segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Dimitrius Tselengidis - A Iconologia da Igreja

A Iconologia da Igreja

A presença carismática do protótipo no ícone que o representa
de acordo com a Iconologia da Igreja

Dimitrios Tselengidis

Conferência apresentada na Escola de Teologia da Universidade Arisóteles de Tessalônica em comemoração ao 1200º aniversário da convocação do Sétimo Concílio Ecumênico
 (Novembro de 1987).

A presença carismática do protótipo no ícone que o representa é uma verdade da Igreja que está formulada claramente nos textos patrísticos que tratam da iconologia durante o período iconoclasta. Esta verdade, que é uma parte integral da teologia completa da Igreja no que diz respeito ao ícone, foi reforçada pela autoridade do Sétimo Concílio Ecumênico[1], confirmada pela correspondente experiência espiritual de seus membros, uma experiência que o corpo carismático da Igreja viveu e ainda vive.

Para que a presença carismática do protótipo no ícone que o representa seja interpretada, é preciso distinguir como a Igreja entende o ícone, e, principalmente, qual é a relação entre o ícone e seu protótipo. O esclarecimento desta relação é necessário por ser ela o fundamento para a compreensão da presença carismática do protótipo, pintado iconograficamente no seu ícone. Mais do que isto, esta relação é também o fundamento para o entendimento de todo o ensinamento dogmático da Igreja em relação ao ícone.

O ícone, de acordo com são João de Damasco, é a “imagem e expressão da própria pessoa que está sendo representada[2]”. A partir desta definição podemos concluir que a semelhança entre o ícone e seu protótipo estabelece sua existência, e também que o ícone não possui uma hipóstase autônoma, mas depende da realidade daquilo que está sendo representado, do quê recebe todo o seu valor. Ícone e protótipo, de acordo com são Nicéforo, Patriarca de Constantinopla, são uma única realidade segundo a similaridade hipostática e ao mesmo tempo duas realidades segundo suas naturezas, porque a natureza material do ícone é uma coisa, enquanto que a natureza do protótipo representado é absolutamente diversa. Em qualquer caso, aquilo que é representado no ícone não é a natureza, mas a hipóstase – a pessoa – do protótipo.

Ícone e protótipo são realidades tão estreitamente relacionadas que uma não pode ser compreendida sem a outra. O protótipo pressupõe a existência do ícone do qual é protótipo, enquanto que o ícone pressupõe o pertencimento a um protótipo. Quando o primeiro é aludido pelo segundo, sua relação carismática com ele é inferida. Neste sentido entende-se porque todo o significado do ícone está baseado em sua relação com seu protótipo. São Teodoro o Estudita observa a este respeito: “diz-se que o ícone é chamado de ‘ícone’ porque está fundamentado em seu protótipo”. Assim, o ícone se relaciona com seu protótipo na medida em que sua existência depende dele. Em particular, a relação do ícone para com seu protótipo está baseada na sua similaridade para com ele. Neste sentido, “Cristo, ao se tornar como nós, adquiriu uma imagem artificial, que se relaciona com ele por uma relação de semelhança”. Esta passagem é de especial importância, porque fornece a base para o significado que a Igreja Ortodoxa atribui aos protótipos de seus ícones. Estes protótipos devem ser as mesmas pessoas históricas representadas iconograficamente, e não pessoas quaisquer inespecíficas da mesma época e geração do iconógrafo. Isto se deve ao fato de serem aquelas as pessoas representadas iconograficamente pelas figuras que as devem representar. Também é esta a razão pela qual os ícones, dentro da estrutura da Igreja Ortodoxa, não são criações imaginativas da hipóstase do protótipo, mas expressões da experiência histórica da Igreja[3]. Cristo e os santos que estão representados iconograficamente na Igreja não são tipos imaginários, pessoas idealizadas e abstratas, mas pessoas históricas com suas características particulares e pessoais, conforme foram preservadas na memória da Igreja. Os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico, baseando-se em sua memória e ao mesmo tempo expressando a experiência espiritual desta memória, decretaram em Sínodo que “aquele que contempla o ícone (...) é elevado pela visão do protótipo[4]”. A visão do ícone nos guia em direção à visão da pessoa representada iconograficamente. Por esta razão, a Igreja considera óbvio que o sujeito representado não pode ser outra pessoa senão aquela que ela expressamente representa, ou seja, o protótipo.

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Após estes esclarecimentos necessários, devemos agora observar os pressupostos teológicos que nos permitirão compreender a verdade viva e experiencial da Igreja em relação à presença carismática do protótipo em seu respectivo ícone.

