quarta-feira, 30 de setembro de 2015

São João Clímaco - A Escada Santa - Capítulos de 11 a 20

SÃO JOÃO CLÍMACO

A ESCADA SANTA


OBSERVAÇÕES INICIAIS

São João Clímaco viveu entre os anos de 580 e 650 na região do Sinai. Até os 35 anos viveu como cenobita, mas com a morte de seu Pai espiritual decidiu se tornar anacoreta, retirando-se para o deserto, onde viveu até os 70 anos. Nos últimos quatro anos de sua vida dedicou-se a escrever "A Escada Santa", onde resume em trinta degraus o caminho espiritual que deveriam seguir os monges de sua época. O texto a seguir foi traduzido da versão francesa, e deve ser lido com a consciência de que se trata de uma obra dirigida eminentemente a pessoas que seguem a vida monástica, e cuja aplicação aos dias de hoje é quase inteiramente impossível. Mas a "Escada Santa" permanece sendo uma referência para os que desejam se aprofundar no caminho da oração, e aprender um pouco sobre as armadilhas com as quais os demônios infestam a alma dos que almejam o Reino dos Céus.


DÉCIMO PRIMEIRO DEGRAU

Do falatório e do silêncio.


1. Vimos em poucas palavras o quão perigoso e funesto é, para aqueles que vivem religiosamente, julgar os demais, por que eles se expõem a ser julgados severamente e punidos rigorosamente. Resta-nos agora buscar a causa deste defeito, qual a porta pela qual ele penetra na alma, ou antes, por qual porta devemos fazê-lo sair.

2. Devemos dizer sem hesitação que o desregramento em falar é como um trono sobre a qual a vanglória se senta para se fazer contemplar com pompa e ostentação, e promover seu espetáculo. Este destempero de palavras é prova inequívoca de uma grande ignorância: ela é, na verdade, a porta de entrada da maledicência, a mestra das diversões tolas, o instrumento da mentira, a dissipadora da compunção, a inventora e operária da preguiça e da irresponsabilidade, a guarda avançada do sono, a inimiga da meditação, a ruína da vigilância; é ela que esfria e congela a devoção e o fervor do coração, que faz languescer e que extingue a piedade e o ardor nos santos exercícios da oração.

3. Ao contrário, o silêncio é sábio e prudente; ele fornece o espírito de oração, liberta a alma do cativeiro, conserva o fogo do amor divino, vigia os pensamentos do espírito, observa atentamente os movimentos dos inimigos da salvação, sustenta e alimenta o fervor da penitência, alegra-se com as lágrimas, recorda incessantemente a imagem da morte e a lembrança dos suplícios eternos, faz considerar os Juízos de Deus com temor salutar, favorece a santa tristeza do coração, combate o espírito de presunção, favorece a tranquilidade da alma, aumenta a ciência da salvação, nos forma na contemplação das verdades sobrenaturais, nos aperfeiçoa das boas obras e nos faz subir até Deus.

4. Quem conhece e sente bem suas faltas, não tem dificuldades em refrear sua língua; mas quem se diverte falando está bem longe de conhecer a si mesmo.

5. Quem ama o silêncio se torna amigo particular de Deus, e, enquanto em seu interior lhe fala com sentimentos inspirados por esta santa familiaridade, dele recebe a luz.

6. Não foi o silêncio que protegeu Jesus diante de Pilatos, e que inspirou neste príncipe um grande respeito pelo Deus Salvador? O silêncio nos preserva da vanglória.

7. Pedro, por não ter guardado silêncio com prudência, teve que chorar amargamente. Ele havia esquecido as palavras de Davi: “Eu observarei cuidadosamente minhas palavras, para não pecar com minha língua[1]”, e também esta sentença do Espírito Santo: “É menos perigoso e funesto escorregar e cair do que fazer mau uso de sua língua[2]”.

8. Mas devo parar de entretê-los com esta matéria, ainda que a malignidade artificiosa do desregramento no falar e os vícios que produz me convidem a falar mais. Eu me contentarei com repetir aquilo que um dia me disse uma pessoa muito respeitável. Falando sobre o silêncio com esta pessoas, ela me assegurou que a loquacidade provinha de uma dessas causas: em primeiro lugar, do mau hábito de muito falar, livre e desembaraçadamente; pois, acrescentava, a língua, semelhantemente aos demais membros do corpo, faz com forte inclinação aquilo que ama, e o que aprendeu com o muito uso; em segundo lugar, da vanglória, sobretudo nas pessoas que estão apenas no início do exercício da prática das virtudes; em terceiro lugar, da gulodice: pois, mais de uma vez aconteceu que pessoas, castigando este defeito, e encorajadas pelas violências auto infligidas,  pelas privações auto impostas e pela fraqueza a que reduziram seus corpos, se libertaram do desregramento no falar, e fecharam a porta à intemperança das palavras.

9. Devemos acrescentar ainda que quem pensa seriamente na sua última hora não terá esforço em corrigir este mau hábito. E que aquele que chora suas faltas com sinceridade teme as conversas frívolas mais do que o fogo.

10. Quem realmente gosta da quietude, ama o silêncio; mas os que gostam de correr para baixo e para cima, fora de suas celas e de suas casas, comportam-se assim por estar possuídos de necessidade e paixão por falar.

11. Chamaremos a atenção para o fato de que as pessoas em cujo coração a caridade derramou seus divinos perfumes, fogem das companhias e da sociedade com mais horror do que as abelhas fogem da fumaça; e que a fumaça não incomoda mais, nem faz sofrer mais as moscas que buscam o mel, do que fadigam e fazem sofrer a estes servidores de Deus o convívio social.

12. É difícil deter o curso de um rio sem criar cataratas; mas é ainda mais difícil deter e domar a intemperança da língua e o curso das palavras. Quem foi capaz de galgar este décimo-primeiro degrau terá conseguido, por isso mesmo, de um só golpe, cortar as raízes de um número incontável de vícios.


DÉCIMO SEGUNDO DEGRAU

Da Mentira


1. O fogo nasce da pedra e do ferro. A mentira nasce da tagarelice e do gosto pelo gracejo.

2. A mentira nos faz renunciar à caridade, como o perjúrio nos faz renunciar a Deus.

3. Ninguém que seja sábio e prudente pensará que a mentira não passa de uma falta leve e de um pequeno defeito. Com efeito, em nossos livros sagrados não encontramos vícios contra os quais o Espírito Santo tenha pronunciado sentenças mais terríveis do que o fez contra a mentira. Assim é que se Davi disse, falando com Deus: “Você condenará, Senhor, todas as pessoas que p0roferem mentiras[3]”, o que acontecerá com aqueles que sequer temem acrescentar à mentira o perjúrio?

4. Vi muitos que, pelos aplausos que buscavam com suas mentiras, e pelo prazer que sentiam em mentir, estudavam como fazer rir os outros por meio de invencionices e contos fabulosos; mas esta conduta insensata faz secar a fonte das lágrimas e sufoca os sentimentos dos penitentes.

5. Perceberão os demônios, quando os contadores de fábulas começam seus discursos enganadores, que desejamos nos retirar de sua companhia, como se fosse de um lugar onde reina uma moléstia contagiosa e pestilenta? Eles se esforçam por nos segurar e nos reter por meio de dois motivos falsos, mas que iludem: eles nos dizem que, se sairmos desta maneira, causaremos uma dor sensível àquele que discursa, e que tentamos parecer mais modestos, mas pudicos e santos do que aqueles que escutam. Mas nestas circunstâncias, não discutam: saiam imediatamente, pois, se vocês agirem de outro modo, verão que, durante a prece, seu espírito estará incessantemente atormentado e agitado pela imagem e a lembrança das coisas que vocês ouviram; e não se contentem em apenas fugir, mas tratem de romper e dissipar a conversa profana por meio do pensamento da morte e do juízo. Talvez vocês sintam um pequeno pensamento de vanglória; mas é melhor sofrer esta imperfeição do que buscar vantagens de todo o mundo.

6. A hipocrisia é a mãe, a matéria e o objeto da mentira. Alguns ensinam que a hipocrisia não é outa coisa do que a ação de inventar, preparar e criar a mentira; de modo que a mentira e a hipocrisia estão sempre reunidas, e como que entremeadas.

7. Ora, todos os que estão cheios do temor de Deus são necessariamente inimigos da mentira; pois eles seguem imperturbáveis as luzes e os movimentos de sua consciência, que é um juiz incorruptível.

8. Acontece com a mentira o mesmo que com todos os vícios; e as faltas que cometemos nos entregando a ela também não são todas da mesma gravidade. Assim, estará sujeito a um julgamento menos severo e a uma condenação menos rigorosa o homem que profere uma mentira por medo de algum dano, do que o que mente sem temor deste perigo. Existem pessoas que mentem pelo simples prazer de mentir, e outras que buscam vantagens e benefícios pelas mentiras que proferem; e existem pessoas cuja única intenção, ao mentir, é de fazer rir os outros. Mas existem os que com suas mentiras se propõem a estender armadilhas aos seus irmãos, e a fazê-los cair em algum prejuízo.

9. Os magistrados e os juízes buscam destruir a mentira; mas somente a verdadeira penitência é capaz de exterminá-la.

10. Os mentirosos, para se desculpar, costumam alegar que mentem por boas razões, que é sempre pela salvação das almas, e para honrar a justiça e a caridade; eles ousam inclusiva dizer que não fazem mais do que seguir o exemplo de Rahab, que, por meio de uma mentira feliz, salvou a vida dos enviados do povo judeu.

11. Quando nos sentirmos inteiramente livres da tola vaidade de mentir, então, segundo as circunstâncias imperiosas de tempo e lugar, poderemos inocentemente ocultar a verdade por meio de algumas mentiras leves e prudentes.

12. Assim como uma criança não sabe mentir, também deve ser assim uma alma pura e inocente.

13. Vejam de que maneira um homem que se tornou alegre e divertido por causa do vinho diz a verdade em todas as coisas; assim é também uma alma que está espiritualmente embriagada pelas lágrimas da penitência. Aquele que alcançou este décimo segundo degrau, pode contar que colocou aqui o fundamento de todas as virtudes.



DÉCIMO TERCEIRO DEGRAU

Da Acídia


1. A acídia, conforme já dissemos, extrai sua origem da necessidade imperiosa de falar; ela é uma de suas primeiras crias. É por esta razão que, nesta odiosa cadeia de vícios, nós a colocamos neste ponto.

2. Dizemos que a acídia consiste em um relaxamento do espírito, um langor da alma, um desgosto pelos exercícios da vida religiosa, uma certa aversão pela santa profissão que abraçamos, uma adulação imprudente das coisas do século, uma calúnia insolente da Bondade e da Clemência de Deus; ela torna a alma fria e gelada no canto dos divinos cânticos, fraca e languescente na oração, e ao mesmo tempo diligente e infatigável nos trabalhos e nas coisas exteriores, fingida e dissimulada na obediência.

3. Um monge sinceramente dedicado ao dever da obediência ignora por completo o que é a acídia; pois ele se aperfeiçoa na virtude, dedicando-se às ações exteriores apenas na medida em que lhe são ordenadas por seu superior.

4. A vida monástica é o inimigo declarado da preguiça, enquanto que esta frequentemente acompanha a vida eremítica e não cessa de fazer a guerra todo o tempo contra os solitários. Assim, quando ela vê a cela de um anacoreta, ela sorri para si mesma, aproxima-se e fixa sua morada bem perto.

5. Normalmente é pela manhã que o médico visita seus doentes; é a meio-dia que a acídia visita os monges. Ela lhes inspira uma forte inclinação para os deveres da hospitalidade, e não cessa de dizer aos monges, em privado, o quanto seria útil que eles dessem grandes e numerosas esmolas, que visitassem assiduamente e de bom coração os pobres enfermos; ela não cessa de repetir, para enganá-los, estas palavras do Senhor: “Eu estava doente, e vocês me visitaram[4]”. E ainda que ela esteja sem vigor nem coragem, ela nos conjura a que não abandonemos os que se encontram tristes e abatidos, e que fortaleçamos os que estão fracos e desencorajados.

6. Estamos nós em pleno exercício da oração? Ela nos apresenta a imagem de mil coisas diferentes, que ela nos faz considerar muito importantes e necessárias, que são na realidade como um arreio.

7. Coisa que merece toda a nossa atenção: este funesto demônio da preguiça tenta sobretudo os religiosos três horas antes da refeição; pois tanto ele os faz sentir dolorosos calafrios e dores de cabeça, como os atormenta com as dores da febre e os incômodos da cólica. E, na hora nona, que na nossa contagem é a terceira hora após o meio dia, ela nos conforta um pouco e nos deixa, tranquilos.

8. Mas a mesa está servida? Ela recomeça a nos atormentar. Chegou o momento da oração? Ela nos torna lentos e pesados. Estamos orando? Ela nos vexa cruelmente com a necessidade de dormir, e nos impede de pronunciar os versos inteiros por causa dos bocejos vergonhosos e insuportáveis que nos envia.

9. Mas lembremos aqui que os demais vícios só atacam e destroem as virtudes que lhes são contrárias. A acídia ataca e destrói, sozinha, todas as virtudes.

10. Uma alma forte e generosa sabe manter, conservar e mesmo reviver seu ardor e sua coragem; mas a acídia só faz perder inteiramente toda riqueza.

11. Como, de todos os pecados capitais, é a acídia que nos faz maior mal, devemos nos ocupar em combatê-la tanto ou mais fortemente do que os demais.

12. antes de tudo, notemos que esta maldita paixão não nos ataca com tanta violência quanto o faz no momento do canto dos salmos, e que depois deste santo exercício ela nos deixa bem tranquilos.

13. Nada nos dará coroas mais belas e mais ricas do que os combates que devemos sustentar corajosamente contra a preguiça.

14. Quando estamos em pé, ela quer que sentemos; quando sentados, ela nos faz apoiar contra a parede; e quando estamos em nossa cela, ela nos leva a olhar aqui e ali e a fazer barulhos com os pés.

15. Quem chora amargamente seus pecados não será escravo desta funesta paixão.

16. Amarremos este tirano cruel por meio da lembrança dolorosa de nossas faltas; castiguemo-lo com o trabalho de nossas mãos; atormentemo-lo sem cessar com os pensamentos dos bens eternos que esperamos; arrastemo-lo impiedosamente diante do tribunal de nossa fé; e lá façamo-lo sofrer um interrogatório e um julgamento esmagadores; ordenemos imperativamente a ele que nos diga quem foi o pai que o engendrou, e quais os abomináveis filhos que ele próprio gerou; obriguemo-lo a que nos responda quem são as pessoas que o combatem até fazê-lo morrer. Contra a sua vontade, ele nos responderá que os que o combatem até a morte são os discípulos sinceros da obediência, e que nestes homens ele não encontra nada que lhe possa servir sequer um momento para ali repousar; que ele só pode coabitar tranquilamente com os falsos monges que só fazem a própria vontade; que é por isso que ele os ama e não os deixa jamais; que as causas que concorrem para lhe dar existência são em grande número, dentre as quais ele deve mencionar a insensibilidade do coração, o esquecimento do céu e das verdades eternas, algumas vezes um trabalho penoso ou exercícios exagerados e fatigantes,; que seus filhos são a inconstância, a mudança de moradia, a desobediência ao superior, o esquecimento do Juízo e, de tempos em tempos, a negligência em cumprir os deveres da vida religiosa; que os inimigos que a aprisionam ao banco e a tornam cativa são a salmodia fervorosa, uma ocupação contínua e a meditação da morte; e que seus inimigos mortais são a prece e a esperança viva e segura dos bens futuros. Quanto à prece, se você quiser conhecer de onde ela extrai sua origem, deve perguntar a ela própria. Aquele que, pela vitória obtida sobre a preguiça, conseguir superar o décimo terceiro degrau, se aperfeiçoará em todas as virtudes.

