sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo I




Uma meditação pouco devota
A crise do Cristianismo
Crítica da Revelação

Existem duas crises. A crise dos mundos Cristão e anti-Cristão, e a crise do mundo Cristão, a crise dentro do próprio Cristianismo. A segunda crise é mais profunda do que a primeira. Tudo o que acontece no mundo e que nos dá a impressão de algo que é exterior e mesmo cruamente material, tem sua fonte no interior e no espiritual. num certo sentido, podemos dizer que o Cristianismo, o Cristianismo histórico, está chegando a um fim, e que um renascimento só pode ser visto a partir de uma religião do Espírito Santo que possa fazer o Cristianismo nascer outra vez, uma vez que essa será a plenitude do Cristianismo. A fraqueza do Cristianismo no mundo, num mundo que é presa de movimentos que são resultado do trabalho de forças dinâmicas muitas vezes demoníacas, corresponde ao enfraquecimento do Cristianismo histórico, e aponta para uma transição em direção a um Cristianismo escatológico que está relacionado ao mundo do futuro. O Cristianismo escatológico será também uma religião do Espírito, uma religião trinitária que constituirá a realização das promessas, esperanças e expectativas. É como se estivéssemos num entreato, e por esse motivo nossa época é um tempo de sofrimento.

O mundo está passando por um estado de abandono de Deus. É difícil entender o mistério do abandono de Deus em relação ao mundo e a o homem. Não devemos racionalizar o mistério; e esse mesmo mistério colide com a tradicional doutrina da Providência de Deus. A crise da consciência Cristã é profunda. Ela alcança a própria ideia de Deus e o entendimento da Revelação. Os Cristãos têm muito a aprender com esses movimentos que parecem ser anti-Cristãos e com o próprio ateísmo, pois mesmo nesses movimentos somos convidados a sentir o sopro do Espírito. Aquilo que se levanta na consciência do homem contra Deus, em nome do homem, é também o verdadeiro Deus que está se levantando. A revolta contra Deus só pode se dar em nome de Deus, em função de uma ideia mais elevada de Deus (em grande medida, a revolta contra Deus, especialmente a revolta moral, pressupõe a existência de Deus). Na realidade, não existem ateístas, mas apenas idólatras. O ateísmo mergulha fundo e sofre. Ele não consiste num coração alegre e iluminado, nem num ódio sinistro. Ele é uma afirmação de Deus.

O abandono de Deus em relação ao mundo é sua carga. Franz Baader diz que esse peso significa que Deus está ausente. E o mundo atual é simultaneamente pesado, sobrecarregado e absolutamente fluido. Esse peso sobre o mundo e sua fluidificação estão conectados um ao outro. Nada existe de mais triste do que o destino do Cristianismo, a religião da libertação e da ressurreição. A própria ideia de Deus e da divina Providência penetrou na experiência de modo distorcido. Uma ideia servil de Deus triunfou, e no lugar de Deus foi construído um ídolo. A relação entre Deus e a liberdade humana foi interpretada erroneamente. As relações entre o Cristianismo e o reino de César, entre a Igreja e o Estado, foram realizadas de modo diabólico. A interpretação legal do Cristianismo e da redenção, que degrada tanto a Deus como ao homem, triunfou e transformou a vida religiosa num processo legal. A recepção da revelação foi determinada pelo meio humano, que está sujeito à mudança e pode tanto evoluir como deteriorar.

Até agora não se escreveu nenhuma crítica da revelação como a que é propiciada por uma analogia com a Crítica da Razão Pura de Kant. Essa crítica à revelação deve mostrar no que consiste a contribuição humana à revelação. Existem duas partes na revelação: ela é divino-humana. Existe aquele que revela a Si mesmo, e aquele a quem Ele se revela. Deus não pode se revelar a uma pedra ou a uma árvore; embora mesmo uma árvore ou uma pedra reajam, de uma maneira elementar, à ação de forças superiores, e isso é ainda mais verdadeiro para um animal. A revelação se tinge de diferentes cores de acordo com o estado mental humano e com as tendências e inclinações do homem. É como se existisse um elemento apriorístico perante a revelação. Se não existisse no homem uma nobreza, lado a lado com a sua baixa condição, jamais lhe teria ocorrido a ideia de Deus, e ele não teria capacidade de receber a Sua revelação. Não apenas o pensamento de Deus em relação a Deus, como também a revelação, se tingem de antropomorfismo e de sociomorfismo.

É verdade que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, como o fez com os demais deuses, mas o que realmente importa é que essa imagem e semelhança humanas devem se aproximar da imagem e semelhança divinas. Existe aqui uma misteriosa dialética dos dois, não a ação de um, a partir de cima e em direção abaixo. O homem criou Deus à sua imagem e semelhança, bom ou mau, cruel ou misericordioso, um agressor violento ou um libertador, etc. Povos, grupos étnicos, nações inteiras, adoraram o Cristianismo, como o fizeram com todas as religiões, no seu próprio nível, e estamparam na imagem de Deus seus próprios desejos, e aplicaram a essa imagem duas próprias limitações, e tudo isso acabou propiciando uma abertura admirável para a negação da própria existência de Deus. O que está errado no antropomorfismo não consiste em descrever a Deus com as feições da humanidade, ou a simpatia, ou em ver Nele uma necessidade de amor correspondido, mas antes em atribuir a Ele traços de desumanidade, de crueldade e de amor ao poder.

Na verdadeira humanidade está revelada não apenas a natureza do homem, como o próprio Deus. As categorias sociais de dominação e poder foram transferidas a Deus, e nisso está um antropomorfismo maligno. Mas na verdade Deus não é um domo, nem alguém que exerce o poder com autoritarismo. Um cosmomorfismo errado transferiu as categorias de poder a Deus, mas Deus, certamente, não é nenhum “poder”, no sentido natural dessa palavra. A adoração a Deus como “poder” é uma forma de idolatria. E Deus não é um ser, para que se possa transferir a Ele a categoria de pensamento abstrato. Deus é o não-ser, que é um supra-ser. Deus é o Existente, mas não um ser. Deus é Espírito, mas não um ser. O Espírito não é um ser. O entendimento de Deus como um Espírito concretamente existente deriva de uma profunda experiência espiritual e não de uma experiência natural e social limitada e objetivada, que aplica erroneamente um cosmocentrismo e um sociocentrismo à ideia de Deus. Devemos sempre nos lembrar de que no estrato subconsciente de cada homem, mesmo do homem contemporâneo, a alma de seus antepassados ainda sonha, remontando aos tempos mais primitivos. Onde, então, se situam essas crenças da alma primitiva, às quais só uns poucos têm acesso?

A alma primitiva estava ancorada na magia. Foi por meio da magia que ela lutava para se defender contra os poderes elementais da natureza que a ameaçavam de todos os lados, de uma natureza que era habitada por espíritos. A magia constituiu uma habilidade técnica primordial do homem. Os cultos agrícolas primitivos possuíam um caráter mágico. A magia buscava conhecer os segredos dos espíritos da natureza, de maneira a obter poder sobre eles, a fim de conseguir comandar os próprios deuses. Conhecer o nome de um ser equivalia a obter poder sobre ele. O ritmo dos movimentos também possuía um caráter mágico: Mana constitui um poder mágico, e dele dependia a posição social do homem. O elemento mágico na religião consiste numa qualidade lateral à esfera moral e apenas por meio de um processo longamente construído se chegou à moralização da religião. O elemento material sempre foi poderoso nas religiões e isso permanece ainda hoje. O papel desempenhado pelo grão de milho nos mistérios de Eleusis é bem conhecido. Tratava-se de um símbolo da existência humana.

O materialismo religioso, que teve uma função enorme até os dias atuais, é hostil ao espirito e à liberdade. Ele sempre foi um signo das algemas da magia. A magia prometia poder ao homem, mas o mantinha agrilhoado ao ciclo cósmico. As antigas crenças de um mundo pagão tranquilo persistem até hoje mesmo no mundo Cristão e distorcem a própria ideia de Deus; e isso, mesmo depois que o Cristianismo libertou o homem do poder dos demônios e dos espíritos da natureza. A alma primitiva de nossos antepassados acreditava que os deuses necessitavam de sacrifícios expiatórios e de sacrifícios que os alimentassem, que os deuses precisavam de sangue e de sacrifícios humanos. Isso permanece de uma forma diferente na crença de que o sofrimento é necessário para acalmar a cólera de Deus.

A velha escravidão do homem se mostrou na interpretação legalista da redenção, na experiência da relação entre Deus e o homem como um processo legal. Aurobindo, um filósofo Indiano ainda vivo[1], disse que a concepção da redenção combina com a escravidão. Os antigos profetas Hebreus ergueram-se acima do pensamento religioso que exigia o sacrifício como uma coisa primária, e colocaram a verdade e o direito no coração humano, num posto acima de todas as demais coisas. Mas o elemento profético jamais prevaleceu na história do Cristianismo, que se acomodou num nível social médio. Devemos honrar o pensamento religioso Russo do século XIX, que sempre reagiu negativamente à interpretação legalista do Cristianismo. O pensamento humano inferior interpretou o Cristianismo como uma religião cruel. O elemento de crueldade na interpretação do Cristianismo pode ser encontrado no ascetismo Sírio, no monasticismo que se alimentou da Filocalia Russa, em Agostinho, na doutrina Católica, no Calvinismo, na doutrina da predestinação, na doutrina do inferno. E a impressão de que a chegada do Cristianismo piorou a posição do homem deriva dos oponentes do Cristianismo.

A divisão em duas raças, dos escolhidos e dos condenados, é oposta ao espírito do Evangelho, o qual, aliás, foi também distorcido pelo ambiente humano que o recebeu. Quando o homem é um animal selvagem, ele também imagina Deus como um animal selvagem. Quando ele é humano, ele imagina Deus também como humano. A ideia inumana de Deus é uma relíquia da escuridão primitiva, que deveria ser repelida pela nova humanidade. Possuindo uma opinião mais elevada a respeito de sua própria dignidade e valor, o homem já não consegue se reconciliar com uma religião de medo, vingança e inferno, com a justificação de castigos religiosos cruéis no mundo; e, nesse processo, ganha espaço a purificação do conhecimento de Deus. A transição para o monoteísmo entre os Judeus foi um imenso passo adiante, mas o puro monoteísmo, tão valorizado pelo Judaísmo, ainda constituía um entendimento despótico monárquico de Deus. Somente com o Deus que revelou a Si próprio em Seu Filho, no Deus-homem, deixou Deus de ser um monarca despótico, e surgiu um Deus de amor e liberdade, e essa foi a revelação de Deus em espírito e verdade. A Trindade divina marcou o triunfo sobre as ideias monárquicas a respeito de Deus, que o pintavam como um tirano oriental, e transferiam para Deus as ideias sociológicas de autoridade senhorial.  Mas foi apenas lentamente, muito lentamente, que as antigas crenças servis foram superadas. Devemos notar que na filosofia religiosa da Índia não cabe a interpretação legalista da relação entre Deus e o homem, mas, nesse caso, isso se relaciona com o monismo. A concepção de Deus em Shankarasharya é estática[2]. Em Eckhardt, por outro lado, ela é dinâmica. Trata-se de um dinamismo Cristão.

O divino é entendido, tanto em termos de imagens sociais – senhor, czar, pai – como em termos de imagens dinâmicas – poder, vida, luz, espírito, verdade, fogo. Somente a segunda interpretação é digna de Deus e digna do homem. Também aqui foi preciso haver uma imensa mudança no conhecimento de Deus, uma mudança que seria de fato emancipadora. Não foi fácil para o homem despertar do antigo pesadelo no qual o ego era tiranizado por si mesmo e por Deus; daí a crucificação de Deus. O ego se mostrou uma fatalidade tanto para o homem em si como para Deus. Nunca é demais insistir que Deus não constitui uma realidade tal como as realidades do mundo natural e social. Deus é espírito. Deus é liberdade e amor. Sua revelação final e definitiva consistiu num ato criador do Espírito, Ele se mostrou num ato criador do Espírito. No ato criador do Espírito, no ato criador de conhecer e provar a Deus, deu-se o nascimento de Deus de maneira vital.

A velha doutrina segundo a qual Deus criou o homem e o mundo, sem que tivesse a menor necessidade deles, tendo-os criado apenas para Sua própria glória, precisou ser abandonada como sendo uma doutrina servil que retira da existência do homem e do mundo todo significado. Deus, com o homem e o mundo, é maior do que Deus sem o homem e o mundo. O homem e o mundo constituem um enriquecimento da vida divina. Amiel diz que Deus é o maior e mais incompreendido Desconhecido. Leon Bloy diz que Deus é o sofredor solitário e não compreendido. A teologia apofática está sempre certa quando se coloca contra a teologia catafática. Somente ela reverencia o Mistério Divino, o que, de modo algum, implica algum tipo de agnosticismo. É nisso que reside a grande verdade do misticismo, cujo conhecimento sobre a comunhão com Deus é superior ao da teologia.