Estudando os textos dos padres iconófilos dos séculos VIII e IX, bem como os registros do Sétimo Concílio Ecumênico, podemos confirmar que os ensinamentos da Igreja em relação aos ícones (dentro dos limites da teologia em seu sentido estrito) pressupõem de forma inquestionável a distinção ontológica entre a essência e a energia de Deus. Somente assim se pode entender o modo pelo qual os ícones de Igreja podem ser considerados como portadores da divindade, portadores da energia divinamente incriada e da graça, que são suportadas pelas representações iconográficas dos protótipos. Teologizando a partir dos pressupostos mencionados, são Teodoro o Estudita nota sucintamente que “se alguém diz que a divindade está presente no ícone, ele não estará errado (...) mas não numa união física[5]”. A presença da divindade nos ícones de seus protótipos não é “conforme sua presença”, mas, como esclarece são João de Damasco, carismática, “conforme a divina graça e a energia”. A distinção entre a essência e a energia de Deus é sugerida claramente. A Igreja expressa aqui indiretamente a continuação de sua teologia referente à distinção entre a essência divina, inalcançável e impossível de ser participada, e a energia divina e a graça, alcançáveis e participáveis (por criação), as quais, quando partilhadas, santificam a criação e divinizam o homem, como ensina mais detalhadamente a Igreja na teologia de são Gregório Palamas. A iconografia ortodoxa, refletindo a teologia da Igreja, utiliza sua forma única para tentar transmitir a sensação da presença da divina graça e da energia incriadas nos ícones de seus membros divinizados. Neste sentido, o ícone Ortodoxo reflete a verdade das pessoas da “nova criação” que ele representa, na medida em que busca confirmar tanto a historicidade das pessoas representadas como a inseparável graça divina que nelas habita. Fica claro, portanto, que a iconografia não é apenas uma arte sacra, mas também uma linguagem teológica que se exprime não apenas com palavras e letras, mas também com formas e cores. Mais especificamente, a iconografia Ortodoxa apresenta através de sua forma única as pessoas nos ícones não desmaterializadas, mas transformadas e divinizadas, confirmando desta maneira a experiência da participação pessoal da pessoa representada na graça divinizante do Deus Trinitário. Isto confirma, ademais, outro ensinamento da Igreja (referente ao dogma cristológico): aquilo que é material e tangível não apenas não é desprezível, a partir do momento eu que se liberta do pecado e da corrupção, mas é renovado, transformado e divinizado. É precisamente esta condição transformada, que é uma condição de incorruptibilidade[6] e de liberdade em Cristo, que o ícone Ortodoxo expressa. Por esta razão, não foi por acaso que durante o mesmo período (século XIV) em que a Igreja confirmou em Sínodo a teologia de são Gregório Palamas, que os ícones da transfiguração surgiram com especial frequência. A transfiguração de Cristo atesta a veracidade da transfiguração de cada fiel dentro da nova realidade em Cristo[7].

Acima de tudo, a nova realidade em Cristo cria uma realidade escatológica e em particular uma realidade na qual as coisas “extremas” [eschaton] (a glória incriada e o reino de Deus) são vividas na forma da promessa num processo de realização. Estas coisas “extremas” – que foram introduzidas no mundo pela obra salvífica de Cristo na história e que viveu dentro do mistério da Igreja como a unidade carismática e a transformação do criado pelo incriado – são expressas à perfeição por intermédio da técnica iconográfica da Igreja Ortodoxa. Assim é que os santos são representados juntamente com a realidade histórica criada em que viveram, paralelamente ao novo elemento do reino de Deus que penetrou e foi experimentado neste momento específico do tempo. Esta realidade transfigurada que a Igreja representa não é utilizada simplesmente para a orientação escatológica do fiel, mas expressa a realidade desta experiência “extrema” pela comunidade celebrante, como uma promessa que é preenchida e uma antecipação da vida futura e do reino. Mais ainda, não apenas as representações iconográficas das teofanias do Velho e do Novo testamentos são interpretadas deste modo, mas também os eventos que se referem ao fim do mundo à segunda vinda gloriosa de Cristo. Todos esses eventos são vividos durante o tempo litúrgico condensado da divina celebração, e em especial na sagrada Eucaristia[8]. Podemos assim argumentar com justiça que a iconografia Ortodoxa possui um caráter escatológico, na medida em que ela expressa, na medida do possível, o evento escatológico mais significativo, a união sem confusão entre o criado e o incriado, que é vivido na sinaxe e na comunidade Eucarística. Em particular, podemos dizer que o ícone Ortodoxo apresenta a existência escatológica daquele que é representado, cujo corpo se torna inclusive espiritual depois de ser enriquecido por intermédio das energias divinizantes de Deus. É precisamente esta energia divinizadora do Deus Trinitário (que é revelada como luz incriada de acordo com a experiência da Igreja) que os iconógrafos Ortodoxos procuram expressar, não apenas por meio do halo, mas também através do seu uso único da luz. Esta luz que ilumina o ícone a partir de dentro é livre das restrições do mundo físico que impõe uma aplicação direta, uma luz “natural”. Neste sentido, os iconógrafos Ortodoxos minimizam, na medida do possível, o uso de sombreamento (que conduziria por si só a uma interpretação natural), o que, ao contrário, enfatiza a dimensão escatológica da pessoa representada. Ao mesmo tempo em que os ícones da Igreja Ortodoxa apresentam as características históricas do protótipo iconograficamente representado, com seu uso único da luz eles buscam expressar a pessoa representada como um cidadão do reino dos Céus. Fica claro, assim que a teologia da luz está refletida na iconografia Ortodoxa[9].

