SALVAÇÃO
E CRIATIVIDADE[1]
(1926)
Dedicado à memória de Vladimir Soloviev
“Cada um viva de acordo com a graça recebida e coloquem-se
a serviço dos outros,
como bons administradores das muitas formas da graça que
Deus concedeu a vocês.”
(I Pedro 4: 10)
I
A correlação entre os caminhos de salvação do homem e os caminhos da
criatividade humana é uma questão extremamente central, tormentosa e aguda de
nossa era. O homem se deteriora e tem sede de salvação. Mas o homem é também,
por natureza, um artesão, um criador, um construtor da vida, e a sede por
criatividade – por manifestar seu potencial criador – não pode ser extinta
nele. Pode o homem ser salvo ao mesmo tempo em que cria, pode ele criar e ao
mesmo tempo ser salvo? E como perceber o Cristianismo: será o Cristianismo
exclusivamente a religião da salvação da alma para a vida eterna, ou será o
potencial criativo – a criatividade – por uma vida mais elevada, justificado
pela consciência Cristã? Todas essas
questões atormentam a alma contemporânea, embora elas nem sempre sejam
percebidas em sua profundidade. Querendo desenvolver sua vocação existencial,
seu ato criativo na vida, os Cristão nem sempre se dão conta de que existe um
discurso a respeito do próprio conceito do Cristianismo, sobre a assimilação de
sua plenitude. O tormento do problema da salvação e da criatividade reflete o
cisma entre a Igreja e o mundo, entre o espiritual e o mundano, entre o sacro e
o secular. À Igreja cabe a salvação, ao mundo secular, a criatividade. O ato
criativo, que diz respeito ao mundo, não recebe uma justificação, ele não é
santificado pela Igreja. Existe um profundo desdém, quase que um desprezo do
mundo eclesial em relação a esses feitos na vida da cultura, na vida da
sociedade, que são inteiramente processos desenvolvidos no seio do mundo. Na
melhor das hipóteses a criatividade é admitida, tolerada, e pode ser
disfarçadamente observada, sem que jamais se conceda a ela uma profunda
justificação. A salvação é matéria de primeira classe, a única coisa
necessária, enquanto que a criatividade é matéria de segunda ou terceira classe,
que pode ser aplicável à vida, mas que não faz parte da essência desta. Vivemos
sob o signo de um profundo dualismo religioso. A “hierocracia”, o clericalismo,
constituem, segundo o entendimento da Igreja, a expressão e a justificativa
para esse dualismo. A hierarquia da Igreja é, em sua essência, uma hierarquia
angélica, mas não humana. No mundo humano, as hierarquias angélicas celestiais
estão apenas simbolizadas. O sistema hierocrático, a soberania exclusiva do
sacerdócio na vida da Igreja e, por intermédio da Igreja, também na vida do
mundo, consiste na supressão do princípio humano pelo angélico, na subordinação
do princípio humano ao princípio angélico, como um apelo para guiar a
existência. Trata-se sempre da soberania de um simbolismo condicional[2].
Mas a supressão do princípio humano, o não consentimento de sua expressão
criativa única, prejudica a capacidade do Cristianismo de ser a religião do
Deus hominal. Cristo era o Deus-homem, não o Deus-anjo, e nele estavam
perfeitamente unidas em uma pessoa a natureza Divina com a natureza humana, e
assim essa natureza humana se via transportada à Vida Divina. A Cristo, o
Deus-homem, foi o princípio fundamental da nova e espiritual raça humana, da
existência de um hominidade Divina, não de uma “angelicidade” Divina. A Igreja
de Cristo é uma Igreja da hominidade Divina. O princípio angélico consiste num
princípio intermediário entre Deus e o homem, um princípio intermediário
passivo, que transmite a energia Divina, que conduz a graça Divina, mas que não
é um princípio ativo e criativo. O princípio ativo e criativo foi concedido à
humanidade. Mas a limitação pecaminosa da humanidade não permite a plenitude da
verdade Cristã. A soberania supressiva do princípio hierocrático angélico é um
indicativo da humanidade pecadora no sentido de expressar sua natureza
criativa, no sentido de aceitar o Cristianismo em sua plenitude e totalidade. O
caminho de salvação para a humanidade pecadora torna óbvia sua necessidade,
acima de tudo, de um princípio hierocrático angélico. Mas o caminho da
criatividade permanece como um caminho humano autônomo, não santificado e não
justificado, e nele o homem é deixado a só.