Tudo isso conduz a uma transvaloração radical da tradicional doutrina da Providência divina, que de fato conduziu ao ateísmo, por ter tornado a teodicidade impossível. Deus revela a Si mesmo ao mundo e ao homem; Ele realiza uma revelação em Espírito, mas não governa o mundo no sentido em que o mundo entende um governo. A doutrina usual da Providência, que as pessoas reiteram com palavras convencionais, sem pensar em seu significado real, não pode ser combinada com o fato da existência do mal e do sofrimento do mundo. É impossível acreditar na velha doutrina da Providência e do governo divino, nesse mundo fenomênico, despedaçado e escravizado, que está submetido à necessidade, e no qual é inclusive impossível encontrar um cosmo integrado[3]. Disseram-nos que Deus está presente em todas as coisas, mas é impossível encontrar a presença de Deus na peste e no cólera, nos assassinatos, no ódio e na crueldade, na violência, no mal e na escuridão. Uma falsa doutrina da Providência levou a uma atitude de reverência servil diante do poder e da autoridade, a uma apoteose de triunfo nesse mundo e ao último refúgio da justificação do mal.

Em oposição a isso permanece o trágico sentimento pela vida. Deus está presente na liberdade e no amor, na verdade, no direito e na beleza, mas também na face do mal e do erro. Ele está presente, não como um juiz e vingador, mas como um avaliador e uma consciência. E Deus é Aquele a quem é possível mudar os horrores, as abominações e as crueldades do mundo. Havia muita verdade nas inquietas questões de Marcião[4], embora sua resposta a essa questão estivesse errada. Ele não entendeu o gradualismo da revelação, e na quebra que existe nela dentro do meio humano, que é limitado e cruel.

Filosoficamente a transvaloração da doutrina da Providência deve ser expressa dessa maneira. As concepções que foram pensadas para o mundo fenomênico, e que só se aplicam a ele, não podem ser transferidas a Deus. A Providência não age na totalidade do mundo fenomênico, e isso pode ser evidenciado apenas por meio de interpretações terrivelmente distorcidas. Nesse nosso mundo o que mais existe é o irracional, o injusto, o desprovido de sentido. Mas permanece um grande mistério no fato de que no destino individual de todo homem é possível ver a mão de Deus, ver um sentido, ainda que isso não seja suscetível de racionalização. Nem um único cabelo pode cair da cabeça de um homem sem a vontade de Deus. Isso é verdade, não num sentido elementar, mas num sentido mais profundo, apesar do fato de que no mundo, que “repousa no mal” é impossível ver o governo providencial de Deus. Isso está conectado com a interrelação entre o individual e o comum. Averroes pensava o oposto, ou seja, que Deus estava interessado apenas nas leis gerais do mundo e da raça, mas não no indivíduo. Ele pensava que se Deus conhecesse as partes, deveria haver uma perpétua novidade Nele, o que contraditaria a ideia petrificada de Deus.

Nesse nosso mundo. Não apenas Deus atua: mas o destino, a necessidade, a sorte também atuam. O destino continua a operar quando o mundo abandona a Deus, ou quando Deus abandona o mundo. Os momentos e os tempos do abandono de Deus foram fatídicos para a vida humana. O homem e o mundo estão sujeitos a uma inevitável necessidade como resultado de uma liberdade erroneamente dirigida. Por outro lado, a sorte, que desempenha uma enorme da vida, é como se fosse um estado no qual o homem se vê perdido e desesperançado num mundo múltiplo, onde opera uma enorme quantidade de forças, que não podem ser dominadas e que não estão sujeitas a uma causalidade racional. Uma sorte infeliz que se apresenta a nós como algo inteiramente sem sentido e cruel é um indicativo de que estamos vivendo num mundo decaído no qual não existe absolutamente governo divino algum. Mas essa mesma sorte infeliz pode receber um sentido mais elevado no meu destino, ainda que enraizada nesse mundo fenomênico. A crença de que tudo o que acontece a mim deve ser um significado, não pode ser expressa no sistema cosmológico segundo o modo do racionalismo teológico. Devemos sempre nos lembrar de que Deus é Espírito, não natureza, nem substância, nem força, nem poder. Deus é Espírito; isso significa que Ele é liberdade. Deus é Espírito, e isso significa que ele deve ser pensado apofaticamente em relação às realidades do mundo natural e social. O conceito usual da Providência deriva do governo de um estado. Deus é representado como se fosse a cabeça autocrática de um estado. O que interessa é a emancipação do que resta dessa antiga idolatria, e isso é muito importante. A idolatria é uma possibilidade que não diz respeito apenas aos ídolos, mas que também se relaciona com Deus. Essa emancipação é a purificação da revelação a partir da base de concepções que a mente humana traz em si, e a libertação das ideias e crenças religiosas servis.

O Cristianismo ensina que a crucificação de Deus era um entrave para ao Judeus e uma loucura para os Gregos. Mas o pensamento humano distorceu a grande concepção de sofrimento e a crucificação do próprio Deus, ao introduzir ideias derivadas de um mundo social decadente, e as relações que existiam dentro dele. Tais são, por exemplo, as concepções do significado redentor do sangue, que é tão degradante tanto para Deus como para o homem; de que Cristo sofreu em nosso lugar, por nossos pecados; de que Deus aceitou o sacrifício de Seu Filho a fim de receber a satisfação pelos pecados dos homens, e outras coisas do gênero. A Queda foi interpretada como desobediência. A ideia absurda de que Deus pode ser insultado foi colocada antes de tudo. A redenção foi baseada na ideia de justitia vindicativa. Jean de Maistre disse que o homem vive debaixo de uma autoridade que foi provocada, e que essa provocação só pode ser mitigada pelo sacrifício, que um inocente deveria pagar pelos culpados, que a limpeza exige sangue, que o sacrifício de um inocente é agradável a Deus. Em oposição a isso está a interpretação mais elevada da redenção, conhecida como física ou mística (Santo Atanásio o Grande). Um conhecimento purificado de Deus deve reconhecer o caráter de mistério e a incompreensibilidade do Deus crucificado, ou seja, do Deus que permanece necessitado[5].

Nos cultos totêmicos a oferta de um sacrifício constituía o meio de comunhão com o sagrado. É como se o sacrifício da vítima criasse o sagrado. Nisso havia já um pressentimento fracamente iluminado a respeito do mistério que viria a acontecer no sacrifício de Cristo na Cruz. Mas mesmo dentro do Cristianismo a primitiva obscuridade pagã ainda não foi inteiramente superada. Existe um paradoxo religioso, em especial na religião Cristã: a salvação é ao mesmo tempo uma ameaça de ruína. O Cristianismo foi interpretado como uma armadilha. A partir do medo da perdição foi moldado o principal instrumento de governo religioso pelo homem e pela sociedade humana. Bossuet, em sua controvérsia com Fenelon, considerou como herético o amor desinteressado a Deus. O utilitarismo teológico triunfou. O homem passou a pensar que era preciso defender Deus, embora, de fato, o que fosse preciso era defender o homem.

Uma fé vigorosa e um intenso sentido religioso foram expressos na história de duas maneiras, seja numa ardente busca pela perfeição e o amor ao Reino de Deus, seja, por outro lado, numa perseguição fanática e cruel contra os que tivessem outra crença. A esses dois tipos correspondem duas maneiras de interpretar a Deus. A vitória final sobre a escuridão, e a alegria, só são possíveis mediante o pensamento apofático sobre o divino, enquanto que a velha maneira de ver as coisas, que infectou o ensinamento teológico, deu azo a pensamentos sombrios. Purgatório, paraíso, inferno – todas essas concepções pertencem ainda a esse mundo. Analisando nossas ideias a respeito de Deus, tentemos imaginar que o Deus Onipotente considera como o supremo bem o sofrimento de Suas criaturas. Como é possível aceitar tal concepção? Nada, senão um ameaçador estado de medo seria capaz de conciliar o homem com a doutrina Calvinista da predestinação. Uma forma de pensar mais elevada e livre deve reconhecer a humanidade de Deus. De outro modo, aquilo que é idolatricamente chamado de Deus e um demônio, e não Deus. Deus ama o homem e o mundo, e não pode ser entendido de outra maneira, senão em termos de valor, e o valor constitui uma atividade criadora.

Existe uma passagem notável em Kierkegaard sobre a relação do homem com Jesus Cristo. O chamado aqueles que trabalham e estão sobrecarregados provém do Cristo humilhado, não do Cristo em glória. Mas a Igreja Cristã não reconhece o Cristo esvaziado, kenótico. E ela tampouco quer reconhecer o fato de que Cristo é contemporâneo, uma verdade que é especialmente cara a Kierkegaard. Cristo estava incógnito no mundo, e essa foi a sua kenosis. Por isso a sua aceitação exige fé, ou seja, liberdade. Seu imediato reconhecimento, sem possibilidade alguma de desvio, teria feito do Deus-homem um ídolo. Cristo só fala em humilhação, jamais em exaltação, enquanto que o homem pretende começar pela exaltação, jamais pela humilhação. Para Kierkegaard, a transformação da Igreja num objeto de glória no mundo foi sua ruína. Cristo via o sofrimento como triunfo, e é preciso imitá-Lo, não ser arrebatado por Ele, nem adorá-Lo. Eu já disse que não apenas Jesus Cristo, como o próprio Deus está incógnito no mundo, e que a liberdade do homem está ligada a esse fato. Nisso reside o mistério da revelação, mas os homens desejam afastar esse mistério e transformar a revelação numa questão de necessidade.

O outro lado da negação do mistério e da kenosis divina é o ateísmo. Não está em poder do homem negar coisas que são visíveis, que passam por cima de seu julgamento, e ele curva sua cabeça diante de sua realidade. Mas está em seu poder, ou pelo menos ele assim pensa, negar a realidade de Deus. Ao homem foi concedida a liberdade para experimentar a negação de Deus, e essa liberdade é garantida pela kenosis e o incógnito de Deus. O ateísmo não passa de uma experiência da vida do homem, um momento dialético no conhecimento de Deus. Passar pela experiência do ateísmo pode constituir uma purificação da ideia humana de Deus, uma emancipação a partir da base do sociomorfismo. Mas existem dois tipos de ateus: os que sofrem e os maliciosos. Não vou me referir ao ateu iluminista. Dostoievski desprezava o ateu sofredor. Nietzsche era o tipo do ateu que sofre. Mas existem os ateus maliciosos e satisfeitos de si, que dizem: ‘Graças a Deus, Deus não existe’. O ateísmo sofredor é uma forma de experiência religiosa, e mesmo de piedade. O ateísmo malicioso comumente significa que o homem não conseguiu lidar com o teste imposto pelo sofrimento incomensurável do mundo e do homem. Ele é pior do que o primeiro tipo de ateu, mas também ele indica acima de tudo a presença de uma revolta contra as falsas e degradantes ideias a respeito de Deus. Os fiéis, portanto, não devem se preocupar com os ateus; eles não devem entrar numa experiência e em desafios que não são os seus; e isso, acima de tudo, pelo fato de que entre os fiéis a fé, muitas vezes, foi alcançada com demasiada facilidade. Feuerbach foi um ateu devotado, e por meio dele a concepção humana de Deus foi purificada. O homem, a sociedade e o mundo podem passar por um estado de abandono de Deus, e, dentro dos limites do pensamento humano isso pode se refletir sob a forma de ateísmo. É difícil para o homem suportar o incógnito Divino e a kenosis de Cristo. Seria preferível a majestade imperial de Deus e do Deus-homem. O homem, primeiro que tudo, racionaliza a divina Providência e a adapta ao seu próprio nível, e então ele se levanta contra sua própria ideia falsa e se torna ateu. No primeiro estado ele não estava mais próximo de Deus do que no segundo.

No caso da revelação, que é fundamental para a vida religiosa, a mesma coisa aconteceu com todas as manifestações do Espírito: elas foram objetificadas[6]. É preciso reconhecer o fato de que a revelação Cristã não poderia desempenhar um papel social, nem se tornaria uma força histórica propulsora, se ela não tivesse sido objetificada, ou seja, socializada e adaptada ao nível das massas. Existe uma contradição, a partir da qual não existe saída dentro dos limites do mundo fenomênico. A objetificação constitui uma distorção da espiritualidade, e ao mesmo tempo ela representa uma necessidade para a realização dos destinos da humanidade e do mundo, para os movimentos em direção ao Reino do Espírito. Mas nesse caminho, as ilusões e distorções da objetificação devem ser arrancadas fora, deve haver uma limpeza. E essa é a missão do lado profético da religião e da filosofia. A revelação não pode ser interpretada com um espírito de ingênuo realismo, como costuma ser nos livros de teologia. A revelação não cai do nada sobre a cabeça dos homens. Ela de modo algum consiste numa abertura para qualquer realidade no mundo das coisas. Uma crítica filosófica da revelação, coisa que ainda não foi feita, terá que ser em primeiro lugar uma crítica desse realismo ingênuo, do mesmo modo como a critica de Kant sobre a razão consistiu na retirada das ilusões de mesmo tipo de tolo realismo. Deverá ser essencialmente a emancipação final das ilusões do naturalismo religioso e metafísico. A crítica da revelação que foi feita nos séculos recentes, consistiu essencialmente no triunfo final do naturalismo e na negação de Deus, do Espírito e da religião. O que eu tenho em mente é antes uma crítica da revelação que conduza ao triunfo da espiritualidade, à libertação do espírito das distorções materialista e naturalistas. Deus não é um objeto. Deus não é uma coisa. Deus é Espírito. Não podemos entrar em comunhão com o mistério do Espírito por meio de nenhum tipo de objetificação. O mistério jamais se revela no objeto. No objeto, somente é possível encontrar o simbolismo do Espírito, jamais sua realidade.