Em contraposição, um situação muito diferente se desenvolveu e continua a existir na Cristandade Ocidental em relação à iconografia. A Igreja do Ocidente, mesmo concordando com as decisões do Sétimo Concílio Ecumênico durante sua participação nele[10], na prática enfatizou o significado pedagógico da iconografia e abandonou a visão da presença carismática de Deus no ícone. A convicção Ortodoxa, de que o ícone é um suporte da presença carismática de Deus em função da graça incriada do Espírito Santo que ele carrega e da qual o fiel participa (entrando, desta maneira, em comunhão pessoal com Deus), não encontra fundamento teológico no Catolicismo Romano. Isto se deve ao fato de que este rejeita a distinção entre a essência incriada e a energia e a graça incriadas de Deus. E exatamente porque o Catolicismo Romano não aceita a existência de uma divina graça incriada, e consequentemente de uma teosis[11] da pessoa que participa desta graça, ele não possui pressupostos teológicos que permitissem desenvolver uma iconografia que expressasse a teosis do homem.

De acordo com a visão do Catolicismo Romano, o homem comunga com Deus através da graça criada. Segundo esta visão, quando um homem recebe esta graça e é salvo, sua natureza não é ultrapassada carismaticamente, porque a graça que o salva se encontra no interior das estruturas da criação. É natural, assim, que as pinturas religiosas do Ocidente permaneçam dentro das limitações das leis naturais, o que contribui para o caráter naturalista de sua perspectiva artística.

Estes pressupostos teológicos, cremos, estão dentre os fatores mais básicos que explicam porque o Catolicismo Romano introduziu o uso da luz a partir de uma única fonte – o que resulta nas sombras – nos ícones, porque isto exprime a luz criada presente neste mundo. Mais do que isto, explica porque o Catolicismo Romano aceitou, ou no mínimo tolerou, representações nas igrejas de protótipos sem relação com as pessoas supostamente representadas (e, em alguns casos, eticamente degeneradas). Todas essas coisas mostram que as representações religiosas do Ocidente permaneceram encerradas nas estruturas do mundo decaído, portanto não transfigurado. Por esta razão podemos argumentar que a pintura religiosa da Cristandade Ocidental não representa um declínio causado por iniciativas crescentes dos pintores, mas, como nota o iconologista L. Uspensky, um declínio causado pelo desvio da Teologia Ocidental, que por sua vez é uma expressão de sua vida eclesial errada.

Em contraste com a iconografia Ocidental, a iconografia Ortodoxa pressupôs a teologia e a experiência espiritual da Igreja Ortodoxa. O Oriente Ortodoxo sublinha fortemente em especial a distinção entre a essência e a energia em Deus como uma marca de sua teologia e um fundamento de sua experiência espiritual, ao mesmo tempo em que a iconografia Ortodoxa, utilizando sua técnica única e sua luz, expressa esta teologia e esta experiência espiritual nas pessoas divinizadas dos santos, tornando mais fácil a compreensão da presença carismática dos protótipos iconograficamente representados nos ícones que os retratam.