A não expressão religiosa do princípio humano, enquanto parte orgânica
da vida do Deus-homem, a não abertura religiosa para a livre vocação do homem,
cria o dualismo entre a Igreja e o mundo, entre a Igreja e a cultura, o agudo
dualismo entre o sacro e o profano. Para o fiel Cristão foram criadas duas
vidas, uma de primeira classe, outra de segunda classe. E esse dualismo, essa
bipolaridade da existência alcança seu ápice no Cristianismo do tempo atual. Durante
o medievo, o Cristianismo possuía sua própria cultura teocrática, hierocrática,
que subordinava toda a criatividade da existência ao princípio religioso, que
era concebido como a soberania da hierarquia angélica sobre a humana. Na
cultura e sociedade medievais havia o sagrado, mas a justificação religiosa era
condicionalmente simbólica. A cultura, em sua concepção, era angélica, não
humana. A soberania do princípio angélico sempre conduziu ao simbolismo, ao
condicional, um sinal refletido da existência celestial dentro do mundo humano,
mas sem um alcance real, sem que haja uma transfiguração verdadeira da
existência humana. Presentemente, o simbolismo foi rebaixado e completou-se o
rompimento. O homem se rebelou em nome de sua liberdade e avançou em seu
próprio caminho autônomo. A religião foi relegada a um canto obscuro de sua
alma. Ele passou a pensar a Igreja de forma diferente. O Cristão atual vive em
dois ritmos incongruentes – na Igreja e no mundo, pelos caminhos da salvação e
pelos caminhos da criatividade. Nas sociedades teocráticas, nas culturas
teocráticas, o princípio humano estava subordinado, a liberdade do homem não
garantia seu consentimento à existência do Reino de Deus. Nas sociedades
humanísticas e nas culturas atuais o princípio humano foi desviado de Deus e da
eficácia da graça Divina. A conjunção entre o humano e o Divino já não podia
ser alcançada. Os caminhos da criatividade do mundo humanístico colocaram-se
sem Deus e contra Deus. O drama da atual história humanista é o drama de um
profundo rompimento entre o caminho da criatividade da existência e o caminho
da salvação, separados de Deus e da graça Divina. O dualismo entre a Igreja e o
mundo reconhece essas formas de expressão, que as épocas orgânicas sagradas
primitivas não conheceram. No mundo aconteceram tremendos desenvolvimentos
criativos, nas ciências, na filosofia, na arte, no estado e na vida social, nos
avanços tecnológicos, nas atitudes morais do povo, até mesmo no pensamento
religioso, nas estruturas místicas da mente. Todos nós, não apenas os que não
creem, mas também os fieis Cristãos, participamos do desenvolvimento do mundo,
desse desenvolvimento da cultura, e a ele devotamos uma parte significativa de
nosso tempo e esforço. Vamos à Igreja aos Domingos. Mas nos demais seis dias da
semana nos dedicamos aos nossos trabalhos criativos e construtivos. Nossa
atitude criativa diante da vida permanece não-justificada, não-santificada,
não-codependente dos princípios religiosos da vida. O antigo sistema medieval
teocrático e hierocrático de justificação e santificação de todos os processos
da vida já não tem poder sobre nós, está moribundo. Os próprios fieis, o mesmo
povo Ortodoxo participa da não-justificada e não-santificada vida do mundo,
eles estão submetidos à ciência profana e não-sagrada, à economia profana e
não-sagrada, às leis profanas e não-sagradas, a um estilo de vida desde muito
desprovido de caráter sagrado. Os fieis e os povos Ortodoxos vivem a vida
eclesial na Igreja, frequentam o templo aos Domingos e dias festivos, jejuam na
Quaresma, oram a Deus de manhã e ao entardecer, mas não vivem a vida eclesial
no mundo, na cultura, na sociedade, sua criatividade, na vida política e
econômica, nas ciências e nas artes, nas invenções e descobertas, na moralidade
cotidiana, permanece externa à Igreja e à religiosidade, segue sendo profana e
mundana. É um ritmo de vida totalmente outro. Um tempestuoso desenvolvimento
criativo atingiu o mundo, na cultura. Ao contrário, por longo tempo na Igreja
estabeleceu-se um modo comparativamente estacionário, como que petrificado e
ossificado. A Igreja passou a viver exclusivamente como guardiã, como uma
ligação com o passado, isso é, ela expressava apenas um lado da vida eclesial.
