físico nunca chegam ao núcleo do ser, elas procuram no meio exterior as causas de tudo o que se produz. O mundo natural nos parece desprovido de toda energia interior: nele, o ser que age a partir de sua própria profundidade não existe. Na busca das causas eficientes da realidade física, vamos cada vez mais para o exterior. A necessidade reinante no mundo físico é precisamente essa determinação que provém do exterior. Consideramos o fenômeno como algo que pertence ao mundo físico e material, porque ele é determinado por uma causalidade exterior, porque nele não se revela nenhuma energia criadora que aja interiormente.

Quando virmos na natureza uma força interior, e compreendermos seus eventos como sendo manifestações da energia íntima criadora, ela deixará de ser física e material., e penetrará no mundo espiritual. A natureza física, material, com seu peso, sua impenetrabilidade, com a exterioridade recíproca de suas partes constituintes, constitui um distanciamento dos centros interiores do ser, uma desagregação de um todo em elementos a um tempo inertes uns em relação aos outros, e re3ciprocamente coercitivos. O mundo material constitui a perda da liberdade de espírito. É por essa razão que nele age uma causalidade física exterior, que criou a ordem indispensável da natureza, o determinismo.

Na causalidade psíquica que descobrimos nos fenômenos da alma, que ainda fazem parte do mundo natural, a conexão interior das coisas, o encadeamento que existe entre causas e efeitos, pode ser percebida de antemão. Mas a realidade psíquica, estando ainda sujeita à realidade material, à vida do corpo, permite que as causas exteriores continuem a agir sobre ela; ela consiste ainda numa realidade dividida e isolada em si mesma, e é por isso que ela encontra por toda parte a oposição de uma natureza estranha à sua, e se vê submetida à ação da necessidade. A liberdade se manifesta na realidade psíquica na medida em que o mundo espiritual se manifesta nela.

A alma humana é uma arena de ações recíprocas na qual se enfrentam a liberdade e a necessidade, o mundo espiritual e o mundo natural. Quando o espiritual age na psique, a liberdade de espírito se revela; quando é o natural que age, a necessidade reclama seus direitos. O homem determina a si mesmo desde dentro, das profundezas, na medida em que o espírito triunfa nele sobre os elementos psíquicos e naturais, na medida em que a alma é absorvida pelo espírito e quando o espírito penetra na alma. A liberdade não pertence senão aos fenômenos da vida psíquica que podem ser qualificados como fenômenos espirituais.

A causalidade psíquica não passa ainda de uma variedade da causalidade natural; nela, um fenômeno da alma determina outro; isso significa que a necessidade ainda age aí, ainda que seja mais complexa e interior do que aquela que age no mundo material. A causalidade psíquica não manifesta ainda a profundidade da energia criativa do ser; ela apenas faz com que um fenômeno psicológico se distinga de outro. Como dois eventos ligados a ela pertencem à vida de minha alma, o encadeamento já é mais interior do que o dos fenômenos físicos, mas a liberdade de espírito ainda não se manifesta aí.

A energia interior, profunda, oculta e misteriosa, aquela que cria a vida, não aparece senão na causalidade espiritual. Nela, a oposição entre liberdade e causalidade desaparece; na determinação dos eventos e dos fenômenos da vida, já não existe “extrinsecismo”. NA vida espiritual, a causa age desde o interior, ela determina a si própria, o encadeamento misterioso da vida universal se revela, e o núcleo interior do ser, que estava mascarado pelos símbolos do mundo natural, aparece.

A liberdade de espírito, que engendra ela própria o efeito, que cria a vida, se revela a nós como uma profundidade insondável. Não podemos alcançar o fundo; não encontramos terreno firme em parte alguma, nenhum ponto de apoio que a determine desde o exterior. Nossa natureza substancial não é capaz de servir-lhe de fundamento, pois, ao contrário, é ela que engendra toda a natureza. A liberdade não se ergue até a natureza, mas até a ideia divina, até o abismo anterior ao ser. Ela tem suas raízes no não-ser. O ato da liberdade é inicial e inteiramente irracional; toda concepção racional que se possa dar a ela se identifica com os fenômenos da natureza.

O mundo determinado, aquela da causalidade física e psíquica é um mundo secundário, parido pela liberdade. Não é a liberdade que é resultado da necessidade, como afirmam muitos pensadores, mas a necessidade que é resultado da liberdade, a consequência de sua orientação. O mundo natural, psíquico e físico, é gerado pelos eventos e os atos do mundo espiritual. A separação em relação a Deus, em relação à fonte original da vida do mundo espiritual, a desunião e a divisão do ser, produzidas por uma orientação irracional da liberdade, se refletem no mundo psíquico e material. Vivemos num mundo secundário e reflexo, e a necessidade que o aprisiona e filha de nossa liberdade mal orientada.

Na liberdade se revela e se percebe o movimento interior da vida universal. A experiência da liberdade é conhecida de todo ser que possua uma vida espiritual. O mistério da ação e das relações de causa e efeito não se revela a nós por intermédio da causalidade física, e o faz apenas parcialmente pela causalidade psíquica. Os fenômenos originais da ação, da criação, de seu dinamismo, nos são dados pela vida do espírito, e é somente sob seus aspectos secundários que os entrevemos no mundo natural e determinado, no mundo da causalidade exterior. Isso significa que a liberdade possui um caráter dinâmico no mais alto grau. Ela só é perceptível em seu movimento interior, e é inacessível a um estado petrificado. Uma liberdade fixada degenera em necessidade e isso nos obriga a constatar que existem diversas concepções da liberdade e que essa possui diferentes estágios.


III

Santo Agostinho já nos falava de duas liberdades: libertas major e libertas minor. Podemos perceber, com efeito, que a palavra “liberdade” possui dois sentidos diferentes. Entendemos por liberdade tanto a liberdade irracional inicial que precede o bem e o mal e determina sua escolha, como a liberdade inteligente, a liberdade final para o bem, para a verdade. por conseguinte, a liberdade pode ser compreendida, seja como o ponto de partida e como caminho, seja como objetivo e finalidade.

Sócrates e os gregos não reconheciam senão a existência da segunda liberdade, aquela que nos é dada pela razão, a verdade e o bem. Nas palavras evangélicas: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará[13]”, é igualmente dela que se trata, ou seja, da liberdade na verdade e pela verdade. Quando dizemos que um homem atingiu a liberdade autêntica, depois de ter vencido em si mesmo os elementos inferiores, depois de tê-los submetido ao supremo princípio espiritual, ou seja, à verdade e ao bem, temos sempre em vista essa segunda liberdade. Quando dizemos, falando de um indivíduo ou de um povo, que ele deve se libertar da servidão espiritual e alcançar a liberdade autêntica, é ainda dessa liberdade que se trata. É a liberdade para a qual se dirige o homem, o cume e o coroamento da vida, o objetivo final, é ela que deve existir, e por meio dela será alcançado o triunfo dos princípios superiores da vida.

Mas existe outra liberdade, da qual o homem procede, pela qual ele escolhe seu caminho e acolhe a verdade e o bem. Existe uma liberdade que é, de certa forma, a fonte obscura da vida, a experiência original, o abismo que se encontra a uma profundidade maior do que a existência e por meio do qual o ser e determinado. O homem sente em si mesmo, no princípio de seu ser, essa liberdade irracional e insondável; ela está ligada à energia potencial. E o tomismo, com sua doutrina aristotélica da potência e do ato, foi levado ao final de contas a negar a liberdade, como se ela fosse uma imperfeição.

A liberdade é expressa de modo genial em Dostoievsky pelo herói de O Espírito subterrâneo. O homem é um ser irracional e, mais do que qualquer outra coisa, ele tenta viver segundo sua própria vontade. Ele consente no sofrimento em nome dessa livre vontade. Ele está pronto para revirar toda a ordem racional da vida, toda harmonia, se ela ameaçar privá-lo de sua liberdade de escolher, se ele lhe for imposta.

Se só admitirmos a liberdade dada pela verdade, dada por Deus, e rejeitarmos a liberdade de escolher e de receber a verdade, seremos fatalmente arrastados para a tirania, e a liberdade de espírito será substituída pela organização do espírito. Admitamos que a liberdade autêntica não é possível senão em Cristo e por Cristo; Cristo não deve ser menos livremente aceito, é o ato da liberdade de espírito que deve nos conduzir até Ele. ele tem necessidade que O aceitemos livremente, Ele deseja o livre amor do homem. ele jamais pode obrigar ao que quer que seja, pois Sua Face está sempre voltada para nossa liberdade. Deus só acolhe os que são livres. Deus espera do homem seu livre amor, e o homem espera de Deus a liberdade, vale dizer, que a verdade divina o liberte.

Deus espera a liberdade do homem; Ele espera sua livre resposta ao chamado divino. a liberdade autêntica é aquela que Deus exige de mim, e não aquela que eu exijo de Deus. É sobre essa profundeza que está fundamentada a liberdade do homem; ela se encontra em estado latente em seu abismo insondável. A verdade nos concede a liberdade suprema, mas a liberdade é necessária na aceitação dessa verdade. a verdade não pode obrigar, nem se impor, ela não pode conferir liberdade ao homem pela violência. Não é suficiente receber a Verdade – ou seja, Deus – mas é preciso recebê-la livremente. A liberdade não pode resultar de uma obrigação, de um constrangimento, mesmo que essa obrigação e esse constrangimento sejam divinos. Não é possível alcançar a liberdade a partir de um estado de vida organizado, harmônico e perfeito, pois é esse estado que deve resultar da liberdade. A salvação virá da Verdade que nos concede a liberdade, e uma salvação imposta é impossível e inútil. A salvação não pode se realizar sem a liberdade do homem, pois ela consiste na sua libertação da Verdade, em Deus; e, por obrigação, sem liberdade, essa libertação não pode se realizar.