DÉCIMO QUARTO DEGRAU

Da Gula, que, por impiedosa que seja, agrada a todos


1. Se alguma vez, desde que nos ocupamos destes diversos assuntos, somos obrigados a falar contra nós, é sobretudo a respeito do presente tema. De fato, eu acreditaria num milagre se alguém me garantisse conhecer um homem que tenha se libertado completamente durante a sua vida da tirania da intemperança, a menos que tenha vivido numa tumba.

2. A gula é um ato hipócrita de nosso estômago, que nos diz que, mesmo se o saciarmos, ele não ficará saciado, e que, mesmo cheio de alimento, não deixa de nos repetir que ainda tem grandes necessidades.

3. Este vício vexatório é o engenhoso inventor dos temperos sofisticados, e a fonte dos prazeres da boa mesa.

4. Se por meio de uma ligadura forte é possível deter uma hemorragia violenta num certo ponto, o sangue encontrará uma saída por outro lugar; e você conseguir estancá-lo neste novo local, ele escapará ainda por outra via.

5. A gula brinca com nossos olhos; embora uma parte dos pratos servidos sobre a mesa sejam suficientes para nos saciar, ela nos faz crer que poderemos devorar a todos.

6. A saciedade normalmente produz a incontinência, assim como a temperança engendra a castidade.

7. Vemos muitas vezes que um domador é capaz de, com carinho, acalmar a fúria de um leão e torná-lo dócil e tratável; mas qualquer um que trate seu próprio corpo desta mesma maneira o tornará cada vez mais furioso e mais indócil.

8. O judeu se alegra nos sábados e nos dias de festas, e o monge nos sábado e nos domingos. Durante a Quaresma, ele conta os dias que faltam para a Páscoa, e ao se aproximar a festa, não deixa de preparar as comidas que sua concupiscência o faz desejar. Um infeliz escravo da gula não pensa senão nos pratos deliciosos que ele terá nas grandes festas, e é deste modo miserável que ele as prepara e as celebra; mas o servidor de Deus não pensa senão nas graças e nas virtudes com as quais deseja se ornar e embelezar sua alma para essas belas solenidades.

9. Se um amigo, ou mesmo um estrangeiro, visita um escravo do ventre, você o verá, conduzido por sua paixão, alegrar-se com esta circunstância, porque, sob o pretexto de cumprir com os deveres da caridade, ele encontra ocasião favorável para se entregar à intemperança e se satisfazer, fazendo sua sensualidade passar por consolo e um alívio que ele deve ao irmão. É assim que se imagina que, na presença de hóspedes, pode-se exagerar um pouco na bebida; mas quanto é ilusório este comportamento! Por mais que tentemos esconder esta paixão, ela escapa e nos expõe como miseráveis escravos que somos.

10. Às vezes a vanglória e a gula entram em guerra uma contra a outra, e disputam vigorosamente um pobre miserável; pois a gula faz todos os esforços pra levá-lo a violar as regras da mortificação e do jejum, e a vaidade para fazê-lo alardear a perfeição de sua vida por seus atos de severa abstinência. Mas um monge conduzido por um espírito de sabedoria evitará as armadilhas que lhe põem estas duas paixões e saberá se aproveitar das circunstâncias para expulsar a ambas para longe de si.

11. Quando assistimos que nossa carne, pelo calor da idade ou pela força de nossa constituição, deseja se voltar para os prazeres dos sentidos, tratemos de castigá-la ou submetê-la em qualquer tempo ou lugar por meio dos rigores salutares da mortificação; e não relaxemos estas santas austeridades antes que estejamos certos por provas certas e indubitáveis que conseguimos a felicidade de extinguir em nós as chamas impuras da concupiscência. Mas não creio que consigamos isto antes da morte.

12. Eu vi sacerdotes miseráveis, de idade bastante avançada, que se deixaram enganar pelo demônio, a ponto de estarem à mesa com pessoas nem mais novas e sobre as quais não possuíam nenhuma autoridade, e convencê-los, por meio de convites insistentes e solicitações diabólicas, a se excederem nas bebidas e na intemperança. Ora, se por um acaso nos sucedesse encontrarmos anciãos com tal comportamento, eis a conduta que haveríamos de seguir: se estas pessoas desfrutassem com justeza de uma reputação de virtude e piedade, retrucaríamos com honestidade ao que nos faziam, com uma moderação cheia de reconhecimento; se, ao contrário, se tratasse de pessoas conhecidas por sua conduta e virtude duvidosas, e encontrando-nos em circunstâncias nas quais estivéssemos obrigados a sustentar rudes batalhas contra as revoltas da carne, evitaríamos escutar tão funestos convides, e fugiríamos com horror de uma ocasião tão perigosa.

13. Evagro, agitado pelo espírito das trevas, imaginou, por causa de sua eloquência e da perspicácia de seu espírito, que era o mais sábio dos sábios; mas ele se enganou horrivelmente, pois aquilo que vou contar o fez mostrar ao mundo que era o maior dos tolos. Eis uma de suas máximas: “Quando a alma suspira por delícias oferecidas pela variedade dos alimentos, é preciso puni-la severamente nos condenando sem piedade a um regime de pão e água”. Ora, falando assim, não equivale a exigir que com um único salto uma criança suba todos os degraus de uma escada? Eu penso que para tornar esta máxima sã e praticável seria preciso dizer: “Nossa alma deseja muitas comidas para contentar seus apetites; sendo este desejo conforme às inclinações da natureza, devemos usar de muita prudência e engenho para combater a mais ardilosa e artificiosa das paixões; pois agindo de outro modo nos engajaríamos imprudentemente numa guerra perigosa, e nos exporíamos ao perigo de uma perda iminente. Privemo-nos inicialmente das comidas capazes de nos engordar, depois daquelas que podem inflamar nossos humores, e enfim de todas aquelas que nos são agradáveis”.

14. Entretanto, na medida do possível, não devemos usar senão alimentos apropriados a nutrir nossos corpos, e que sejam de fácil digestão, a fim de que, saciados, contentemos o estômago que sempre pede mais, e ao mesmo tempo nos preservemos, por meio de uma digestão rápida e fácil, dos maus humores e dos ardores funestos que os alimentos mais sólidos costumam produzir. De resto, com um pouco de atenção, aprenderemos que as comidas mais alimentícias são também aquelas que nos permitem com mais facilidade sentir os movimentos da carne.

15. Ria-se do demônio quando, depois de feito sua refeição, ele lhe sugerir que da próxima vez a retarde para uma hora mais adiante; pois ele lhe sugere esta resolução apenas para vê-lo violar sua própria regra.

16. Existe um tipo de abstinência que convém aos que conservaram sua inocência, e outra voltada para os que a perderam, e que tentam recuperá-la por meio dos salutares rigores da penitência; pois as pessoas que guardaram sua inocência, se mortificam segundo percebem que têm necessidade disto para resistir aos movimentos da concupiscência, enquanto que aqueles que caíram em faltas mortais devem, até o fim de suas vidas, sem relaxar nem amolecer, fazer sofre a carne que os fez perder o tesouro dos tesouros, a fim de poder reencontrá-lo. Assim, os primeiros se propõem em sua mortificação a conservar o feliz estado de justiça e santidade, e os últimos fazem seus esforços para tornar a Deus simpático às suas penitências e suas lágrimas.

17. Os tempos de consolação e de alegria verdadeiros para um homem virtuoso são a época em que ele se vê alegremente liberto de todos os cuidados e de todas as inquietudes que vêm com as coisas do século; mas aquele que ainda se encontra preso às suas paixões e pendores desregrados nunca pode estar contente, porque se acha necessariamente exposto aos perigos de uma guerra encarniçada e cruel. E quem está sujeito aos seus vícios e que vive ao sabor das paixões, a cegueira é tanta, que este se alegra todos os dias, como se costuma fazer na festa das festas.

18. Os homens intemperantes quase não pensam em outra coisa que em comidas e banquetes, e colocam inteiramente sua afeição nestas coisas grosseira e vis; ao contrário, aqueles que choram seus pecados não se ocupam, noite e dia, senão com os pensamentos dos julgamentos de Deus e nas penas eternas.

19. Dedique-se então a se torar mestre se seu apetite desregrado no beber e no comer, se não quiser que ele se torne o seu mestre, e que mais tarde você não tenha que ser vergonhosamente obrigado a fazer grandes esforços, e nem sempre com sucesso, para viver segundo as regras da sobriedade e da temperança. Devem compreender-me aqui aqueles que tombaram ignominiosamente no abismo do pecado; quanto aos que se tornaram santos e castos, felizmente não têm a experiência da queda de que falamos.

20. Devemos reprimir fortemente com a lembrança das chamas eternas todos os movimentos da intemperança, e lembrem-se com terror que muitos, dentre os que tentaram segui-los por algum tempo, chegaram a tamanho desencorajamento, que desesperando de resistir aos movimentos da concupiscência, se trataram de tal maneira a temer tanto pela vida do corpo como pela vida da alma. Se quisermos lhes dar alguma atenção, compreenderemos que é normalmente a intemperança que conduz os homens a todas essas infelicidade e a todos esses pecados, e que os expõem a um triste naufrágio.

21. As orações das pessoas que praticam fielmente a temperança são acompanhadas de pensamentos santos e piedosos; ao contrário, durante seus santos exercícios o espírito dos intemperantes se vê continuamente agitado por ideias más e manchado por mil representações impuras.

22. Quando nos entregamos à intemperança, esgotamos e secamos a fonte das graças para nós; mas se a combatermos furiosamente com o jejum, faremos jorrar em abundância as lágrimas salutares da penitência.

23. Sabem a quem devemos comparar uma pessoa que, ao mesmo tempo em se torna escrava de seu ventre, se esforça por triunfar sobre o demônio da impureza? Comparamo-lo, sem hesitar, com o home que tenta apagar um incêndio atirando azeite sobre as chamas.

24. Mortificando nosso pendor pela gula, tornamos o coração humilde; mas se contentarmos a gulodice, enchemos nosso espírito com maus pensamentos.

25. Para verificar essas verdades, considere em que estado você se encontra pela manhã, ao meio-dia e no momento que antecede sua refeição: não é verdade que na primeira hora seus pensamentos são quase irracionais e anunciam uma grande dissipação do espírito, que na sétima hora – o meio-dia – eles estão mais tranquilos e que ao entardecer eles estão completamente humildes?

26. Se você observar as regras da temperança, não lhe será difícil guardar silêncio; porque a língua se derrama em tanto mais palavras quanto mais força recebe de um estômago cheio. Use todas as suas forças para combater e abater esta tirânica intemperança; pois Deus, vendo seus esforços generosos, vira pessoalmente em seu socorro com uma graça toda particular.

27. Quando umedecemos um odre por algum tempo ele se dilata e contém mais água do que se não tivéssemos feito esta operação; quando eles secam, eles se retraem e se tornam menores. O mesmo acontece com nosso estômago: encha-o de comidas e de vinho, e ele se estica e se dilata; dê-lhe menos, ele se encolhe e se torna menor. É assim que vamos nos tornando temperantes pela necessidade da natureza.

28. Às vezes acalmamos os ardores da sede suportando-os; mas o mesmo não se pode dizer da fome: nada é capaz de apaziguá-la, senão o alimento que lhe damos.

29. Comendo o necessário, você domará a gulodice com algumas penas e alguns sofrimentos; sem por causa de alguma enfermidade, você não puder se entregar a mortificações, socorra-se das santas vigílias à noite. Se sentir seus olhos pesados pelo sono, que uma ocupação laboriosa o impeça de dormir. Mas não se conduza assim se ficar fatigado pela necessidade do sono: neste caso dedique-se à oração. É impossível servir a Deus e a Mammon, e o mesmo podemos dizer da oração e do trabalho: é quase impossível dedicar-se aos dois de maneira a que possam nos ser úteis.

30. Uma coisa que devemos frisar aqui é que, uma vez que a intemperança se apodera de uma pessoa, ela torna seu estômago insaciável, a ponto de que ele imagina ser capaz de devorar todas as carnes do Egito e beber todas as águas do Nilo. Quando conseguimos contentar o demônio da intemperança, ele se retira para dar lugar a um outro demônio, o da impureza, a quem ele conta as exatas novidades de nosso estômago: “Vá, diz ele, ataque duramente esta pessoa; pois seu corpo, que ela tratou tão bem, lhe fornecerá todos os meios para vencê-la e fazê-la cair em suas armadilhas”. Vocês o veem, a este demônio infame? Ele está sempre perto do infeliz intemperante. Oh!, como ele o amarra de pés e mãos! Como se ri dele durante o sono funesto em que o coloca! Como o trata de acordo com seus desejos cheios de malícia e perversidade! Como ele perturba e mancha sua imaginação com fantasmas vergonhosos! Como produz sobre seu corpo movimentos humilhantes e culpados!

31. Não é uma coisa espantosa que nosso intelecto incorpóreo seja capaz de se sujar e perder sua beleza por meio do corpo? Mas não é menos surpreendente que nosso corpo, que não passa de um vil composto de terra e lama possa purifica-lo e torná-lo, de certa forma, mais santo e belo.

32. Se você prometeu se ligar a Cristo e seguir seu caminho rude e estreito de que fala o Evangelho, reprima vitoriosamente a paixão da gula; se você tratar seu corpo com delicadeza e lhe conceder tudo o que ele lhe pedir, você estará violando a promessa que fez ao divino Salvador. Mas ouça as palavras que ele lhe dirige: “O caminho que leva à perdição é largo e espaçoso, e muitos seguem por ele[5]”. Ora, esta via larga é a intemperança, e esta perdição é a impureza. Mas o caminho que conduz à vida, disse ainda Cristo, é estreito e difícil, e poucos são capazes de segui-lo.

33. Se Lúcifer, que se fez precipitar do céu aos infernos, se tornou o chefe dos demônios, não podemos também dizer que a gula está à frente dos vícios que tiranizam o coração humano?
 Vida
34. Então, quando vocês se sentarem à mesa para tomar a refeição, representem para si próprios a imagem da morte e do juízo, a fim de poder resistir a esta cruel paixão; e ainda assim vocês farão pouco progresso e este lhes custará muitas penas. Quando estiverem a ponto de beber, lembrem-se do vinagre e do fel que deram de beber ao Senhor no Calvário, e este pensamento os tornará sóbrios, ou os fará gemer, ou ainda, lhes inspirará sentimentos mais nobres e moderados.

35. Não se enganem, vocês jamais poderão se libertar da dura servidão ao Faraó, nem merecerão celebrar a Páscoa celeste, se durante sua não comerem alfaces amargas e pão sem fermento. Ora, estas alfaces selvagens são a imagem dos esforços e das mortificações que devemos praticar; e o pão sem fermento é a figura da humildade sincera de nossa alma, que não conhece senão as regras da mais perfeita modéstia.

36. Não deixem passar um só instante sem que esta sentença do Espírito Santo esteja presente em sua memória: “Para mim, enquanto os demônios meus inimigos me oprimiam com suas tentações, eu me revesti de cilício, humilhei minha alma por meio do jejum e dirigi a Deus minha prece no secreto de meu coração[6]”.