A hierarquia da Igreja se tornou hostil em relação à criatividade, suspeitosa
quanto à cultura espiritual, ela restringiu o homem e temeu sua liberdade, e
assim os caminhos da salvação foram colocados em oposição aos caminhos da
criatividade. Somos salvos apenas em um plano da existência, mas moldamos
totalmente nossa vida em outro plano da existência. E permanece sempre o perigo
de que nesse plano, no qual criamos, podemos perecer e não sermos salvos. E não
há nenhuma esperança nisso, de que esse insustentável dualismo adicional possa
ser superado através da subordinação de toda nossa vida e de todo nosso impulso
criativo ao princípio hierocrático, através da restauração da teocracia no
antigo sentido da palavra. Não existe retorno possível ao simbolismo
condicional e à sociedade hierocrática. Isso estabeleceria uma reação
temporária, rejeitando a criatividade. O problema religioso sobre o homem,
sobre sua liberdade e sua vocação criativa, foi colocado em toda sua agudez. E
não se trata apenas de um problema do mundo, de um problema opressivo e
incômodo da cultura contemporânea, mas se trata também de um problema da
Igreja, do Cristianismo, enquanto religião do Deus-homem.
Atualmente, o pensamento se tornou sujeito à influência dissecadora do
nominalismo. Na consciência da humanidade, a realidade ontológica se acha
decomposta e pulverizada. Esse processo afeta igualmente a consciência da
Igreja. E também, o quanto as tendências mais reacionárias do pensamento da
Igreja se apropriaram de um entendimento nominalista da própria Igreja. Elas
cessaram de compreender a Igreja de forma integral, como um organismo
espiritual universal, como uma realidade ontológica, como um cosmo
Cristificado. Prevaleceu um entendimento diferenciado da Igreja, seja como instituição,
como comunidade de fieis, como hierarquia ou como templo. A Igreja foi
transformada num estabelecimento de cura, dentro da qual se tratam as almas
individuais no sentido de cura. Dessa maneira se afirma um individualismo
Cristão, indiferente ao destino da sociedade humana e do mundo. A Igreja existe
para a salvação de almas individuais, mas não tem relação com os aspectos
criativos da vida, com a transfiguração da ordem social e cósmica. Esse tipo de
Ortodoxia exclusivamente ascético-monástica só foi possível na Rússia, porque
ali a Igreja se incumbiu de toda a organização da vida do estado. Somente a
presença de uma monarquia autocrática consagrada pela Igreja tornou possível
tal individualismo Ortodoxo, essa separação entre o Cristianismo e a vida do
mundo. A monarquia Ortodoxa preservou e guardou o mundo, e a ordem eclesial foi
também mantida por ela. A Igreja era indiferente, não apenas à organização da
vida social e cultural, como ainda à organização da vida eclesial, à vida das
paróquias, à organização de uma autoridade eclesial não dependente dela. A
existência de uma monarquia autocrática Ortodoxa constitui o lado visível da
Ortodoxia ascético-monástica, de uma Ortodoxia como uma religião voltada
exclusivamente para a salvação pessoal. Por isso o colapso da monarquia
autocrática, do império Russo Ortodoxo, implicou uma modificação substancial na
consciência da Igreja. A Ortodoxia já não podia seguir predominantemente
ascético-monástica. O Cristianismo não podia ser reduzido à salvação individua
de almas separadas. A Igreja inevitavelmente se voltou para a vida da sociedade
e do mundo, e inevitavelmente teve que participar da formação da vida. Na
monarquia autocrática, como no tipo da teocracia Ortodoxa, era o princípio
angélico, não o humano, que reinava. O czar, de acordo com esse conceito, é em
essência o ordenador angélico, não o humano. O Colapso da teocracia Ortodoxa
tinha que conduzir ao despertar do ativismo criativo de uma nação
verdadeiramente Cristã, um ativismo humano, para a formação de uma sociedade
Cristã. Essa reviravolta deveria começar antes de tudo com o povo Ortodoxo se
tornando responsável pelo destino da Igreja no mundo, numa atualidade
histórica, de tal forma a que se obrigasse a tomar sobre si a formação
eclesial, a vida das paróquias, tudo o que dissesse respeito ao templo, à
organização da vida eclesial, às fraternidades, etc. Mas essa mudança da
psicologia Ortodoxa não podia ficar restrita à formação da vida eclesial, ela
deveria se estender a todos os aspectos da vida. Tudo na vida deveria ser
pensado como vida eclesial. Na Igreja, entram todos os aspectos da vida. Uma
reviravolta é inevitável para uma compreensão integral da Igreja, isso é, para
a superação do nominalismo e do individualismo da Igreja. O entendimento do Cristianismo
exclusivamente como uma religião de salvação pessoal, a coerção do escopo da
Igreja a algo que exista paralelamente a todo o demais – quando a Igreja se
propõe a ser a plenitude da existência – seria também a fonte das maiores
desordens e catástrofes no mundo Cristão. O rebaixamento do homem, de sua
liberdade e vocação criativa, a imposição dessa forma de entender o
Cristianismo, evocaria também a revolta e a rebelião do homem em nome de sua
liberdade e criatividade. Sobre esse ponto desolador, que permaneceria no mundo
para o Cristianismo, o anti-Cristo iria iniciar sua própria torre da Babilônia
e levar sua construção até o máximo possível. Seduzindo a liberdade do espírito
humano, a liberdade da criatividade humana acabaria por perecer nesse caminho.