Quando afirmamos a segunda liberdade como liberdade única, estamos afirmando a liberdade divina. Mas a liberdade de espírito não é somente a liberdade de Deus, ela é também a do homem. a liberdade humana não se resume à liberdade em Deus, mas também à liberdade em relação a Deus. O homem deve ser livre diante de Deus, do mundo e se sua própria natureza. A liberdade na aceitação da Verdade não pode ser obtida da própria Verdade, pois ela lhe é anterior. A liberdade não é idêntica ao bem, à perfeição da vida; é essa confusão e essa identificação que foram causa de sua incompreensão e de sua negação. O bem e a perfeição da vida devem ser atingidos livremente. É no fato de serem acolhidos e atingidos livremente que reside a dignidade e a originalidade qualitativas da vida espiritual, religiosa e moral.

O grande mistério da liberdade não se encontra onde se costuma buscá-lo, onde se costuma estabelece-lo. A liberdade do homem não constitui uma reivindicação e uma pretensão de sua parte. O homem renuncia facilmente à liberdade, em nome de sua tranquilidade e de sua felicidade, ele suporta com dificuldade seu fardo excessivo, e está sempre pronto a abandoná-la a espáduas mais robustas. Em seu destino individual e histórico, ele muitas vezes renuncia à liberdade e escolhe de preferência a quietude e o sossego na necessidade. Vemos essa abdicação do homem à liberdade, essa preferência concedida à obrigação, tanto na antiga ideia teocrática como na nova ideia socialista.

A liberdade de espírito pressupõe um abrasamento do espírito. Ora, esse abrasamento não se encontra com muita frequência e tal não é o fundamento habitual das sociedades humanas. Os hábitos, os costumes e as sociedades normalmente se enfraquecem e se cristalizam devido à extinção do fogo espiritual. O homem pode passar sem a liberdade, e a reivindicação da liberdade de espírito, que gera o trágico e os sofrimentos da vida, não é uma reivindicação humana, mas divina. Não é o homem, mas Deus que não pode passar sem a liberdade humana. Deus exige do homem a liberdade de espírito; ele não precisa senão do homem livre de espírito. O desígnio divino do homem e do mundo não pode se encarnar sem a liberdade do homem, sem a liberdade de espírito. A liberdade humana tem como fundamento a exigência da vontade divina.

Não basta dizer que o homem deve cumprir a vontade divina, é preciso também encontrar no que consiste essa vontade. Se a Deus agrada que o homem seja livrem então a afirmação da liberdade do homem constitui o cumprimento da vontade divina. É em nome de Deus, em nome da realização de seu desígnio relativo ao mundo e ao homem, que se deve afirmar a liberdade do homem, não apenas a segunda forma de liberdade, como também a primeira, não apenas a liberdade em Deus, como  também a liberdade na aceitação de Deus.

É nessa profundidade que repousa a liberdade enquanto princípio do ser e da existência, que precede toda vida organizada e perfeitamente desenvolvida. A liberdade está ligada, não à forma, mas à matéria da vida, àquilo que a vida contém de irracional; ela está ligada à infinitude, ao abismo do ser e da vida. Essa infinitude, esse abismo, ainda estavam fechados para a consciência helênica, e é por essa razão que ela não foi capaz de conceber a ideia da liberdade. Essa infinitude desabrochou no mundo cristão, no mundo espiritual revelado pelo cristianismo. A liberdade está ligada à energia potencial do espírito. A negação da liberdade constitui sempre uma sujeição ao finito.

Santo Agostinho não reconhecia em realidade senão a segunda liberdade, aquela que Deus, que é a Verdade, nos concede. A liberdade inicial teria sido, segundo ele, definitivamente perdida pela queda, e ele não colocava o problema da liberdade senão em relação ao pecado: Posse non peccare, non posse non peccare, non posse peccare. A luta contra o naturalismo racionalisya de Pelágio o levou a diminuir a liberdade. Assim é que mais tarde o semi-pelagianismo dos Jesuítas viria a provocar a reação de Pascal e dos Jansenistas. O próprio problema da liberdade estava reduzido e deformado. Coagir alguém a colocar falsamente um problema equivale a conduzi-lo a dar uma resposta errada. Pelágio encarava o problema da liberdade de um ponto de vista racionalista e Santo Agostinho renunciava à liberdade. E liberdade e a graça se encontraram opostas uma à outra. Os que tinham uma disposição de espírito racionalista se pronunciaram pela liberdade, os que tinham uma disposição mística optaram em favor da graça.

Mas existe uma mística da liberdade, porque ela é um mistério, o mistério da profundidade infinita do espírito. Não é a graça que se opõe à liberdade, mas a necessidade. O reino do espírito é o reino da liberdade e da graça, por oposição ao reino da natureza, da necessidade e da coerção. O erro que Santo Agostinho cometeu na solução do problema da liberdade teve, assim, consequências fatais. Ela desembocou na justificação do constrangimento nas questões da fé, na negação da liberdade de consciência, da possibilidade de supliciar os heréticos, e sancionou o caminho que mais tarde levaria à Inquisição. Foi a experiência da luta contra os donatistas que levou Santo Agostinho por esse caminho perigoso. A liberdade o induziu em tentação.

Também São Tomás de Aquino rejeitou, ao final de contas, a liberdade; seu sistema escolástico não lhe reserva nenhum lugar. O amor a Deus é para ele uma necessidade, a liberdade está ligada à imperfeição. Semelhante noção de liberdade teve consequências desastrosas: a negação da liberdade de espírito na vida religiosa e social. Estimava-se que a imperfeição resultante da liberdade deveria cessar, a fim de que o amor obrigatório a Deus começasse a se manifestar. A segunda liberdade foi aqui confundida com a necessidade divina.

Sobre o caminho da negação da liberdade, podemos ser seduzidos pelo espírito do Grande Inquisidor. A teocracia católica e bizantina, assim como o socialismo ateu, estão naturalmente inclinados a negar a liberdade do homem, a constranger e organizar a vida humana para o bem, vale dizer, a identificar a liberdade, seja com a necessidade da organização divina, seja com a necessidade da organização social da vida. A negação da liberdade pela consciência cristã é uma consequência extrema da doutrina da queda, da negação da natureza espiritual, da imagem divina no homem. A teologia católica tende a crer que o homem não foi criado à semelhança de Deus e que Adão teria recebido suas qualidades superiores pela ação específica da graça. Ao se separar de Deus, o homem perdeu sua liberdade inicial e somente pela ação da graça ele pode obtê-la de novo. A graça age sobre ele, e por sua ação organizada ele pode encontrar a liberdade, vale dizer, recebê-la de Deus, da Verdade.

Tudo isso prova que a liberdade foi compreendida unicamente em seu segundo sentido. A primeira liberdade humana se encontra num estado que Santo Agostinho caracterizou com as seguintes palavras: Non posse non peccare. Não existe liberdade humana, só existe a liberdade divina. A oposição entre a liberdade e a graça se estabeleceu porque a graça foi considerada como uma força transcendente que age sobre o homem desde o exterior. Ela foi objetivada, de certo modo, excluída da vida interior do espírito. Criou-se um abismo entre o ato criador de Deus que edificou a natureza e a ação de Deus repartindo a graça. O pensamento cristão jamais aprofundou suficientemente esse problema.

Se a natureza humana foi definitivamente deformada e a liberdade de espírito definitivamente extinta, não haveria no homem um órgão receptor capaz de acolher a verdade da revelação, e ele seria insensível à ação da graça. Mas o homem, ainda que enfermo e destruído, segue sendo um ser espiritual, e conservou sua consciência religiosa; a palavra de Deus não poderia ser endereçada a um ser que fosse desprovido dela. A liberdade precede no homem a ação da revelação e da graça. A ação da graça pressupõe a liberdade do homem, e assim ela se distingue inclusive do ato da criação do mundo. Um transcendentalismo consequente, levado até o fim, é impossível; ele negaria a possibilidade de uma vida religiosa, e a compreensão jurídica das relações entre Deus e o homem demonstram plenamente o resultado disso. O próprio fato da experiência religiosa já pressupõe um certo imanentismo, a existência da consciência religiosa e a liberdade de espírito na natureza humana.

O homem traz em si o sinal da imagem divina, ele é a ideia divina, o desígnio divino, sem, entretanto, ser divino por natureza, pois senão ele não seria livre. A liberdade do homem pressupõe a possibilidade de sua divinização e a possibilidade de negação, de sua parte, da ideia e da imagem divinas. O homem privado da liberdade do mal não passaria de um autômato do bem.