37. O jejum é uma violência que fazemos contra a natureza. É ele que nos faz renunciar às delícias da sensualidade, que extingue as chamas da concupiscência, que nos liberta dos maus pensamentos, nos preserva dos sonhos inoportunos e torna nossas preces santas, fervorosas e agradáveis aos olhos do Senhor; é ele que ilumina nossa alma, cura nosso espírito, dissipa as trevas de nossa inteligência, vela por nosso coração, lhe abre as portas da compunção, lhe faz soltar gemidos salutares, o consola e encoraja nas obras e nas dores da penitência, impede nossa língua de cair na incontinência de falar, nos inspira o amor ao retiro e à solidão, conserva em nós o espírito de obediência, adoça os rigores de nossa vigília, obtém e mantém a saúde de nosso corpo, nos dá a paz e a tranquilidade da alma, apaga nossos pecados, nos abre a porta do céu e nos conduz à posse dos prazeres, das alegrias e das delícias eternas.

38. Interroguemos a intemperança: não é ela nossa inimiga declarada? Não à vemos à frente de todos os nossos inimigos? Não é ela o mais furioso e mais perigoso dentre todos os nossos inimigos espirituais? Não é ela a autora de todos os males que nos acontecem? Não foi ela que fez Adão cair do Paraíso terrestre, e que fez Esaú perder seu direito de progenitura? Não foi ela que atraiu os maiores males sobre os Israelitas, que cobriu Noé de confusão, fez desaparecer Gomorra, manchou a Ló e matou os infelizes filhos de Eli? Enfim, não é a intemperança a causa e o princípio de toda espécie de corrupção e de pecado? Mas perguntemos a ela mesma de quem ela extrai sua existência, a quem ela a entrega, quem é seu inimigo que a pisoteia e destrói? Diga-nos, infame e cruel dominadora do gênero humano, você que, para nos tornar seus escravos, nos adquiriu a peso de ouro, pelo desejo insaciável de comer, diga-nos por que caminhos conseguiu chegar até nós; diga-nos o que nos deu e fez, desde que fixou sua cruel morada em nós; ensine-nos quais são os meios eficazes que devemos empregar para expulsá-la e nos livrarmos da servidão. Irritada com estas questões fatigantes, inflamada de furor e tremendo de raiva, ela nos fará ouvir, muito contra sua vontade, as seguintes respostas: “Por que me enchem de injúrias e reprovações? Esquecem-se de que são meus escravos? Como podem sequer pensar que podem se separa de mim? Ignoram que foi a própria natureza que os acorrentou e os mantêm meus escravos? Querem saber como me tornei sua senhora? Eu lhes direi: foi pela quantidade de comida mais ou menos deliciosa que vocês costumam tomar como alimento, que eu produzi em vocês esta insaciável avidez; e este costume, acompanhado do endurecimento do coração e do esquecimento da morte, me conserva e me mantém residindo no meio de vocês. Querem saber o nome e o número de filhos que tive? Se eu disser o nome de todos, os grãos de areia que existem sobre a terra não seriam suficientes para contá-los. Escutem apenas quais foram os que eu primeiro coloquei no mundo e pelos quais eu conservo uma afeição especial: o aguilhão da carne é meu primogênito e meu primeiro-ministro; o segundo, é o endurecimento do coração; o terceiro, o amor ao repouso. Depois destes vêm o dilúvio de pensamentos impuros, o princípio de todas as corrupções e de todas as sujeiras espirituais, e um abismo de infâmias secretas e execráveis. Minhas filhas são a preguiça, a incontinência no falar, a presunção audaciosa, a galanteria, os gracejos, a contradição, a opinião obstinada, o estupor do coração, a escravidão do espírito, a ostentação insolente e a inclinação por agradar ao mundo. São estas que perturbam o fervor e mancham a santidade da prece, que ocasionam o turbilhão de pensamentos, que ferem com acidentes súbitos e infelicidades inesperadas; enfim, são elas que produzem o desespero, o mais temível e o maior de todos os males. A lembrança dos pecados me combate verdadeiramente, mas não me derrota; a meditação da morte me dá golpes terríveis, mas ainda não é capaz de me vencer, e eu declaro que nada neste mundo é capaz de derrubar inteiramente meu império; que as únicas vitórias que podem ter sobre mim os que, sob a condução do Espírito Santo (a quem se dirigem com humildes súplicas), me combatem de modo constante e vigoroso, consistem em me impedir de lhes causar os males cruéis, funestos e incalculáveis que eu causo a outros; pois aqueles que não experimentaram os dons e as doçuras do Espírito Santo, este poderoso auxiliar e este inefável Consolador, se deixam prender nos meus anzóis, e acabam miseravelmente por não mais suspirar senão pelas delícias brutais da boa mesa”. É preciso coragem para triunfar sobre a intemperança! Mas aquele que, com felicidade, conseguir o objetivo de vencê-la, abrirá para si um caminho de tranquilidade da alma e de suprema castidade.



DÉCIMO QUINTO DEGRAU

Da Castidade incorruptível, que os homens corruptíveis por natureza adquirem com seus trabalhos e suores.

1. Acabamos de ouvir a gula, esta fúria, nos dizer que a guerra contra [a castidade do] corpo é um de seus filhos. Isto não surpreende: nosso primeiro pai Adão no-lo ensinou. Pois se ele não tivesse se deixado dominar pelo ventre, ele jamais teria sabido o que é uma companheira. É por isso que os que observam o primeiro mandamento jamais caem na segunda transgressão: eles permanecem como filhos de Adão, ao mesmo tempo em que desconhecem o estado de Adão (depois da queda), e são um pouco inferiores aos anjos, a fim de impedir o mal de se tornar imortal, como disse aquele que foi chamado o Teólogo.

2. A castidade, ao nos liberar das misérias da natureza dos corpos, nos faz participar da natureza dos puros espíritos. É esta virtude angélica que prepara em nossos corações uma morada agradável a Jesus Cristo, e que serve de escudo para nossa alma; ela faz de nossa natureza corruptível uma natureza incorruptível, e estabelece uma admirável emulação entre os fracos mortais e os espíritos imortais. Quem pratica esta bela virtude repousa e extingue em si o amor pelas criaturas em troca do amor a Deus, e as chamas e os ardores de seu corpo pelos ardores e as chamas do Espírito Santo.

3. A temperança é uma virtude que se mistura e se identifica com todas as demais virtudes, e delas toma seu nome. O homem que pratica a temperança, mesmo durante o sono, não experimenta nem sensações nem movimentos capazes de perturbar sua paz e a calma de seu estado.

[4[7]]. O homem casto é aquele sobre quem a agradável variedade dos corpos, sua beleza, sua meiguice e sexo não causam nenhuma impressão inoportuna ou vergonhosa. O caráter distintivo, a prova específica e as leis especiais de uma santa e angélica castidade consistem em não ser mais tocado nem movido pela presença de corpos vivos, não mais do que pelos corpos mortos, seja pela visão de homens como pela de animais.

[5]. Mas prestemos seriamente atenção a esta verdade: a castidade é um dom de Deus. Aquele que trabalhou muito e penosamente para obter o tesouro precioso da castidade, deve se abster de pensar ou crer que a felicidade de possuí-la se deve aos seus próprios suores e trabalhos; pois à nossa natureza não é dado vencer a si mesma com suas próprias forças. Assim, se obtivermos a vitória sobre a natureza, reconheçamos que foi pelo próprio Autor da natureza que a obtivemos – com efeito, não devemos reconhecer que, para vencer, corrigir e curar, é preciso ser superior ao que é vencido, corrigido e curado?

6. O começo da castidade consiste em recusar todo consentimento aos pensamentos impuros e aos movimentos desregrados da concupiscência; o progresso nesta virtude, que são como a perfeição média, consiste em experimentar, seja no sono, seja em outras ocasiões, mas sem maus efeitos ou maus pensamentos, certos movimentos de nossa carne, composta de terra e lama; enfim, a perfeição desta virtude celeste consiste na extinção de todo mau pensamento, de toda imagem desonesta e de tudo se (...)[8]

7. Feliz, solidamente feliz, é quem não é tocado nem ferido pela beleza, o colorido e as graças elegantes das pessoas que encontra.

8. Não são bem os que preservaram seus corpos da sujeira, aqueles de quem podemos dizer que praticaram uma castidade perfeita; mas são os que submeteram com perfeição ao espírito os diferentes membros de seus corpos.

9. Sem dúvida, devemos ver como um homem casto aquele que, na presença dos corpos dos outros, domina os movimentos do seu próprio; mas diremos que é de uma castidade mais perfeita aquele que é invulnerável à visão dos corpos dos demais, e que, pela meditação das belezas do céu, extinguiu em si todos os ardores que as belezas da terra excitam naturalmente.

10. Quem combate o espírito da luxúria com as armas da oração se assemelha a alguém que combate um leão. Aquele que, pela continuidade e o vigor dos combates que sustenta contra este terrível demônio, o derruba e abate, é semelhante a um homem que é no mínimo igual ao seu inimigo; mas quem reprimiu e deteve inteiramente todos os esforços impetuosos da luxúria, mesmo que esteja ainda vivendo num corpo mortal, desfrutará dos benefícios e das prerrogativas que esperamos apenas para depois da ressurreição gloriosa.

11. Mas, se não ser mais fatigado durante o sono por sonhos humilhantes nem por movimentos da concupiscência, é uma marca indubitável de castidade, não será uma prova certa de luxúria, se durante o dia os pensamentos nos fazem cair voluntariamente nas sujeiras corporais?

12. Combater o inimigo impuro por meio de trabalhos e suores equivale a tentar amarrar um inimigo com cordas de junco e de vime; combatê-los com vigílias e jejuns é como colocar um colar de ferro ao pescoço de um cão a quem submetemos; mas se acrescentarmos a estas armas, para o combate, a doçura, a humildade e o desejo vivo e ardente de obter a vitória, seremos capazes de abater e destruir o inimigo, e enterrá-lo na areia; digo na areia, porque a humildade na qual devemos enterrar todas as paixões, principalmente a luxúria, não lhes fornece substância nem alimento: ela é para as paixões como uma areia seca e estéril.

13. Muitas pessoas se batem contra a luxúria, mas de diferentes maneiras: algumas guerreiam por si mesmas e com suas próprias forças; outras, com as armas da humildade; outras enfim, auxiliadas pela força do Espírito Santo, cujo auxílio elas pedem humildemente, a combatem de tal modo que a vencem e escravizam. Ora, me parece que podemos comparar as primeiras à estrela da manhã; as segundas à Lua cheia; as terceiras, ao Sol, que ilumina o mundo com seus raios. Estes três tipos de pessoas têm um diálogo com o céu: pois a aurora anuncia a chegada do dia, e logo o nascer do sol nos traz o esplendor de sua luz; e é assim que se dão as coisas com as pessoas de que falamos.

14. Semelhante a uma raposa que quer caçar galinhas, o demônio finge dormir a fim de roubar nossa castidade e nos por a perder.

15. Vigiem para nunca confiar em seus corpos de barro; desconfiem sempre de sua fraqueza, até que finalmente Cristo os chame para que se apresentem diante dele.

16. Não imaginem que o rigor e a austeridade dos seus jejuns lhes tenham dado tamanha perfeição de virtude, que vocês não estejam mais expostos a quedas deploráveis. Não percam jamais de vista que uma criatura que jamais comeu, tomba de um só golpe, do céu ao abismo do inferno.

17. Os escritores ascéticos definem a renúncia ao século: uma aversão que se tem pelo próprio corpo, e uma guerra contínua travada contra o ventre.

18. O que mais comumente causa a queda dos monges jovens em faltas contrárias à castidade, é uma certa afeição pelas doçuras e comodidades da vida. O inchaço do coração costuma balançar e às vezes derrubar os que estão mais avançados nos caminhos da vida religiosa. Quanto aos que estão mais próximos da perfeição, a pedra de tropeço consiste nos julgamentos temerários que eles fazem, e nas condenações injustas que levantam contra seus irmãos.

19. Existem pessoas que acham uma felicidade terem nascido eunucos porque, segundo sua opinião, estão isentos do aguilhão da concupiscência; mas não vamos nos iludir: só são verdadeiramente felizes aqueles que, por meio de pensamentos puros e desejos castos, combatem, reprimem e vencem a concupiscência.

20. Eu vi pessoas que, contra sua vontade, caíram em movimentos desregrados; vi outras que, sem sucesso, tentavam excitar-se para tanto. Estas infames seriam infinitamente mais culpadas do que as que, cruelmente puxadas e agitadas pelas paixões, tiveram a infelicidade de cair frequentemente; porque elas não apenas teriam pecado, se pudessem, como ainda fizeram todos os esforços para conseguir se sujar vergonhosamente.

21. Bem míseros são os que caem; mas faltam palavras para estigmatizar os que tentam derrubar os outros. Não trarão em si, estes homens detestáveis, tanto o peso enorme e a pena terrível de suas próprias quedas, como as penas pelas faltas às quais arrastaram seus irmãos?

22. Evitem quere expulsar o demônio da impureza discutindo e raciocinando com ele; pois, para fazê-los cair, ele sempre terá motivos plausíveis a apresentar, e se servirá de vocês mesmos para vencê-los na guerra.

23. Não se esqueçam jamais de que todos os que acreditaram poder combater a paixão impura por si mesmos e triunfar, se enganaram grosseiramente e nada conseguiram; pois, a menos que o Senhor em pessoa se digne derrubar esta morada de carne e de corrupção, e construir em nós esta morada de espírito e castidade, será vão pretendermos, com jejuns e vigílias, destruir a primeira e construir a segunda.

24. O que se deve fazer é manifestar humildemente a Deus a fraqueza de nossa natureza, reconhecer diante dele a impotência de nossas forças, e assim pouco a pouco re3ceberemos de sua bondade, e sentiremos em nós a presença do dom inestimável da castidade.

25. Dentre as infelizes vítimas dos prazeres carnais, encontrei um homem que conseguiu se encontrar e voltar ao domínio de si, e que, por meio de obras de conversão e de uma penitência sincera, trabalhava por sua salvação. Eis o que ele me contou: “As pessoas que se deixam levar pela incontinência, são agitadas e atormentadas por um ardor violento por objetos tão corporais, são possuídas por um demônio furioso e cruel que se entroniza como um tirano em seu próprio coração, e aí faz sentir seu império infame por meio de sinais inequívocos: de sorte que, quando são tentadas e tentam conter sua paixão brutal, sentem dentro de si as dores de um fogo semelhante ao de uma fornalha abrasadora; elas ficam tão horrivelmente fora de si, que perdem todo o temor a Deus e aos suplícios eternos, que elas encaram como sendo coisas de fábulas; elas têm horror à prece; a visão de um cadáver não lhes causa mais emoção do que a imagem de uma pedra; e elas estão tão absorvidas e devoradas pelo desejo de satisfazer suas ações infames, que perdem inteiramente a razão e se parecem antes com animais furiosos do que com criaturas racionais. Se estes dias não fossem abreviados, poderia haver sequer uma única alma, dentro desta prisão de sangue e barro, que fosse capaz de obter a salvação? Pois, ainda em que nos demos conta de que os horrores aos quais nos atiramos convêm apenas a uma natureza corrompida, continuamos a buscá-los com uma avidez insaciável. Se o sangue se delicia no sangue, o verme entre os vermes, e o limão combina com limão, não deve a carne amar as obras da carne?”. Nós todos que queremos sinceramente agir contra a natureza com violência a fim de obtermos o reino dos céus, não esqueçamos que nossa carne não busca senão nos enganar e nos trair, que devemos combatê-la, enfraquecê-la e submetê-la por todos os meios e através de piedosos artifícios. Consideremos felizes os que não experimentaram os malefícios temíveis que ferem as pessoas dominadas pelo demônio da impureza; pois elas estão bem longe daquela escada misteriosa pela qual o patriarca Jacó viu subir e descer os anjos, estas pessoas que caíram miseravelmente no abismo da impureza, e, para que possam se aproximar e subir por ela, precisarão de muitos suores e lágrimas, suportar penas e trabalhos e se dedicar a jejuns e austeridades bem rigorosas.