A Igreja deveria ter se guardado dos elementos malignos do mundo e de seus
desenvolvimentos para o mal. Mas a guarda genuína das coisas santas só e
possível se admitirmos a criatividade Cristã.
II
Sobre quais bases espirituais o individualismo Ortodoxo se fundamenta,
sobre quais se justifica seu entendimento do Cristianismo, enquanto religião de
salvação pessoal, indiferente ao destino da sociedade e do mundo? O
Cristianismo do passado era extraordinariamente magnificente, diverso e plural.
Nos Evangelhos, nas Epístolas Apostólicas, na literatura Patrística e na
tradição da Igreja é possível encontrar as bases para diferentes compreensões
do Cristianismo. O entendimento do Cristianismo como religião de salvação
pessoal, que desconfia de toda e qualquer criatividade, encontra-se
exclusivamente na literatura ascética Patrística, que não representa a
totalidade do Cristianismo, e nem sequer a totalidade da literatura Patrística.
A Dobrotoliubie-Filocalia[3]
é como se tivesse filtrado todo o remanescente. Na ascese está expressa a
verdade eterna, que penetra no caminho espiritual interior como um momento
inevitável. Mas ela não constitui a totalidade da verdade Cristã. A heroica
luta contra a natureza do velho Adão, contra as paixões pecaminosas, promoveu
um determinado aspecto da verdade Cristã e exagerou esse ponto, abarcando todas
as demais dimensões. As verdades reveladas nos Evangelhos e nas Epístolas foram
deixadas de lado num segundo plano, e foram sufocadas. Na base de todo o
Cristianismo, na base de todo caminho espiritual do homem, no caminho da
salvação para a vida eterna, foi estabelecida a humildade. O homem precisa ser
humilde, e todo o resto acontece por si só. A humildade é o único método de atividade
espiritual interior. A humildade filtra tudo e sufoca o amor, que se revela no
Evangelho e se manifesta como o fundamento do Novo Testamento com o homem. O
conceito ontológico da humildade consiste numa vitória real sofre a
autoafirmação humana autocentrada, sobre a disposição pecadora do homem a se
situar no centro de gravidade da vida e a estabelecer a si próprio na fonte da
vida – esse é sentido da vitória sobre o orgulho. O conceito de humildade está
na real transfiguração da natureza humana, no domínio do homem espiritual sobre
o homem anímico e carnal. Mas a humildade não deve sufocar e apagar o espírito.
A humildade não consiste numa obediência exterior, submissa e subordinada. O
homem pode ser muito disciplinado, obediente e submisso, e ainda assim não ser
humilde. Vemos isso, por exemplo, no Partido Comunista Russo. A humildade
constitui uma mudança eficaz na natureza da alma – e não uma subordinação
exterior que, entretanto, deixa intacta a natureza –, ela exige um trabalho
interior sobre si mesmo, exige a libertação do poder das paixões, da natureza
inferior, que o homem costuma aceitar como sendo seu verdadeiro “eu”. Na
humildade está afirmada a verdadeira hierarquia do ser, na qual o homem
espiritual tem precedência sobre o homem anímico, onde Deus tem precedência
sobre o mundo. A humildade e o caminho para uma autopurificação e para uma
autodefinição. A humildade não constitui uma aniquilação da vontade humana, mas
a iluminação da vontade humana, sua livre submissão à Verdade. O Cristianismo
não pode negar a humildade como um momento do caminho espiritual interior. Mas
a humildade não constitui a totalidade da vida espiritual. A humildade é um
meio legítimo. Mas ela não é o único caminho para a vida espiritual. A vida
espiritual e incomensuravelmente mais complexa e plural. E é impossível dar uma
resposta a todas as questões do espírito apenas pregando a humildade. E a
humildade pode ser falsamente, e também externamente concebida. Para a vida
espiritual interior e o caminho espiritual ela deve ser posta em prática com
absoluta primazia, porém mais primária, mais profunda, mais primordial do que
todas as nossas relações com a vida social e com o mundo. É no mundo
espiritual, nas profundezas do mundo espiritual, que se definem todas as nossas
relações com a vida. Isso é um axioma religioso, um axioma dos místicos. Mas é
possível um conceito de humildade, que distorça toda nossa vida espiritual, que
não acomode a verdade Divina do Cristianismo, a Divina plenitude. E é nisso que
reside a complexidade da questão.