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Em que sentido, a propósito, deve ser entendida a presença carismática de Cristo e dos santos nos seus respectivos ícones? Para começar, devemos notar que o ícone de Cristo tem seu fundamento dogmático na encarnação do Verbo Divino, que por sua vez torna auto-evidente a representação iconográfica dos santos, na medida em que estes constituem os membros gloriosos do corpo carismático de Cristo. Devido ao fato de que o corpo carismático de Cristo, vale dizer, sua Igreja, compõem-se e é revelada na sinaxe eucarística, o templo, como lugar desta sinaxe eucarística é o lugar mais apropriado para a representação iconográfica dos membros glorificados do corpo eucarístico de Cristo.  A representação iconográfica de Cristo – de acordo com a decisão do Sétimo Concílio Ecumênico – não confunde nem identifica as naturezas de Cristo, como o fizeram os monofisistas, nem separa estas naturezas, como o fez Nestorius. Mais do que isto, como nota são Teodoro o Estudita, “em toda pessoa representada iconograficamente não é a natureza, mas a hipóstase, que é representada”. Nem a natureza divina, nem a humana, são representadas por si mesmas, mas sim a hipóstase de Cristo com as características específicas que constituem sua natureza humana. Aquilo que estas características dos ícones de Cristo apresentam, ou melhor, que expressam e revelam, é a pessoa do Deus-homem, a pessoa que é inteiramente Deus e inteiramente homem, que é entendida por meio de suas duas naturezas e que existe nelas. No ícone de Cristo a pessoa de Cristo se torna visível de acordo com sua natureza humana, assim como ele se tornou historicamente visível em sua encarnação. Com a representação das características da natureza humana de Cristo, Cristo se torna tangivelmente presente tanto como perfeito Deus como perfeito homem. Assim como na representação iconográfica de Cristo a natureza humana não é dividida de Deus o Verbo, do mesmo modo a representação do corpo de Cristo não é separada da graça divinizante e da energia, que têm sua fonte em Deus o Verbo. No ícone de Cristo temos uma descrição de sua natureza humana divinizada. A natureza humana divinizada de Cristo, expressa no ícone, não pode por sua vez ser entendida sem a presença da Divindade que diviniza o ícone. A natureza humana, como se sabe, não pode divinizar a si mesma. No caso de Cristo, a natureza humana foi divinizada através da união hipostática e foi ungida com a divindade de Deus o Verbo, tornando-se “também Deus, assim como a divindade a ungiu, sem alterar sua natureza”, uma parte não confundida e inalterável da hipóstase de Deus o Verbo. A natureza humana de Cristo foi divinizada sem perder suas características naturais. É precisamente sobre este ponto que os padres iconófilos e o próprio Sétimo Concílio Ecumênico estabeleceram as bases para a representação iconográfica de Cristo. O corpo de Cristo, apesar do fato de sua divinização, jamais deixou de ser um corpo real com todos os seus atributos físicos (criados), um dos quais consiste em poder ser retratado graficamente. A representação iconográfica de Cristo, tanto antes como depois de sua ressurreição, atesta o fato de que a natureza humana de Cristo – e, por conseguinte, de toda pessoa que se une e permanece no corpo místico de Cristo – jamais se torna incriada, mas permanece para sempre dentro das estruturas da criação. O corpo ressurreto de Cristo é o mesmo corpo que ele possuía antes da crucificação, com a diferença que agora ele inclui a dimensão escatológica da libertação da criação da corrupção e das limitações deste mundo, que haviam sido ditadas pela necessidade das leis da natureza. Apesar de tudo isso, o corpo de Cristo não se tornou imaterial, assim como os corpos dos fiéis depois da ressurreição universal não se tornarão imateriais, mas espirituais.

O testemunho do Sétimo Concílio Ecumênico é particularmente característico em relação ao entendimento Ortodoxo do ícone de Cristo: “ao pintar o ícone do Senhor, confessamos Seu corpo divinizado e vemos Seu ícone como uma imitação do protótipo”. O ícone de Cristo não é uma expressão artística aleatória, mas um meio de expressar a teologia da Igreja. Como a natureza humana de Cristo é divinizada, seu ícone – enquanto imitação do protótipo – deve sugerir esta realidade. A iconografia da Igreja Ortodoxa se move e deve sempre se mover dentro da visão apresentada pelo Sétimo Concílio Ecumênico, se quiser preservar sua identidade iconográfica; em outras palavras, ela deve expressar o ensinamento dogmático e a experiência espiritual da Igreja Ortodoxa. A técnica única da iconografia Bizantina, como foi cultivada e desenvolvida no Oriente Ortodoxo, expressa perfeitamente – na medida do humanamente possível – a verdade e a experiência Ortodoxa. Assim é que o ícone de Cristo expressa, numa certa medida, a realidade da inalterável e não confundida união das duas naturezas em uma só pessoa de Deus o Verbo. Naturalmente, isto não quer dizer que o ícone Ortodoxo Bizantino represente e revele a natureza divina. Antes ele busca expressar por meio de sua técnica única a participação da natureza humana na vida divina e assim dar testemunho da experiência de santidade dentro de um corpo humano. Mas pode-se discutir que a arte da pintura no Oriente Ortodoxo representa Cristo como Deus-homem. Porém, como o Sétimo Concílio Ecumênico frisa, “apesar de a Igreja representar a Cristo de acordo com Sua natureza humana, esta não está separada da divindade, que permanece unida a ela[12]”, a qual, como já observamos, é encontrada no ícone “conforme as divinas graça e energia”.