26. Devemos frisar aqui que os inimigos de nossa salvação se comportam na guerra que travam contra nós como soldados organizados para uma batalha: eles têm ordem de nos atacar e nos combater todas as vezes que nos encontrarem.

27. Uma coisa que não deve nos surpreender nem nos fazer tremer, é que dentre os que sucumbem às tentações, existem alguns que sofrem quedas muito mais funestas do que os outros. Esta é outra observação que posso fazer; assim, eu digo que quem tiver intelecto para compreender, compreenda o que quero dizer aqui.

28. Normalmente o demônio tem o costume de empregar todos os seus esforços, toda sua ocupação, todos os seus cuidados, toda sua diligência, seus projetos e desígnios de maneira a fazer com que os anacoretas caiam nos crimes que estão fora e são contrários àquilo que a natureza parece pedir. É para que ele consiga realizar seus desejos estes são deixados viver no meio das mulheres, mas sem que ele, o demônio, lhes inspire nem maus pensamentos nem maus desejos; e os infelizes se deixam prender por meio deste artifício, e se creem felizes e tranquilos neste estado de coisas, sem compreender que, onde o perigo é suficientemente grande e funesto por si mesmo, não há necessidade de outro meio ou de outra tentação para perder um homem.

29. Creio que os demônios, estes impiedosos homicidas de nossas almas, têm duas razões principais para nos conduzir com tanto ardor e zelo a pecados que repugnam às leis da natureza: primeiramente, porque temos sempre em nosso poder e à nossa disposição da matéria do pecado; em segundo lugar, porque assim eles nos fazem merecer penalidades mais severas. Isto foi amargamente experimentado por um homem extraordinário. Ele houvera um dia comandado com absoluto controle seus animais selvagens; mas houve um momento em que ele foi assaltado de modo tão horrível e atacado de modo tão violento, que não apenas o privaram do alimento celestial cujas doçuras ele saboreava, como o despojaram de tudo e o atiraram a uma terrível miséria. É por isso que o bem-aventurado Antônio, nosso mestre na vida religiosa, chorando a infelicidade deste homem – que entretanto conseguiu repará-la por meio dos rigores da penitência – dizia lançando longos suspiros: “Tombou esta grande e sólida coluna de virtudes”. Este santo Padre considerou em sua sabedoria que ele não devia nos ensinar que espécie de pecado o infeliz cometera contra a castidade; mas acreditamos que tenha sido um crime que ele cometeu sobre seu próprio corpo. Assim, existe em nós uma espécie de morte e um princípio de ruína bem funesto; e esta infeliz morte reside em nós mesmos e nos acompanha por toda parte; mas é sobretudo nos anos da juventude que ela sobressai, e eu não ouso nem dizer nem escrever seu nome, pois São Paulo mo proíbe com suas palavras: “Existem coisas que são feitas em segredo, e que seria vergonhoso e indecente nomear[9]”.

30. Esta carne, que é ao mesmo tempo nossa amiga e nossa inimiga, o mesmo Apóstolo não hesita em chamar de morte: “Infeliz sou eu!, escreve ele, quem me libertará deste corpo de morte?[10]”; e um outro teólogo chama de “uma serva viciosa e que só se diverte nas trevas da noite”. Eu lhes confesso que eu gostaria muito de saber as razões pelas quais estes dois grandes santos falaram assim de nosso corpo.

31. Se nossa carne é uma morte, então podemos dizer que não morrerá aquele que souber vencê-la. Mas onde encontraremos um homem que, preservando a si mesmo das sujeiras da carne, mereça viver e jamais ver os horrores da morte?

32. Seria aqui a ocasião de conhecer quem seria a pessoa mais recomendável, se aquela que, estando morta pelo pecado, tenha ressuscitado pela graça, ou aquela que, não tendo morrido, conservou sua inocência. Alguém já disse que seria a segunda das duas; mas não concordo com esta opinião, a creio mesmo que seja um engano: pois Jesus Cristo morreu e ressuscitou. Por outro lado, quem der preferência à primeira pessoa, sem dúvida será por crer que quem teve a infelicidade de morrer por cair em pecado, não deve jamais desesperar de sua salvação.

33. O demônio da impureza, este inimigo cruel e pérfido dos homens, a fim de nos fazer cair mais facilmente em alguma falta por incontinência, da qual ele mesmo é o autor, nos sugere que Deus é cheio de comiseração por aqueles que têm a infelicidade de se atirar à luxúria, e que ele perdoa com tanto maior bondade e clemência na medida mesma em que esta paixão é natural do homem. Mas não deixemos de reconhecer suas mentiras e sua perfídia: pois mal acabamos de cometer um pecado vergonhoso, e ele se apressa a nos mostrar a Deus como um juiz severo, inexorável e que não perdoa nada. Mas vejam que antes de consentirmos em seu pecado, e para consegui-lo, ele nos apresentou a Deus como sendo infinitamente bom, clemente e misericordioso, e que, depois de termos cumprido seu desígnio maléfico, e nos termos precipitado no abismo, ele não cessa de falar da severidade e do rigor dos julgamentos do Senhor, a fim de nos atirar na raiva e nos horrores do desespero, consumando assim nossa perda eterna. Mas ele vai ainda mais longe: enquanto durar este sentimento de tristeza desesperadora que ele nos provocou , ele não tem necessidade de nos expor a novas tentações, pois nos tem como escravos, e assim ele nos deixa tranquilos; mas perceba que, mal se acalmam e se apaziguam estes remorsos dolorosos e cortantes que ele nos inspirou, e este inimigo implacável recomeça seus ataques como antes e nos expõe aos mesmos perigos e às mesmas faltas.

34. Observamos que o Senhor se agrada e encontra de melhor grado suas delícias num coração e num corpo puros e castos, como é ele próprio a pureza em essência, e que ele está infinitamente distante de toda sujeira produzida pelos corpos; e que os demônios, estes monstros horrorosos do inferno não se contentam, como muitos nos ensinam, senão com os maus odores que as paixões exalam, e com as excreções de um corpo esgotado e corrompido pelo vício vergonhoso.

35. A castidade nos une intimamente a Deus por uma santa familiaridade, e, na medida em nossa fraca natureza é capaz, ela nos torna semelhantes a ele.

36. Assim como o orvalho dá aos frutos da terra a doçura que têm, também a vida religiosa e a exata obediência produzem os doces e agradáveis perfumes da castidade; que, se a solidão é capaz de acalmar e extinguir os ardores da concupiscência, a frequentação dos mundanos e o espírito de dissipação depressa os trazem de volta à existência e à vida; e devemos, em honra da obediência, dizer-lhe que reprima sempre, em qualquer lugar que estejamos, os movimentos desordenados de nossos corpos, e impedi-los de reaparecer.

37. Algumas vezes observei que, por um feliz contragolpe, o orgulho produz a virtude da humildade. Quando vi esta coisa espantosa, lembrei-me das palavras: “Quem poderá penetrar nos desígnios e nos pensamentos do Senhor?[11]”. Pois podemos ver que a gula e o inchaço do coração, o fastio e o orgulho, engendram faltas vergonhosas, e que estas faltas, às quais nos atiramos voluntariamente, acabam se tornando ocasiões de humildade.

38. Não se parece a um insensato que joga óleo das chamas para apagar um incêndio, aquele que imagina que poderá triunfar sobre o demônio da impureza vivendo nas delícias e nos excessos da intemperança?

39. A quem podemos comparar aquele que pretende tolamente terminar com sucesso a guerra que sustenta contra a luxúria, apenas com as armas da temperança e da sobriedade? Diremos sem hesitar que este se parece a alguém que, tendo caído no mar, tenta salvar-se nadando com uma mão só. Assim, se quisermos triunfar, devemos reunir a abstinência e a humildade; pois nada poderemos fazer com a primeira destas duas virtudes, se a segunda não estiver com ela.

40. Quando estamos inclinados a um vício qualquer, é contra este vazio que devemos dirigir nossos esforços de modo especial; é este vício que devemos atacar e vencer antes dos demais; mas é sobretudo quando vemos que ele reina sobre nós e que o trazemos conosco, que devemos combatê-lo com força e constância; pois agir de outro modo equivale a não declarar a guerra aos nossos defeitos, mas nutri-los e conservá-los. Lembremo-nos de que não é exterminando o egípcio cruel que mereceremos ver a Deus com Moisés numa nova sarça ardente, vale dizer, na humildade.

41. Numa tentação eu próprio experimentei as astúcias do demônio: este lobo cruel e enganador me procurou, com um desígnio pérfido, uma alegria e felicidade irrazoáveis, consolações sem fundamento e lágrimas cheias de falsas delícias; e eu, simples, crédulo e sem experiência, acreditei que todas essas coisas tão sedutoras e agradáveis eram dons do céu, enquanto que tudo não passava de uma armadilha colocada pelo demônio para me derrubar.

42. Uma vez que todos os demais pecados que o homem comete se localizam fora do corpo, e que só o pecado da luxúria é contra o corpo, coisa que acontece porque os movimentos da concupiscência mancham e corrompem nossa carne, eu gostaria de saber por que razão, nas diferentes faltas cometidas pelos homens, dizemos normalmente que eles foram enganados, e quando sabemos que uma pessoa caiu num pecado vergonhoso, choramos com dor e tristeza. Ora, ela caiu.

43. Os peixes temem menos o anzol do que uma alma voluptuosa a quietude.

44. Quando um demônio deseja unir duas pessoas pelos laços de um amor profano e criminoso, ele começa por observar atentamente quais são suas diferentes inclinações para saber por qual delas começar o incêndio.

45. Não somos nós testemunhas diariamente e não temos testemunhado que todos aqueles que são tristes escravos do vício vergonhoso são também cheio de afeição pelos outros, sensíveis às suas infelicidades, tocados de compaixão por eles, juntando com facilidade suas lágrimas às deles, e usando de palavras doces e cativantes com eles. Mas os que desejam se tornar castos não se comportam com uma ternura tão estudada.

46. Um homem cheio de prudência e sabedoria, além de uma profunda erudição, me propôs um dia esta grave questão, importante e difícil: “Qual é, disse-me ele, o pecado que, em sua opinião, é o maior, depois do homicídio e da apostasia?”. Eu lhe respondi que pensava ser a heresia. “Mas, replicou ele, se a heresia é o maior pecado depois do homicídio e da apostasia, como é possível que a Igreja católica admita à participação do santos os heréticos, assim que eles abjuram e anatematizam sinceramente seus erros, e que, conforme a tradição apostólica, ela afasta da mesa eucarística, por anos inteiros, os que têm a infelicidade de cair na fornicação, ainda que confessem seus pecados, que se corrijam e que façam uma sincera penitência?”. Esta réplica inesperada me surpreendeu de tal maneira, que eu não pude responder; e a questão permaneceu indecisa.

47. Prestemos atenção aqui de modo especial para examinar, conhecer e pesar a diferença que existe entre os pensamentos e afeições que o demônio da luxúria nos inspira durante a recitação dos salmos, e aqueles que o Espírito Santo nos sugere por meio das palavras divinas que pronunciamos; veremos o quanto as do Espírito Santo nos dão uma força abundante e uma enorme coragem para combatermos nosso incansável inimigo.

48. Pobres jovens! É sobre vocês mesmos que seus olhos devem estar continuamente fixados! Eu já observei um grande número de pessoas jovens que, ao mesmo tempo em que dirigiam a Deus preces fervorosas e sinceras por outras pessoas a quem amavam e que lhes eram caras, se deixavam surpreender e dominar pelo espírito imundo; e no entanto elas acreditavam que em suas súplicas estavam apenas cumprindo com um dever de reconhecimento e de caridade.

49. As diferentes formas de contatos físicos são muito apropriadas a sujar nossos corpos; fujamos delas com horror e não esqueçamos jamais o quanto elas podem nos ser perigosas e funestas. Lembremo-nos sem cessar do exemplo de um homem jovem que possuía uma profunda sabedoria e uma grande castidade. Sua mãe estava doente, e era preciso que ele a carregasse em seus braços, para o que ele tomava precauções e vigiava a ponto de cobrir suas mãos, a fim de não tocá-la. Jamais deixem, eu lhes peço, de evitar toda espécie de contatos físicos, sejam eles desonestos e criminosos, sejam os honestos e indiferentes, tanto sobre si mesmos como em relação aos outros.

50. Ninguém, penso eu, pode com razão e verdade chamar de santo a alguém que não  tenha purificado de toda mancha o barro do qual é composto seu corpo, e que não o tenha santificado, e como que transformado, se é verdade que tal transformação é possível neste mundo.

51. É principalmente quando nos colocamos no leito para o repouso, que devemos nos conduzir com prudência e vigiar a nós mesmos; pois durante o sono, nossa alma, por assim dizer, fica sem o corpo: ela combate só contra o demônio. Ora, se nosso espírito, por causa de maus pensamentos surgidos enquanto dormimos, é levado a prazeres desonestos, (...[12]).

52. Não durmam nem se levantem sem a lembrança da morte, e sem que a oração os mantenha sempre unidos a Jesus. Estas duas práticas, fáceis e importantes, serão de um grande auxílio durante o sono para preservá-los de qualquer acidente vergonhoso.

53. Alguns pensam que estes combates inoportunos que somos obrigados a sustentar contra o demônio impuro, bem como estes acidentes humilhantes que nos acontecem durante o sono, são produzidos no mais das vezes e causados pela grande quantidade de alimentos que tomamos; mas posso assegurar com verdade que já encontrei muitos que estavam doentes e perigosamente enfermos, ou que haviam extenuado seus corpos por meio de jejuns rigorosos, e que no entanto experimentavam esses movimentos desregrados da carne. Ora, eis o que me disse um dia sobre este tipo de misérias humanas um monge dos mais sábios, mais refletidos e respeitados de sua comunidade: “Esses acidentes noturnos, disse-me ele com uma claridade e precisão que me encheram de espanto, acontecem algumas vezes devido à abundância do alimento e das doçuras do repouso; outras vezes, por causa do orgulho, justamente quando nos regozijamos e nos aplaudimos por tê-los impedido durante um longo tempo com nossos cuidados e precauções; finalmente, eles acontecem em casos em que nos damos a liberdade de julgar e condenar nossos irmãos. Ora, acrescentou ele, estas duas últimas causas – e talvez as três – são comuns tanto nas pessoas que estão doentes como nas sãs”. Assim, se alguém tem a felicidade de não sofrer de nenhuma destas três coisas, deve sentir uma grande consolação, porque percebe em seu corpo uma pureza que nada pode perturbar. A única coisa que pode lhe inspirar alguma inquietação é a suspeita temorosa de que este estado possa provir de alguma perfídia do demônio; mas então ele deve se reafirmar e se consolar, pensando que Deus permite esta pena e esta inquietação que nada tem de criminoso, a fim de que ele possa adquirir uma humildade mais profunda.