A revelação é a presença do Espírito em mim, no sujeito; trata-se de uma experiência espiritual, de uma vida espiritual. A interpretação intelectualista da revelação que encontra sua expressão nos dogmas constitui precisamente sua objetificação, seu ajuste ao nível médio do pensamento normal. Mas os eventos do Espíritos descritos na Santa Escritura, as manifestações do Espírito nas vidas dos apóstolos e dos santos não foram de caráter intelectual, mas toda a natureza espiritual do homem operou ali conjuntamente. Assim, a doutrina intelectual e racionalista de Deus enquanto ato puro, que desempenhou papel importante no escolasticismo Católico, deriva, não da Bíblia, nem da revelação, mas de Aristóteles. Essa doutrina, que pretende ir ao encontro das necessidades de uma razão abstrata, transforma Deus, por assim dizer, em pedra; ela retira Dele toda vida interior e toda força dinâmica. Mas Deus é vida; vida, não existência, se entendermos por esse termo o conceito racional de existência. A existência é secundária, não primária; ela surge após a divisão entre sujeito e objeto; ela é produto de um pensamento, de uma racionalização. A esse respeito, a filosofia religiosa Hindu vai mais alto e mais longe do que a filosofia ontológica Ocidental, que está demasiado submetida às categorias de Aristóteles.

O único caminho verdadeiro é o caminho da descrição intuitiva da experiência espiritual, e, ao longo desse caminho se torna claro que na revelação tanto Deus como o homem são ativos, que a revelação possui um caráter divino-humano. O fenômeno religioso tem dois lados: trata-se de uma abertura de Deus no homem e do homem em Deus. A ânsia do homem por Deus vem à luz nela, assim como a ânsia de Deus pelo homem. A teologia racional tradicional nega esse anseio de Deus pelo homem, por medo de introduzir uma vida afetiva passional em Deus. Pois o conceito racional de perfeição não admite a ânsia e a necessidade na noção de completude: ele prefere a perfeição de uma pedra. Nesse caso, as relações entre Deus e o homem cessam de ser um drama de dois, que é capaz de uma resolução num terceiro. A revelação é um ato criativo do Espírito; ela possui um caráter a um tempo teogônico e antropogônico. Trata-se apenas de misticismo, mas com outra linguagem, e de uma teosofia Cristã que se ergue acima da ingênua interpretação realista da revelação, acima do entendimento naturalista e racional de Deus. Talvez tenha sido apenas Jacob Boehme, o grande místico teosófico, que teve mais sucesso em fornecer uma expressão simbólica ao mistério da vida divina. A experiência espiritual só pode ser expressa em símbolos, jamais em conceitos. Mas uma crítica filosófica tem que ser capaz de entender esse caráter simbólico da linguagem da metafísica religiosa. A questão mais importante na crítica da revelação, assim, é uma questão, não de metafísica, mas de meta-história.

Na crítica da revelação o problema da relação entre revelação e história é de imensa importância. O Cristianismo é a revelação de Deus na história, não na natureza. A Bíblia conta a história da revelação de Deus na história. O mistério do Cristianismo está vinculado à encarnação de Deus. É costumeiro dizer que a revelação Cristã não é uma revelação abstrata do Espírito, mas do Espírito operativo na história. Deus penetra na história: a meta-história entra na história. O advento de Jesus Cristo é um fenômeno histórico, um fato histórico no tempo. Mas desse fato nasce um problema particularmente complexo que se tornou agudo a partir da crítica bíblica, pela investigação do Cristianismo desde o ponto de vista da história científica. O Cristianismo foi desenhado e cristalizado quanto os homens aceitaram confiantemente os mitos e as lendas como realidade, quando ainda não existiam a crítica histórica nem a ciência da história. Poderá minha fé, da qual depende minha salvação e a vida eterna, depender por sua vez de fatos históricos que são objeto de disputa? Pode minha fé ser preservada se a pesquisa histórica, baseada na aparência dos fatos e em novos materiais, provar cientificamente que certas coisas narradas pela Santa Escritura como fatos, não existiram, que não são eventos históricos, mas mitos, lendas, doutrinas teológicas criadas pela a comunidade de fieis Cristãos? A história oficial da Igreja não reconhece que tal problema possa ser colocado, porque ela não permite que a crítica histórico toque as coisas sagradas. O modo como a história foi falsificada a partir dessas bases é bem conhecido. Mas a religião espiritual está ligada ao entendimento de que nenhuma religião pode se colocar acima da verdade, porque Deus é a verdade, e Ele deve ser conhecido em espírito e verdade.

Isso significa que o conceito de revelação histórica envolve uma contradição, e que ele é um produto do materialismo religioso. Ele corresponde a estágios da revelação que ficaram no passado. Somente a revelação espiritual existe, a revelação do Espírito, enquanto que a revelação histórica é a simbolização no mundo fenomênico histórico de eventos que tiveram lugar no mundo histórico noumênico. Mas a totalidade do mistério reside no fato de que eventos noumênicos irrompem e penetram no mundo fenomênico, o meta-histórico irrompe e penetra no mundo histórico. Não existe uma separação absoluta entre essas duas esferas. Mas quando a meta-história penetra na história, ela não apenas se revela na história como ainda se adapta às limitações dos tempos e lugares históricos. A luz brilha nas trevas. O Deus infinito fala com uma linguagem humana finita, dentro das condições limitadas de um certo período e de uma certa nação. A revelação é sempre algo oculto; na revelação existe tanto o exotérico como o esotérico.

 A crítica histórica científica precisa ser absolutamente livre, porque seu trabalho deve possuir um significado purificador e libertador para o pensamento Cristão. Mas a crítica histórica não pode decidir nenhum tipo de questão religiosa e espiritual. Por princípio, ela tem limites. Esses limites podem ser vistos na teoria mitológica que nega a existência histórica de Jesus. A teoria mitológica, que está sujeita a sérias dúvidas no terreno da história, também possuiu alguma utilidade, na medida em que revelou os limites da crítica histórica.

Aquilo que é chamado de “o problema de Jesus” não pode ser resolvido pela investigação histórica; ele elude sua apreensão. Não existem dados históricos apropriados para que se escreva uma biografia do homem Jesus; e, religiosamente falando, é assim que deve ser. Trata-se de um mistério que não pode ser visto desde fora na história, mas que se revelou na experiência religiosa da comunidade Cristã. A solução para o “problema de Jesus” reside nessa esfera na qual a história chega a tocar a meta-história. Mas para a ciência histórica a meta-história não existe como uma realidade, mas apenas como crenças e ideias das sociedades eclesiais. O erro do período que ainda não possuía uma ciência e uma crítica históricas está no fato de que a história era vista como meta-história, ou seja, como sagrada, e assim elementos de origem humana e distorções humanas eram considerados como partes intocáveis da revelação divina. Isso fica especialmente claro na Bíblia, onde podemos ver o mundo da religião e dos fenômenos religiosos, mas onde muitos deles estão misturados com eventos históricos ordinários e com distorções devidas ao limitado pensamento do povo Hebreu. O entendimento dos antigos Hebreus a respeito de Deus foi produto da mente ainda não iluminada do povo Hebreu, e somente nos Profetas aparece um movimento que se coloca acima desse modo limitado de pensar. Assim também nos Evangelhos, nos quais é contada a meta-história dos acontecimentos, permanece a marca da limitação de linguagem e de concepção do povo Hebreu daquele período de sua existência. Ali o mundo eterno e divino só aparece em flashes. A Bíblia e o Evangelho foram compostos como matéria de história, com todas as limitações e toda a complexidade da história. Mas neles brilha o supra-histórico.

Não pode haver nenhuma autoridade histórica, mas é devido ao fato de que a meta-história está enraizada na história, que a história recebe seu significado. A revelação Cristã tanto atua na história, quanto é distorcida pela história. Nisso reside a complexidade da relação entre o divino e o humano, a complexidade da interação entre Deus, a liberdade humana e a necessidade. A revelação infinita se mostra no finito, mas o finito não encontra espaço para o infinito. A perspectiva do infinito sempre permanece, a criatividade infinita, a revelação infinita. O homem não é uma criatura estática que se apresenta de uma vez por toda num aspecto pronto. O homem é uma criatura dinâmica, criativa e em desenvolvimento. O infinito jaz oculto dentro dele. O escopo do pensamento humano muda; ele pode se expandir e se contrair; ele pode se tornar mais profundo e logo ser trazido à superfície; e isso determina o caráter gradual e incompleto da revelação. O infinito é possível, mas na revelação do Espírito e no mundo espiritual. A cristalização do finito distorce não apenas a visão do futuro, como também do passado. Um pensamento limitado, restrito e superficial, esse é o pensamento do homem comum, do dia-a-dia, e é com ele que é recebida a revelação que corresponde à sua própria natureza. Podem ser levantadas objeções à possibilidade de uma nova revelação, de uma revelação que continua e se completa, mas apenas se a pessoa adotar uma visão estática do homem e não lhe conceder mais do que um papel absolutamente passivo na recepção da revelação. Mas a revelação e divino-humana.

A historicidade possui um significado tanto positivo quanto negativo. Tudo o que existe, todas as coisas vivas são históricas e possuem uma história. A historicidade indica a possibilidade da existência de coisas novas, e ao mesmo tempo ela indica uma relatividade e uma limitação. A historicidade distorce. O Cristianismo é histórico, e nisso está sua força e seu dinamismo, e ao mesmo tempo o Cristianismo é distorcido pela história. Ele é distorcido pelo tempo histórico, ele se torna relativo. O historicismo é, no fundo, uma falsa filosofia da história. O historicismo não leva em consideração o significado. Somente o pensamento messiânico construiu a história e permitiu a revelação do sentido da história. O pensamento messiânico aguarda uma revelação numa manifestação futura que proclamará um sentido mais alto da história, ele aguarda a aparição do Messias e do reino messiânico. O pensamento Grego não conheceu nenhuma expectativa messiânica; para ele, a história era um ciclo e a Era de Ouro estava no passado, e, assim, ele não tinha uma filosofia da história e nenhum conhecimento de um significado para a história. O messianismo teve origens nos primitivos Hebreus e em parte nos Persas.

O Cristianismo continua sendo messiânico; ele espera pelo segundo advento do Messias e o reino messiânico. Mas a teologia Católica Romana se opôs a qualquer introdução da ideia messiânica no Cristianismo, por medo do profetismo. É fora de discussão que o primitivo Cristianismo foi construído sobre uma estrutura escatológica. Mas a perspectiva de um longo caminho histórico entre as duas aparições de Cristo, o Messias, logo se descortinou; em lugar do Reino de Deus, a Igreja tomou forma, e o Cristianismo, tendo se tornado histórico, passou a se adaptar a esse mundo, ao reino de César. Apenas uns poucos, dentro do “Cristianismo histórico”, esperaram pela nova revelação do Espírito Santo, e, frequentemente, de forma distorcida. O lado profético do Cristianismo enfraqueceu-se e desapareceu quase que por completo. O Cristianismo histórico tomou um caráter organizado dogmático e autoritário. A Igreja histórica foi vista como a chegada do Reino de Deus. A ideia de Reino de Deus que permeia o Evangelho é uma ideia profética – o “Reino por vir”. Não existe ainda um Reino de Deus; nosso mundo não se parece com o Reino de Deus; ele só pode ser pensado escatologicamente.

A impotência do Cristianismo histórico que se revela em nosso tempo é determinada e pode ser explicada pela debilitação do espírito profético, por uma condição de ossificação, e por um espírito que é exclusivamente sacramental e sacerdotal. A expectativa de uma nova revelação do Espírito Santo desapareceu de vista. Direi algo a esse respeito no último capítulo desse livro. No momento, o problema me interessa apenas do ponto de vista da crítica da revelação. Nunca será demais repetir que se trata de uma revelação divino-humana, que o Cristianismo é a religião do Deus-homem, que ele assume uma crença não só em Deus, como também no homem, que pressupõe a atividade não somente de Deus, mas também do homem. Somente assim pode ser entendido o trágico destino do Cristianismo na história. Nas palavras sutis de Franz Baader, o homem pretendeu ser homem sem Deus, mas Deus não quis ser Deus sem o homem, e assim ele se tornou Homem. A ideia de uma revelação contínua não deve ser confundida com a ideia racionalista de Gotthold Lessing[7] de um treinamento religioso da humanidade. Existe uma dialética existencial complexa do divino e do humano, e isso parece não ficar muito claro no pensamento Alemão.  