É sobre este ponto que acreditamos fundamentar a presença de Cristo no seu ícone. Com “presença carismática de Cristo” não queremos dizer que ele está presente segundo sua natureza, mas apenas conforme a energia e a graça naturais de sua divindade. Neste sentido a presença do protótipo está carismaticamente colocada no ícone de Cristo.

Se, por outro lado, Cristo está carismaticamente presente em seus ícones devido à sua indivisível divindade, como isto se aplica aos ícones dos santos? É possível que os santos estejam carismaticamente presentes em seus ícones? Se sim, não surge um problema em relação à superação de sua condição de seres criados? Tentaremos responder esta questão por meio de uma perspectiva eclesial, sempre seguindo o pensamento dos padres iconófilos e as decisões dogmáticas do Concílio.
Para começar, se a representação iconográfica de Cristo e da Theotokos atesta e anuncia a encarnação de Deus o Verbo, a representação iconográfica dos santos revela os membros glorificados do corpo místico e teoantrópico de Cristo. Enquanto que os ícones de Cristo e da Theotokos são principalmente expressões iconográficas do dogma cristológico, os ícones dos santos revelam as consequências ontológicas do dogma cristológico pela presença, em Cristo das pessoas iconograficamente representadas. Em outras palavras, dentro da estrutura da Ortodoxia, os ícones dos santos revelam a experiência viva da vida incriada de Cristo pelos protótipos representados. Com as representações dos santos, a Igreja provê o fiel com a identidades pessoal de seus membros glorificados; desta forma ela expressa a singularidade das pessoas representadas em suas hipóstases escatológicas e renovadas em Cristo. Isto, de acordo com são João de Damasco, confirma a participação não confundida dos que são representados iconograficamente na glória divina e na graça de Cristo. Ao mesmo tempo, a representação iconográfica dos santos junto com Cristo revela, de acordo com são Teodoro o Estudita, a indivisível unidade partilhada pelos protótipos representados. Assim como a Igreja não está equivocada quando representa Cristo [não separando suas naturezas divina e humana], ela também não erra eclesiasticamente quando representa os santos [não separando Cristo de seus membros glorificados]. E assim como Cristo é representado como Deus-homem, com sua natureza humana divinizada, os santos são representados como homens divinizados, sendo sua representação iconográfica baseada nas novas realidades antropológicas que pertencem aos membros do corpo carismático de Cristo. Estas novas realidades antropológicas são escatológicas e estão sintetizadas na transfiguração da existência criada naquela que é representada iconograficamente por meio de sua participação nas energias incriadas e na glória divina. Sem estas realidades os ícones da Igreja perdem sua singularidade, que os diferencia das representações religiosas naturalistas do Ocidente Cristão (que apresentam uma humanidade que não participa da graça e da glória divinas). Em especial, as pinturas religiosas ocidentais não exprimem as consequências que o dogma cristológico implica para os membros do corpo místico de Cristo, resultando em que elas permanecem iconograficamente no plano biológico e experimental, que, no máximo, trabalha com a dimensão ética. Esta pessoa ética, é claro, será o resultado natural dos ensinamentos cristológicos de Nestorius e de Arius. Isto se deve a que, mais para Nestorius do que para Arius, a perfeição do homem possui um caráter ético e não ontológico. Ao afirmarmos isto não queremos acusar o Catolicismo Romano de Arianismo ou de Nestorianismo; simplesmente pretendemos enfatizar que seu erro básico no campo da teologia – a ausência de distinção entre a essência e a energia de Deus – resulta numa série de problemas na área das consequências da Cristologia. Este problemas, principalmente, estão diretamente relacionados à Soteriologia e se refletem no campo da pintura religiosa.