54. Devemos evitar cuidadosamente durante o dia, repassar na memória os sonhos e os fantasmas que perturbaram a imaginação durante a noite; pois é para nos levar a qualquer ação desonesta que os demônios excitam em nós esses acidentes noturnos.

55. Mas observemos aqui com especial atenção um artifício detestável do demônio para nos perder. Eis o modo como ele age para nos fazer cair. Assim como alguns alimentos insalubres não causam doenças senão um ano depois de serem ingeridos, enquanto outros as produzem quase imediatamente, também existem coisas que tendem a corromper nosso coração pelo desfrutem que nos dão, mas que só obtêm este efeito depois de um tempo considerável. É por esta razão que eu encontrei pessoas que se sentavam familiarmente à mesa com mulheres e conversavam com elas, sem que naquele momento experimentassem qualquer pensamento mau; mas o que lhes acontecia com o tempo? Estes infelizes confiavam em si mesmos, e esta confiança os punha a perder; pois justo na hora em que se acreditavam numa paz e segurança perfeitas em suas celas, encontraram uma morte deplorável. Quem passou pela triste experiência a que me refiro compreende muito bem o tipo de morte de que falo, se ela se refere ao corpo ou à alma. E que aquele que nunca experimentou nada semelhante, viva por muitos anos numa feliz ignorância!

56. Os meios mais eficazes que podemos empregar contra os perigos e os obstáculos aos quais nos expõem as tentações impuras, consistem em nos vestir de cilício, nos cobrir de cinzas, passar as noites em vigílias e trabalhos, sofrer a fome e a sede, fixar nossa morada no meio de túmulos e cadáveres, não comer mais do que pão, não beber senão água, e, acima de tudo, viver numa humildade perfeita, e enfim, se for possível, escolher um pai espiritual que nos dirija e nos conserte, não tanto pelo peso e a autoridade de seus anos, mas pela virtude de sua sabedoria e pela justeza de seu julgamento; pois eu considero uma coisa maravilhosa se, unicamente entregue a si próprio, você conseguir se preservar do naufrágio em meio a uma tempestade tão furiosa.

57. Acontece com frequência que o mesmo pecado mereça um julgamento mil vezes mais severo e uma punição muito mais rigorosa numa pessoa do que em outra. Com efeito, as circunstâncias podem aumentar ou diminuir sua enormidade; tais são, por exemplo, o costume em cometer, ou lugar onde nos tornamos culpados, o estado ou condição daquele que peca, além de numerosas outras circunstâncias que podem tornar o crime mais ou menos considerável.

58. Contaram-me uma vez um fato de rara pureza, e eu duvido que se possa praticar esta virtude com maior perfeição. Uma pessoa percebeu por acaso um corpo de uma beleza extraordinária. Ora, esta visão levou-a imediatamente a glorificar com louvores a soberana Beleza de Deus, da qual aquela que estava diante de seus olhos não passava de uma imagem bem imperfeita, mas que lhe inspirou um sentimento de amor a Deus tão vivo e tão ardente, que ele inundou com uma torrente de lágrimas o lugar onde estava. Eu lhes pergunto, não é uma coisa admirável, que aquilo que poderia ser para muitos uma ocasião de queda e de ruína espiritual, se tornou para este santo homem um meio sobrenatural para a obtenção de recompensas celestes? E, se ainda pudermos achar homens semelhantes a este, que, nas mesmas circunstâncias, experimentam os mesmos sentimentos, e que sejam assim tão puros e tão unidos a Deus pela caridade, não devemos dizer que estes, mesmo numa carne corruptível, já vivem do mesmo modo como viveremos depois da ressurreição geral?

59. Assim deveriam ser os nossos sentimentos, quando ouvimos cantar os santos cânticos e outras melodias: pois as pessoas que amam a Deus com ardor são movidas por uma alegria totalmente celeste, por uma afeição divina e uma ternura que chega às lágrimas, quando escutam uma bela harmonia, seja sacra, seja mesmo profana. Ao contrário, os que são escravos dos prazeres dos sentidos experimentam sentimentos e movimentos opostos a estes.

60. Dentre os que se retiraram para o deserto para levar a vida eremítica, existem alguns que estão muito mais expostos à fúria dos demônios, como já dissemos. Isto não deve nos espantar, porque se trata de lugares solitários onde estes habitam desde que nosso Senhor, para nossa salvação, lhes proibiu fixar morada em nossos corpos, expulsando-os dos lugares habitados e encerrando-os em prisões eternas.

61. É notório que o demônio da luxúria ataque sobretudo os solitários, a fim de que, consternados e abatidos por tentações humilhantes, eles pensem que não extraem nenhum benefício de sua solidão, tomando assim a funesta resolução de retornar para o tumulto e as agitações do século.  Também podemos observar que, uma vez no meio do mundo, o demônio nos deixa tranquilos; mas é apenas para que pensemos que estamos livres das tentações, de modo a que ele possa nos persuadir que já podemos viver sem perigo no meio do século e dos mundanos.

62. É onde somos tentados com mais frequência, é daí que o demônio não quer que fujamos, e é aí, por conseguinte, onde deveremos sustentar seus assaltos com mais força e coragem, zelo e perseverança; enfim, aquele a quem o demônio não ataca deste modo, parece ter se tornado seu amigo.

63. Se a obediência nos obriga a permanecer algum tempo no mundo para aí tratar de algum assunto importante e necessário, a mão e a graça de Deus nos protegerão; as orações e os votos de nosso superior são também capazes de obter para nós este favor, a fim de que o Nome do Senhor não seja blasfemado por nossa causa. Também podemos permanecer sem tentações no meio dos obstáculos do século, devido à nossa indiferença e insensibilidade quanto às coisas do mundo, que adquirimos com o desgosto que estas coisas mundanas nos causaram pelo uso desgastante que delas fizemos; mas também pode acontecer que todos os outros demônios tenham se retirado de perto de nós, tendo permanecido apenas os da vanglória e do orgulho, que tomam o lugar de todos os outros.

64. Todos vocês que decidiram guardar a castidade e ser fieis a esta virtude celeste, escutem-me, eu lhes peço, e observem comigo um novo tipo de malícia de parte do cruel e impiedoso sedutor de nossas almas: vigiem com grande cuidado para não se tornar suas tristes vítimas. Um servidor de Deus, que foi instruído a respeito por sua própria experiência, contou-me que muitas vezes o demônio da impureza se afasta de nós até o momento que ele considera o mais apropriado e conveniente para a tentação na qual ele quer nos derrubar; durante este intervalo ele excita no infeliz que pretende precipitar no pecado os mais belos e piedosos sentimentos de devoção, abrindo-lhe uma fonte abundante de lágrimas ao mesmo tempo em que ele se encontra entre pessoas do sexo (sic), e inspira ao imprudente que fale com zelo da morte e do julgamento, da temperança e da castidade, exortando-os a fazer frequentes meditações sobre as verdades importantes da salvação e a praticar com inviolável fidelidade as virtudes tão belas e necessárias que nos ensina a religião. Iludidos por estes discursos e por suas aparências de piedade, essas pobres pessoas correm atrás do monge, como se fosse ele um verdadeiro pastor; mas, pelos artifícios do demônio e sem que ele próprio se dê conta, ele logo se torna um lobo sanguinário e devorador. O que acontece então? Pela familiaridade que tomam pouco a pouco, e pela liberdade que adquirem de conversar com ele, elas acabam por despencar – e, com elas, o infeliz – no abismo profundo do pecado, consumando assim sua perda.

65. Evitemos assim, na medida do possível, não apenas ver e considerar este fruto da morte, mas até de ouvir falar nele, porque em nossa profissão religiosa fizemos a promessa solene de jamais provar dele. Não devemos então ser tomados de uma santa indignação, se encontrarmos entre nós alguém tão insensato a ponto de se crer tão forte como Davi? É possível uma coisa dessas?

66. A castidade é uma virtude tão bela, tão nobre, tão digna de nossas honras e de nossos louvores! Ela é isenta da menor mácula, ela é capaz de trazer à alma e ao corpo uma paz e uma tranquilidade perfeitas.

67. Alguns ensinaram que não podemos jamais chamar de casta a uma pessoa que caiu em qualquer falta vergonhosa. Eu não posso admitir semelhante opinião. É porque me parece que para reduzi-la ao seu justo valor, devo dizer que é fácil para Deus, se ele quiser, implantar uma oliveira selvagem numa oliveira de casta, e fazer com que esta dê frutos excelentes. De resto, se as chaves do reino dos céus tivessem sido confiadas a um homem que tivesse podido conservar seu corpo numa inviolável castidade, seu sentimento poderia até parecer mais provável; mas todo mundo sabe que são Pedro possuía uma sogra e uma esposa[13]. O príncipe dos apóstolos deveria calar a boca àqueles a lhes ensinar que a qualquer momento de nossas vidas podemos adquirir a castidade.

68. O demônio da impureza sugere mil pensamentos e toma mil formas para tentar e fazer cair os homens. Assim ele não cessa de excitar, de conduzir e de empurrar os que tiveram a felicidade de conservar sua inocência sem mácula, para que provem nem que seja um pouco dos prazeres sensuais a fim de examinar e verificar se lhes convêm. Ele lhes diz interiormente que eles não se atirarão a eles por muito tempo, e que renunciarão logo em seguida. Quanto aos que ele conquistou, ele não para de colocar diante de seus olhos a imagem atraente das volúpias de que já desfrutaram, a fim de levá-los a se abandonar a elas mais e mais. Ora, eis o que acontece normalmente nessas diferentes tentações: aqueles que, por qualquer funesta experiência, não conheceram ainda estes prazeres criminosos, não sucumbem facilmente e de um só golpe; outros, dentre os que tiveram a infelicidade de se deixar seduzir e saborearam vergonhosamente o prazer que o demônio lhes prometeu, se desgostam, colocam dificuldades e opõem uma vigorosa resistência; e enfim, assistimos o contrário em muitos outros: eles contraem o infame hábito dessas volúpias carnais e não podem mais passar sem elas.

69. Quando ao acordarmos encontramos nossa alma e nosso corpo na pureza e na calma, devemos pensar que os anjos conseguiram para nós este favor em virtude das preces que fizemos e da sobriedade que observamos durante nosso repouso. Mas se acontece o contrário, e os maus sonhos nos mergulham na tristeza e no desgosto, e os fantasmas nos perseguem e nos perturbam com sua vergonhosa importunação, lembremo-nos destas palavras:

70. “Eu vi o ímpio, o demônio da impureza, extremamente elevado; ele igualava em altura os cedros do Líbano, perturbando meu coração com seu furor e com a agitação que lhe comunicava; mas eu passei pelas austeridades da abstinência e do jejum e ele já não estava mais lá; sua raiva contra mim cessou”. E também: “Na humildade de meus pensamentos eu o procurei e não pude encontrá-lo, nem onde morava, nem mesmo os vestígios de sua violência[14]”.

71. Aquele que triunfa sobre sua própria carne triunfa sobre a própria natureza; quem triunfa sobre a natureza se coloca acima da natureza; e quem se coloca acima da natureza, tornou-se quase tão perfeito quanto os anjos.

72. Com efeito, não vejo nada de surpreendente se espíritos isentos de matéria, como os anjos bons e maus, combatem outros espíritos imateriais como eles; o que me surpreende e me espanta é ver homens modelados com uma carne de terra e barro, fraca e instável, infiel e corrompida – que dizer mais? – de uma carne inimiga, perseguir os demônios que são espíritos livres do peso e do embaraço do corpo, vencê-los e colocá-los em fuga.

73. O Senhor, por um traço todo particular de sua providência em favor do gênero humano, inspirou às mulheres o espírito da modéstia, da vergonha e do pudor. Se as mulheres tivessem a mesma liberdade e temeridade que os homens, poderíamos dizer que a castidade conduziria uma só alma que fosse, ao Paraíso?

74. Nossos padres mais instruídos nos caminhos da vida espiritual, e com cuja sabedoria podemos seguramente contar, nos ensinam que é preciso conhecer a diferença essencial entre o primeiro movimento da alma, a simpatia de nosso espírito por uma pensamento impuro e o consentimento que damos ao pecado, e a derrota e o cativeiro que sofremos, o combate que sustentamos e a paixão que atua. Eles dizem que o primeiro movimento da alma consiste numa espécie de discurso simples e nu, e a representação de um objeto são coisas que se passam na imaginação; que a simpatia que do espírito pelo objeto que ele figurou pelo pensamento é um certo entretenimento, uma conversa de nossa alma com o objeto que ela considera, seja porque ela age assim por uma má intenção, seja porque o faz sem maus desígnios; que o consentimento que damos ao pecado é um amor e uma afeição que levam a alma a querer e possuir o objeto que ela se representou; que o cativeiro é a violência feita ao nosso coração, que o arrasta contra a sua vontade e o acorrenta, ou então uma ligação forte e constante que o fixa e o liga ao objeto que o move e o faz perder a feliz estado de graça e de inocência; que o combate consiste numa equiparação de forças que empregamos para combater o inimigo, de modo que a alma que se vê exposta ao combate pode, segundo sua vontade, vencer ou ser vencida; enfim, que a paixão completamente formada é um vazio que depois de muito tempo se cristalizou em nossa alma, enraizando-se nela, e levando-a pouco a pouco a um mau hábito, que a alma segue com prazer e executa com ardor aquilo que esta lhe ordena. Dito isto, observem sem dúvida que o primeiro movimento de nossa alma, que, sem que o queira, recebe a impressão de um objeto, certamente não é criminoso, e que a representação desse objeto em nosso espírito não é totalmente inocente; mas que o consentimento que damos a esta representação já constitui um pecado mais ou menos grave, conforme a alma, para resistir a ele, faça esforços maiores ou menores e generosos; que o combate traz consigo castigos e recompensas; que o cativeiro nem sempre é o mesmo e depende das circunstâncias; porque se ele acontece durante a prece ele não é o mesmo que seria em outro momento, e se acontece em relação a coisas indiferentes não é o mesmo que aconteceria em relação a coisas ruins; enfim, quanto à paixão consolidada, é indubitável que se ela não for punida neste mundo por uma conversão sólida e sincera, e por uma penitência proporcional às faltas que ela nos fez cometer, ela o será no outro mundo por meio de suplícios eternos. De todas estas observações tiremos esta importante consequência: que quem não o recebe, nem permite que o primeiro movimento cause uma impressão em si, detém no seu princípio todas as tentações que estaria por experimentar, cortando assim as raízes do mal.

75. Aqueles dentre os Padre que obtiveram mais luz e discernimento observam ainda outra espécie de pensamento ainda mais sutil. Eles o nomeiam como uma insinuação adocicada e sub-reptícia. Este pensamento penetra na alma de uma maneira doce, tão insinuante e súbita, que a alma não tem, por assim dizer, nem o tempo nem os meios de se aperceber. Não conseguimos ver nada mais súbito nos movimentos mais ágeis do corpo, nada mais instantâneo e mais sutil na agitação dos espíritos; trata-se de uma ação quase imperceptível da qual a alma mal consegue reter uma lembrança, que existe sem duração no tempo, que não permite fazer nenhuma reflexão e que algumas vezes experimentamos sem sequer nos darmos conta. Se alguém for feliz o bastante para receber de Deus a penetração e a compreensão desta espécie de mistério, ele poderá nos dizer como ele acontece, como, por meio de um simples olhar, num piscar de olhos, num inocente toque de mãos, em umas poucas palavras cantadas, sem mesmo nos deixarmos deter pela imaginação ou pelo pensamento, a alma se vê arrebatada, e a paixão impura se assenhora dela e a corrompe instantaneamente.