A construção de uma vida baseada apenas no espírito de humildade cria
um sistema autoritativo e hierocrático exterior. Todas as questões que dizem
respeito à forma social e à criatividade cultural passam a ser decididas em
função da humildade. Isso poderia ser uma organização sutil da sociedade, na
qual as pessoas seriam o mais humildes possível, e obedeceriam ao máximo. Mas
isso censuraria toda a gama da vida, na qual reside a expressão dos instintos
criativos do homem. Assim, em essência, não seria resolvida nenhuma questão,
mas elas seriam consideradas apenas na medida em que favorecessem a humildade
do homem. A deterioração da humildade resulta nisso, em que ela deixa de ser
entendida interiormente, ela deixa de ser um ato secreto, místico, um tesouro,
uma manifestação da vida espiritual interior. A humildade se transforma num
sistema exterior de organização da vida, que reprime o homem. A humildade, em
sua essência mística, não é absolutamente contrária à liberdade, ela é um ato
de liberdade e pressupõe a liberdade. Apenas a humildade livre, a livre
subordinação do homem anímico ao homem espiritual possui significado e valor
religioso. A humildade compulsória, imposta, é determinada por uma estrutura
exterior da vida e não possui significado para a vida espiritual. Escravidão e
humildade são condições espirituais variantes. Tornar-me humilde em meu caminho
espiritual interior implica que num ato livre eu coloco a fonte da minha vida
em Deus, e não em mim mesmo. Para uma análise fenomenológica fica evidente que
minha liberdade precede minha humildade. A humildade é mais interior, é um
tesouro, uma condição espiritual mais secreta. Mas, tendo decaído e se
degradado, ela se torna deteriorada e se transforma num sistema de vida externo
compulsoriamente imposto, que nega a liberdade e coage o homem. Do solo da
humildade estão prontas a brotar a hipocrisia e a “piedosidade”. Da mesma forma
como o conceito ontológico da humildade consiste na libertação do homem
espiritual, uma humildade degenerada mantém o homem numa condição de restrição
e opressão, acorrentando seu potencial criativo. Os grandes ascetas e santos
travaram uma luta heroica de libertação espiritual do homem, de oposição à
natureza inferior, contra o poder das paixões. Os corrompedores da humildade
negam a heroica luta pela liberação espiritual do homem e mantêm o homem
submetido a um sistema autoritário de vida. Quando eu me humilho diante a
vontade de Deus, quando eu venço em mim mesmo a revolta egoísta do escravo, eu
parto da liberdade e me dirijo à liberdade. O egoísmo me escraviza, e eu desejo
me libertar dele. A humildade é um dos métodos de transição de uma condição na
qual prevalece a natureza inferior, para uma condição na qual a natureza
superior governa, isso é, ela implica o crescimento do homem, sua ascensão
espiritual. A humildade deteriorada, por seu turno, busca um sistema de vida no
qual nunca entra a libertação, na qual a ascensão espiritual nunca é alcançada,
na qual a natureza superior jamais se mostra. A libertação do espírito, a
manifestação da natureza superior é considerada como uma condição não humilde,
como uma deficiência da humildade: a humildade, de meio, se torna um fim em si
mesma.
Começa-se por opor a humildade ao amor. O caminho do amor e
considerado não humilde, por ser um caminho audacioso. O Evangelho é
substituído pela Dobrotoliubie-Filocalia. Desde quando posso eu, pecador e
indigno, pretender amar meu irmão, meu próximo? Meu amor estaria infectado pelo
pecado. Primeiro é preciso que eu me humilhe, e então aparecerá o amor, como uma
fruição da humildade. Mas eu posso ser humilde por toda minha vida sem jamais
atingir uma condição sem pecado. E assim, tampouco o amor irá aparecer jamais.