[1] Berdiaev escreveu O Divino e o Humano em 1944, quando Aurobindo (1872-1950) ainda era vivo.
[2] N.T.: Devemos nos lembrar que o Hinduísmo, do qual Shankarasharya é um intérprete destacado, não conhece nada parecido com o conceito Cristão de Deus. Brahma não é Deus, no sentido Cristão do termo, assim como a trindade Brahma-Vishnu-Krishna não tem nenhuma relação com a Santa Trindade Cristã.
[3] A física contemporânea destruiu a velha doutrina do cosmo.
[4] Marcião de Sinope - ou Marcion - foi um dos mais proeminentes heréticos do Cristianismo primitivo. A sua teologia, chamada Marcionismo, que propunha dois deuses distintos – um no Antigo Testamento e outro no Novo Testamento – foi denunciada pelos Pais da Igreja e ele foi excomungado.
[5] “The God Who stands in need”.
[6] NO sentido de terem sido tratadas como “objeto”.
[7] Gotthold Ephraim Lessing, poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão, considerado um dos maiores representantes do Iluminismo, conhecido também por sua crítica ao antissemitismo e defesa do livre pensamento e tolerância religiosa.



sábado, 25 de janeiro de 2020

Nikolai Berdiaev - Salvação e Criatividade


SALVAÇÃO E CRIATIVIDADE[1]
(1926)

Dedicado à memória de Vladimir Soloviev

“Cada um viva de acordo com a graça recebida e coloquem-se a serviço dos outros,
como bons administradores das muitas formas da graça que Deus concedeu a vocês.”
(I Pedro 4: 10)

I

A correlação entre os caminhos de salvação do homem e os caminhos da criatividade humana é uma questão extremamente central, tormentosa e aguda de nossa era. O homem se deteriora e tem sede de salvação. Mas o homem é também, por natureza, um artesão, um criador, um construtor da vida, e a sede por criatividade – por manifestar seu potencial criador – não pode ser extinta nele. Pode o homem ser salvo ao mesmo tempo em que cria, pode ele criar e ao mesmo tempo ser salvo? E como perceber o Cristianismo: será o Cristianismo exclusivamente a religião da salvação da alma para a vida eterna, ou será o potencial criativo – a criatividade – por uma vida mais elevada, justificado pela consciência Cristã?  Todas essas questões atormentam a alma contemporânea, embora elas nem sempre sejam percebidas em sua profundidade. Querendo desenvolver sua vocação existencial, seu ato criativo na vida, os Cristão nem sempre se dão conta de que existe um discurso a respeito do próprio conceito do Cristianismo, sobre a assimilação de sua plenitude. O tormento do problema da salvação e da criatividade reflete o cisma entre a Igreja e o mundo, entre o espiritual e o mundano, entre o sacro e o secular. À Igreja cabe a salvação, ao mundo secular, a criatividade. O ato criativo, que diz respeito ao mundo, não recebe uma justificação, ele não é santificado pela Igreja. Existe um profundo desdém, quase que um desprezo do mundo eclesial em relação a esses feitos na vida da cultura, na vida da sociedade, que são inteiramente processos desenvolvidos no seio do mundo. Na melhor das hipóteses a criatividade é admitida, tolerada, e pode ser disfarçadamente observada, sem que jamais se conceda a ela uma profunda justificação. A salvação é matéria de primeira classe, a única coisa necessária, enquanto que a criatividade é matéria de segunda ou terceira classe, que pode ser aplicável à vida, mas que não faz parte da essência desta. Vivemos sob o signo de um profundo dualismo religioso. A “hierocracia”, o clericalismo, constituem, segundo o entendimento da Igreja, a expressão e a justificativa para esse dualismo. A hierarquia da Igreja é, em sua essência, uma hierarquia angélica, mas não humana. No mundo humano, as hierarquias angélicas celestiais estão apenas simbolizadas. O sistema hierocrático, a soberania exclusiva do sacerdócio na vida da Igreja e, por intermédio da Igreja, também na vida do mundo, consiste na supressão do princípio humano pelo angélico, na subordinação do princípio humano ao princípio angélico, como um apelo para guiar a existência. Trata-se sempre da soberania de um simbolismo condicional[2]. Mas a supressão do princípio humano, o não consentimento de sua expressão criativa única, prejudica a capacidade do Cristianismo de ser a religião do Deus hominal. Cristo era o Deus-homem, não o Deus-anjo, e nele estavam perfeitamente unidas em uma pessoa a natureza Divina com a natureza humana, e assim essa natureza humana se via transportada à Vida Divina. A Cristo, o Deus-homem, foi o princípio fundamental da nova e espiritual raça humana, da existência de um hominidade Divina, não de uma “angelicidade” Divina. A Igreja de Cristo é uma Igreja da hominidade Divina. O princípio angélico consiste num princípio intermediário entre Deus e o homem, um princípio intermediário passivo, que transmite a energia Divina, que conduz a graça Divina, mas que não é um princípio ativo e criativo. O princípio ativo e criativo foi concedido à humanidade. Mas a limitação pecaminosa da humanidade não permite a plenitude da verdade Cristã. A soberania supressiva do princípio hierocrático angélico é um indicativo da humanidade pecadora no sentido de expressar sua natureza criativa, no sentido de aceitar o Cristianismo em sua plenitude e totalidade. O caminho de salvação para a humanidade pecadora torna óbvia sua necessidade, acima de tudo, de um princípio hierocrático angélico. Mas o caminho da criatividade permanece como um caminho humano autônomo, não santificado e não justificado, e nele o homem é deixado a só.

A não expressão religiosa do princípio humano, enquanto parte orgânica da vida do Deus-homem, a não abertura religiosa para a livre vocação do homem, cria o dualismo entre a Igreja e o mundo, entre a Igreja e a cultura, o agudo dualismo entre o sacro e o profano. Para o fiel Cristão foram criadas duas vidas, uma de primeira classe, outra de segunda classe. E esse dualismo, essa bipolaridade da existência alcança seu ápice no Cristianismo do tempo atual. Durante o medievo, o Cristianismo possuía sua própria cultura teocrática, hierocrática, que subordinava toda a criatividade da existência ao princípio religioso, que era concebido como a soberania da hierarquia angélica sobre a humana. Na cultura e sociedade medievais havia o sagrado, mas a justificação religiosa era condicionalmente simbólica. A cultura, em sua concepção, era angélica, não humana. A soberania do princípio angélico sempre conduziu ao simbolismo, ao condicional, um sinal refletido da existência celestial dentro do mundo humano, mas sem um alcance real, sem que haja uma transfiguração verdadeira da existência humana. Presentemente, o simbolismo foi rebaixado e completou-se o rompimento. O homem se rebelou em nome de sua liberdade e avançou em seu próprio caminho autônomo. A religião foi relegada a um canto obscuro de sua alma. Ele passou a pensar a Igreja de forma diferente. O Cristão atual vive em dois ritmos incongruentes – na Igreja e no mundo, pelos caminhos da salvação e pelos caminhos da criatividade. Nas sociedades teocráticas, nas culturas teocráticas, o princípio humano estava subordinado, a liberdade do homem não garantia seu consentimento à existência do Reino de Deus. Nas sociedades humanísticas e nas culturas atuais o princípio humano foi desviado de Deus e da eficácia da graça Divina. A conjunção entre o humano e o Divino já não podia ser alcançada. Os caminhos da criatividade do mundo humanístico colocaram-se sem Deus e contra Deus. O drama da atual história humanista é o drama de um profundo rompimento entre o caminho da criatividade da existência e o caminho da salvação, separados de Deus e da graça Divina. O dualismo entre a Igreja e o mundo reconhece essas formas de expressão, que as épocas orgânicas sagradas primitivas não conheceram. No mundo aconteceram tremendos desenvolvimentos criativos, nas ciências, na filosofia, na arte, no estado e na vida social, nos avanços tecnológicos, nas atitudes morais do povo, até mesmo no pensamento religioso, nas estruturas místicas da mente. Todos nós, não apenas os que não creem, mas também os fieis Cristãos, participamos do desenvolvimento do mundo, desse desenvolvimento da cultura, e a ele devotamos uma parte significativa de nosso tempo e esforço. Vamos à Igreja aos Domingos. Mas nos demais seis dias da semana nos dedicamos aos nossos trabalhos criativos e construtivos. Nossa atitude criativa diante da vida permanece não-justificada, não-santificada, não-codependente dos princípios religiosos da vida. O antigo sistema medieval teocrático e hierocrático de justificação e santificação de todos os processos da vida já não tem poder sobre nós, está moribundo. Os próprios fieis, o mesmo povo Ortodoxo participa da não-justificada e não-santificada vida do mundo, eles estão submetidos à ciência profana e não-sagrada, à economia profana e não-sagrada, às leis profanas e não-sagradas, a um estilo de vida desde muito desprovido de caráter sagrado. Os fieis e os povos Ortodoxos vivem a vida eclesial na Igreja, frequentam o templo aos Domingos e dias festivos, jejuam na Quaresma, oram a Deus de manhã e ao entardecer, mas não vivem a vida eclesial no mundo, na cultura, na sociedade, sua criatividade, na vida política e econômica, nas ciências e nas artes, nas invenções e descobertas, na moralidade cotidiana, permanece externa à Igreja e à religiosidade, segue sendo profana e mundana. É um ritmo de vida totalmente outro. Um tempestuoso desenvolvimento criativo atingiu o mundo, na cultura. Ao contrário, por longo tempo na Igreja estabeleceu-se um modo comparativamente estacionário, como que petrificado e ossificado. A Igreja passou a viver exclusivamente como guardiã, como uma ligação com o passado, isso é, ela expressava apenas um lado da vida eclesial. A hierarquia da Igreja se tornou hostil em relação à criatividade, suspeitosa quanto à cultura espiritual, ela restringiu o homem e temeu sua liberdade, e assim os caminhos da salvação foram colocados em oposição aos caminhos da criatividade. Somos salvos apenas em um plano da existência, mas moldamos totalmente nossa vida em outro plano da existência. E permanece sempre o perigo de que nesse plano, no qual criamos, podemos perecer e não sermos salvos. E não há nenhuma esperança nisso, de que esse insustentável dualismo adicional possa ser superado através da subordinação de toda nossa vida e de todo nosso impulso criativo ao princípio hierocrático, através da restauração da teocracia no antigo sentido da palavra. Não existe retorno possível ao simbolismo condicional e à sociedade hierocrática. Isso estabeleceria uma reação temporária, rejeitando a criatividade. O problema religioso sobre o homem, sobre sua liberdade e sua vocação criativa, foi colocado em toda sua agudez. E não se trata apenas de um problema do mundo, de um problema opressivo e incômodo da cultura contemporânea, mas se trata também de um problema da Igreja, do Cristianismo, enquanto religião do Deus-homem.

Atualmente, o pensamento se tornou sujeito à influência dissecadora do nominalismo. Na consciência da humanidade, a realidade ontológica se acha decomposta e pulverizada. Esse processo afeta igualmente a consciência da Igreja. E também, o quanto as tendências mais reacionárias do pensamento da Igreja se apropriaram de um entendimento nominalista da própria Igreja. Elas cessaram de compreender a Igreja de forma integral, como um organismo espiritual universal, como uma realidade ontológica, como um cosmo Cristificado. Prevaleceu um entendimento diferenciado da Igreja, seja como instituição, como comunidade de fieis, como hierarquia ou como templo. A Igreja foi transformada num estabelecimento de cura, dentro da qual se tratam as almas individuais no sentido de cura. Dessa maneira se afirma um individualismo Cristão, indiferente ao destino da sociedade humana e do mundo. A Igreja existe para a salvação de almas individuais, mas não tem relação com os aspectos criativos da vida, com a transfiguração da ordem social e cósmica. Esse tipo de Ortodoxia exclusivamente ascético-monástica só foi possível na Rússia, porque ali a Igreja se incumbiu de toda a organização da vida do estado. Somente a presença de uma monarquia autocrática consagrada pela Igreja tornou possível tal individualismo Ortodoxo, essa separação entre o Cristianismo e a vida do mundo. A monarquia Ortodoxa preservou e guardou o mundo, e a ordem eclesial foi também mantida por ela. A Igreja era indiferente, não apenas à organização da vida social e cultural, como ainda à organização da vida eclesial, à vida das paróquias, à organização de uma autoridade eclesial não dependente dela. A existência de uma monarquia autocrática Ortodoxa constitui o lado visível da Ortodoxia ascético-monástica, de uma Ortodoxia como uma religião voltada exclusivamente para a salvação pessoal. Por isso o colapso da monarquia autocrática, do império Russo Ortodoxo, implicou uma modificação substancial na consciência da Igreja. A Ortodoxia já não podia seguir predominantemente ascético-monástica. O Cristianismo não podia ser reduzido à salvação individua de almas separadas. A Igreja inevitavelmente se voltou para a vida da sociedade e do mundo, e inevitavelmente teve que participar da formação da vida. Na monarquia autocrática, como no tipo da teocracia Ortodoxa, era o princípio angélico, não o humano, que reinava. O czar, de acordo com esse conceito, é em essência o ordenador angélico, não o humano. O Colapso da teocracia Ortodoxa tinha que conduzir ao despertar do ativismo criativo de uma nação verdadeiramente Cristã, um ativismo humano, para a formação de uma sociedade Cristã. Essa reviravolta deveria começar antes de tudo com o povo Ortodoxo se tornando responsável pelo destino da Igreja no mundo, numa atualidade histórica, de tal forma a que se obrigasse a tomar sobre si a formação eclesial, a vida das paróquias, tudo o que dissesse respeito ao templo, à organização da vida eclesial, às fraternidades, etc. Mas essa mudança da psicologia Ortodoxa não podia ficar restrita à formação da vida eclesial, ela deveria se estender a todos os aspectos da vida. Tudo na vida deveria ser pensado como vida eclesial. Na Igreja, entram todos os aspectos da vida. Uma reviravolta é inevitável para uma compreensão integral da Igreja, isso é, para a superação do nominalismo e do individualismo da Igreja. O entendimento do Cristianismo exclusivamente como uma religião de salvação pessoal, a coerção do escopo da Igreja a algo que exista paralelamente a todo o demais – quando a Igreja se propõe a ser a plenitude da existência – seria também a fonte das maiores desordens e catástrofes no mundo Cristão. O rebaixamento do homem, de sua liberdade e vocação criativa, a imposição dessa forma de entender o Cristianismo, evocaria também a revolta e a rebelião do homem em nome de sua liberdade e criatividade. Sobre esse ponto desolador, que permaneceria no mundo para o Cristianismo, o anti-Cristo iria iniciar sua própria torre da Babilônia e levar sua construção até o máximo possível. Seduzindo a liberdade do espírito humano, a liberdade da criatividade humana acabaria por perecer nesse caminho. A Igreja deveria ter se guardado dos elementos malignos do mundo e de seus desenvolvimentos para o mal. Mas a guarda genuína das coisas santas só e possível se admitirmos a criatividade Cristã.