IV

A liberdade e dinâmica por sua própria natureza. Ela possui seu próprio destino; não é possível compreendê-la a menos que penetremos em sua dialética trágica. A existência de duas liberdades que possuem sentidos diferentes nos foi revelada; e cada uma dessas liberdades possui sua dialética fatal, na qual ela pode degenerar em seu contrário: em necessidade e escravidão. Em verdade, é trágico o destino da liberdade, assim como é trágico o da vida humana. A primeira liberdade, a liberdade inicial, irracional e insondável, não garante por si só que o homem seguirá o caminho do bem, que ele irá a Deus, que a Verdade triunfará em sua vida, que a liberdade suprema e final obterá a vitória no mundo. Forças infinitas revelam a possibilidade das mais variadas atualizações, e das mais opostas.

A primeira liberdade não pressupõe necessariamente uma adesão à vida na Verdade, à vida em Deus. Ela pode escolher a vida da discórdia e do ódio, da afirmação de uma parte do ser contra a outra, a via de desunião do mundo espiritual – vale dizer, a via do mal. A liberdade inicial não foi santificada no amor, ela não é iluminada pela luz interior da Verdade.

Quando a liberdade precipita o homem no mundo da divisão e da afirmação egoísta de si próprio, ele cai necessariamente sob as leis da necessidade natural, e se torna escravo dos elementos inferiores. A liberdade contém, ocultos nela, venenos destruidores. Nós sabemos disso, por tê-lo experimentado em nosso destino individual. Sabemos como nossa liberdade irracional nos reduz à escravidão, nos submete à necessidade inelutável. O destino histórico dos povos nos ensina: revoluções destrutivas, geradas pela liberdade irracional, nos precipitam na anarquia; essa, por sua vez, gera a escravidão e a tirania. O destino da necessidade assinala aos povos golpes terríveis. Sabemos por experiência que a anarquia de nossas paixões e das tendências mais baixas de nossa natureza, que vivem cada qual por sua conta, nos escraviza, nos prova da liberdade de espírito, nos submete à necessidade da natureza inferior. O perigo da anarquia, ou seja, da desagregação definitiva, espreita a liberdade inicial abandonada a si mesma.

Forças infinitas, para o bem e para o mal, se encontram em estado latente na primeira liberdade. É dentro do sombrio abismo do bem e do mal que reside a energia latente atualizada pela primeira liberdade. O mito da queda está ligado a essa liberdade inicial, e não pode ser explicado sem ela. Essa liberdade e a cisão gerada por ela em relação ao centro divino da vida, constituem um dos estágios primitivos da dinâmica do espírito, um dos momentos do mistério da vida original. Esse processo acontece nas profundezas mais íntimas do mundo espiritual e não faz mais do que se refletir no mundo natural. Esse mundo, submetido às leis da necessidade, que é ao mesmo tempo o mundo da desunião, da divisão e da engrenagem, do encadeamento mecânico, constitui desde logo o produto secundário da dialética interior da liberdade no mundo espiritual. A dialética da liberdade inicial gera a tragédia do processo universal, na qual não existe saída, nem por intermédio dessa liberdade, nem por meio da necessidade que ela gera. Quanto à segunda liberdade, comportará ela uma saída?

A segunda liberdade, tomada em si mesma, possui também seu destino fatal, sua dialética interior inelutável; ela está igualmente ameaçada pelo perigo de degenerar em seu contrário. Considerada sem a primeira, ela conduz ao constrangimento e ao arbitrário na verdade e no bem, à virtude imposta, vale dizer, à negação da liberdade de espírito, à organização tirânica da vida humana. Se a primeira liberdade gera a anarquia, que acaba por negá-la, a segundo, ao contrário, gera uma organização arbitrária, teocrática ou comunista, da vida, na qual a liberdade de espírito, a liberdade de consciência, é extinta de uma vez por todas. O produto da segunda liberdade considerada abstratamente é um tipo de sociedade autoritária.

A vida humana, individual ou social, é submetida por imposição à verdade e ao bem. Seja essa verdade teocrática, papal, imperial ou comunista, a liberdade de espírito é igualmente rejeitada nela, e não subsiste nenhuma possibilidade de escolher livremente a verdade e o bem. A liberdade obtida pela organização arbitrária da vida é a única reconhecida. Também os comunistas admitem que uma liberdade superior e definitiva será alcançada por toda a humanidade, mas ela o será por meio da “doma” da natureza humana, pela sua submissão à verdade e ao bem comunistas, fora de que não existe liberdade. É assim que pensam também os católicos, quando negam a liberdade de consciência. Eles rejeitam a liberdade do mal, mas afirmam a liberdade do bem no bem. A liberdade se torna então o resultado de uma necessidade: para alguns seres, a da necessidade divina, da graça organizada, enquanto que para outros a necessidade social, a de uma sociedade organizada, racionalizada e submetida a regras. O bem se torna automático. A segunda liberdade é iludida pela tentação do Grande Inquisidor, que pode tanto se revestir de um caráter de extrema “direita” como de extrema “esquerda”. O homem é desembaraçado do fardo da liberdade de escolha em nome da tranquilidade e da felicidade social, em nome da organização da vida humana. O infinito do mundo espiritual desaparece. Todo o pathos é transposto para a organização do finito.

O comunismo é o produto do trágico da liberdade, tanto quanto a anarquia. Se na existência dos povos as revoluções começam por afirmar que a primeira liberdade é ilimitada, elas terminam reclamando para a segunda as mesmas prerrogativas. Isso significa que a liberdade, em sua dinâmica e em sua dialética interior, desemboca numa tirania e numa autodestruição. A primeira liberdade conduz à divisão e à desunião. A segunda pretende submeter essa divisão e essa desunião à verdade e ao bem organizados, para assim conduzir o mundo à ordem, ao encadeamento e à engrenagem imposta e arbitrária; ela pretende criar uma liberdade necessária na necessidade, e que derive dessa. Não entrevemos saída dessa tragédia da liberdade; ela parece condenada a perecer, porque ela encerra em seu seio a causa de sua própria destruição. A dialética da primeira e da segunda liberdade se desenrola num mundo que se encontra já separado do eixo divino. o que há de mais perturbador, é que o próprio Cristianismo foi constantemente induzido ao erro pela liberdade: nós o constatamos no pelagianismo, em Santo Agostinho, no jansenismo, no calvinismo, na negação do princípio da liberdade de consciência na Igreja. A tragédia do processo universal é a tragédia da liberdade.


V

Nenhuma metafísica naturalista pode nos indicar a saída natural dessa tragédia na qual a liberdade nega a si própria. O homem natural passa da primeira liberdade para a segunda, e da segunda para a primeira, mas por toda parte o veneno interior extermina sua liberdade. O conflito entre a liberdade e a necessidade parece insuperável, pois a liberdade gesta a necessidade no seu próprio seio. A necessidade não nega o veneno da liberdade, pois ela é sua própria consequência imediata. Como tornar inofensivo esse veneno, sem limitar a liberdade por uma imposição exterior? Como livrá-la do mal que ela gerou, sem aniquilá-la?

Esse é o problema universal que não encontra solução senão na vinda de Cristo. Somente o advento do Novo Adão, do Homem Espiritual, nos fornece a saída para essa tragédia da liberdade, e o triunfo no conflito entre a liberdade e a necessidade. O Filho de Deus desce ao “nada”, vale dizer, à liberdade inicial. Somente o Novo Adão pode extrair o veneno da liberdade sem a comprometer. Isso era impossível na geração d antigo Adão. Nela, o triunfo sobre o mal acabava por atingir a própria liberdade. Em Cristo, nos é revelada uma terceira liberdade, que concilia as duas outras. A graça de Cristo é a iluminação interior da liberdade, sem nenhuma imposição exterior, sem nenhuma violência. A verdade de Cristo, que torna os homens livres, não constrange ninguém; nisso ela difere das verdades desse mundo que, organizando a vida por imposição, acabam por nos privar da liberdade de espírito. A luz de Cristo ilumina as trevas irracionais da liberdade, sem limitá-la desde fora. A graça de Cristo é uma vitória sobre a má liberdade e sobre a boa necessidade. O mistério do Cristianismo, religião do Deus feito Homem, é antes de tudo o mistério da liberdade.

Os sistemas de metafísica racional são incapazes de fundamentar e justificar a liberdade das duas naturezas, divina e humana, e tampouco conseguem entender seu encontro. São muito numerosas as doutrinas de liberdade que, pecando por uma tendência monofisista, professam a liberdade divina, enquanto que a liberdade humana lhes escapa. Somente a revelação cristã, a religião do Deus-Homem, pode conciliar em si as duas liberdades. A Redenção libera precisamente a liberdade humana do mal que a destrói, e isso não pela via da necessidade e da imposição, mas pela graça, que é uma força que age dentro da própria liberdade. É por isso que a doutrina cristã da graça constitui a doutrina autêntica da liberdade.

A fonte da liberdade humana não pode residir no homem natural, porque ele não é um ser absoluto, bastando a si mesmo, possuindo em si a fonte da vida. A fonte da vida remonta à  fonte original do ser, vale dizer, a Deus. Assim é que chegamos à conclusão de que é em Deus que está a origem da liberdade do homem, que extrai sua liberdade da fonte da qual ele, homem, recebe sua vida. Ao se afastar de Deus, ou seja, da fonte original da vida, o homem perde também sua liberdade.