76. Alguns dizem que são os pensamentos que nascem no coração os que levam o corpo a ações de impureza. Outros, ao contrário, sustentam que é por meio dos órgãos e dos sentidos do corpo que os pensamentos são excitados no espírito. Outros asseguram que o corpo não faz mais do que obedecer ao espírito, e que o segue; enfim, encontramos alguns que, para provar que o espírito é menos culpado do que o corpo, ou antes que o corpo é o único culpado, demonstram, tanto quanto podem, que muitas vezes os maus pensamento não escorregam para o espírito senão pela visão de um objeto agradável, de uma beleza que nos toca e ofusca, ou por um simples toque de mãos, pelo bom odor dos perfumes que aspiramos, e pela suavidade dos sons que escutamos. Quanto a mim, peço humildemente ao Senhor, que conhece onde as coisas realmente acontecem, que nos ensine; pois este conhecimento é muito útil e mesmo necessário aos que pretendem agir e só se determinar por princípio e com segurança; mas ele é inútil aos que só desejam servir a Deus na simplicidade de seus corações. A ciência e os talentos do espírito não estão ao alcance de todo mundo, bem o sei; mas também não ignoro que a bem-aventurada simplicidade, que é uma couraça forte e poderosa contra as ameaças dos inimigos da salvação, não reina em todos os corações.

77. Existem paixões que, depois que nascem no espírito, levam sua raiva e seu furor a todo o corpo; outras, ao contrário, ocasionadas pelo corpo, exercem sua devastação no espírito. Estas últimas ocorrem normalmente nas pessoas que vivem no mundo; e as primeiras nos que vivem nos mosteiros, porque estes não veem os objetos que tentam os que vivem no meio do século. Quanto a mim, a punica coisa que posso ainda afirmar, é que se você quiser encontrar a prudência e a sabedoria nas pessoas que são escravas da paixão, jamais alcançará seu objetivo.

78. Quando, tendo por um longo tempo e com muitos esforços guerreado contra o demônio da luxúria – que é, por assim dizer, o aliado de nossa carne de barro – e que por meio de jejuns rigorosos como golpes de pedra, pela humildade como uma espada, conseguimos expulsá-lo de nosso coração, então este miserável se agarra como um verme ao nosso corpo, e se esforça para manchar nossa alma, excitando em nós movimentos inoportunos e contrários à razão.

79. Aos que obedecem ao espírito do orgulho sobrevém acima de tudo a infelicidade, nas medida em que não cessam de aplaudir a si mesmos por se haver libertado dos maus pensamentos, e que acabam caindo nas armadilhas que lhes coloca a vaidade; para nos convencermos desta triste verdade, vejamos e examinemos atentamente, mas com simplicidade de coração, por quais razões estas pessoas se acham isentas de pensamentos desonestos. Não será exatamente por que o demônio, cheio de malícia e artifícios, se esconde nas dobras mais secretas de seu coração, para de lá sugerir que é por causas dos seus cuidados, sua prudência e seus trabalhos, que eles praticaram a castidade e adquirido esta bela e perfeita pureza que agora possuem? Infelizes! Esqueceram-se destas palavras: “O que vocês possuem, que não tenham recebido?[15]”. Que as pessoas em cujo coração o demônio se tenha escondido assim, se dediquem com força a combater e ferir esta serpente perigosa; que a expulsem para longe de seu coração por meio de uma profunda humildade, a fim de que, libertos de suas mordidas cruéis e envenenadas, e despojados das túnicas de pele com que se cobriam, possam cantar em louvor ao Senhor um cântico de triunfo e vitória, e, reunidos aos filhos que jamais se sujaram com as coisas contrárias à castidade, repetir o hino da pureza. Mas elas serão incapazes de fazê-lo, repetimos, se se contentarem em se desfazer das túnicas que mencionamos, mas sem se revestir das vestes da inocência e do hábito de uma profunda humildade.

80. O demônio de que tratamos aqui é muito mais ardiloso do que os demais: ele sabe observar e conhecer as circunstâncias em que poderá nos estender suas armadilhas com maior sucesso. É assim que, para nos tentar, ele escolhe de preferência os momentos nos quais nos é impossível servirmo-nos do corpo para nos dirigir a Deus com preces fervorosas.

81. Assim, aconselhemos aos que ainda não sabem orar mentalmente, a que mortifiquem seus corpos durante suas orações vocais, seja estendendo os braços, seja batendo no peito, se elevando afetuosamente e com frequência seus olhos para o céu, seja soltando suspiros e gemidos, seja ficando de joelhos: todas essas mortificações e esses meios piedosos lhes trarão grandes vantagens. Mas se acontecer de, pela presença de qualquer pessoa, não seja possível executar essas práticas de piedade, o demônio aproveitará esta ocasião para atacar, e não é raro que não estejamos firmes contra a tentação, de sorte que, por falta de coragem ou de fervor na prece, podemos vir a falhar e sucumbir. Quanto a vocês, se se encontrarem numa situação exposta a uma provação semelhante, retirem-se prontamente, saiam da multidão, escondam-se em qualquer lugar secreto, voltem aos céus os votos ardentes de seu coração; e, se vocês se sentirem frios, congelados, elevem os olhos do corpo para olhar o céu, estendam os braços em forma de cruz, a fim de que, por meio deste sinal salutar, possam confundir e derrubar por terra este novo Amalec; chamem com grandes gritos aquele que é o único que poderá lhes salvar; para tanto, não se sirvam de palavras elegantes e estudadas, mas de palavras que transpirem de humildade do coração e de confiança da alma; sobretudo, digam: “Tenha piedade de mim, Senhor, porque sou fraco e desfaleço[16]”. Logo vocês sentirão a presença do socorro do Altíssimo e, fortificados por este auxílio celeste, afastarão vitoriosamente seus inimigos. Ora, eu posso dizer que todos os que se acostumaram a combater o demônio desta maneira e com essas armas, obtiveram contra ele prontas e gloriosas vitórias. Apenas a prece do coração é capaz de nos fazer triunfar. É assim que Deus torna invencíveis os que combatem corajosamente por seu amor; é assim que ele recompensa seus esforços e coroa sua boa vontade.

82. Numa reunião em que me encontrava, vi um monge que se aplicava muito nos assuntos de sua salvação, e que trabalhava com grande ardor. Um dia observei que este fervoroso servidor de Deus era violentamente atacado por pensamentos impuros, e que, não se encontrando num lugar apropriado para a oração que costumava fazer durante essas tentações, ele pretextou suas necessidades naturais, com o objetivo de se retirar. Ele se colocou no lugar que era destinado a essas necessidades e, com uma oração das mais ferventes ele travou uma batalha com o demônio e o derrubou. Porém, eu lhe fiz algumas admoestações, quanto à sua conduta: “O local, disse-lhe eu, que você escolheu para orar, não é absolutamente correto para o santo exercício da prece”. “Mas, respondeu-me ele com humildade, você não vê, meu pai, que ao escolher este local para orar, num momento em que eu era tentado por pensamentos imundos, eu mereci ser purificado de minhas próprias manchas?”.

83. Os demônios procuram envolver nosso espírito em trevas espessas, e depois levar nosso coração a gostar daquilo que eles mesmos amam. Assim, a menos que um religioso feche os olhos de sua alma para a luz, o demônio será incapaz de arrebatar-lhe o tesouro de sua inocência. Mas é sobretudo desta maneira que o demônio nos ataca e nos tenta: às vezes ele espalha tantas trevas no espírito do pobre monge, e com esta escuridão opera tamanha confusão e uma desordem tão terrível em sua razão, que consegue que ele cometa, na própria presença de seus irmãos, ações e crimes dos quais só um insensato seria capaz. Mas o que acontece a seguir? Nossa alma retorna de sua funesta embriaguez, a paixão se acalma, voltamos a nós e não podemos senão enrubescer de nossa cegueira vergonhosa, e gemer por nossos deploráveis excessos, pelas palavras que dissemos, pelos gestos que fizemos, pelas ações cometidas, e pelo estado humilhante a que fomos reduzidos em presença de tantas testemunhas. Mas muitas vezes de um mal procede um bem: pois acontece que esta vergonha de pecadores, considerando a conduta infame que mostraram, os pode converter e levá-los a se corrigir de sua paixão.

84. Afaste o inimigo que, depois de nos ter feito cair em pecado, nos desvia da oração, dos outros exercícios da piedade e da vigilância sobre nós mesmos. Lembremo-nos da máxima que diz: “É porque eu vi que minha alma estava oprimida pelo conhecimento dos pecados que cometi, como por uma cruel tirania, que resolvi fortemente me vingar dos inimigos que me encheram de males”.

85. Sabem vocês quem pode assegurar ter vencido sua carne e triunfado sobre seu próprio corpo? É aquele que partiu e dilacerou seu coração. E quem é que partiu seu coração? Vocês o encontrarão em alguém que realizou uma renúncia completa de si mesmo; pois como alguém que deu morte à própria vontade poderá proteger seu coração?

86. Existe um tipo de homem dominado pela paixão que, a todos os crimes com que se cobriu, acrescenta o de contar com brutal complacência as execráveis impudicícias e as vergonhosas intemperanças a que se entregou.

87. O demônio costuma excitar pensamentos impuros em nosso espírito para corromper nosso coração. Podemos combatê-lo vantajosamente expulsando-o com a temperança, o desdém e por uma dedicação a outra coisa.

88. Aqui se apresenta uma grande dificuldade. Fizemos a guerra ao nosso corpo? Mas este corpo, que me é tão caro, que eu amor ternamente, como poderei acorrentá-lo, julgá-lo e condená-lo, tal como julgarei e condenarei os vícios mais vergonhosos? Pois ele escapa no mesmo instante em que estou prestes a lhe colocar as cadeias; mal acabei de me resolver a julgá-lo e já me reconcilio com ele, e se chego a condená-lo me apresso logo a perdoá-lo. Como odiar a quem a natureza me ordena amar? Como será possível separar-me daquilo a que devo estar eternamente unido? Poderei eu fazer morrer a quem deverá ressuscitar um dia para viver comigo pelos séculos infinitos? Por quais meios conseguirei tornar incorruptível aquilo que é corruptível por sua própria natureza? Quais boas razões posso dar àquele que, para me convencer, me apresenta razões que estão fundadas na própria essência das coisas? Se eu tento amarrar meu corpo por meio de jejuns, me entrego a ele, condenando-o se não os observar; se, preservando-me de julgamentos temerários, liberto-me de sua escravidão, a vanglória me faz recair em sua servidão. Meu corpo é ao mesmo tempo meu amigo e meu inimigo, meu adversário e meu auxiliar, meu perseguidos e meu defensor. Se cuido dele, estou mimando-o? Ele se torna insolente e se volta contra mim: devo mortificá-lo? Ele me faz cair em desfalecimento: restabeleço-o? Ele não me dá repouso e não quer receber nenhuma reprimenda? Devo afligi-lo, a ele que me expõe à última das infelicidades? Arruíno-o com austeridades, e já não tenho os meios com que adquirir e praticar as virtudes: meu corpo é um ser que eu odeio e amos. Mas então, o que é esta maravilha extraordinária que encontro em mim? Qual pode ser a razão desta mistura singular de meu corpo com minha alma, dessas afeições corporais com essas afeições espirituais? Explique-me como é possível que eu me ame e me deteste ao mesmo tempo. Mas é a você que me dirijo, meu pobre corpo, minha pobre carne, minha companhia inseparável, você que é parte essencial de mim mesmo! Diga-me, eu lhe peço: ensine-me, eu lhe conjuro, este grande mistério que me espanta e me confunde; pois só você pode me dar o conhecimento que eu desejo. Conte-me, por favor, por que meios poderei eu viver sem ser ferido, permanecendo com você; digne-se a me ensinar como eu poderei evitar os numerosos perigos a que me vejo exposto a cada dia, por causa da união necessária e inseparável que tenho com você; pois você não pode me ignorar, e eu prometi a Cristo lhe fazer guerra. Ensine-me então de que maneira poderei triunfar sobre sua tirânica dominação: pois ele me ordenou usar de todas as minhas forças para vencê-lo e subjugá-lo. E eis que a concupiscência, que o corpo representa, nos dá as seguintes respostas: “Eu não lhe direi coisas desconhecidas; mas lhe contarei, minha alma, aquilo que nós dois sabemos. Eu me glorifico de possuir por mãe a afeição interior que tenho por mim. Eu sou bem prático em aproveitar e desfrutar da delicadeza com que sou tratado, e da negligência com que cumprimos nossos deveres e praticamos a virtude, a fim de produzir exteriormente as chamas de um grande abrasamento. Para provocar interiormente os ardores e os fogos criminosos eu me sirvo do relaxamento da piedade e da lembrança abrasadora das coisas passadas. Depois de meditar bem sobre os pecados e os crimes nos quais quero fazê-lo cair, consigo facilmente meu objetivo; e depois de fazê-lo cair no abismo, eu o precipito em outro, que é a morte eterna causada pelo abatimento e pelo desespero. O conhecimento de minha fraqueza e da sua me prende as mãos, e a temperança amarra meus pés, de modo que não posso nem agir nem caminhar. A obediência perfeita o liberta absolutamente de minha tirania, e uma profunda humildade me mata. Qualquer um que receba o dom da castidade como prêmio por suas obras, este que é o décimo quinto degrau da perfeição, ainda que numa carne corruptível, está morto e ressuscitado ao mesmo tempo, e começa ainda neste mundo a usufruir de uma bem-aventurada incorruptibilidade.



DÉCIMO SEXTO DEGRAU

Da Avareza e da Pobreza


1. A maior parte dos autores recomendados por sua ciência, depois de haver falado, como fizemos, da carne como um furioso tirano, nos expõe a avareza, que é um demônio monstruoso cheio de cabeças. Assim, para não perturbar a ordem que estes homens cheios de sabedoria estabeleceram, seguiremos a regra traçada. Diremos, assim, mas em poucas palavras, o que concerne a esta cruel paixão, e trataremos dos remédios capazes de nos curar e de nos preservar dela.

2. A avareza é uma verdadeira idolatria; é a filha da incredulidade. Para contentar sua avidez, ela se serve do pretexto especial das enfermidades e das necessidades do corpo; é por isso que ela não cessa de ameaçar com uma velhice de mil necessidades diferentes, que ela anuncia e faz temer as secas e que ela prediz as fomes.

3. Um avaro envergonha e viola os preceitos do Evangelho. Quem é possuído pelo amor a Deus não é devorado pelo desejo passional das riquezas, ao contrário, serve-se delas para distribuir esmolas a granel. Quem ousa dizer que ama a Deus e os bens da terra engana a si próprio e quer enganar os outros: pois ele não ama a Deus. No mesmo erro cai aquele que pretende possuir a Deus e o dinheiro: não possuirá nem um nem outro.

4. Quem chora seus pecados, também renuncia a seu próprio corpo e não o agrada, a partir do momento em que considera necessário fazê-lo.

5. Não diga que você só ama e busca as riquezas para depois socorrer os indigentes. Lembre-se de que uma pobre viúva conquistou o Reino dos céus com duas pequenas moedinhas.

6. Dois homens se encontram um dia: um é avaro, outro generoso. Logo o avaro se põe a repreender ao outro, que reparte com largueza aos pobres que o cercam; ele o acusa de não possuir nem sabedoria, nem discrição.