Assim sendo, em que sentido devemos entender a presença carismática dos santos em seus respectivos ícones? O ícone, como toda representação artística de pessoa ou coisa, cria a sensação da existência daquilo que está representado, permite aos sentidos aproximar-se da existência basicamente inexistente da pessoa ou coisa representada. Mas o que acontece nos ícones da Igreja é algo bem maior e mais substancial. Nos ícones da Igreja a pessoa ausente não é simplesmente sentida. De acordo com o testemunho de são João de Damasco, “os ícones dos santos (...) estão cheios da graça do Espírito Santo”. Ele prossegue, interpretando o modo como isto acontece, e observa que “se a pessoa iconograficamente representada está cheia da graça de Deus, então o ícone que a representa participa também desta graça”. Baseados nisto, podemos falar sobre a presença carismática do santo representado em seu ícone, que é entendida com a ideia da presença, no ícone, da divina graça incriada que é ao mesmo tempo a fonte de santidade do santo representado. A presença da divina graça e da energia no ícone é contínua na medida em que depende diretamente da presença carismática do Espírito Santo no interior das próprias pessoas representadas iconograficamente. Mais do que isso, ela está fundamentada na relação entre o ícone e seu protótipo, como observa são João de Damasco: “durante sua vida terrestre os santos estavam cheios da graça do Espírito Santo, e quando eles terminaram aqui seu percurso, a graça do Espírito Santo permaneceu em suas almas, nos seus corpos jazendo nos túmulos, em sua semelhança e santa imagem, sem jamais deixá-los”. Assim como os santos estão ontologicamente ligados à energia divinizante do Espírito Santo, também os ícones da Igreja suportam a graça do Espírito Santo e, por conseguinte, se tornam “vasos da energia divina”. Embora seja impossível para o santo representado iconograficamente estar presente em todos os seus ícones (por serem criados), a divina graça e a energia incriadas que neles habitam estão presentes em seus ícones. Os santos, por intermédio da divina graça, estão presentes em todos os seus ícones ao mesmo tempo e, através desta graça, a comunidade eucarística e cada fiel alcançam uma comunhão e uma relação real com os santos. Enquanto os santos, como criaturas, permanecem dentro dos limites do criado – e em particular dentro das limitações do tempo e do espaço –, como pessoas divinizadas eles ultrapassam carismaticamente estas limitações através da divina graça incriada pela qual estão presentes e ativos em seus ícones. É claro que os ícones da Igreja não objetificam nem limitam seus protótipos, encerrando-os num espaço em particular, mas antes constituem signos visíveis da realidade invisível e glorificada que eles representam. Por esta razão a rejeição dos ícones pelos iconoclastas foi interpretada pelos padres do Sétimo Concílio Ecumênico como sendo a rejeição da presença dos protótipos nos seus ícones. De fato, segundo o Sétimo Concílio Ecumênico, é possível para o fiel, em certas condições, ter uma visão espiritual do protótipo iconograficamente representado. São João de Damasco observa que o protótipo representado se torna visível ai fiel através de seus sentidos espirituais transfigurados, com os quais, além disso, o fiel participa com mais frequência da realidade futura, ainda nesta vida. O fiel, utilizando seus sentidos espirituais, vê nos ícones da Igreja o protótipo invisível que se torna sensivelmente presente no ícone, “com visão espiritual”. Enfatizando esta experiência espiritual da Igreja, são João de Damasco argumenta que o fiel, “vendo a pessoa iconograficamente representada no ícone, invisível para os olhos físicos, o glorifica como estando presente”. Por esta razão, quando o fiel aproxima os ícones dos santos ele não está ali para observar a composição artística das cores no ícone, mas para expressar sua comunhão viva com aqueles que estão representados. No interior de um templo Ortodoxo o fiel não apenas comunga com os santos sacramentalmente no sagrada Eucaristia, mas ainda contempla os santos presentes em seus ícones. É neste sentido que deve ser interpretada a honra que a Igreja presta a eles, honra que não difere daquela mostrada para com as relíquias ou para com os próprios santos.

Adicionalmente, a presença carismática do protótipo no ícone que o representa ainda permite interpretar o papel de santificação que os ícones desempenham na Igreja. O ícone da Igreja carrega, como vimos, a graça e a santidade do protótipo a quem ele representa. Esta graça, de acordo com o Sétimo Concílio Ecumênico, pode ser partilhada pelos fiéis, santificando-os. A santificação que o ícone traz consigo se torna uma “possibilidade de participação” por meio do sentido da visão que acontece durante a contemplação da pessoa iconograficamente representada[13]. Assim, a veneração dos ícones não é simplesmente um meio de honrar os protótipos representados, mas é, ao mesmo tempo, um caminho de santificação, conforme frisaram os padres do Sétimo Concílio Ecumênico, ao afirmar que “veneramos e abraçamos os santos ícones (...) pela esperança de santificação que reside neles[14]”. Alguns sentidos do fiel se tornam receptores da graça dos ícones, que santificam não apenas estes sentidos, mas todo o ser do fiel. A santificação do fiel, por outro lado, não se torna uma “possibilidade de participação” de um modo mecânico. Nem todos os fiéis, devemos dizer, participam da graça dos ícones, assim como nem todos os veneram. A divina graça é partilhada apenas na presença de determinados pressupostos, que são a fé e a pureza espiritual com as quais o fiel se aproxima dos ícones da Igreja. Fica assim claro que os iconoclastas, em sua rejeição aos ícones, rejeitaram também a presença carismática do Espírito Santo neles e, consequentemente, a capacidade de ser santificados por meio dele.