Mas se formos mais longe no caminho dessas considerações, desembocamos no monofisismo, ao reconhecimento da liberdade de Deus e à negação da liberdade do homem. o homem recebe uma liberdade de Deus, mas ele não possui aquela que o orienta para Deus. A livre resposta que o homem deve dar ao chamado divino se torna impossível, e Deus responde a si mesmo. A tragédia da qual dois seres participam se transforma numa tragédia que não comporta mais do que um só em ação. Com semelhante concepção de liberdade, o fenômeno original da vida religiosa se torna incompreensível. Como salvar a liberdade do homem? Possuirá ele em si mesmo, enquanto criatura, a fonte insondável do ser? Não seria o homem unicamente uma criatura? Teria a vida humana o valor de um acontecimento que se realiza no próprio centro da vida divina?

A doutrina panteísta, que considera o homem como uma manifestação da divindade, não apenas é incapaz de nos ajudar, como nos conduzirá à abolição definitiva da liberdade. O panteísmo é um monofisismo puro, para o qual somente existe a liberdade de Deus, uma liberdade idêntica à necessidade; esse sistema não deixa espaço algum à liberdade humana. A liberdade humana é negada mesmo no dualismo teísta, que não vê no homem mais do que uma criatura que não possui em si a fonte da existência; ela é negada também pelo monismo panteísta que não vê no homem outra coisa do que uma parcela da divindade. O pensamento se recusa a encontrar um ponto de apoio sobre o qual possa fundamentar a liberdade humana. O dualismo, filosofia da transcendência, assim como o monismo, filosofia da imanência, remete a liberdade a Deus enquanto fonte original do ser e da existência.

Somente o Cristianismo conhece o mistério do fundamento da liberdade humana, ligada à unidade das duas naturezas de Cristo Deus-Homem, unidade que não exclui sua distinção. A FONTE DA LIBERDADE DO HOMEM RESIDE EM DEUS, NÃO EM DEUS PAI, MAS EM DEUS FILHO. ORA, O FILHO NÃO É SOMENTE DEUS, MAS TAMBÉM UM HOMEM ESPIRITUAL ABSOLUTO, HOMEM POR TODA ETERNIDADE. A liberdade do Filho é aquela na qual e por meio da qual pode se efetuar a livre resposta a Deus, a livre orientação para Deus. Ela é a fonte de liberdade de todo o gênero humano, pois esse último não é somente o do Adão natural, mas também o do Adão espiritual, de Cristo. É no Filho que é dada a livre resposta ao chamado do amor divino, à necessidade que Deus tem de seu outro Si-mesmo. Ela repercute no mundo celeste, espiritual, e repercute no mundo terrestre, natural. A liberdade do Filho de Deus possui sua fonte em si mesma, nele próprio, é a liberdade da espiritualidade absoluta, que ignora toda determinação exterior. Mas toda a geração de Adão reside no Filho de Deus; é nele que ela encontra a fonte de sua liberdade, não apenas da liberdade segundo Deus, como da liberdade em relação a Deus, na sua atitude perante Deus. Receber a liberdade de Cristo equivale a não apenas receber a liberdade de Deus, como também receber, pela participação na natureza humana de Cristo, a liberdade de nos orientarmos para Deus. Isso significa podermos ser filhos livres e responder à necessidade que Deus tem de nosso amor.


Já não e trata nem de um monismo, nem de um dualismo, mas do mistério da natureza teândrica, o mistério das duas naturezas de Cristo e, por conseguinte, das duas naturezas do homem. é preciso procurar o mistério da liberdade humana e a solução da tragédia que ela comporta, no dogma da natureza teândrica de Cristo. Somente uma consciência cristológica pode triunfar sobre o monofisismo, para o qual nosso pensamento se inclina instintivamente. Cristo é o Homem Absoluto, ele não é unicamente Deus, e é por isso que Nele age também a liberdade da natureza humana. Na obre que Ele realizou, não apenas a natureza divina agia, como também a natureza humana, a do Adão Celeste.

A humanidade inteira participa, por intermédio de Cristo, da obra de salvação e de libertação do mundo. Todo o gênero humano oferece em Cristo uma livre resposta a Deus. Pertencemos à geração de Cristo e, por Sua humanidade, estamos associados à Sua liberdade, à liberdade humana. Por meio de Cristo participamos da Segunda Hipóstase, do mistério divino que se desenrola nas profundezas da Trindade.

O homem espiritual desfruta da liberdade, porque ele pertence à geração do Filho. Nele se revela a fonte da liberdade humana, liberdade que provém de Cristo. A liberdade do Filho se apoia sobre a profundeza insondável da Hipóstase humana no ser divino. A liberdade dos que pertencem à geração do Novo Adão está associada ao amor, ela é o livre amor, a liberdade no amor; nela, foi arrancado o aguilhão do mal, seu veneno mortal foi vencido. Perceber o mistério da liberdade humana equivale a triunfar sobre o monismo e o dualismo, é comungar do mistério da unidade das duas naturezas, que constitui o mistério do Cristianismo.

DEUS QUER QUE O HOMEM SEJA, Ele não deseja apenas uma natureza divina, como também uma natureza humana. Deus não criou a natureza humana para que ela seja extinta. Ele sofre por seu outro Si-mesmo, o amante e o amado, pois Deus é Amor Infinito e o Amor não pode permanecer fechado em si mesmo, ele vai sempre ao encontro do outro. Deus encontra em Seu Filho o amigo amante e amado. É n o Filho que se efetua a resposta do Homem Celeste ao amor divino. mas o amor não pode ser senão livre, e é desse amor que Deus precisa. O ato de livre amor, que provém da profundeza insondável, se realiza no Filho, e é por meio dele, por Cristo, que essa experiência se realiza em toda a geração espiritual de Adão. No Filho, o único homem espiritual e toda a raça espiritual dos homens se encontram misteriosamente unidos. Aqui é impossível o isolamento individualista. O Homem Celeste absoluto é ao mesmo tempo o Homem único e toda a humanidade ecumênica. Não apenas a liberdade derrubada e perdida do antigo Adão se encontra restabelecida em Cristo, como também uma liberdade superior nos é revelada Nele, a do Novo Adão.

Essa liberdade é completamente diferente da primeira; ela está unida ao amor, interiormente iluminada por ele. a liberdade do Adão espiritual é santificada pela graça, e é por intermédio do Filho que o homem a recebe. Essa graça não é uma obrigação exercida sobre a liberdade do homem; ela não é imposta a ele por nenhuma autoridade exterior. Na graça que procede do Filho age não somente a energia divina, como também a energia humana. A graça age como uma terceira liberdade superior. O mistério da graça e de sua unidade interior com a liberdade, constitui ainda o mistério do estado teândrico, o da unidade das duas naturezas. A graça procede não apenas da natureza divina de Cristo, mas também da natureza humana, de sua humanidade celeste. Nela, iluminada, age a liberdade do homem, a terceira liberdade. Essa é precisamente a liberdade unida à graça, o amor santificado pela graça. Aquilo que se efetua no tempo e sobre a terra se efetua igualmente no céu e na eternidade. A humanização de Deus se realiza de modo exotérico sobre a terra, num processo temporal, e se realiza esotericamente no céu, na eternidade. É o mistério do espírito, no qual o Filho nasce eternamente do Pai.

A graça é o reino da terceira Hipóstase, a do Espírito Santo. Nesse reino do Espírito Santo, a liberdade de Deus não se opõe à do homem, a liberdade não se opõe à graça, a qual age desde dentro da própria liberdade. O mistério divino da vida se completa. Deus reencontra o amado, e a reciprocidade de Seu amor é infinitamente livre. O mistério da unidade das duas pessoas encontra sua solução na Trindade. As relações entre Deus e o homem não podem ser resolvidas senão na Terceira Pessoa, no Espírito que é o Amor realizado. O reino do amor na liberdade é o reino da Trindade. A experiência da liberdade e de sua tragédia imanente nos remete à Trindade. Somente no Cristianismo subsiste a plenitude da liberdade humana; nada de exterior é capaz de absorvê-la. Um monoteísmo abstrato é sempre uma tirania e um despotismo; ele considera a Deus como um monarca absoluto e não deixa espaço algum à liberdade. Somente a religião do Deus em três pessoas triunfa definitivamente sobre essa concepção monarquista ou imperialista de Deus, e revela a vida de Deus enquanto Trindade divina, justificando assim a liberdade.

O mistério da Crus, o do Gólgota, é o mistério da liberdade. O Filho de Deus, sob os traços de um escravo crucificado, não obriga ninguém a reconhecê-lo por um poder exterior.  Sua força e sua glória divinas se manifestam no ato de fé e de livre amor. O Crucificado se dirige à liberdade do espírito humano; é preciso um livre heroísmo para Nele reconhecer seu Deus. O Deus crucificado não apenas se revela, mas ele também se oculta. Toda imposição do mundo natural desaparece na revelação da divindade; tudo é orientado para a liberdade interior. A visão do homem natural, obcecado pelas forças do mundo exterior, não vê no Crucificado mais do que um homem humilhado e torturado, nada além do fracasso e da desaparição da verdade no mundo. A verdade divina parece impotente e débil. Seria possível que Deus tenha aparecido aqui em baixo, não como uma força poderosa e um poder transfigurador da vida, triunfando sobre ela, mas como uma crucificação, como uma impotência e uma fraqueza aparentes diante das forças desse mundo?