Então, como posso eu, o pecador, pretender a perfeição espiritual, atrever-me à
sublimidade do espírito, alcançar o ápice da vida espiritual? Em primeiro lugar
é preciso vencer o pecado pela humildade. Mas isso toma toda a vida e não deixa
tempo nem forças para uma vida espiritual criativa. E isso só é possível nesse
mundo, e mesmo assim é improvável, uma vez que nesse mundo só a humildade é
possível. A humildade degenerada cria um sistema de vida no qual a vida não
passa de um cotidiano banal, burguês, considerado mais honrado do que um
modesto, Cristão e moral objetivo de uma vida espiritual mais elevada, e no
qual o amor, a contemplação, a percepção e a criatividade são sempre suspeitos
de orgulho e de uma humildade deficiente. Regatear no mercado, viver uma vida
familiar egoísta, servir na polícia ou nos escritórios do fisco, tudo
humildemente, sem presunção, sem ousadia. Por outro lado, a aspiração a uma
fraternidade Cristã entre os povos, a realização da verdade de Cristo em vida,
tornar-se filósofo ou poeta – um filósofo Cristão, um poeta Cristão – mas não
de forma humilde, e sim orgulhosamente, presunçosamente, audaciosamente. O
comerciante pode não apenas ser sovina, como até desonrado, e ainda assim estar
menos sujeito ao perigo da morte eterna, do que aquele que por toda sua vida
buscou o verdadeiro e a verdade, que tem sede de uma vida de beleza – como, por
exemplo, Vladimir Soloviev, o Gnóstico[4],
o poeta da vida, que buscava a verdadeira vida e a fraternidade do povo, e que
está exposto ao perigo da morte eterna, por ser insuficientemente humilde, por
ser orgulhoso. Aqui começa um círculo vicioso e sem esperanças. A aspiração por
uma realização da Verdade de Deus, do Reino de Deus, das alturas espirituais e
da perfeição espiritual, é proclamada como imperfeição espiritual, uma falta de
humildade. Mas então, onde está o erro básico da humildade degenerada e de seu
sistema de vida? O erro básico se esconde de tocaia no falso conceito da
correlação entre o pecado e os caminhos de libertação do pecado, ou o
atingimento de uma vida espiritual mais elevada. Eu não posso raciocinar assim
– o mundo jaz no mal, eu sou um pecador, e por ser minha aspiração a uma
realização da Verdade de Cristo e de um amor fraterno entre a humanidade, uma
pretensão orgulhosa, uma deficiência de humildade, e, tendo isso em vista, todo
impulso autêntico em direção a uma realização em amor e verdade consistirá numa
vitória sobre o pecado, numa libertação do pecado. Eu não posso dizer isso – a
aspiração por uma perfeição espiritual e pelas alturas do espírito constituem
orgulho e falta de humildade, uma consciência insuficiente da pecaminosidade do
homem, e, tendo isso em vista, todo avanço em direção a uma perfeição
espiritual e às alturas do espírito será um caminho para a vitória sobre o
pecado. Eu não posso falar assim – eu sou um pecador e, tendo isso em vista,
minha audácia em apreender o mistério do ser e em criar a beleza já constitui
em si uma vitória sobre o pecado, uma transfiguração da vida. É impossível
dizer: o pecado distorce e perverte tanto o amor, como a perfeição espiritual,
a cognição e tudo o mais, e, por conseguinte, não existe vitória sobre o pecado
a partir de nenhum desses caminhos. Sendo assim, é também possível afirmar o
contrário: o caminho da humildade foi distorcido e pervertido pelo pecado e a
voracidade humana, e a humildade se encontra distorcida, degenerada,
pervertida, transformada em escravidão, egoísmo e covardia. A humildade já não é
uma garantia contra a distorção e a degeneração, tanto quanto o amor e o
conhecimento.
O pecado só pode ser vencido com grande dificuldade e somente pelo
poder da graça. Mas o caminho para essa vitória, para a aquisição da graça, é
plural, e abarca toda a plenitude do ser. Nosso amor ao próximo, nosso
conhecimento, nossa criatividade, estão decididamente distorcidos pelo pecado e
carregam em si o selo da imperfeição, mas, de fato, também o caminho da
humildade está distorcido elo pecado e carrega em si o selo da imperfeição.