II

Sobre quais bases espirituais o individualismo Ortodoxo se fundamenta, sobre quais se justifica seu entendimento do Cristianismo, enquanto religião de salvação pessoal, indiferente ao destino da sociedade e do mundo? O Cristianismo do passado era extraordinariamente magnificente, diverso e plural. Nos Evangelhos, nas Epístolas Apostólicas, na literatura Patrística e na tradição da Igreja é possível encontrar as bases para diferentes compreensões do Cristianismo. O entendimento do Cristianismo como religião de salvação pessoal, que desconfia de toda e qualquer criatividade, encontra-se exclusivamente na literatura ascética Patrística, que não representa a totalidade do Cristianismo, e nem sequer a totalidade da literatura Patrística. A Dobrotoliubie-Filocalia[3] é como se tivesse filtrado todo o remanescente. Na ascese está expressa a verdade eterna, que penetra no caminho espiritual interior como um momento inevitável. Mas ela não constitui a totalidade da verdade Cristã. A heroica luta contra a natureza do velho Adão, contra as paixões pecaminosas, promoveu um determinado aspecto da verdade Cristã e exagerou esse ponto, abarcando todas as demais dimensões. As verdades reveladas nos Evangelhos e nas Epístolas foram deixadas de lado num segundo plano, e foram sufocadas. Na base de todo o Cristianismo, na base de todo caminho espiritual do homem, no caminho da salvação para a vida eterna, foi estabelecida a humildade. O homem precisa ser humilde, e todo o resto acontece por si só. A humildade é o único método de atividade espiritual interior. A humildade filtra tudo e sufoca o amor, que se revela no Evangelho e se manifesta como o fundamento do Novo Testamento com o homem. O conceito ontológico da humildade consiste numa vitória real sofre a autoafirmação humana autocentrada, sobre a disposição pecadora do homem a se situar no centro de gravidade da vida e a estabelecer a si próprio na fonte da vida – esse é sentido da vitória sobre o orgulho. O conceito de humildade está na real transfiguração da natureza humana, no domínio do homem espiritual sobre o homem anímico e carnal. Mas a humildade não deve sufocar e apagar o espírito. A humildade não consiste numa obediência exterior, submissa e subordinada. O homem pode ser muito disciplinado, obediente e submisso, e ainda assim não ser humilde. Vemos isso, por exemplo, no Partido Comunista Russo. A humildade constitui uma mudança eficaz na natureza da alma – e não uma subordinação exterior que, entretanto, deixa intacta a natureza –, ela exige um trabalho interior sobre si mesmo, exige a libertação do poder das paixões, da natureza inferior, que o homem costuma aceitar como sendo seu verdadeiro “eu”. Na humildade está afirmada a verdadeira hierarquia do ser, na qual o homem espiritual tem precedência sobre o homem anímico, onde Deus tem precedência sobre o mundo. A humildade e o caminho para uma autopurificação e para uma autodefinição. A humildade não constitui uma aniquilação da vontade humana, mas a iluminação da vontade humana, sua livre submissão à Verdade. O Cristianismo não pode negar a humildade como um momento do caminho espiritual interior. Mas a humildade não constitui a totalidade da vida espiritual. A humildade é um meio legítimo. Mas ela não é o único caminho para a vida espiritual. A vida espiritual e incomensuravelmente mais complexa e plural. E é impossível dar uma resposta a todas as questões do espírito apenas pregando a humildade. E a humildade pode ser falsamente, e também externamente concebida. Para a vida espiritual interior e o caminho espiritual ela deve ser posta em prática com absoluta primazia, porém mais primária, mais profunda, mais primordial do que todas as nossas relações com a vida social e com o mundo. É no mundo espiritual, nas profundezas do mundo espiritual, que se definem todas as nossas relações com a vida. Isso é um axioma religioso, um axioma dos místicos. Mas é possível um conceito de humildade, que distorça toda nossa vida espiritual, que não acomode a verdade Divina do Cristianismo, a Divina plenitude. E é nisso que reside a complexidade da questão.

A construção de uma vida baseada apenas no espírito de humildade cria um sistema autoritativo e hierocrático exterior. Todas as questões que dizem respeito à forma social e à criatividade cultural passam a ser decididas em função da humildade. Isso poderia ser uma organização sutil da sociedade, na qual as pessoas seriam o mais humildes possível, e obedeceriam ao máximo. Mas isso censuraria toda a gama da vida, na qual reside a expressão dos instintos criativos do homem. Assim, em essência, não seria resolvida nenhuma questão, mas elas seriam consideradas apenas na medida em que favorecessem a humildade do homem. A deterioração da humildade resulta nisso, em que ela deixa de ser entendida interiormente, ela deixa de ser um ato secreto, místico, um tesouro, uma manifestação da vida espiritual interior. A humildade se transforma num sistema exterior de organização da vida, que reprime o homem. A humildade, em sua essência mística, não é absolutamente contrária à liberdade, ela é um ato de liberdade e pressupõe a liberdade. Apenas a humildade livre, a livre subordinação do homem anímico ao homem espiritual possui significado e valor religioso. A humildade compulsória, imposta, é determinada por uma estrutura exterior da vida e não possui significado para a vida espiritual. Escravidão e humildade são condições espirituais variantes. Tornar-me humilde em meu caminho espiritual interior implica que num ato livre eu coloco a fonte da minha vida em Deus, e não em mim mesmo. Para uma análise fenomenológica fica evidente que minha liberdade precede minha humildade. A humildade é mais interior, é um tesouro, uma condição espiritual mais secreta. Mas, tendo decaído e se degradado, ela se torna deteriorada e se transforma num sistema de vida externo compulsoriamente imposto, que nega a liberdade e coage o homem. Do solo da humildade estão prontas a brotar a hipocrisia e a “piedosidade”. Da mesma forma como o conceito ontológico da humildade consiste na libertação do homem espiritual, uma humildade degenerada mantém o homem numa condição de restrição e opressão, acorrentando seu potencial criativo. Os grandes ascetas e santos travaram uma luta heroica de libertação espiritual do homem, de oposição à natureza inferior, contra o poder das paixões. Os corrompedores da humildade negam a heroica luta pela liberação espiritual do homem e mantêm o homem submetido a um sistema autoritário de vida. Quando eu me humilho diante a vontade de Deus, quando eu venço em mim mesmo a revolta egoísta do escravo, eu parto da liberdade e me dirijo à liberdade. O egoísmo me escraviza, e eu desejo me libertar dele. A humildade é um dos métodos de transição de uma condição na qual prevalece a natureza inferior, para uma condição na qual a natureza superior governa, isso é, ela implica o crescimento do homem, sua ascensão espiritual. A humildade deteriorada, por seu turno, busca um sistema de vida no qual nunca entra a libertação, na qual a ascensão espiritual nunca é alcançada, na qual a natureza superior jamais se mostra. A libertação do espírito, a manifestação da natureza superior é considerada como uma condição não humilde, como uma deficiência da humildade: a humildade, de meio, se torna um fim em si mesma.

Começa-se por opor a humildade ao amor. O caminho do amor e considerado não humilde, por ser um caminho audacioso. O Evangelho é substituído pela Dobrotoliubie-Filocalia. Desde quando posso eu, pecador e indigno, pretender amar meu irmão, meu próximo? Meu amor estaria infectado pelo pecado. Primeiro é preciso que eu me humilhe, e então aparecerá o amor, como uma fruição da humildade. Mas eu posso ser humilde por toda minha vida sem jamais atingir uma condição sem pecado. E assim, tampouco o amor irá aparecer jamais. Então, como posso eu, o pecador, pretender a perfeição espiritual, atrever-me à sublimidade do espírito, alcançar o ápice da vida espiritual? Em primeiro lugar é preciso vencer o pecado pela humildade. Mas isso toma toda a vida e não deixa tempo nem forças para uma vida espiritual criativa. E isso só é possível nesse mundo, e mesmo assim é improvável, uma vez que nesse mundo só a humildade é possível. A humildade degenerada cria um sistema de vida no qual a vida não passa de um cotidiano banal, burguês, considerado mais honrado do que um modesto, Cristão e moral objetivo de uma vida espiritual mais elevada, e no qual o amor, a contemplação, a percepção e a criatividade são sempre suspeitos de orgulho e de uma humildade deficiente. Regatear no mercado, viver uma vida familiar egoísta, servir na polícia ou nos escritórios do fisco, tudo humildemente, sem presunção, sem ousadia. Por outro lado, a aspiração a uma fraternidade Cristã entre os povos, a realização da verdade de Cristo em vida, tornar-se filósofo ou poeta – um filósofo Cristão, um poeta Cristão – mas não de forma humilde, e sim orgulhosamente, presunçosamente, audaciosamente. O comerciante pode não apenas ser sovina, como até desonrado, e ainda assim estar menos sujeito ao perigo da morte eterna, do que aquele que por toda sua vida buscou o verdadeiro e a verdade, que tem sede de uma vida de beleza – como, por exemplo, Vladimir Soloviev, o Gnóstico[4], o poeta da vida, que buscava a verdadeira vida e a fraternidade do povo, e que está exposto ao perigo da morte eterna, por ser insuficientemente humilde, por ser orgulhoso. Aqui começa um círculo vicioso e sem esperanças. A aspiração por uma realização da Verdade de Deus, do Reino de Deus, das alturas espirituais e da perfeição espiritual, é proclamada como imperfeição espiritual, uma falta de humildade. Mas então, onde está o erro básico da humildade degenerada e de seu sistema de vida? O erro básico se esconde de tocaia no falso conceito da correlação entre o pecado e os caminhos de libertação do pecado, ou o atingimento de uma vida espiritual mais elevada. Eu não posso raciocinar assim – o mundo jaz no mal, eu sou um pecador, e por ser minha aspiração a uma realização da Verdade de Cristo e de um amor fraterno entre a humanidade, uma pretensão orgulhosa, uma deficiência de humildade, e, tendo isso em vista, todo impulso autêntico em direção a uma realização em amor e verdade consistirá numa vitória sobre o pecado, numa libertação do pecado. Eu não posso dizer isso – a aspiração por uma perfeição espiritual e pelas alturas do espírito constituem orgulho e falta de humildade, uma consciência insuficiente da pecaminosidade do homem, e, tendo isso em vista, todo avanço em direção a uma perfeição espiritual e às alturas do espírito será um caminho para a vitória sobre o pecado. Eu não posso falar assim – eu sou um pecador e, tendo isso em vista, minha audácia em apreender o mistério do ser e em criar a beleza já constitui em si uma vitória sobre o pecado, uma transfiguração da vida. É impossível dizer: o pecado distorce e perverte tanto o amor, como a perfeição espiritual, a cognição e tudo o mais, e, por conseguinte, não existe vitória sobre o pecado a partir de nenhum desses caminhos. Sendo assim, é também possível afirmar o contrário: o caminho da humildade foi distorcido e pervertido pelo pecado e a voracidade humana, e a humildade se encontra distorcida, degenerada, pervertida, transformada em escravidão, egoísmo e covardia. A humildade já não é uma garantia contra a distorção e a degeneração, tanto quanto o amor e o conhecimento.