7. Mas aquele que triunfou generosamente sobre a cupidez, não poderá ele responder que qualquer um que tenha vencido esta paixão, por isso mesmo cortou pela raiz todas as inquietações da vida, e que aquele que é escravo da cupidez jamais pode se apresentar a Deus com as mãos puras e inocentes, nem lhe oferecer o perfume odorífico da oração?

8. A avareza começa com a desculpa da esmola; mas assim que você acumula e constrói um tesouro de ouro e prata, a cupidez o faz detestar os pobres. Vejam como são grandes a sensibilidade e a compaixão pelos indigentes no coração do avaro enquanto ele trabalha para se tornar rico; e vejam como ele se torna duro e insensível em relação a eles, depois que se vê na abundância.

9. Conheci pobres de bens de fortuna, mas que eram ricos em bens da graça, esquecer completamente sua pobreza temporal vivendo em meio a gente igualmente pobre, apenas pela afeição e a vontade.

10. O monge que tem a infelicidade de amar o dinheiro jamais é preguiçoso; pois sua paixão lhe recorda sem cessar estas palavras, das quais ele abusa: “Quem não quer trabalhar, também não coma[17]”; e estas: “Minhas mãos bastam para que eu obtenha para mim e para os que vivem comigo as coisas que nos são necessárias[18]”.

11. A pobreza religiosa é uma desobrigação formal de todos os cuidados da vida e uma libertação de todas as inquietudes temporais; é uma viagem desembaraçada de toda carga, uma observação escrupulosa dos preceitos do Senhor; uma feliz libertação de toda espécie de incômodos e penas.

12. O monge pobre é mestre de todo o universo, porque ele coloca todos os seus cuidados e todas as suas inquietudes no seio da Providência, e, pela confiança firme e inteira que ele tem no Senhor, torna todos os homens sujeitos a si, seus servidores. Não será aos homens que ele irá se dirigirem suas necessidades e nos suas carências, e o socorro que receber ele saberá que provém da mão do Senhor.

13. trata-se de um feliz filho da paz e da tranquilidade do coração; pois ele é livre de toda afeição desregrada. Em seu retiro ele não dá maior atenção às coisas presentes do que às ausentes, às que existem e às que não existem, e tudo neste mundo lhe parece pantanoso e imundo. Quem se entristece e se aflige nas dificuldades não é pobre desta pobreza, que é a única verdadeira.

14. O verdadeiro pobre oferece a Deus preces puras e sinceras, e o avaro mancha as suas com o pensamento e o desejo de bens temporais, que ele enxerga como ídolos.

15. Os que têm a felicidade de viver num mosteiro devem ser isentos de toda e qualquer cupidez; pois como ousariam eles possuir qualquer coisa sua, uma vez que, em função de sua profissão de obediência, sequer seus corpos estão à sua própria disposição? O único prejuízo que poderia lhes causar esta pobreza tão perfeita, seria de tornar muito fácil mudar de lugar e de moradia sem nenhuma dificuldade; pois já vi acontecer das coisas que alguém possuía num lugar fizessem com que a pessoa se fixasse e se ligasse àquele lugar.

16. Aqueles que se tornam peregrinos por amor a Deus estão mais avançados nos caminhos da perfeição do que os que se fixam num lugar, por afeição a coisas que possuem.

17. Quando temos a felicidade de saborear as doçuras e as delícias que nos trazem os bens celestes, nos desgostamos rápida e facilmente das falsas doçuras dos bens terrestres; e, por um princípio contrário, entregamos prontamente as afeições do coração às riquezas temporais e as possuímos com prazer, quando jamais saboreamos das santas volúpias das riquezas celestes.

18. Quem é pobre contra sua vontade é duplamente infeliz: pois não desfruta dos bens da vida presente e, pelo mau uso que faz de sua pobreza, se priva dos bens da vida futura.

19. Tenhamos cuidado, todos os que fazemos profissão de vida religiosa, para que nos tornemos inferiores aos passarinhos, estes animais que não pensam no amanhã e nada ajuntam para os tempos que poderão vir[19].

20. Grande é aos olhos do Senhor aquele que, por seu amor, renuncia generosamente a tudo o que possui, e também o que, nestas santas disposições, se despoja inclusive de sua própria vontade! Um, como prêmio por sua generosidade, receberá o cêntuplo, seja neste mundo, com bens temporais, seja no outro, pelos dons e as graças celestes; e o outro possuirá a vida eterna.

21. As ondas e as tempestades não cessam de agitar e atormentar o mar, e a tristeza e a cólera perturbam e oprimem o avaro sem interrupção.

22. Quem só sente desprezo e indiferença pelos bens da terra, não estará expostos aos processos, nem às angústias que estes trazem consigo; enquanto que quem é escravo da cupidez, penará toda a vida por uma mísera agulha.

23. Uma fé inquebrantável preserva de toda espécie de inquietações; o pensamento da morte conduz à renúncia do próprio corpo.

24. Jó, em sua extrema pobreza, jamais demonstrou por sinal ou marca alguma ter sido possuído por qualquer afeição de cupidez; ainda que reduzido à última indigência, ele conservou sua alma numa paz e tranquilidade perfeitas.

25. É com razão que se diz que a avareza é a raiz de todos os males. Pois é esta maldita paixão que engendra as aversões, os furtos, as invejas, as cisões, as inimizades, as raivas, as disputas, os ressentimentos, os atos de crueldade e barbárie, e até os assassinatos.

26. Assim como uma pequena fagulha é capaz de produzir um imenso incêndio numa floresta, também uma virtude, pequena na aparência, é capaz de fazer desaparecer todos os crimes de que falamos; esta pequena virtude é a pobreza, que suprime e extingue todos os maus pendores da cupidez. Aquilo que produz em nós esta interessante virtude é, em primeiro lugar, o hábito de pensar em Deus, depois o prazer que sentimos em caminhar em sua presença e enfim a lembrança da temível conta que teremos que lhe prestar.

27. Todos os que leram com atenção o que dissemos no décimo quarto degrau, o da gula, mãe de todos os males imagináveis, terão sem dúvida observado que esta infame paixão, ao fornecer a genealogia e o número de seus filhos, colocou em segundo lugar a insensibilidade, que torna o coração duro como um rochedo. Se ainda não falamos deste vício foi porque a avareza, que é um dragão e um culto idólatra do dinheiro, nos forçou a nos ocuparmos dela. Eu não sei por que nossos pais colocaram a avareza em terceiro lugar dentre os pecados capitais. Então falarei agora da insensibilidade, que ocupa o terceiro lugar na lista dos pecados, mas que está em segundo na genealogia que a intemperança nos forneceu de seus filhos. Depois disso, uma vez que já falamos da avareza, passaremos ao sono, às vigílias e aos temores pueris: estas enfermidades espirituais atacam sobretudo os noviços. Terminaremos este degrau dizendo que aquele que obtém esta décima sexta vitória possuirá o amor, se libertará dos cuidados da vida presente, terá merecido uma grande recompensa no céu e caminhará sem nenhum embaraço temporal para a pátria celeste.



DÉCIMO SÉTIMO DEGRAU

Da Insensibilidade da alma, ou do endurecimento do coração,                  que consiste na morte da alma antes da do corpo


1. A insensibilidade, seja do corpo ou do coração, consiste num amortecimento letárgico que, por uma longa duração de enfermidade grave e pela negligência com que a tratamos, termina normalmente numa paralisia universal.

2. A alma cai na funesta insensibilidade da seguinte maneira. Ela começa com uma negligência culpada dos deveres, que termina por produzir um hábito inveterado de fugir deles. Trata-se de uma paralisação mortal do coração, produzida por uma tola presunção; uma corrente grossa e pesada que nos impede de correr com alegria pelos caminhos de Deus; uma bebida funesta que nos faz perder a compunção; a porta para o temível desespero, a mãe do esquecimento de Deus, o qual, depois de ser gerado por ela, traz por si mesma a existência e a capacidade de apagar em nós todo sentimento de temor a Deus.

3. A insensibilidade se parece com um filósofo insensato que, dando lições aos outros, pronuncia sua própria condenação; com um advogado que disserta contra sua própria causa; como um médico cego que, enquanto faz longas e sábias dissertações sobre os modos de curar um doente, não cessa de aumentar e envenenar suas chagas e fazer crescer sua doença. Com efeito, vemo-lo falar com zelo e ciência da doença de sua alma, mas jamais ovemos abster-se das coisas que a mantêm; ele pede a Deus que o livre delas, mas, por seus maus hábitos, nos quais não cessa de tombar, afunda e mergulha cada vez mais no abismo; indigna-se contra si mesmo, mas, infeliz!, não enrubesce diante das amargas admoestações que recebe; sabe que faz mala si mesmo, ele próprio o diz, mas jamais aciona os meios de se corrigir; fala da morte, e vive como se jamais fosse morrer; solta longo gemidos sobre os passos terríveis e inevitáveis após a morte, mas permanece tranquilo, como se nada tivesse a temer, como se fosse imortal aqui em baixo; fala dos benefícios preciosos e dos frutos salutares da mortificação, mas não hesita em se atirar sem escrúpulos aos excessos e às delícias da boa mesa; lê com frequência coisas relativas ao Juízo final, mas é insensato o bastante para não lhes dar importância alguma, e chega mesmo a brincar com elas; lê de passagem o que foi escrito sobre a vanglória, e esta mesma leitura aumenta o próprio vício em seu coração miserável; louva a vigília, mas mergulha nas doçuras do sono; destaca com eloquência a virtude e a excelência da oração, mas tem horror a ela e só se dedica a este santo exercício à força e com grande repugnância; assim, ele mesmo cria seu suplício e seu tormento. O insensível louva e exalta a obediência, mas é o primeiro a desobedecer; prodiga os elogios mais pomposos aos que não têm nenhum apego aos bens frágeis e perecíveis deste mundo, mas não se envergonha de discutir e disputar por um vil e mísero linho; encoleriza-se por disputar, irrita-se e se indigna por ficar de mau humor; e ainda que caia e caia outra vez sem cessar, insensato!, não se apercebe de suas quedas. Ele se arrepende de se entregar aos excessos da intemperança, e um instante depois acrescenta um novo excesso aos primeiros; beatifica o silêncio, mas, para não ter que conservá-lo, entrega-se a longos discursos em seu louvor; faz excelentes exortações aos demais para levá-los a praticar a mansidão, mas ele mesmo se indigna e se irrita com sua própria indignação e impaciência; quando cai em si, vemo-lo gemer por seu estado deplorável, mas, ao primeiro movimento que faz para sair dele, recai numa letargia ainda mais profunda. Ele censura e condena severamente o riso e a alegria, e ao mesmo tempo em que fala de penitência se põe a rir de tal modo que desperta piedade e anuncia o desequilíbrio; acusa a si mesmo diante dos demais por ser culpado de vanglória e, nesta mesma acusação, procura contentar seu orgulho e sua vaidade; não cessa de recomendar aos irmãos para guardar modéstia no olhar e praticar a castidade com escrupulosa atenção, mas o miserável coloca sem cessar, e com intenções perversas, os olhos sobre os objetos agradáveis e perigosos! Encontramo-lo no meio das pessoas do século? Ele faz os maiores elogios da vida religiosa e solitária, mas, na sua estúpida insensibilidade, não compreende que seus louvores condenam sua conduta; ele cumula de honras e elogios os que cuidam dos pobres e que distribuem esmolas entre os indigentes e os miseráveis, mas ele mesmo cobre os indigentes e os pobres de injúrias, afrontas e ultrajes. E é assim que este pobre infeliz se acusa e se condena em tudo e por tudo, sem pensar em se corrigir, em enrubescer por seu triste e funesto estado, em se arrepender por sua conduta e se converter. Ora, direi eu: será isto possível a ele?

4. Já vi infelizes como estes que, ouvindo falar da morte e do julgamento terrível que se seguirá, banhavam-se em lágrimas, e que no entanto, neste mesmo estado, se apressavam a se sentar à mesa; surpreso e espantado, eu não conseguia compreender de que modo a intemperança, mesmo fortalecida por um longo hábito de vida na preguiça e na insensibilidade, fosse tão forte e potente para resistir assim a uma dor tão viva e à virtude de lágrimas tão salutares.

5. Entretanto, malgrado a fraqueza de meu espírito e de meu julgamento, eis em poucas palavras o que eu penso haver descoberto sobre as astúcias infernais e sobre as chagas profundas que caracterizam esta paixão dura, furiosa, tirânica, perigosa e impertinente; pois eu não posso aqui me estender em dissertações longas e raciocínios complexos, e conjuro aos que, com o socorro do céu e sua própria experiência , tenham encontrado o remédio para a cura desta enfermidade mortal, que não deixem de no-lo ensinar e aplicar. Quanto a mim, tudo o que posso fazer é confessar francamente e sem rodeios que, diante de minha impotência e do estado de servidão a que fui reduzido por esta cruel dominadora, acho-me na impossibilidade de conhecer todos seus artifícios e armadilhas; o que eu pude foi agarrá-la à força e usar de violência, amarrá-la com as cordas do temor a Deus e os laços da perseverança na oração, forçando-a, contra sua vontade, a fazer a confissão a seguir. E esta enganadora e tirânica senhora me falou assim: “Quando os que se aliam a mim veem cadáveres diante de seus olhos, eles não deixam de rir; durante a prece são duros como rochedos, e seu espírito permanece envolto em trevas espessas que os impedem de enxergar. Quando eles se apresentam diante da mas eucarística, o fazem sem nenhum sentimento de piedade, e recebem e comem o pão divino como se fosse um pão comum e ordinário. Se eu vejo pessoas tomadas de compunção, rio delas. Aprendi com meu pai a fazer perecer todas as boas obras produzidas pela coragem e os esforços de um coração generoso e bom. Eu sou a mãe da inconsequência e das risadas, a nutriz do sono, a amiga das associações e das companhias, a companheira fiel da falsa piedade; e, por esta última qualidade, eu desdenho da reprovação que me é feita”.

6. Estas respostas me encheram de espanto e surpresa, e me inspiraram o desejo violento de perguntar ainda a esta furiosa paixão o nome de seu infame pai. Ela me respondeu: “Eu não nasci de uma única raiz; minha origem é uma mistura incerta, e o estado de minha geração é variado; o excesso no comer me dá forças, o tempo me faz crescer e aumentar; os maus hábitos me afirmam de tal maneira que aquele que se deixar levar por mim jamais escapará da escravidão. Se você perseverar nas vigílias e no pensamento dos julgamentos de Deus, eu lhe darei algum descanso. Descubram a causa que me gerou em cada um; pois ela não é a mesma para todos, e ataquem-na rudemente. Rezem sobre os túmulos, e levem consigo sempre a imagem da morte e dos que já não existem; mas não se esqueçam de que se vocês não se servirem do jejum como pincel para pintar estas coisas no seu espírito, jamais conseguirão triunfar sobre mim”.



DÉCIMO OITAVO DEGRAU

Do sono, da prece e do canto público dos salmos


1. O sono consiste num certo estado, uma certa paixão da natureza que é produzida pela paralisação dos sentidos; é a imagem da morte. O sono em si é algo único; mas, assim como a cupidez, as causas que o produzem são numerosas; pois tanto ele pode advir da própria natureza, como do trabalho realizado pelo estômago que digere com dificuldade os alimentos recebidos, ou ainda de parte dos demônios; algumas vezes tem seu princípio e sua causa no excesso de severidade das austeridades; neste último caso, é a própria natureza que, sentindo-se enfraquecida, tenta se aliviar e recuperar suas forças.