Cristo ordenou em primeiro lugar amar a Deus e ao próximo, e, acima de tudo,
buscar o Reino de Deus e a perfeição semelhante à perfeição do Pai Celestial. A
Dobrotoliubie-Filocalia – na qual não foram incluídos as mais notáveis obras
místicas de São Máximo o Confessor, nem de São Simeão o Novo Teólogo, dentre
outros – é em primeiro lugar uma coleção de normas ascéticas e morais
destinadas a monges, e não a expressão a expressão da total plenitude do
Cristianismo e de seus caminhos. Não apenas o espírito do Evangelho e das
Epístolas, como também o espírito da Patrística Grega em suas correntes mais
profundas, diverge dela, como, por exemplo, em relação ao espírito exclusivista
da Ortodoxia de Teófano o Eremita. Definitivamente, em Teófano o Eremita existe
muito de verdadeiro e de eterno, em especial em seu livro O Caminho da
Salvação, mas sua atitude em relação à vida no mundo é depressiva e tímida,
e seu Cristianismo é murcho e debilitado. A ideia central da Patrística
Oriental encontra-se na theosis, ou deificação da criatura, na
transfiguração do mundo, do cosmo, e não na ideia de uma salvação pessoal. Não é por acaso que os grandes mestres da
Igreja do Oriente se inclinaram para a ideia de apokatastasis[5],
e não apenas São Clemente de Alexandria e Orígenes, como também São Gregório de
Nissa, São Gregório Naziano e São Máximo o Confessor. A concepção jurídica do processo do mundo, a
concepção jurídica da expiação, a construção do inferno, a salvação dos
escolhidos e a perdição eterna de todo o resto da humanidade estão expressos
principalmente na Patrística Ocidental, em Santo Agostinho, e na Escolástica
Ocidental. Para a Patrística Grega clássica, o Cristianismo não era apenas a
religião da salvação pessoal. Ela estava orientada para a apreensão cósmica do
Cristianismo, ela propunha a ideia da iluminação e da transfiguração do mundo,
da deificação do criado. Somente mais tarde a consciência Cristã adotou com
mais ênfase a ideia do inferno, mais do que a da transfiguração e theosis
do mundo. Isso aconteceu, talvez, como resultado da preponderância de nações
bárbaras com seus instintos ferozes. Essas nações precisavam estar sujeitas a
uma disciplina severa e intimidadora, uma vez que sua carne e sangue, suas
paixões, ameaçavam arruinar o Cristianismo e toda forma de ordem do mundo. O
Cristianismo, visto como uma religião de salvação pessoal da perdição eterna
através da humildade, conduziu ao pânico e ao terror. O homem passou a viver
debaixo de uma tensão horrível de terror em relação à perdição eterna, e assim
ele consentiria com qualquer coisa, desde que pudesse evitá-la. O sistema
autoritário de obediência e submissão criou uma emoção atingida pelo medo da
perdição, um terror pânico dos castigos eternos do inferno[6].
Debaixo de tal disposição espiritual, sob esse tipo de estado mental, uma
atitude criativa em relação à vida era muito difícil. Não há tempo para a
criatividade quando se está sob a ameaça da destruição. Toda a existência é
colocada debaixo do signo do terror, do medo. Quando a peste é devastadora e a
segunda morte nos ameaça, não temos tempo para a criatividade, estamos ocupados
exclusivamente com medidas de salvação da peste. Algumas vezes o Cristianismo
foi também concebido como uma salvação contra a devastação da peste. A criatividade
e a construção da vida se tornaram possíveis apenas graças ao sistema dualista,
que garantiu momentos de esquecimento em relação à salvação e à perdição. O
homem devotou-se à ciência, à arte ou à ordem social, esquecendo-se nesses
momentos da ameaça da destruição, revelando para si mesmo uma outra esfera do
ser, separada dessa esfera na qual a perdição e a salvação são cumpridas – e
essas duas esferas não se conectavam. O entendimento do Cristianismo como uma
religião de salvação pessoal da perdição constitui um sistema de egoísmo
transcendental, de um utilitarismo e de uma Eudaimonia transcendentais.
Konstantin Leontiev, como a audácia típica dele, professou essa religião de
egoísmo transcendental. Mas isso foi porque sua atitude em relação à vida do
mundo era inteiramente pagã, e ele conjugou dualistamente em si o homem de
Athos e a Ortodoxia ascético-monástica de Optina, juntamente com o homem da
Renascença Italiana do século XVI. Com uma consciência transcendental, o homem não está preocupado em atingir uma alta
perfeição na vida, mas com aquilo que diz respeito à salvação de sua própria
alma, com o pensamento de receber sua própria satisfação eterna. O egoísmo
transcendental e o eudaimonismo negam de maneira inata o caminho do amor, e não
podem ser fieis ao mandamento Evangélico, que nos manda perder nossa alma para que
possamos ganhá-la, renunciar a ela em favor do nosso próximo, aprender o amor
acima de tudo, esse amor incondicional por Deus e pelo próximo. Mas, propor o
Cristianismo como uma religião de egoísmo transcendental, desconhecendo o amor
incondicional pela perfeição Divina, equivale a blasfemar o Cristianismo. Ou se
trata de um Cristianismo bárbaro, que rebaixa a selvageria das paixões, mas é
distorcido por elas, ou se trata de um Cristianismo degenerado, enfraquecido e
empobrecido. O Cristianismo era, é e sempre será não só uma religião de
salvação pessoal e medo da perdição, mas também uma religião da transfiguração
do mundo, da deifi9cação da criatura, uma religião cósmica e social, uma
religião de amor incondicional, um amor por Deus e pelo homem, a aliança e a
promessa do Reino de Deus. Sob o entendimento individualista e ascético do
Cristianismo, como uma religião de salvação pessoal, que diz respeito apenas à
própria alma de alguém, a revelação sobre a ressurreição de todas as criaturas
é ininteligível e desnecessária. Para uma religião de salvação pessoal não
existe uma perspectiva escatológica mundial, não existe conexão com as pessoas,
nem da alma individual humana com o mundo, com o cosmo, com toda a criação.