O pecado só pode ser vencido com grande dificuldade e somente pelo poder da graça. Mas o caminho para essa vitória, para a aquisição da graça, é plural, e abarca toda a plenitude do ser. Nosso amor ao próximo, nosso conhecimento, nossa criatividade, estão decididamente distorcidos pelo pecado e carregam em si o selo da imperfeição, mas, de fato, também o caminho da humildade está distorcido elo pecado e carrega em si o selo da imperfeição. Cristo ordenou em primeiro lugar amar a Deus e ao próximo, e, acima de tudo, buscar o Reino de Deus e a perfeição semelhante à perfeição do Pai Celestial. A Dobrotoliubie-Filocalia – na qual não foram incluídos as mais notáveis obras místicas de São Máximo o Confessor, nem de São Simeão o Novo Teólogo, dentre outros – é em primeiro lugar uma coleção de normas ascéticas e morais destinadas a monges, e não a expressão a expressão da total plenitude do Cristianismo e de seus caminhos. Não apenas o espírito do Evangelho e das Epístolas, como também o espírito da Patrística Grega em suas correntes mais profundas, diverge dela, como, por exemplo, em relação ao espírito exclusivista da Ortodoxia de Teófano o Eremita. Definitivamente, em Teófano o Eremita existe muito de verdadeiro e de eterno, em especial em seu livro O Caminho da Salvação, mas sua atitude em relação à vida no mundo é depressiva e tímida, e seu Cristianismo é murcho e debilitado. A ideia central da Patrística Oriental encontra-se na theosis, ou deificação da criatura, na transfiguração do mundo, do cosmo, e não na ideia de uma salvação pessoal.  Não é por acaso que os grandes mestres da Igreja do Oriente se inclinaram para a ideia de apokatastasis[5], e não apenas São Clemente de Alexandria e Orígenes, como também São Gregório de Nissa, São Gregório Naziano e São Máximo o Confessor.  A concepção jurídica do processo do mundo, a concepção jurídica da expiação, a construção do inferno, a salvação dos escolhidos e a perdição eterna de todo o resto da humanidade estão expressos principalmente na Patrística Ocidental, em Santo Agostinho, e na Escolástica Ocidental. Para a Patrística Grega clássica, o Cristianismo não era apenas a religião da salvação pessoal. Ela estava orientada para a apreensão cósmica do Cristianismo, ela propunha a ideia da iluminação e da transfiguração do mundo, da deificação do criado. Somente mais tarde a consciência Cristã adotou com mais ênfase a ideia do inferno, mais do que a da transfiguração e theosis do mundo. Isso aconteceu, talvez, como resultado da preponderância de nações bárbaras com seus instintos ferozes. Essas nações precisavam estar sujeitas a uma disciplina severa e intimidadora, uma vez que sua carne e sangue, suas paixões, ameaçavam arruinar o Cristianismo e toda forma de ordem do mundo. O Cristianismo, visto como uma religião de salvação pessoal da perdição eterna através da humildade, conduziu ao pânico e ao terror. O homem passou a viver debaixo de uma tensão horrível de terror em relação à perdição eterna, e assim ele consentiria com qualquer coisa, desde que pudesse evitá-la. O sistema autoritário de obediência e submissão criou uma emoção atingida pelo medo da perdição, um terror pânico dos castigos eternos do inferno[6]. Debaixo de tal disposição espiritual, sob esse tipo de estado mental, uma atitude criativa em relação à vida era muito difícil. Não há tempo para a criatividade quando se está sob a ameaça da destruição. Toda a existência é colocada debaixo do signo do terror, do medo. Quando a peste é devastadora e a segunda morte nos ameaça, não temos tempo para a criatividade, estamos ocupados exclusivamente com medidas de salvação da peste. Algumas vezes o Cristianismo foi também concebido como uma salvação contra a devastação da peste. A criatividade e a construção da vida se tornaram possíveis apenas graças ao sistema dualista, que garantiu momentos de esquecimento em relação à salvação e à perdição. O homem devotou-se à ciência, à arte ou à ordem social, esquecendo-se nesses momentos da ameaça da destruição, revelando para si mesmo uma outra esfera do ser, separada dessa esfera na qual a perdição e a salvação são cumpridas – e essas duas esferas não se conectavam. O entendimento do Cristianismo como uma religião de salvação pessoal da perdição constitui um sistema de egoísmo transcendental, de um utilitarismo e de uma Eudaimonia transcendentais. Konstantin Leontiev, como a audácia típica dele, professou essa religião de egoísmo transcendental. Mas isso foi porque sua atitude em relação à vida do mundo era inteiramente pagã, e ele conjugou dualistamente em si o homem de Athos e a Ortodoxia ascético-monástica de Optina, juntamente com o homem da Renascença Italiana do século XVI. Com uma consciência transcendental, o  homem não está preocupado em atingir uma alta perfeição na vida, mas com aquilo que diz respeito à salvação de sua própria alma, com o pensamento de receber sua própria satisfação eterna. O egoísmo transcendental e o eudaimonismo negam de maneira inata o caminho do amor, e não podem ser fieis ao mandamento Evangélico, que nos manda perder nossa alma para que possamos ganhá-la, renunciar a ela em favor do nosso próximo, aprender o amor acima de tudo, esse amor incondicional por Deus e pelo próximo. Mas, propor o Cristianismo como uma religião de egoísmo transcendental, desconhecendo o amor incondicional pela perfeição Divina, equivale a blasfemar o Cristianismo. Ou se trata de um Cristianismo bárbaro, que rebaixa a selvageria das paixões, mas é distorcido por elas, ou se trata de um Cristianismo degenerado, enfraquecido e empobrecido. O Cristianismo era, é e sempre será não só uma religião de salvação pessoal e medo da perdição, mas também uma religião da transfiguração do mundo, da deifi9cação da criatura, uma religião cósmica e social, uma religião de amor incondicional, um amor por Deus e pelo homem, a aliança e a promessa do Reino de Deus. Sob o entendimento individualista e ascético do Cristianismo, como uma religião de salvação pessoal, que diz respeito apenas à própria alma de alguém, a revelação sobre a ressurreição de todas as criaturas é ininteligível e desnecessária. Para uma religião de salvação pessoal não existe uma perspectiva escatológica mundial, não existe conexão com as pessoas, nem da alma individual humana com o mundo, com o cosmo, com toda a criação. Dessa forma se nega uma ordem hierárquica da existência, na qual tudo está interligado, e da qual o destino individual não pode ser destacado. O entendimento individualista da salvação é mais típico do pietismo Protestante do que do Cristianismo enquanto Igreja. Eu não posso me salvar por mim mesmo, na solidão, eu só posso ser salvo junto com meus irmãos, junto com toda a criação de Deus, eu não posso pensar apenas na minha própria salvação, eu devo também pensar na salvação de todos, de todo o mundo. E, de fato, a salvação não passa da expressão exotérica do atingimento das alturas espirituais, da perfeição, da semelhança para com Deus, como o supremo valor da vida na terra.


III

Todos os maiores místicos Cristãos colocaram um amor fiel confesso a Deus e a união com Deus acima da salvação pessoal. Um Cristianismo mais exterior costuma criticar os místicos por isso, porque para eles o centro de gravidade da vida espiritual reside totalmente fora do caminho da salvação espiritual, e eles seguem uma perigosa senda de amor místico. O místico, de fato, representa um grau inteiramente diferente da vida espiritual em relação ao asceta. O místico pode estudar – é típico dele – lendo os Hinos de São Simeão o Novo Teólogo. O místico também entende a salvação como iluminação e transfiguração, a deificação da criatura, como uma superação do isolamento do conjunto das criaturas, isso é, da separação em relação a Deus. A ideia da theosis gravita acima da ideia de salvação. Isso foi lindamente expresso por São Simeão o Novo Teólogo: “Estou imbuído de Seu amor e beleza, e cheio da delícia e doçura Divinas. Eu me tornei partícipe do esplendor e da glória; minha face, como a do meu Bem-Amado, brilha, todos os meus membros trazem em si o esplendor. Por isso, juntamente, eu me torno mais belo do que o belo, mais divino do que os deuses, mais poderoso do que os poderosos, maior do que os reis e mais venerável do que tudo o que possa ser visto, na terra e acima da terra, e ainda nos céus e mais do que tudo o que está além dos céus”. Mencionei acima o maior místico da Ortodoxia Oriental. Seria possível aqui citar inúmeros fragmentos de místicos do Ocidente, Católicos Latinos e místicos Alemães, que concordam com esse pensamento, de que no centro de gravidade místico jamais se encontra o anseio pela salvação. Os místicos católicos superaram o “jurisdicismo” da teologia Católica, o entendimento legalista das relações entre Deus e o homem. A disputa de Bossuet com Fenelon foi também a disputa entre um teólogo e um místico[7]. No caminho místico existe sempre um esquecimento incondicional e um deslocamento do “eu”, uma abertura amorosa incomensurável perante Deus. Mas o amor a Deus é uma condição criativa do espírito, nele está a superação de todas as restrições, uma libertação, uma revelação afirmativa do homem espiritual. A humildade não passa de um meio, e, mesmo assim, de um meio negativo. O amor a Deus é um fim, desde já um fim positivo. O amor a Deus é desde logo uma transfiguração criativa da natureza humana. Mas o amor a Deus é semelhante ao amor pelas alturas espirituais, pelo Divino na vida. O eros Divino constitui uma ascensão espiritual, um crescimento espiritual, uma vitória da condição criativa do espírito sobre a condição restritiva, uma abertura das asas da alma, de que falava Platão no Fedro. O conteúdo afirmativo do ser é vivo, criativo, é um amor que transfigura. O amor não é algo particular, um aspecto separado da vida, o amor é a totalidade da vida, a plenitude da vida. O conhecimento é como uma revelação do amor, de um amor cognitivo, uma união cognitiva do amante para com seu objeto amado, para com a existência, para com Deus. A criatividade do bel é como uma revelação da harmonia do amor na existência. O amor é a afirmação da face do amado na eternidade e em Deus, isso é, é a afirmação da existência. O amor é um princípio básico ontológico. Mas o amor é inseparável do amor ao próximo, do amor pela criação de Deus. O Cristianismo é também uma revelação do amor Divino-humano. Esse amor me salva, vale dizer, não apenas o amor a Deus, mas também o amor aos homens, transfigura minha natureza. O amor ao próximo, aos irmãos, toda ação amorosa entra no caminho da minha salvação, da minha transfiguração. No caminho da minha salvação entra o amor pelos animais e plantas, por cada coisa, pelas pedras, pelos rios e mares, pelas colinas e campos. também por intermédio deles eu posso ser salvo, e todo o mundo pode ser salvo e alcançar a iluminação. A indiferença mortal aos homens e à natureza, em relação a todas as coisas vivas em nome de uma auto-salvação é uma manifestação odiosa de egoísmo religioso, um ressecamento da natureza humana, é um colocar-se “no coração de eunucos impotentes”. O amor Cristão não deve ser um “amor de vidro transparente”, na expressão de Vasily Vasilievich Rozanov. Também o amor espiritual abstrato é um “amor de vidro transparente”. Somente um amor espiritualizado da alma, no qual a alma é transfigurada em espírito, é um amor vivo e Divino-humano. O desdém que por vezes encontramos no monasticismo ascético em relação às pessoas e ao mundo, um esfriamento do coração e uma mortificação perante tudo o que vive, constitui uma degeneração do Cristianismo, um empobrecimento dentro do Cristianismo. A substituição do mandamento de amor a Deus e ao próximo, dado pelo próprio Cristo, por um mandamento de humildade exterior e obediência, o esfriamento de qualquer forma de amor, é também uma degeneração do Cristianismo, uma incapacidade de ajustar-se à verdade do Cristianismo. É preciso notar que a ideia da transfiguração e da iluminação cósmica é especialmente mais próxima do Oriente Ortodoxo. O Cristianismo Ocidental está mais perto do ideal jurídico. E a ideia de justificação é central para a consciência dos Católicos e dos Protestantes. Por isso, no Ocidente, as disputas entre a liberdade e a graça, entre a fé e as boas obras, adquirem especial importância. Daí a busca pela autoridade e por critérios exteriores da verdade religiosa[8]. Apenas os místicos se elevam acima da asfixiante ideia do juízo de Deus, da exigência de Deus pela justificação do homem, e eles entendem que para Deus não é necessária a justificação do homem, mas sim o amor do homem, a transfiguração de sua natureza. Esse é o problema central da consciência Cristã: até que ponto a essência do Cristianismo está na justificação e no julgamento, na inexorável justiça de Deus, ou até que ponto sua essência está na transfiguração e na iluminação, no infinito amor de Deus. O entendimento jurídico do Cristianismo, que produz o estado de terror espiritual atual, é um método severo por meio do qual o Cristianismo subjugou as nações, que estavam cheias de instintos sanguinários, crueldade e barbárie. Mas a esse entendimento se opõe uma compreensão mais profunda do Cristianismo, visto como uma revelação de amor e liberdade. O homem é chamado a ser criador e compartícipe nos atos de Deus na criação. Esse é o chamado de Deus dirigido ao homem, e ao qual o homem deve responder livremente. Para Deus, escravos obedientes e servis são totalmente inúteis, eternamente tremendo e egoistamente voltados para si próprios. Para Deus são necessários os filhos – livres e criativos, amorosos e atrevidos. O homem distorceu terrivelmente a imagem de Deus, e atribuiu a Ele sua própria psicologia perversa e pecadora. Mas é sempre preciso lembrar a verdade da teologia apofática. Se é necessário atribuir a Deus uma vida emotiva, não se segue daí como consequência apresentá-la sob a forma das mais vis emoções humanas. O terror espiritual, o pânico espiritual, gerados a partir de um entendimento jurídico sobre o relacionamento entre Deus e o homem, e a colocação da justificação no centro da fé Cristã, nascida de um entendimento da vida emotiva de Deus, em tudo se apresentam como as mais vis emoções da vida humana. Mas Deus revelou a Si próprio no Filho, como Pai, como amor infinito. E com isso está para sempre superado o entendimento de Deus como um Senhor feroz, vingativo e furioso. “Deus, não enviou Seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que, por meio Dele o mundo seja salvo”. “Essa é a vontade do Pai que Me enviou, de que, todos os que Ele concedeu a Mim, nenhum pereça, mas que ressuscitem todos no último dia[9]”. O homem é chamado à perfeição, à perfeição semelhante à do Pai Celeste. A revelação Cristã é antes de tudo a boa nova a respeito da vinda do Reino de Deus, que devemos buscar acima de tudo. A busca pelo Reino de Deus, portanto, não constitui uma mera busca pela salvação pessoal. O Reino de Deus consiste na transfiguração do mundo, na ressurreição universal, em novos céus e uma nova terra.