A presença carismática dos santos nos ícones que os representam está inseparavelmente ligada à dimensão milagrosa dos ícones. Os milagres que aconteceram por intermédio dos ícones testemunham a relação entre os ícones e seus protótipos, pois, segundo os padres do Sétimo Concílio Ecumênico, “os santos operam milagres por meio de seus santos ícones”, enquanto ao mesmo tempo testemunham a comunhão imediata e pessoal do fiel com os protótipos representados. São João de Damasco apresenta a interpretação teológica dos milagres que acontecem por intermédio dos ícones da Igreja, da seguinte maneira: o milagre é uma resposta de Deus a uma demanda do fiel que se aproxima dos ícones com fé. É sempre Deus quem opera o milagre, independentemente de que o pedido tenha sido feito direta ou indiretamente a ele. Deus aceita os pedidos dos fieis mesmo quando são dirigidos a ele por intermédio dos santos. Os milagres dos ícones nunca são vistos isolados do restante da Igreja, mas permanecem ligados diretamente aos protótipos representados, os quais, naturalmente, atestam o poder dos milagres que sempre dependem da graça de Deus, “mesmo que imaginemos que as curas acontecem por si sós (...) elas só acontecem pela graça de nosso Deus”, como afirma o Sétimo Concílio Ecumênico. E pelo fato de que todos os ícones são suportes da presença carismática dos protótipos iconograficamente representados, a distinção entre ícones que operam milagres e ícones que não operam, é teologicamente inválida. Isto se deve ao fato de que a presença da divina graça incriada dos protótipos representados nos ícones torna todos os ícones da Igreja operadores de milagres, ainda que esta graça nem sempre se revele de formas visíveis.

Para terminarmos, devemos ainda colocar que a presença carismática do protótipo no ícone que o representa está estruturada em todo o ensinamento dogmático do Sétimo Concílio Ecumênico, ela confirma a teologia da Igreja Ortodoxa em relação à distinção ontológica entre a essência e a energia de Deus, sustenta-se na encarnação e na obra salvífica de Deus o Verbo, apresenta-se como a comunhão viva e imediata entre o militante e os membros glorificados do corpo carismático de Cristo e, finalmente, interpreta a santificação e a dimensão milagrosa dos ícones. Pelo exposto, fica claro que a presença carismática do protótipo no ícone que o representa não constitui uma verdade de importância secundária, mas antes um fato crucial para a teologia e a experiência espiritual da Igreja.