É isso que induziu à tentação o povo judeu, que se recusou a reconhecer no Crucificado o Messias aguardado, o Filho de Deus. Para ele, o verdadeiro Messias deveria aparecer em sua força e sua glória, deveria fundar um poderoso reino de Israel, deveria por fim aos sofrimentos e ao mal existente. A Cruz do Gólgota foi uma tentação para os judeus, e continua sendo até nossos dias, inclusive para muitos homens de raça ariana, porque esses esperam a manifestação da verdade divina através da força, da vitória exterior da verdade sobre esse mundo. Essa tentação constitui precisamente uma renúncia a toda liberdade de espírito, uma recusa e uma incapacidade de entrever além da humilhação material e do fracasso, o triunfo invisível espiritual da verdade divina. A vinda do Filho de Deus, do Messias, em sua força e sua glória, como rei do mundo e vencedor, teria marcado o fim da liberdade do espírito humano, a realização do Reino de Deus por meio da necessidade e da imposição.

O comunismo ateu, que tende a suplantar o Cristianismo, pretende realizar sobre a terra o reino da justiça, realizar aqui em baixo o Reino de Deus sem crer em Deus, sem a Cruz e a crucificação. Mas a religião da verdade crucificada é a religião da liberdade de espírito. A verdade crucificada não possui imposição lógica ou jurídica, ela se mostra no mundo como amor infinito, e o amor não obriga a nada; ele torna tudo infinitamente livre. No amor, tudo se torna próximo em espírito; no amor, eu me livro de ser estranho e hostil, e assim adquiro a liberdade suprema. A liberdade deve me conduzir ao amor, e o amor deve me tornar livre. A graça de Cristo constitui precisamente o mistério da liberdade que ama e do amor que liberta. Ela apareceu na Cruz. No livre sofrimento do Deus-Homem voltado para a liberdade humana, se oculta todo o mistério do amor cristão.


VI

Na vida social exotérica e histórica da Igreja a autoridade desempenha um papel preponderante. As formas autoritárias heteronômicas da consciência religiosa predominam na existência histórica dos povos cristãos. Mas, como explicar a autoridade no Cristianismo, na religião da liberdade? Do ponto de vista da fenomenologia da experiência religiosa, a autoridade constitui um fenômeno secundário e não primitivo, ele pressupõe sempre diante de si o fenômeno da fé e o ato da liberdade.

A autoridade do Papa ou do Concílio não representa uma realidade exterior que pode nos forçar a reconhecê-la. A obrigação material, no que concerne à fé, foi uma traição manifesta em relação ao princípio cristão. Se eu não creio no Papa e no Concílio, se neles não enxergo as realidades espirituais, então eles não possuem nenhuma autoridade sobre mim. Eu considerarei suas pretensões a meu respeito como uma imposição exterior do mundo material e natural, como um golpe de bastão ou a queda de uma pedra. Eu devo, num ato de fé, dotar o Concílio ou o Papa de atributos de autoridade, a fim de que eles tenham autoridade sobre mim. Se o Papa condena um livro ou a opinião de um católico fervoroso, esse ato possui, para esse último, uma importância e um sentido profundo, por emanar de uma autoridade reconhecida como tal. Mas se o Papa condena o livro ou a opinião de um homem que não crê na Igreja católica, então esse ato será desprovido de sentido, e não terá nenhum valor para o homem em questão.

É absolutamente impossível conceber e justificar a noção ingenuamente realista, que concede à autoridade a primazia sobre a liberdade de espírito. Uma consciência autoritária, que rejeita a liberdade, dá sempre provas de um realismo simplista; para ela a autoridade é uma realidade exterior, objetiva, semelhante às realidades do mundo material. Ela revela sempre um materialismo religioso. A autoridade do Papa possui para essa consciência um direito de imposição análoga àquela dos objetos materiais. O espírito permanece passivo à percepção e à aceitação dessa autoridade. Mas o espírito não permanece passivo senão à percepção dos objetos que pertencem ao mundo empírico exterior, pois, para conceber e reconhecer esses objetos, a atividade livre do espírito não é indispensável. Mas o espírito é ativo quando se trata de perceber ou aceitar as realidades do mundo espiritual. Aqui, todo realismo simplista se torna impossível.

O Papa não é uma realidade empírica exterior, e assim ele não pode ser aceito, em sua autoridade qualitativa, fora dos acontecimentos ativos da vida espiritual. Sua autoridade é algo invisível e, como todas as coisas invisíveis, ele não pode ser demonstrado senão pela fé; ela não possui nenhuma prova exterior, materialmente tangível, de sua autenticidade. Somente o Concílio, no qual o Espírito Santo age, é autêntico e pode reivindicar sua autoridade; mas a ação do Espírito Santo não pode ser demonstrada por provas exteriores. O Concílio é reconhecido como autêntico e investido de autoridade pelo espírito ecumênico do povo cristão. E, mesmo dentro do catolicismo, que representa a forma de consciência mais autoritária, a infalibilidade do Papa deve, apesar de tudo, ser proclamada pelo Concílio Vaticano, vale dizer, ser reconhecida pelo mundo católico, a fim de desfrutar de autoridade. Existe aí, no próprio conceito de autoridade e de infalibilidade, uma contradição interior que deve ser superada. A liberdade de espírito precede interior e idealmente a autoridade (o que não significa que ela o faça sempre do ponto de vista psicológico e social). A liberdade é mais original, mas inicial, do que a autoridade, pois ela é a geratriz da autoridade. A fonte da autoridade não está no objeto, mas no sujeito. A autoridade significa, ou bem minha livre aceitação de um dado princípio, ou bem minha escravidão espiritual.

A autoridade não fornece exteriormente nenhuma prova de verdade que seja inabalável, tangível, capaz de se impor; ela não se livra do fardo da liberdade. Os sinais e os critérios da verdade religiosa que lhe são concedidos como constituindo autoridade, ou seja, que são exibidos ingenuamente como sendo realidades empíricas, devem ser capazes de convencer, são sempre chamarizes e ilusões; eles são reflexos de eventos interiores da experiência espiritual. Não existem, nem podem existir, provas materialmente definitivas da Verdade religiosa. O critério reside em mim, jamais fora de mim. A autoridade dos Concílios ecumênicos, fonte da verdade da Ortodoxia, exige igualmente minha sanção, meu ato de liberdade, meu ato de fé, minha experiência e minha vida espirituais. Sempre voltamos à liberdade como fonte original de toda vida, de todo ser. A autoridade não passa de uma projeção dos acontecimentos da vida espiritual no mundo natural exterior. O Concílio ecumênico não constitui para mim a verdade senão na medida em que se torna um evento interior de meu mundo espiritual, uma experiência vivida em mim, nas profundezas de meu espírito. O Concílio, na medida em que é uma projeção no mundo exterior e histórico, é algo de secundário, reflexo. Não possui autoridade sobre mim senão o que é reconhecido em meu próprio mundo espiritual como Verdade, como encontro com a realidade original, gerada pela liberdade de meu espírito, liberdade que é sempre primitiva e inicial.

O papismo não sai mais do que ilusoriamente das insuperáveis dificuldades ligadas à ideia da autoridade exterior, de uma autoridade que possuiria provas tangíveis de verdade. ele evolui num mundo secundário e não original. Que se considere a infalibilidade papal como um critério inabalável de todas as verdades religiosas, vá lá que seja, mas a verdade referente a essa infalibilidade não pode se apoiar sobre nenhuma autoridade exterior inabalável, pois ela é gerada no próprio seio da liberdade, eleita pela própria liberdade. Ao penetrar nos domínios dos critérios de autoridade, eu não posso me mover senão num plano secundário. A verdade da supremacia da liberdade sobre a autoridade não é uma verdade psicológica – os processos psicológicos são diversos e complexos – mas é uma verdade do espírito, a verdade da própria vida original, de seu fenômeno inicial. O primeiro e último critério do conhecimento de Deus reside no próprio Deus. A consciência autoritária busca critérios de Deus no mundo natural inferior, por não ter fé naqueles do mundo divino. Essa consciência assimila o mundo espiritual ao mundo natural, o Reino de Deus ao reino de César. A aplicação dos princípios de uma consciência desse tipo conduz sempre à sujeição da Igreja ao Estado e pressupõe uma maior fé no Estado do que na Igreja.

Na Ortodoxia, a concepção de autoridade não foi aprofundada, e sua superioridade sobre o Catolicismo provém de sua maior liberdade de espírito. Khomiakoff rejeitava totalmente a autoridade na Ortodoxia, e oferecia a liberdade como fundamento da autoridade. O principio da liberdade na Ortodoxia não está ligado ao individualismo, à afirmação do direito de liberdade do indivíduo isolado; a liberdade está ligada ao ecumenismo; trata-se de uma liberdade no amor. Entretanto, na Ortodoxia, a autoridade dos costumes era tão forte quanto a união entre a Igreja e o Estado, que a havia submetido. A autoridade repousa sobre a Igreja, que é um organismo místico, espiritual, cuja autoridade não é exterior e material, mas interior, fazendo parte da vida espiritual ecumênica.