IV

O conceito de mundo Cristão não apenas não obriga, como inclusive não nos permite pensar que a realidade se restringe às almas individuais das pessoas, que somente elas constituem a criação de Deus. A sociedade e a natureza também constituem uma realidade e foram criadas por Deus, a sociedade não é uma invenção humana. Desde o início ela teve raízes ontológicas, tanto quanto a pessoa humana. E é impossível separar a pessoa humana da sociedade, assim como é impossível separar a sociedade da pessoa humana. A pessoa e a sociedade estão situadas numa vida interdependente, elas pressupõem uma única proposta concreta. A vida espiritual da pessoa se reflete na vida da sociedade. E a sociedade é uma espécie de organismo o espiritual, que é alimentado pela vida das pessoas, e que as alimenta. A negação da realidade da sociedade constitui um nominalismo, e essa forma de nominalismo traz consigo uma consequência fatal para a consciência da Igreja, para um entendimento da natureza da Igreja. A Igreja é uma sociedade espiritual, e essa sociedade está imbuída de uma realidade ontológica, ela não pode ser limitada a uma cooperativa de almas que desejam ser salvas. Na sociedade eclesial se realiza do Reino de Deus, e não apenas as almas individuais se salvam aí. Quando eu digo que só é possível ser salvo na Igreja, eu estou afirmando a sobornost, a universalidade coletiva da salvação, a salvação por meio e no seio de uma sociedade espiritual, a salvação com meus irmãos em Cristo e com toda a criação de Deus, ao mesmo tempo em que nego o entendimento individualista da salvação, a salvação no isolamento (salve-se quem puder, force um caminho para o Reino  Celestial, como disse uma vez um Ortodoxo), e repudio o egoísmo na salvação. Muitos pensam que a interpretação do Cristianismo enquanto religião de salvação pessoal é, em primeiro lugar, uma interpretação eclesial. Mas, de fato, isso vai contra a própria ideia de Igreja, e submete a realidade da Igreja a uma degradação nominalista. Se algumas das mais populares opiniões expressas no mundo Ortodoxo, se alguns hierarcas enfatizam seu caráter eclesial, isso não significa, entretanto, que elas sejam tão eclesiais em sua profundidade, no sentido ontológico do termo. Houve um tempo em que o Arianismo foi popular entre os hierarcas do Oriente. Possivelmente, essas opiniões refletem um empobrecimento e uma ossificação do Cristianismo. No mundo não teriam havido tantas catástrofes e revoltas terríveis, tanto ateísmo e desprezo pelo espírito, se o Cristianismo não tivesse se tornado tão altivo, tedioso, sem criatividade, se ele não tivesse deixado de inspirar e dirigir a vida da sociedade e da cultura humanas, se não tivesse aprisionado a alma humana num canto qualquer, se o dogmatismo e o ritualismo convencional e exterior não tivessem substituído a existência real do Cristianismo dentro da existência. E o futuro das sociedades e das culturas humanas depende disso, de até que ponto o Cristianismo será capaz de acolher o significado de uma vida criativa e transfigurativa, até que ponto haverá dentro do Cristianismo uma energia espiritual, capaz de gerar entusiasmo, capaz de nos guiar da decadência para a ascensão.

O staff oficial da Igreja, os profissionais da religião nos dizem que somente a questão da salvação pessoal é necessária, que para tal finalidade a criatividade não só não é necessária, como é perigosa. Nesse caso, para quê conhecimento, para quê ciência e arte, para quê invenções e descobertas, de que servem as verdades sociais, a criatividade para uma vida melhor, se a destruição eterna me ameaça e se somente a salvação eterna é necessária para mim? Esse tipo de consciência pânica religiosa supressiva e absoluta, esse tipo de sentimento a respeito de si mesmo, não têm como justificar a criatividade. Nada é necessário, quando se trata da salvação pessoal da alma.  A partir daí, conhecimento é desnecessário, assim como a arte, a economia, e até mesmo a existência da natureza – o mundo de Deus é desnecessário. É verdade que às vezes eles nos dizem que é preciso que haja um poder supremo, e que exista algo debaixo dele, na forma de uma monarquia autocrática, de tal forma que tudo consista num sistema religioso que só seja possível graças à existência de uma monarquia Ortodoxa, à qual seja confiada toda a organização da vida. Mas em última análise é preciso reconhecer que o domínio de um poder supremo não só é desnecessário para a minha salvação, como ainda é nocivo a ela. Esse tipo de consciência religiosa é incapaz de dar justificação a qualquer tipo de questão do mundo, ou só é capaz de fazê-lo através de inconsistência e sofrimento. Existe uma tendência Budista dentro do Cristianismo. Ela permanece somente nos mosteiros, mas a própria existência de mosteiros pressupõe que eles sejam protegidos pela ordem civil. Esse tipo de consciência se inclina a justificar uma existência burguesa pífia, medíocre e desapaixonada, e a reunir em um mesmo sistema alguns elementos monásticos, mas nunca pode justificar a criatividade. A questão deve ser colocada de outra forma, e o Cristianismo não apenas permite, como ainda nos ordena colocar a questão de outra maneira. Uma pessoa simplória, dizem-nos eles, tem mais chances de salvação do que um filósofo, e para ela a salvação implica não precisar aprender, não precisar de cultura, etc. mas isso deve nos levar a concluir que, para Deus, apenas os simplórios são necessários, e que com eles Deus esgota todos os seus planos para o mundo, com eles se cumpre a ideia de Deus para o mundo. Mas, de fato, presentemente o simplório não passa de um mito, e na verdade ele se tornou niilista e ateu. O filósofo e o homem culto se tornaram os fiéis. Os rústicos, os tolos e mesmo os idiotas podem ser salvos à sua própria maneira, mas o que se quer que acredite é que na ideia de Deus para o mundo, no esquema do Reino de Deus, tudo será povoado exclusivamente pelos rústicos, os tolos e os idiotas. Podemos presumir, transgredindo a humildade, que o plano de Deus para o mundo é mais elevado, mais multiforme e esplêndido, e que nele entre a plenitude positiva do ser, a perfeição ontológica. O Apóstolo recomenda que sejamos crianças no coração, mas não na mente. E aqui a criatividade do homem, o aprendizado, as artes, a melhoria da sociedade, etc., são necessárias, não para a salvação pessoal, mas para a realização do intento de Deus em relação ao mundo e à humanidade, para a transfiguração do cosmo, para o Reino de Deus, no qual entra toda a plenitude da existência. O homem é chamado a ser criador, coparticipante dos feitos de Deus na criação e na organização do mundo, e não apenas para ser salvo. E existem ocasiões nas quais o homem é capaz, em nome da criatividade, para a qual foi vocacionado por Deus, de renunciar a pensar a respeito de si e de sua alma. Vários dons foram concedidos por Deus ao povo, e ninguém tem o direito de enterrá-los no chão, pois todos esses talentos têm que ser criativamente realizados, manifestados nas vocações objetivas do homem. Sobre isso falaram com grande contundência os Apóstolos Paulo[10] e Pedro[11]. Esse é o plano de Deus para o homem – que a natureza da pessoa humana seja criativa. A pessoa é salva. Mas para isso, para que a pessoa seja salva. É preciso que ela afirme sua autêntica natureza. A natureza realmente autêntica da pessoa está nisso, em que ela e o centro da energia criativa. Fora da criatividade não existe pessoa. A pessoa criativa é salva para a eternidade. A afirmação em oposição à criatividade é uma afirmação de salvação de vazio, de não-ser. Existe, inerente ao homem, em sua existência positiva, uma psicologia criativa. Ela pode ser suprimida ou escondida, pode ser revelada – mas ela é ontologicamente inerente ao homem. O instinto criativo no homem não é um instinto egoísta, e nele o homem esquece-se de si mesmo, ele emerge de si. As descobertas científicas, as invenções técnicas, a criatividade artística, a criatividade social, podem ser necessárias para outros e úteis para finalidades práticas, mas a criação em si é tanto não egoísta como uma renúncia de si, nisso reside a essência da psicologia criativa. A psicologia da criatividade é muito distinta da psicologia da humildade e não pode ser construída em cima dela, a humildade é uma ação espiritual mais exterior, na qual o homem está mais preocupado com sua alma, com a sua própria superação, seu autoaperfeiçoamento, sua salvação. A criatividade é uma ação espiritual, na qual o homem esquece de si, renuncia a si no ato criativo, é absorvido pelo seu objeto. Na criatividade, o homem testa a condição da extraordinária ascensão de todo o seu ser. A criatividade é sempre um choque e um tremor, no qual o egoísmo da vida humana de todo dia é ultrapassado. E o homem consente em arriscar sua própria alma em nome da atividade criativa. É impossível fazer descobertas científicas, contemplar os mistérios da existência filosoficamente, ter percepções artísticas, criar reformas sociais, apenas numa condição de humildade. A criatividade pressupõe outra condição espiritual, não em oposição à humildade, mas qualitativamente distinta dela, e em outro momento da vida espiritual. Santo Atanásio o Grande revelou a verdade sobre a homoousia,[12] não como uma condição de humildade, mas como uma condição de ascensão criativa e de iluminação, embora a humildade a preceda. A criatividade pressupõe uma ascese espiritual característica, ela não faz concessões às suas paixões. A criatividade pressupõe uma autonegação e um sacrifício, uma vitória sobre o “poder do mundo”. A criatividade é uma revelação do amor a Deus e ao Divino, e não a esse mundo. Por isso, o caminho da criatividade é também um caminho de superação “do mundo”. Mas a criatividade é uma qualidade diferente da vida espiritual, diferente da humildade e da ascese, ela é uma revelação da natureza do homem enquanto imagem de Deus. Algumas vezes, raciocina-se da seguinte maneira: primeiro o homem precisa ser salvo, vencer o pecado, para só então criar. Mas esse entendimento de uma relação cronológica entre a salvação e a criatividade está em contradição com as leis da vida. Isso nunca ocorreu, nem há de ocorrer. Eu preciso de toda a minha vida para ser salvo, e até o fim de minha vida não terei vencido definitivamente o pecado. De modo que nunca acontecerá o momento em que eu estarei apto a criar. Ao contrário, assim como o homem precisa de toda a sua vida para ser salvo, também ele precisa de toda a sua vida para criar e para participar do processo criativo em conformidade com seus dons e sua vocação. A relação entre a salvação e a criatividade é ideal a interior, mas não é uma relação baseada numa sequência corporal cronológica. A criatividade auxilia, ela não impede a salvação, uma vez que ela é a realização da vontade de Deus, uma obediência ao chamado de Deus, uma coparticipação na ação de Deus sobre o mundo. Seja eu um carpinteiro ou um filósofo, sou chamado por Deus para criar construtivamente. Minha criatividade pode ser distorcida pelo pecado, mas uma total falta de criatividade é uma expressão do total sufocamento do homem pelo Pecado Original. Não é verdade que somente os ascetas e os santos podem ser salvos – também eles criaram, e foram artistas com almas humanas, O Apóstolo Paulo, a seu próprio modo espiritual, foi, por seu gênio espiritual, um criador em alto grau, mais do que um santo.