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[1] Nicéia, 24 de Setembro a 25 de Outubro de 787. Foi o último Concílio ocorrido dentro da unidade da Igreja Católica, antes do Cisma do Ocidente.
[2] Mais adiante, são Gregório o Teólogo definiu o ícone como uma imitação que é semelhante ao seu  protótipo: ‘Porque esta é a natureza do ícone, a de ser uma cópia do protótipo’.
[3] Os padres do Sétimo Concílio insistem com os fieis: ‘Conforme eles veem a Cristo, como o veem assim o pintam, e assim como veem a face dos mártires que derramaram seu sangue por Cristo, assim os pintam’.
[4] A honra prestada pelo fiel ao ícone se baseia no caráter anagógico do ícone. A passagem de Basílio o Grande, “a honra devida à imagem é transferida para o protótipo”, à qual se refere o Sétimo Concílio, pressupõe a relação entre o ícone e seu protótipo. Nesta relação encontramos também a chave para o entendimento da função total do ícone na estrutura da Igreja. O ícone transfere a honra que lhe é prestada, ao seu protótipo. A passagem e a transmissão ao protótipo ocorrem aí e, por sua função de transmissão, a honra e a veneração mostradas ao ícone são uma e a mesma que aquelas dirigidas ao protótipo, assim como a pessoa retratada no ícone é a mesma que seu protótipo. Ao contrário, quando a veneração do ícone é separada daquela dirigida ao protótipo, o ícone é venerado como idolatria.
[5] A Igreja Latina opõe direta e claramente a esta passagem de Teodoro o Estudita – que é o espírito do Oriente Ortodoxo – o Concilio de Trento.
[6] O abade do Mosteiro de Iviron, Padre Vasílios Gontikakis está certo ao observar que “a iconografia Ortodoxa é um testemunho da vitória sobre a morte pelo Autor da vida; seu poder é o poder da Ressurreição”.
[7] Ao representar iconograficamente os santos, a Igreja Ortodoxa apresenta as pessoas históricas ao mesmo tempo que as pessoas glorificadas, sendo que estas são renovadas e cheias com a luz no seio da Igreja, através da beleza e da glória de seu protótipo, Cristo. Assim, Cristo não é apenas o ícone de Deus, mas também o protótipo das pessoas renovadas e divinizadas feitas “à imagem”.
[8] Conforme a oração da Anáfora: “Rememorando este mandamento salvífico e todas as coisas que ele passou por nós: a Cruz, o Túmulo, a Ressurreição no terceiro dia, a Ascensão aos céus, o Assento à direita do Pai e sua segunda e gloriosa Vinda”,
[9] “De acordo com a teologia Ortodoxa, Deus é luz e todas as coisas vivem, se movem, se desenvolvem e está perfeitamente de acordo em sua receptividade, com a luz. É exatamente esta teologia que a iconografia Ortodoxa expressa de modo tão convincente. No ícone Bizantino não vemos sombras, nem perspectiva, nada cortado ao meio e nenhuma tensão entre luz e escuridão. A luz ilumina tudo suavemente tudo o que é digno dela. Nesta situação em particular, os iconógrafos Ortodoxos, que experimentam o dogma vivo na vida da Igreja, apresentam o casamento perfeito entre o físico e o metafísico”. (N. Matsoukas, Introdução – São João de Damasco – Thessaloniki 1988)
[10] O Concílio de Trento minimizou o significado teológico dos ícones e enfatizou sua função didática e decorativa. Teoricamente, o Vaticano II teria reafirmado o ensinamento da Igreja unida e indivisa em relação aos ícones. Nas comemorações do 1200º. Aniversário do Sétimo Concílio Ecumênico, o papa de Roma, numa carta aos bispos sob sua jurisdição, observou “um certo interesse renovado na teologia da espiritualidade dos ícones do Oriente”. Ele escreveu: “A tradição do ícone requer que o artista perceba que ele está preenchendo uma função a serviço da Igreja. A autêntica arte Cristã é aquela que, através dos sentidos tangíveis, capacita o fiel a sentir que o Senhor está presente em sua Igreja (...) e que a glória que o Senhor nos prometeu transfigura nossa existência (...). O ícone litúrgico é aquilo que nos atira o olhar de um Outro invisível e que nos permite aproximar a realidade do mundo Espiritual e escatológico” (João Paulo II - Epístola Duodecimun Saeculum – Roma 1987). Porém, a realização das coisas que a Epístola papal coloca como “a glória de Deus a nós prometida” e a aproximação ao “mundo espiritual e escatológico” que o ícone nos revela, requerem uma teologia própria (particularmente, exigem a distinção entre a essência e a energia de Deus) e uma vida espiritual correspondente (como participação na energia e na graça incriadas de Deus). Mais do que isto, sem estes dois pressupostos a realização do artista no sentido de “preencher uma missão a serviço da Igreja” não tem significado. Para que seja possível a expressão da fé e da piedade da Igreja á bastante que o artista tenha a orientação eclesial adequada e que ele participe da experiência espiritual da Igreja.
[11] A “divinização” do homem.
[12] Cristo e seu ícone não estão separados em dois, mas ligados carismaticamente. O ícone de Cristo não apenas testemunha o fato histórico da encarnação de Deus o Verbo, mas testemunha também sua presença carismática na realidade histórica da Igreja.
[13]“Eles são santificados quando, pelo sentido da Visão, eles contemplam o ícone de Cristo e de nossa verdadeiramente santa Senhora Theotokos, dos santos anjos e de todos os santos”.(São João de Damasco 1, 17, PG 94 1248C. Teodoro o Estudita, ibid, 15, PG 99, 336ª)
[14] Hoje, apesar do crescente interesse nos ícones da Igreja Ortodoxa, pode-se notar um declínio geral no seu caráter litúrgico e santificador. Isto provém em parte de sua colocação no comércio e no seu uso decorativo em espaços não litúrgicos. O Patriarcado Ecumênico condenou todos os usos contemporâneos desviados dos santos ícones.

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