A autoridade interior pressupõe a liberdade e repousa sobre ela. A recusa, pelo mundo cristão, da liberdade de espírito, é uma tentação diabólica, uma das tentações recusadas por Cristo no deserto. A Verdade deve corresponder tanto à minha natureza, como à minha vida espirituais. Ela não pode ser-me exterior, ela não pode se impor a mim pela violência. No mundo espiritual, não existe despotismo, e toda imposição é impossível. O mistério deve estar próximo de mim, deve ser-me interiormente aparentado. A Verdade da vida divina não pode ser imposta a mim, porque o sentido dessa verdade pressupõe minha liberdade.  A escravidão do espírito, refletida nas formas puramente autoritárias da consciência religiosa, não passa do produto da liberdade arrasada por um mal interior. Fora da liberdade não existe espírito, e fora do espírito não existe liberdade. Uma forma de piedade autoritária não passa da expressão de um estágio inferior de espiritualidade, uma forma de religiosidade “psíquica”. Nos estágios superiores triunfa-se sobre essa consciência autoritária. Mas isso não significa que as formas autoritárias da vida religiosas tenham sido desprovidas de sentido nos destinos históricos dos povos cristãos, nem que elas devam ser renegadas. É impossível vencer exteriormente as formas exteriores da religião, elas têm que ser rejeitadas pela força. Elevar-se acima delas constitui um processo espiritual interior. Não se pode receber a liberdade desde fora. A liberdade na ciência, na arte, na sociedade, no amor, não pode ser alcançada senão por um espírito livre. As almas escravas não podem criar nada que seja livre.

Seja qual for o grau alcançado pelo homem enquanto ser psico-corporal, ele não pode pretender possuir a autonomia pura; essa última só pode ser manifestada pelo estado espiritual do homem. Ter pretensão à liberdade em geral constitui um engano, pois a liberdade deve ser manifestada através da experiência e da vida espirituais, e não pode ser objeto de declarações exteriores. Eis porque a liberdade que as revoluções exigem acaba desembocando em novas formas de tirania e escravidão. Não se pode exigir a liberdade de espírito pela força, é preciso possuí-la em si, descobri-la interiormente. A passagem das formas heteronômicas da religião para as formas autônomas não pode ser outra coisa que o resultado de um crescimento espiritual. A experiência cristã não é exclusivamente pessoal, individual, ela é ecumênica, coletiva. O mundo cristão representa um organismo espiritual, integral, e, como todo organismo, ele possui uma estrutura hierárquica. O que acontece no plano superior da vida espiritual tem também uma importância nos escalões mais baixos, e de certa forma alimenta todos os graus da vida espiritual.

A heteronomia possui antes de tudo um sentido social e histórico, ela não se refere à Verdade em si, mas à sua ação na história, no meio social. A heteronomia deve ser vista à luz da autonomia, assim como a necessidade deve ser encarada sob o ângulo da liberdade, mas a própria noção de autonomia é elaborada pela filosofia, a qual já vem arrasada pelo mal do individualismo, fruto da divisão; a autonomia se afirma contra a heteronomia, como uma sublevação da personalidade religiosa contra a sociedade religiosa, a afirmação da liberdade religiosa no protestantismo encerra em si uma verdade indiscutível, mas, do ponto de vista ortodoxo, essa liberdade se afirmou no “protesto”, de uma maneira que foi mais negativa do que positiva, e o problema da liberdade em si não foi suficientemente aprofundado. A consciência protestante se inclina para o individualismo. A vida do espírito é a vida da alma, que se abre para o mundo espiritual, que não conhece divisões nem “extrinsecismos”. O mal não reside no fato de que o protestantismo afirme exageradamente a liberdade do espírito humano, mas em que ele não o afirme de forma mais radical e profunda. O protestantismo se inclina para o monofisismo, a negação do homem e da liberdade humana, a oposição extrema entre a liberdade e a graça. O idealismo alemão, que se desenvolveu sobre o terreno espiritual do protestantismo, prestou serviços relevantes na luta em favor da liberdade do espírito, e revelou e justificou a ideia da autonomia (Kant, Fichte, Hegel). Mas o idealismo alemão também está contaminado pela heresia do monofisismo, e assim ele conhece a liberdade divina, mas ignora a liberdade humana. O mérito dos grandes idealistas alemães consiste em entender por liberdade o fruto de uma espiritualidade superior, e não na pretensão inteiramente exterior de ser arrasados pela servidão do espírito.

É forçoso reconhecer que a controvérsia entre a consciência autônoma e a consciência heterônoma acontece na esfera secundária e não primitiva. A autonomia é correlativa à heteronomia. Não existe autonomia formal na profundidade da liberdade espiritual, pois ali não existe distinção entre autonomia e teonomia. A consciência teonômica livre se eleva ao mesmo tempo acima da autonomia e da heteronomia. A autonomia é ainda uma noção inteiramente formal da liberdade, e ela afirma essa última em função do Adão natural, ignorando o porquê de ser ela necessária. A autonomia e a heteronomia são categorias jurídicas, e não espirituais; elas se constituíram para um mundo dividido, no qual reina a obrigação. Mas a liberdade é uma categoria espiritual, ela reside numa profundidade maior do que toda controvérsia sobre autonomia e heteronomia. Um mundo no qual a autonomia se afirme contra a heteronomia perdeu sua liberdade de espírito. A consciência autônoma consiste numa consciência formal. Ela corresponde a esse estágio da vida espiritual no qual a liberdade tão tem objeto, onde ela ainda não se encontra orientada para um objetivo determinado, onde eu quer ser livre de toda obrigação e de todo arbítrio exterior, onde eu quero determinar a mim mesmo por minha própria vontade, onde eu quero viver segundo a minha lei. A autonomia se opõe não somente à heteronomia, no que ela está certa, mas também à teonomia, no que ela está errada.

Uma verdade positiva mais profunda reside no fato de que eu não posso viver unicamente segundo minha fé, que minha liberdade não pode permanecer negativa, formal e sem objeto, que ela é necessária à resposta que eu devo dar ao chamado divino, à minha conversão à vida divina. A liberdade do antigo Adão, do homem natural, é ainda infantil e sem objetivo, ela não passa de um desejo de fugir dos cueiros. A liberdade do novo Adão, do homem espiritual, é uma liberdade com conteúdo: ela é positiva, interior, ela consiste no desejo de viver para Deus e em Deus.

Na realidade a consciência, seja heteronômica ou autônoma, constitui um estado de não-maturidade, ela não possui em si a verdadeira liberdade de espírito. Ela não compreende que a liberdade não é nem uma pretensão, nem um direito, mas um fardo e um dever; ela não capta a ideia de que Deus necessita da liberdade humana para realizar o desígnio que ele concebeu para o homem. A liberdade é uma “concentração” e não uma “dissipação” do espírito; ela é austera e difícil. O caminho livre é o mais complexo; a vida fácil é a que se desenrola na necessidade e na obrigação. A liberdade gera o sofrimento e a tragédia. A renúncia à liberdade gera um alívio aparente dos sofrimentos e do trágico da vida. A consciência heteronômica representa a Deus como um déspota oriental, que exige de parte de seu escravo uma submissão servil. É assim que Deus se reflete no homem natural, no elemento do pecado.

Essa concepção de Deus penetrou profundamente até no mundo cristão e continua a seduzi-lo até os nossos dias. O homem é escravo de Deus, servo de um potentado autocrata, que deve realizar a vontade do Mestre, seja ela qual for. A queda é uma transgressão formal da vontade do Senhor, uma desobediência à lei do Mestre da vida. Uma interpretação formal e jurídica da queda desemboca numa interpretação igualmente jurídica da redenção. Deus, personificado como autocrata e déspota com poderes ilimitados, exige do homem, não a realização da verdade e da justiça, que teriam para ele um sentido, e que correspondem à sua natureza espiritual, mas a realização de Sua vontade formal, de Sua ordem, mesmo que ela seja desprovida de sentido e totalmente transcendente à natureza humana. Considera-se que o homem deve cumprir a vontade de Deus, sem mesmo se perguntar em que consiste essa vontade, e qual é seu sentido. Mas o cumprimento da vontade divina não nos esclarece a respeito de sua natureza. Aqui ainda a questão é colocada de um modo formal e jurídico. Eu consinto, por difícil que seja para mim, em realizar a vontade divina, se Deus é amor infinito; mas se Deus é ódio, eu me recuso a cumprir essa vontade, mesmo que isso seja mais fácil. Na representação que eu tenho de Deus, eu não posso separá-Lo da Ideia de Deus, da Inteligência, do Amor, da Verdade, da Justiça e da Beleza. Essa separação conduz a uma escravização do espírito; Deus se transforma num déspota assírio.