2. Bebendo muito e frequentemente, adquirimos facilmente o hábito de beber; o mesmo se pode dizer do costume de dormir. É por isso que os jovens iniciantes devem se precaver contra esta paixão e esta necessidade corporais; pois, na medida em que o pudermos ignorar, um hábito inveterado se corrige facilmente.

3. Se quisermos prestar bem atenção, observaremos que, enquanto nossos irmãos se reúnem ao toque da trombeta, nossos inimigos correm invisivelmente para nossos leitos, a fim de que, ao acordarmos, nos obriguem a permanecer nas doçuras do repouso: “Fiquem, nos dizem eles interiormente, esperem terminar os hinos que precedem a salmodia; é cedo ainda para ir à igreja”. Outras vezes eles nos fazem sentar durante a prece e nos conduzem ao sono. Ora eles nos incitam a violenta necessidade de sair; ora nos pedem para sustentar discursos vãos e inúteis. Alguns dentre eles têm como ocupação fatigar nosso espírito com maus pensamentos; outros, de fazer com que nos apoiemos sobre qualquer objeto, como um muro, por exemplo, persuadindo-nos de que estamos demasiado fracos e fatigados; outros nos carregam com bocejos inoportunos; outros nos levam a rir, a fim de que, em nossas próprias orações, atraiamos a ira do Senhor. Encontramos alguns que  nos tentam a correr com a leitura dos versículos para que, terminando logo, tenhamos algum tempo para preguiçar; encontramos outros que, ao contrário, fazem com que vamos lentamente, para desfrutarmos de um certo prazer natural. Enfim, existem os que se colocam sobre nossa língua e nossos lábios para nos fechar a boca, ou para nos impedir de pronunciar com facilidade as palavras que compõem os salmos.

4. Quem, durante a oração, pensar seriamente que está na presença de Deus, será como uma coluna inamovível, e não se deixará surpreender por estas múltiplas tentações. De resto, o lutador sincero e obediente, quando se trata de orar, se vê iluminado por uma luz divina e se enche de alegria celestial; pois este bom monge, semelhante a um soldado valente, se preparou para a prece longamente, por meio de um fiel cumprimento de seus deveres e por uma obediência estrita.

5. Se todos podem se dedicar à prece pública, devemos não obstante confessar que existem alguns para quem é mais útil orar com alguém que não esteja unido a ele pelo mesmo espírito e as mesmas inclinações. A prece solitária só convém a poucos.

6.  Ao salmodiar na companhia de muitos, não lhes será muito fácil entregar-se à meditação sem numerosas distrações; então, para amarrar e aplicar seu espírito pesem e meditem as sagradas palavras que recitam, a fim de que esta meditação seja para vocês como que uma prece, enquanto a parte do coro à qual vocês não pertencem pronuncia seus versículos.

7. Não é conveniente para ninguém se dedicar a outras coisas durante a oração, mesmo que seja algo necessário. Santo Antônio nos assegura que foi um anjo que lhe recomendou evitar esta falta.

8. O fogo testa o ouro; mas a prece o faz em relação ao amor e à ligação que os monges têm por Deus. Aquele a quem agrada o santo exercício da prece se une a Deus com grande felicidade e coloca em fuga os demônios.


DÉCIMO NONO DEGRAU

Das vigílias do corpo, do modo como elas produzem as vigílias do espírito, e da maneira como devem ser praticadas


1. Dentre as pessoas que acompanham os reis da terra, existem aquelas que não possuem armas, outras que trazem feixes, outras escudos, outras espadas. Nada disso é por acaso, mas calculado: pois aqueles que não estão decorados senão com as marcas de sua dignidade são comumente os parentes, os aliados ou no mínimo os amigos íntimos e confidentes do príncipe; quanto aos demais, são seus oficiais ou seus empregados domésticos: tal é a ordem que encontramos na corte dos soberanos.

2. Vejamos no presente qual é o lugar que ocupamos na casa de Deus, que é nosso rei supremo, quando nos apresentamos a ele para nos dedicarmos aos exercícios da oração do dia, do entardecer e da noite: pois existem alguns que, nas preces do entardecer e da noite se apresentam diante de Deus livres de toda inquietação em relação aos objetos visíveis, e revestidos apenas com os ornamentos espirituais; outros se mostram assim com o canto dos salmos e dos cânticos; alguns passam o santo tempo da prece na leitura das divinas Escrituras; outros, mais fracos e menos avançados, trabalham com as mãos; enfim, existem os que, pela meditação contínua da morte, incitam e entretêm em seus corações sentimentos da mais viva e ardente compunção. Ora, é evidente que de todas essas pessoas religiosas que passam assim as vigílias, são as primeiras e as últimas que se comportam da maneira mais agradável a Deus; as que colocamos em segundo lugar seguem os exercícios ordinários da vida religiosa; as terceiras e as demais estão no último grau. Não obstante, Deus recebe e aprecia todas essas maneiras de lhe oferecer homenagens, segundo o grau de boa vontade, de fervor e de coragem das pessoas que lhe apresentam.

3.  As vigílias do corpo purificam a alma de suas manchas bestializa e cega o espírito.

4. As vigílias combatem forte e vigorosamente os ardores da carne, expulsam os maus pensamentos, produzem lágrimas em abundância, enternecem o coração, extinguem as chamas da paixão, dão delicadeza à consciência, conservam os pensamentos sob controle, consumem os alimentos que poderiam ser nocivos, submetem a carne ao espírito, triunfam sobre os esforços e desarmam as armadilhas do demônio, detêm a liberdade indiscreta da língua e dissipam inteiramente as imagens e os fantasmas capazes de perturbar e consternar a alma.

5. Um monge que pratica as vigílias se parece a um pescador: pois no silêncio da noite ele observa sem distração e compreende o alcance e o valor dos pensamentos.

6. Este ama sinceramente a Deus e, quando escuta soar o ofício, cheio de alegria e contentamento grita: “Muito bem! Muito bem!”, enquanto que o monge preguiçoso diz suspirando: “Bem, lá vamos nós outra vez...”.

7. Não é difícil reconhecer o guloso à mesa carregada de finos pratos; e é fácil reconhecer aqueles que amam a Deus, por seu zelo e seu amor pela prece. As pessoas escravas da intemperança tremem de alegria à vista de uma mesa coberta de pratos bem preparados; e ao contrário, ficam tristes e aborrecidas quando chega o momento de se dedicar à oração, aquelas que não amam este santo exercício.

8. O excesso de sono faz esquecer as verdades salutares e inspira o desgosto pelas coisas espirituais; as vigílias purificam nosso espírito e nosso coração.

9. Os trabalhadores ajuntam suas colheitas nos celeiros, os vinhateiros nos lagares; os religiosos ajuntam suas riquezas espirituais nos exercícios da oração, que acontecem principalmente ao entardecer e à noite.

10. Um sono muito considerável é um mau companheiro que adotamos: ele faz com que o preguiçoso perca metade, senão mais, do tempo que tem para viver.

11. O mau monge está acordadíssimo quando se trata de se entregar a conversas e de entreter-se juntos aos seus irmãos, mas quando se aproxima a hora da oração o sono logo se apossa dele.

12. O religioso relapso está sempre pronto e ativo para as palavras vãs, mas fica lento e relapso ao ler os livros sagrados.

13. Assim como os mortos se levantarão prontamente da poeira de suas tumbas ao som das trombetas, também os religiosos dorminhocos se levantam celeremente de seus túmulos de preguiça quando se anuncia a hora das recreações.

14. O sono, sob as aparências enganadoras da amizade, exerce sobre nós uma tirania bem funesta – às vezes ele se retira quando estamos saciados, outras vezes, quando jejuamos e somos pressionados pelas dores da fome e os ardores da sede, ele nos persegue exageradamente.

15. Ele nos leva a nos ocuparmos de algum trabalho manual, a fim de que, por este meio, se outros não funcionarem, ele possa nos perturbar e nos fazer abandonar a prece. Para desencorajar os que entram para a vida religiosa, e impedi-los de nela progredirem com felicidade, ele não cessa de persegui-los e de atormentá-los.

16. É também assim que ele age, em relação àqueles para os quais deseja abrir a porta do coração à paixão da luxúria.

17. Assim, até que estejamos inteiramente livres das fadigas e da importunação do sono, não devemos ser encarregados de cantar o ofício com nossos irmãos; pois sua companhia e o temor de nos cobrirmos de vergonha e confusão nos impedirão de dormir: com efeito, assim como o cão é inimigo da lebre, o demônio da vanglória o é daquele do sono.

18. Assim como o comerciante conta os ganhos do dia ao entardecer, também o religioso deve, depois da salmodia, verificar os benefícios espirituais que retirou daí.

19. Vigiem a si mesmos atentamente depois da oração, e verão com espanto que numerosos demônios, irritados por não terem podido nos vencer enquanto orávamos, começam a seguir a fazer todos os esforços para nos fazer cair em maus pensamentos. Sentem-se, mantenham-se atentos, e verão aqueles que costumam vir para arrasar a colheita da alma.

20. Acontece às vezes que, pelo costume que temos de recitar os salmos, nos ocorre alguma lembrança, e que os divinos oráculos se tornem a própria matéria e o objeto de nossos pensamentos durante o sono; mas também acontece de os demônios, nossos inimigos, provocarem estas coisas em nós, a fim de nos inspirar sentimentos de orgulho. Existe ainda uma coisa sobre a qual pretendia silenciar, mas que uma pessoa me ordenou publicar: é que se uma alma que todos os dias se alimenta da palavra de Deus por meio de uma meditação contínua e profunda, começa costumeiramente, durante o sono, a recordar os santos pensamentos tidos durante o dia, esta será uma recompensa preciosa concedida por Deus; pois é desta forma que nos libertamos das ilusões do demônio. Aquele que chegou até este décimo nono degrau recebeu em seu coração o tesouro de uma luz celeste.


VIGÉSIMO DEGRAU

Da covardia pueril


1. Aqueles que, nos mosteiros ou comunidades, se dedicam a adquirir a perfeição, não costumam estar muito expostos a este temor; mas vocês que abraçaram a vida eremítica e que habitam nos confins dos desertos, devem combater esta paixão com todas as forças e jamais se deixar dominar por ela, pois ela é filha da vanglória e da infidelidade.

2. A covardia é uma paixão pueril que muitas vezes consiste na parte que cabe à velhice ou a uma alma escrava da vaidade. Trata-se de uma falta de fé e de confiança em Deus; ela se produz em nós pelas desgraças que imaginamos prever que irão nos surpreender inopinadamente.

3. Este medo consiste na previsão de perigos imaginários; é uma aflição penosa de um coração perturbado e agitado pela ideia de acidentes incertos. Numa palavra, diremos que esta apreensão é a ausência completa de confiança.

4. É assim que vemos que uma alma orgulhosa e que só conta com suas próprias forças teme e treme à vista de sua própria sombra.

5. Penitentes que, num tempo, choraram sinceramente suas faltas, mas que em outro tempo, por motivos de orgulho e de impenitência, deixaram de chorar suas iniquidades, são completamente isentos de temor em certas ocasiões, enquanto que em outras circunstâncias são atingidos e ficam tão apavorados que caem numa desorientação e numa alienação extraordinárias. A razão dessas espantosas vicissitudes é que o Senhor, soberanamente santo e justo, abandona a si próprios estes miseráveis soberbos, a fim de que sua própria infelicidade os torne sábios e os leve a renunciar a todo sentimento de orgulho.

6. Se todos os escravos do amor próprio estão sob o jugo da covardia, nem todos os que estão isentos dela são por isso pessoas doces e humildes de coração. Com efeito, ladrões e violadores de tumbas, que certamente não são pessoas devotadas à doçura e à humildade, estão bem longe de ser tímidos.

7. Existem para você lugares que lhe inspiram medo? Não hesitem em escolher o meio da noite para ir visitá-los; pois se vocês recuarem o mínimo que seja diante dos objetos que lhes causam sentimentos de medo de uma maneira tanto vã como ridícula, este medo se fortalecerá em vocês, e vocês o carregarão por toda a vida. Assim, se puserem em prática a recomendação que lhes faço, armem-se corajosamente com a oração e, nestes lugares assustadores voltem para os céus suas mãos suplicantes, invoquem o doce nome de Jesus com uma fé viva e ardente, e farão seus inimigos em pedaços. Eis as armas mais poderosas que vocês podem encontrar sobre a terra e nos céus, para guerrear contra a covardia. Tiveram vocês a felicidade de curar sua alma desta doença e obter uma alegre vitória sobre si mesmos? Não deixem de dar testemunho de seu reconhecimento, por meio de humildes cânticos e louvores, àquele que, com sua graça, os fez vencer e triunfar. Esta conduta atrairá sobre vocês novos favores, e vocês serão merecedores de uma proteção constante.

8. Assim como um instante não basta para contentar e saciar o estômago, também não será de um só golpe que vocês se libertarão de todo sentimento de medo e terror. Mas podemos observar que, quanto mais avançamos no caminho da penitência, mais a covardia nos abandona e nos deixa, e quanto mais nos tornamos impenitentes, mais ela aumenta em nós e nos atormenta.

9. “Meus cabelos, disse Elifaz, se eriçaram sobre minha cabeça e meus membros tremeram de horror[20]”, ao ver as armadilhas do demônio. Ora, às vezes é o corpo, às vezes é a alma que cria esses sentimento de pavor, e às vezes os dois se juntam. Quando é apenas o corpo que experimenta estes sentimentos, podemos acreditar que temos uma cura certa, e veremos que estamos próximos de nos vermos livres desta funesta paixão.

10. Nem a solidão dos lugares e as trevas da noite fornecem armas aos nossos inimigos, tanto quanto a esterilidade da alma. Por outro lado, Deus dispõe as coisas assim para nos instruir.

11. O servidor de Deus não teme senão a Deus; mas aquele que jamais sentiu o temor ao Senhor tem medo de si próprio e de sua própria sombra.

12. O corpo se arrepia e treme na presença de um espírito; mas os que vivem na prática da humildade são inundados de alegria e contentamento na presença de um anjo. É por isso que quando nos sentimos na presença dos anjos por causa desses sentimentos interiores de alegria, devemos logo recorrer à prece; pois estamos autorizados a pensar e crer que estes espíritos celeste que nos são enviados para cuidar de nós, vieram unir suas preces às nossas. Aquele que venceu a pusilanimidade, evidentemente consagrou sua vida e sua alma a Deus.




[1] Salmo 38: 2.
[2] Eclesiastes 20: 18.
[3] Salmo 5: 7.
[4] Mateus 25: 36.
[5] Mateus 7: 13-13.
[6] Salmo 34: 13.
[7] As numerações entre colchetes não constam do original que passa do item 3  diretamente ao item 6.
[8] Este parágrafo termina abruptamente no original.
[9] Efésios 5: 12.
[10] Romanos 7: 24.
[11] Romanos 11: 34.
[12] O texto original encontra-se interrompido neste ponto. No entanto, a frase admite uma continuidade no parágrafo seguinte: “Ora, se nosso espírito, por causa de maus pensamentos surgidos enquanto dormimos, é levado a prazeres desonestos, não durmam nem se levantem sem a lembrança da morte, e sem que a oração os mantenha sempre unidos a Jesus”.
[13] Cf. Mateus 1: 30.
[14] Cf. Salmo 36: 35-36.
[15] I Coríntios 4: 7.
[16] Salmo 6: 3)
[17] II Timóteo 3: 10.
[18] Atos 20: 34.
[19] Cf. Mateus 6: 26.
[20] Jó 4: 15.