V

Nem toda criatividade é boa. Pode haver uma criatividade maligna. É possível criar não apenas em nome de Deus, mas também em nome do diabo. Mas nisso em especial, seria impossível renunciar à criatividade, em benefício do diabo, do anti-Cristo. Com grande energia, o anti-Cristo procura demonstrar sua pseudo-criatividade. E, se não houvesse uma criatividade Cristã e uma organização Cristã da vida, o anti-Cristo, sua criatividade e sua organização usurpariam mais e mais territórios, para acabar triunfando em todas as esferas da vida. Mas para a obra de Cristo no mundo é preciso lutar exteriormente, tanto quanto possível, por ocupar maiores extensões da existência, é preciso ceder o mínimo ao anti-Cristo e às suas obras no mundo. Retirar-se do mundo, negar a criatividade ao mundo, equivale a entregar o destino do mundo ao anti-Cristo. Se nós, Cristãos, não criarmos a vida em verdadeira liberdade e fraternidade entre povos e nações, o anti-Cristo o fará com sua falsidade. A divisão dualista entre uma disposição espiritual social com sua moralidade – para a qual o Cristianismo exige ascetismo, renúncia, sacrifício e amor – e a disposição e moralidade de uma governança social e criativa, de uma economia, etc. – para a qual o Cristianismo permite a ligação aos bens materiais, o culto à propriedade e a sede por riqueza, a rivalidade e a competição, a vontade do poder, etc. – já não pode existir. A consciência Cristã não pode permitir que a sociedade seja abandonada a si mesma, que ela reconhece como deficiente e pecadora. A renovação Cristã pressupõe uma nova criatividade espiritual e social, a criação de uma sociedade Cristã verdadeira, e não de um governo simbólico e convencional. É impossível continuar a tolerar a mentira convencional dentro do Cristianismo. O socialismo anti-Cristão (de tipo soviético) triunfa, porque o Cristianismo não resolve a questão social. O gnosticismo anti-Cristão triunfa, porque o Cristianismo não revela sua própria gnose Cristã. Da mesma forma, em todos os demais campos. Estamos próximos da fronteira final. Uma cultura secular, humanista e equilibrada parece cada vez menos possível. Já ninguém acredita numa cultura abstrata. Todo homem tem que enfrentar uma escolha. O mundo está dividido entre princípios que se opõem. É impossível que as coisas continuem se desenvolvendo por mais tempo, como se desenvolveram na história recente. E junto com isso está a impossibilidade de um retorno ao velho medievalismo. O problema da criatividade, o problema da cultura e da sociedade Cristã é insolúvel para a hierocracia eclesial. Esse é o problema de uma santificação religiosa do princípio humano, e não da restauração da governança do princípio angélico. A criatividade constitui uma esfera da liberdade humana, cheia de um amor copioso e abundante a Deus, o mundo do homem. Para sairmos da crise do mundo e da crise do Cristianismo, é impossível lançar mão tanto dos princípios da história recente, como dos princípios da velha Idade Média; isso somente será possível através dos princípios de uma nova Idade Média. A criatividade Cristã será uma ação do monasticismo no mundo. A crise religiosa de nossa época está vinculada ao fato de que a consciência eclesial está enfraquecida, de que ela já não possui a compreensão da totalidade. E, cedo ou tarde, essa totalidade terá que ser concebida e revelada, pois deverá haver um desenvolvimento positivo do mundo, e na cultura se revelará a liberdade humana na Igreja, haverá uma revelação da vida da humanidade na Igreja, isso é, deverá ser algo subconscientemente eclesial. A criatividade do homem no mundo deverá ser a vida da própria Igreja, segundo o modelo do Deus-homem. Isso não significa em absoluto que toda a criatividade e toda criação do homem na nova história deva ser subconscientemente eclesial. Esse processo será duplo, nele deverá ser estar colocado o reino desse mundo, o reino do anti-Cristo. Também no humanismo reside uma grande mentira, uma revolta contra Deus, nele está colocada a destruição do homem e a extinção da existência. Mas também acontece uma busca positiva da liberdade humana, uma revelação dos poderes criativos do homem. O processo criativo que se seguirá na humanidade não poderá permanecer neutro, ele terá que ser positivamente eclesial, para ser consciente de si mesmo, ou definitivamente ele se tornará anti-eclesial, anti-Cristão, satânico. No mundo, na cultura, deverá se efetuar uma verdadeira separação ontológica, não formal e exteriormente eclesial, mas interiormente espiritual e ontologicamente eclesial. Nisso está o sentido de nossos tempos. As energias Divinas são eficazes em qualquer parte do mundo através de caminhos múltiplos e frequentemente indiscerníveis. E não fará sentido chamar os “pequeninos” de nosso tempo, os filhos pródigos que retornam à Igreja, negando todo sentido positivo do processo criativo, que se desenvolve no mundo.

Nos tempos recentes todos os povos espiritualmente significativos estavam espiritualmente isolados. O gênio, o inovador criativo, se encontra terrivelmente, tragicamente isolado. Não há uma consciência religiosa de que o gênio possa ser um mensageiro dos céus. Muito raramente podemos ouvir algumas vozes, como as de alguns Católicos, que pedem a canonização de Cristóvão Colombo. Seu isolamento enquanto gênio dá lugar a um dualismo, que exclui toda e qualquer discussão. Somente uma renovação cristã, que seja criativa, seria capaz de superar esse dualismo. Mas a renovação criativa da Igreja não pode ser concebida em categorias hierocráticas, é impossível forçá-la dentro da estrutura de um profissionalismo eclesial, é impossível pensar nisso exclusivamente como um processo “sacro”, em contraste com os processos “profanos”. A renovação criativa da Igreja virá da comoção do mundo, da cultura, das energias religiosas criativas acumuladas no mundo. Mais do que nunca precisamos acreditar que Cristo age dentro da própria raça humana espiritual, que ele não a abandonou, embora para nós essa atuação seja invisível. Os Cristãos se veem diante da tarefa da Igrejificação da totalidade da vida. Mas essa Igrejificação não implica a subordinação invariável de todos os aspectos da vida à Igreja, mas ela deve ser entendida de outra maneira, isso é, ela não significa a retomada da teocracia e da hierocracia. A Igrejificação deve inevitavelmente ter a seu lado o reconhecimento pela Igreja da criatividade espiritual, que uma consciência eclesial hierocrática diferenciada deverá ser proposta externamente à Igreja. A Igreja, num sentido profundo do termo, sempre viveu no mundo, e ela sempre teve processos eclesiais subconscientes no mundo. A plenitude da Igreja, enquanto vida humana Divina, a revelação de uma consciência integral da Igreja implica a deificação por meio de uma nova experiência espiritual da humanidade. E é impossível que essa experiência espiritual permaneça injustificada e não-santificada. O homem está imensamente ansioso e sedento pela santificação de suas aspirações criativas. A Igreja é vida, e a vida é movimento, criatividade. É impossível resistir por mais tempo se o movimento criativo tiver que permanecer fora da Igreja e em oposição a ela, e se a Igreja tiver que permanecer imóvel e desprovida de vida criativa, certas formas da consciência da Igreja reconheceram prontamente uma teofania, uma “manifestação de Deus” nas formas ossificadas da existência, nos corpos imperturbáveis da história – como, por exemplo, na regra monárquica. Mas seguiram-se tempos, nos quais a consciência da Igreja foi obrigada a reconhecer a teofania na criatividade. Tudo o que está fora da Igreja, todo o secular, toda a criatividade humanista murchou e se viu num impasse. A cultura se tornou insípida. Uma sede de eternidade atormenta o povo. E isso significa que deve se seguir uma época em que a criatividade seja da Igreja, que seja Cristã e Divino-humana. A Igreja não pode ser uma faceta da vida, uma faceta da alma. Nós esperamos que todas as atitudes criativas e transfigurativa diante da vida passem do mundo para a Igreja. Somente dentro da Igreja pode ser preservada e revelada a imagem e a liberdade do homem, que sofreu uma destruição pelos processos que aconteceram no mundo. Nessa civilização sem Deus, na qual perece a imagem do homem e a liberdade do espírito, a criatividade se enfraquece, e rapidamente instala-se a barbárie. A Igreja deve, mais uma vez, salvar a cultura espiritual, a liberdade espiritual do homem. É isso que eu chamo de estabelecimento de uma nova Idade Média. O desejo por uma real transfiguração da vida desperta agora, não meramente no nível pessoal, mas também na sociedade e no mundo. E essa boa vontade não pode ser diminuída pela percepção de que o Reino de Deus sobre a terra não é possível. O Reino de Deus existe por toda eternidade e em cada instante da vida, e ele não depende de que no mundo o poder do mal seja vitorioso exteriormente. Nossa tarefa consiste em devotar toda nossa vontade e toda nossa vida à vitória do poder do bem, da verdade de Cristo, em tudo e em toda parte.

A vida humana está partida e fragmentada por duas tragédias – a tragédia da Igreja e a tragédia da cultura. Essas tragédias são causadas por uma deficiência dualista, por um empobrecimento da Igreja devido a um entendimento diferenciado e hierárquico a respeito de si mesma, que coloca a Igreja sempre em oposição ao mundo. Nós, Cristãos, não devemos amar “o mundo”, mas devemos vencer “o mundo”. Mas esse “mundo” a ser superado, para os santos Padres, consiste nas paixões a serem vencidas, o pecado e o mal, mas não a criação de Deus, não o cosmo. A Igreja está em oposição a semelhante “mundo”, mas não em oposição ao cosmo, à criação de Deus, à plenitude positiva da existência. A resolução das duas tragédias está na vida, e não numa percepção exclusivamente teórica do Cristianismo; ela está numa religião que seja não apenas de salvação, mas também de criatividade, uma religião de transfiguração do mundo, de uma ressurreição universal, do amor de Deus e do homem, isso é, numa atenção total da verdade Cristã focada no Deus-homem, focada no Reino de Deus. E a solução positiva está colocada desse lado da oposição entre heteronomia e autonomia. A criatividade não é heterônima, nem autônoma, ela é inteiramente não “nômica”, ela é Divino-humana, ela é uma revelação do amor profuso do homem por Deus, ela é a resposta do homem ao chamado de Deus, à expectativa de Deus. Nós acreditamos que no Cristianismo estão contidos poderes criativos inexauríveis. E a revelação desses poderes podem salvar o mundo da decadência e do declínio. A questão de nossos tempos consiste não na luta entre o Cristianismo eclesial e o não-eclesial, mas numa luta espiritual dentro da Igreja, entre correntes internas, uma exclusivamente conservadora e outra criativa. E um monopólio da eclesialidade não pode pertencer exclusivamente às correntes conservadoras hostis a criatividade. Disso depende o futuro da Igreja sobre a terra, o futuro do mundo e da humanidade. Na Igreja encontra-se um princípio conservador eterno, e ele deve proteger imutavelmente o sagrado e a tradição. Mas na Igreja deve também existir um princípio criativo eterno, um princípio transfigurador, orientado para a Segunda Vinda de Cristo, para o triunfo do Reino de Deus. Na fundação da fé Cristã está não só o sacerdotal, mas também o profético, “Mas temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a medida de sua fé[13]”. A criatividade, a descoberta criativa do gênio do homem é, nos tempos presentes, uma profecia, que deve ter seu significado sagrado restaurado.



























[1] Traduzimos “Creativity” – a capacidade de criar (the ability to create) – por “Criatividade”, que é sua tradução correta, lembrando que essa última costuma ser mais associada à imaginação, ou seja, a uma ferramenta da criatividade, do que à capacidade, ao potencial criador que cada homem traz dentro de si. 
[2] N.T.: a linguagem eufemística Russa fala do monasticismo como a adoção de uma roupagem e de uma vida angélica, como a imagem de uma prática, que não sensibiliza a mente Ocidental, mas que esconde ainda o cisma dualista mencionado acima.
[3] Trata-se da versão Russa da Filocalia dos Padres Népticos, com algumas diferenças em relação a essa.
[4] Utilizo o termo “gnóstico” não no sentido da gnose herética de Valentino ou Basilides, mas no sentido de um conhecimento religioso, de uma livre teosofia (não confundir com o “teosofismo” de Elena Blavatsky – N.T.), como em Clemente de Alexandria, Orígenes, Franz Baader e Vladimir Soloviev.
[5] A restauração cósmica.
[6] “O medo do tormento é o caminho do escravo, o desejo de recompensa é o caminho do mercenário. Mas Deus deseja aquele que o procura pelo caminho do amor filial” (Revelatory Narratives of a Wanderer to his Spiritual Father, pg 35).
[7] Jacques-Bénigne Bossuet foi um bispo e teólogo francês, um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino, defendendo o argumento que o governo era divino e que os reis recebiam seu poder de Deus. Embora fosse moderado com os Protestantes, ele atacou, dentro do Catolicismo, o Quietismo, forma de misticismo praticada pelo Arcebispo de Cambray, François Fenélon.  Bossuet era, por natureza, um intelectual e um teólogo, e não podia compreender uma forma de misticismo que consistia numa contemplação devocional passiva e no total abandono perante a presença divina de Deus.
[8] Num certo sentido o dogma da infalibilidade papal e a gnoseologia de Kant se baseiam no mesmo princípio de um critério justificador da Verdade externo e jurídico.
[9] João 3: 13; 6: 39-40.
[10] 1 Coríntios 12: 28.
[11] 1 Pedro 4: 10.
[12] “De mesma essência”, de Cristo em relação ao Pai, em contraste com a homoiousia, “de essência similar” da definição herética do Arianismo, na qual se nega, de fato, a plena Divindade da natureza de Cristo, negando-se assim o efeito salvífico da Encarnação. O famoso aforismo de Santo Atanásio, em sua obra Da Encarnação, declara: “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”, mas no sentido da theosis, não de um panteísmo qualquer.
[13] Romanos 12: 6.