A controvérsia que se estende sobre a seguinte questão: estará Deus submetido à verdade e à justiça, como pensava Platão, ou será ele absolutamente livre, e a verdade e a justiça não passam de coisas que Ele deseja, como pensava Duns Scott, é uma polêmica baseada sobre a divisão de algo que é indivisível. Não podemos dizer que Deus esteja submetido à verdade a ao bem, como se esses fossem princípios que o dominassem, e tampouco podemos dizer que a verdade e o bem não sejam mais do que coisas que Deus deseja. Semelhante dissociação não pode ser aplicada à natureza da divindade, e é tão impossível conceber a Deus sob o ângulo da nossa moral humana, como considerá-lo como um déspota. Deus não pode desejar o nonsense, não porque Ele seja limitado pela verdade, o bem e a beleza, mas porque Ele é a Verdade, o Bem e a Beleza, porque a liberdade e a necessidade da Verdade, do Bem e da Beleza se encontram identificadas Nele. Deus não pode desejar o nonsense porque Ele é o Sentido, porque o Sentido é Sua ideia imanente. A Sabedoria é inerente a Deus, que não pode desejar a escravidão, porque essa constitui um mal. Deus não pode desejar senão a liberdade, porque ela constitui Sua Ideia, Seu desígnio para o mundo. Ele não pode desejar que realizemos sua vontade formalmente, submetendo-nos a ela cegamente, porque não pode existir uma vontade separada da ideia de Deus, do Sentido, da Verdade, da Justiça e da Liberdade, sem a qual não existe nem Sentido, nem Justiça. Deus, acima de tudo, espera a liberdade de parte do homem.

Essa é a vontade divina inseparável da ideia divina, e essa vontade deve se cumprir. Em nome da realização dessa vontade, eu não tenho o direito de ser escravo, eu devo ser livre de espirito. É na plena liberdade de espírito, como um ser espiritual, e não servilmente, que eu devo me submeter à vontade de Deus. Já não somos escravos, mas filhos livres, e nossa liberdade foi resgatada a um alto preço. O Pai se revelou no Filho como amor infinito. A personificação de Deus como soberano a exigir o cumprimento de Sua vontade, a submissão formal ao seu poder, desaparece por ser o resultado da opressão exercida pelo pecado sobre o homem natural.

Se a liberdade não pode ser oposta à graça, ela tampouco pode ser oposta à humildade, que é um fenômeno íntimo do espírito e que se produz na liberdade. Sem liberdade não pode haver humildade, ou essa última não teria nenhum valor; só tem valor o que ilumina a natureza do homem. a humildade é a vitória voluntária e livre sobre todo orgulho proveniente da afirmação de si, sobre todo ódio que nasce de nosso elemento inferior. Ela é o caminho que conduz ao novo nascimento, o deslocamento do nosso centro de gravidade do exterior para a profundidade. A humildade não constitui uma submissão exterior de nossa própria vontade a uma vontade estranha. Enquanto fato religioso, ela em nada lembra a submissão e a subordinação, por exemplo, dos membros do partido comunista à disciplina do comitê central. Nessa submissão e nessa subordinação, a natureza humana permanece inalterada, e as relações entre o homem e a força à qual ele se submete, continuam sendo relações pagãs. Enquanto que, na humildade autêntica, a natureza do homem se transforma e se ilumina. A humildade é o ato do homem orientado para si mesmo e ela pressupõe uma intensa liberdade de espírito. Ela é o caminho que conduz à libertação de todo poder de tudo o que é arbitrário, exterior, estranho ao homem, ela é o caminho que conduz à liberdade de espírito, à rejeição a toda dominação de elementos escravizantes, que conduz a essa liberdade interior que triunfa sobre o mal na vida. A concepção servil da humildade é uma deformação do Cristianismo e da via espiritual.

A humildade é a aquisição da paz espiritual, da união com as forças superiores, e não uma submissão de escravo, inevitavelmente fundamentada sobre a ausência de paz e de unidade, sobre a divisão e o afastamento. Domar sua vontade implica manifestar a maior liberdade, significa libertar sua vontade do poder dos elementos sombrios. A humildade é uma das vias da liberdade; ela não é absolutamente a heteronomia, e sua manifestação na vida dos maiores santos e dos místicos é uma manifestação de experiência religiosa totalmente “autônoma”. No ato da humildade não é uma vontade estranha que age, mas minha própria vontade, mais iluminada e transfigurada numa natureza espiritual superior. A humildade diante do staretz, a submissão de minha vontade à sua direção espiritual, é um ato inteiramente voluntário, um ato de liberdade e não uma submissão a um poder impositivo. Pela afirmação egoísta de mim-mesmo eu destruo minha própria liberdade, e precipito minha natureza no não-ser. A humildade é a passagem do egocentrismo ao teocentrismo. A autonomia da moral, da ciência, da arte, do direito, da economia, que a história moderna afirma, não constitui a autonomia do próprio homem. Tudo foi liberado, à exceção do homem: ele se tornou escravo da moral, da ciência, do direito e da economia autônomos.


VII

O Cristianismo reconhece a liberdade de consciência e a tolerância religiosa?

Essa questão possui toda uma história sangrenta e trágica. O mundo cristão se deixou induzir em tentação. Em nome da religião do amor, da religião da liberdade, vimos acenderem-se as tochas, correr o sangue, desencadearem-se paixões odiosas, vimos punir com a maior das violências. Foram homens indiferentes a toda religião, os que defenderam a liberdade de consciência e a tolerância religiosa.

Para quem não crê em nada, que é indiferente em relação à verdade, é fácil ser tolerante em relação a toda e qualquer fé. Mas como conciliar a fé ardente, o devotamento à Verdade única, com uma tolerância diante de uma crença errada, de uma negação da Verdade? Não será a tolerância religiosa sempre uma prova de indiferença? É assim que pensam os cristãos que negam a liberdade de consciência. A defesa do espírito de tolerância se tornou prerrogativa do liberalismo, do humanismo que não possui nenhuma fé religiosa. A liberdade de consciência é afirmada como um princípio formal, sem relação alguma com qualquer verdade positiva. Os homens religiosos, que acreditam numa Verdade positiva isenta de qualquer engano, nunca defenderam a liberdade de consciência senão em circunstâncias nas quais sua fé se via perseguida e oprimida. Assim, os católicos – que são os que menos reconhecem o princípio da liberdade de consciência – fizeram esse apelo na Rússia, quando a fé católica foi oprimida e limitada em seus direitos. O Cristianismo, durante o período das perseguições antes de Constantino o Grande, sustentou a liberdade de consciência religiosa, na pessoa dos apologistas e dos doutores da Igreja. Mas quando o Cristianismo se tornou a religião dominante, já não escutamos mais argumentos em favor da liberdade religiosa, mas apelos à violência contra os heréticos e os dissidentes, à intervenção da espada do Estado nas questões de fé. É assim que o problema se colocou na história, gerando inúmeros enganos, a hipocrisia e um utilitarismo tosco.

Mas como, do ponto de vista cristão, colocar interiormente a questão da liberdade religiosa, colocá-la na sua essência, livre de todo interesse humano, de todo positivismo e de todo utilitarismo que se encontram misturados ao Cristianismo na história? O Cristianismo é exclusivo: ele não suporta a vizinhança do erro. Ele não pode ficar indiferente a que homens prefiram o engano à Verdade, porque ele não pode reconhecer neles igual valor. O liberalismo formal, indiferente à Verdade, é estranho ao Cristianismo, que não pode defender a liberdade de consciência recorrendo aos seus argumentos. A liberdade cristã não é a liberdade formal, desprovida de sentido, do Adão natural; ela não é um direito, como no liberalismo humanista; ela é uma obrigação, um dever perante Deus. E, se os cristãos devem sustentar a liberdade de consciência, certamente não será pelas razões liberais, formais e jurídicas que o mundo indiferente a toda fé e a toda verdade, e que afirma a liberdade do erro, do engano e do mal, invoca para defende-la. Os homens que negam a consciência religiosa não podem sustentar a liberdade de pensamento religioso senão exteriormente; ela lhes é útil apenas para salvaguardar seus direitos ao ateísmo e ao engano, para salvaguardar seu quietismo diante do erro.

Mas é somente no Cristianismo que a liberdade de consciência adquire um sentido inferior e uma justificação religiosa. O Cristianismo exige que sejamos tolerantes para com a alma humana, para com sua experiência íntima e seu caminho espiritual, porque a liberdade faz parte da fé cristã, porque o Cristianismo é a religião da liberdade. O próprio Deus é infinitamente tolerante em relação ao mal que existe no mundo. Ele suporta os maiores malfeitores em nome da liberdade. O Cristianismo afirma materialmente, e não apenas formalmente, a liberdade de consciência; ele o afirma, não por causa de uma indiferença em relação à Verdade, nem pela tolerância ao erro, mas por sua fé na Verdade, que é a revelação da liberdade no espírito humano. Cristo nos revelou a liberdade infinita do espírito; por seu sangue, ele a firmou toda a eternidade. A fé no Gólgota é a fé na liberdade.

A exigência de liberdade de pensamento religioso repousa na consciência cristã a uma profundidade infinitamente maior do que na consciência liberal, humanista e irreligiosa. Toda imposição exercida sobre a alma humana nas questões de fé constitui uma traição perante Cristo, uma negação do sentido da religião cristã da própria natureza da fé. O homem deve passar livremente pelas provas e saber triunfar sobre elas livremente. Ele deve buscar e perscrutar a verdade. a negação da liberdade religiosa, a intolerância fanática e a imposição na vida espiritual nascem da ideia da salvação obrigatória, ideia que é oposta ao sentido do Cristianismo. O próprio Deus poderia ter salvo à força todo o gênero humano, e de um modo muito mais radical do que jamais seria capaz a hierarquia religiosa ou o poder do Estado. Mas Deus não deseja uma salvação imposta, pois essa seria contrária ao seu desígnio para o mundo e o homem; Deus espera a livre resposta do homem ao seu chamado, ele busca o livre amor de seu outro si-mesmo. Deus poderia dizer, como o homem: “Ninguém comanda o amor”. Não se pode fazer entrar no paraíso à força.

A noção da salvação obrigatória, que teve consequências tão fatais na história, é uma falsa identificação do Reino de Deus com o reino de César; equipara-se o mundo espiritual ao nível do mundo natural. No reino de César reinam a obrigação e a escravidão. Já o mundo espiritual, o Reino de Deus, é da ordem da liberdade. A obrigação não pode salvar ninguém, porque a salvação pressupõe um ato de liberdade, porque ela é a iluminação interior da liberdade. A história do Cristianismo está cheia de violências, mas ela não pertence ao mundo espiritual, ela não está ligada à história interior do Cristianismo, ela pertence à ação social da humanidade, ela é determinada pelo estado do homem natural. Se o Cristianismo medieval esteve saturado de violência sanguinária, não é a fé cristã que deve ser responsabilizada, mas a humanidade natural que se “cristianizou” a duras penas. O que se reprova em geral à Igreja católica deveria ser imputado à crueldade da natureza humana. Mas a questão da liberdade religiosa não é uma questão histórica, ela é a questão da própria essência da fé cristã. Partindo desse ponto de vista, a tolerância religiosa não é uma tolerância em relação às crenças errôneas do homem, mas um sentimento de amor e de solicitude para com toda alma humana.

O homem chega a Deus através de caminhos múltiplos e árduos, por sofrimentos penosos, por uma experiência trágica da vida, pelas lutas do espírito. Ele passa pelo caminho das provações, ele sofre sua experiência individual, uma experiência que só existe para ele. Eu não posso pretender possuir a plenitude da Verdade e afirmar que meu próximo está em absoluto erro. O pleroma não se encontra senão em Deus, e nós não contemos mais do que uma parcela da Verdade, e só recebemos alguns raios isolados de luz. A negação da liberdade de consciência, sua imposição corresponde a uma mecanização e a uma materialização da vida religiosa, à negação do espírito e da vida espiritual, pois o espírito e a vida espiritual são a liberdade. A revolta do homem contemporâneo contra a obrigatoriedade nas questões de fé e de religião, contra a identificação da vida religiosa com a vida do Estado, é uma revolta justificada. Essa revolta pode gerar, e de fato gera, consequências funestas e fatais, ela pode testemunhar uma separação em relação à fé, mas nela existe um momento interior de verdade, que é a verdade da liberdade.

 É impossível edificar o Reino de Deus por imposição; ele só pode ser criado livremente. Foi a obrigatoriedade que fez com que desabassem todas as teocracias históricas, e sua queda foi providencial. Sem o home, sem a liberdade humana, Deus não pode nem quer edificar Seu Reino, que não pode ser senão um Reino teândrico, e o homem deve seguir até o final a vida dessa verdade. nada no mundo pode deter sua marcha, porque o próprio Deus deseja que o homem realize sua liberdade até o fim, e que chegue em liberdade à plenitude divina. O homem deve passar pela tragédia da liberdade, para nela encontrar a saída na liberdade de Cristo, na terceira liberdade. A liberdade é o destino, o fado do homem, por paradoxal que isso possa parecer. O fanatismo que respira violência não passa de uma loucura proveniente da incapacidade que tem o homem natural de acolher em si a verdade do espírito, o pleroma celeste do Cristianismo. O fanatismo é o aprisionamento do espírito nas paixões da alma e do corpo, a sufocação do homem espiritual pelo homem natural. Ele transgride sempre as leis mais elementares da higiene espiritual. Quando o homem, em nome do amor, nutre o ódio, quando, em nome da liberdade, ele recorre à violência, ele se encontra num estado de demência, ele perdeu seu equilíbrio psíquico devido à sua impotência em acolher em si a verdade do Cristianismo. Nada é mais difícil para o homem do que aceitar a liberdade para si permanecer fiel a ela. Suas ideias se confundem e seu coração se abrasa. O mal a que ele recorreu lhe parece ter sido cumprido em nome do bem. O mundo helênico possuía mais equilíbrio, ele estava menos inclinado à violência do que esse mundo cristão, porque ele não havia recebido essa verdade suprema da liberdade. É essa verdade, fardo demasiado pesado para a humanidade, que permanece incompreendida, e que gera uma violência sem precedentes.

O renascimento cristão no mundo não será obtido senão pelo pathos da liberdade. O Cristianismo futuro será um Cristianismo de liberdade de espírito, depois de superar as provas da liberdade e de triunfar sobre a tentação de renunciar a ela. Nosso Cristianismo não poderá ser outra coisa do que novo, não por oposição ao Cristianismo eterno, mas pelo nascimento de uma nova alma capaz de apreender sua Verdade imutável. Essa nova alma não poderá acolher senão um Cristianismo de liberdade de espírito, pois a escravidão do espírito, sua tirania, as obrigações impostas sobre ele, fazem parte do reino do anti-Cristo. A liberdade de espírito foi o tema fundamental do pensamento religioso russo. Os eslavófilos ensinaram a liberdade cristã, e seu maior apóstolo foi Dostoievsky.

O problema da liberdade de espírito está situado no próprio centro da consciência cristã; a ele estão ligados o problema do mal e da redenção, bem como o do homem e de seu poder criador. A criação é impossível sob o domínio de uma mentalidade autoritária. A vida criativa não pode consistir unicamente numa obediência, numa submissão à autoridade. Ela pressupõe sempre a liberdade de espírito, ela é a manifestação dessa liberdade. Na criação existe sempre algo além dessa humildade que, ainda que sendo indispensável para a vida espiritual, nem por isso elimina a audácia da liberdade. A negação da liberdade equivale a uma mutilação da individualidade humana, a extinção da vida espiritual do homem. A individualidade se levanta contra a sua transformação em autômato. A ideia da liberdade cristã encarada em profundidade e com todas as suas consequências pressupõe a afirmação da liberdade em todas as esferas da criação humana, a liberdade na ciência, na filosofia, na arte, nas relações sociais e no amor. A obrigatoriedade nesses domínios não possui nenhum valor do ponto de vista da consciência cristã. Em todos os domínios da criação, a verdade de Cristo deve se revelar desde as profundezas da liberdade. A ciência, a arte, a sociedade, assim como o livre amor entre o homem e a mulher, devem servir à verdade de Cristo, devem orientar para Deus suas forças criadoras, devem ser a manifestação de um amor livre para com Deus. Nenhum limite exterior pode ser imposto à liberdade de pensamento, à liberdade de sentimento. A luz de Cristo deve nascer aí; o vazio e o não-ser do mal, o nada de todo ateísmo, devem ser denunciados. Esse é o caminho imanente, o único que deve seguir uma humanidade que alcançou o cume das provas e das contradições da cultura. A separação última entre os dois reinos acontecerá sobre os caminhos da liberdade, que conduzirão definitivamente a Deus ou ao diabo.

E virá o tempo, e já veio, em que a liberdade estará apenas no Cristianismo, em que a Igreja de Cristo defenderá a liberdade do homem contra as violências do reino desse mundo, o reino de César, tornado definitivamente ímpio. Isso já acontece no comunismo, que nega a liberdade de espírito e nega a personalidade. A negação da liberdade de espírito é precisamente o espírito do anti-Cristo, cujo advento será marcado pela extrema tirania, pela autocracia absoluta do poder desse mundo. Somente na Igreja de Cristo será então possível encontrar a libertação dessa tirania destrutiva, dessa encarnação do espírito do Grande Inquisidor.

No Reino de Cristo, todo poder, toda autocracia, individual ou coletiva, estará limitado, pois nele somente se afirmará o poder da Verdade e da Justiça divinas. O espírito de liberdade de Cristo está dirigido contra toda tirania, quer provenha da “esquerda”, da “direita” ou do “centro”, seja a tirania monarquista, a aristocrática, a democrática, a socialista ou a anarquista. Não se trata do espírito do liberalismo, sempre indiferente à Verdade, mas o da liberdade santificada, da liberdade do amor. A busca do Reino de Deus é a manifestação da liberdade de espírito. O Reino de Deus, que devemos buscar acima de tudo, é o reino do espírito. No mundo espiritual, a tirania e a imposição de qualquer coisa “extra-imposta”, e de tudo o que é gerado pela divisão, serão suplantadas. Alcançar o Reino de Deus significa passar para o mundo espiritual, onde tudo será diferente desse mundo natural. Deus será tudo em tudo, e assim também a liberdade triunfará sobre a violência. Para entrar no mundo espiritual, o homem deve realizar o ato heroico da liberdade; mas ele não deve recebê-la de fora, mas deve descobri-la em si mesmo.



[1] Mateus 17: 26.
[2] João 8: 36.
[3] João 8: 32.
[4] João 15: 15.
[5] Tiago 1: 25.
[6] I Coríntios 7: 23.
[7] II Coríntios 3: 17.
[8] Gálatas 4: 7.
[9] Gálatas 5: 13.
[10] São João Crisóstomo
[11] São Simeão o Novo Teólogo.
[12] “A liberdade é um estar consigo mesmo”.
[13] João 8: 32.