Dessa forma se nega uma ordem hierárquica da existência, na qual tudo está
interligado, e da qual o destino individual não pode ser destacado. O
entendimento individualista da salvação é mais típico do pietismo Protestante
do que do Cristianismo enquanto Igreja. Eu não posso me salvar por mim mesmo,
na solidão, eu só posso ser salvo junto com meus irmãos, junto com toda a
criação de Deus, eu não posso pensar apenas na minha própria salvação, eu devo
também pensar na salvação de todos, de todo o mundo. E, de fato, a salvação não
passa da expressão exotérica do atingimento das alturas espirituais, da
perfeição, da semelhança para com Deus, como o supremo valor da vida na terra.
III
Todos os maiores místicos Cristãos colocaram um amor fiel confesso a
Deus e a união com Deus acima da salvação pessoal. Um Cristianismo mais
exterior costuma criticar os místicos por isso, porque para eles o centro de
gravidade da vida espiritual reside totalmente fora do caminho da salvação
espiritual, e eles seguem uma perigosa senda de amor místico. O místico, de
fato, representa um grau inteiramente diferente da vida espiritual em relação
ao asceta. O místico pode estudar – é típico dele – lendo os Hinos de
São Simeão o Novo Teólogo. O místico também entende a salvação como iluminação
e transfiguração, a deificação da criatura, como uma superação do isolamento do
conjunto das criaturas, isso é, da separação em relação a Deus. A ideia da theosis
gravita acima da ideia de salvação. Isso foi lindamente expresso por São Simeão
o Novo Teólogo: “Estou imbuído de Seu amor e beleza, e cheio da delícia e
doçura Divinas. Eu me tornei partícipe do esplendor e da glória; minha face,
como a do meu Bem-Amado, brilha, todos os meus membros trazem em si o esplendor.
Por isso, juntamente, eu me torno mais belo do que o belo, mais divino do que
os deuses, mais poderoso do que os poderosos, maior do que os reis e mais
venerável do que tudo o que possa ser visto, na terra e acima da terra, e ainda
nos céus e mais do que tudo o que está além dos céus”. Mencionei acima o maior
místico da Ortodoxia Oriental. Seria possível aqui citar inúmeros fragmentos de
místicos do Ocidente, Católicos Latinos e místicos Alemães, que concordam com
esse pensamento, de que no centro de gravidade místico jamais se encontra o
anseio pela salvação. Os místicos católicos superaram o “jurisdicismo” da
teologia Católica, o entendimento legalista das relações entre Deus e o homem. A
disputa de Bossuet com Fenelon foi também a disputa entre um teólogo e um
místico[7].
No caminho místico existe sempre um esquecimento incondicional e um
deslocamento do “eu”, uma abertura amorosa incomensurável perante Deus. Mas o
amor a Deus é uma condição criativa do espírito, nele está a superação de todas
as restrições, uma libertação, uma revelação afirmativa do homem espiritual. A
humildade não passa de um meio, e, mesmo assim, de um meio negativo. O amor a
Deus é um fim, desde já um fim positivo. O amor a Deus é desde logo uma
transfiguração criativa da natureza humana. Mas o amor a Deus é semelhante ao
amor pelas alturas espirituais, pelo Divino na vida. O eros Divino constitui
uma ascensão espiritual, um crescimento espiritual, uma vitória da condição
criativa do espírito sobre a condição restritiva, uma abertura das asas da
alma, de que falava Platão no Fedro. O conteúdo afirmativo do ser é
vivo, criativo, é um amor que transfigura. O amor não é algo particular, um
aspecto separado da vida, o amor é a totalidade da vida, a plenitude da vida. O
conhecimento é como uma revelação do amor, de um amor cognitivo, uma união
cognitiva do amante para com seu objeto amado, para com a existência, para com
Deus. A criatividade do bel é como uma revelação da harmonia do amor na
existência. O amor é a afirmação da face do amado na eternidade e em Deus, isso
é, é a afirmação da existência. O amor é um princípio básico ontológico. Mas o
amor é inseparável do amor ao próximo, do amor pela criação de Deus. O
Cristianismo é também uma revelação do amor Divino-humano. Esse amor me salva,
vale dizer, não apenas o amor a Deus, mas também o amor aos homens, transfigura
minha natureza. O amor ao próximo, aos irmãos, toda ação amorosa entra no
caminho da minha salvação, da minha transfiguração. No caminho da minha
salvação entra o amor pelos animais e plantas, por cada coisa, pelas pedras,
pelos rios e mares, pelas colinas e campos. também por intermédio deles eu
posso ser salvo, e todo o mundo pode ser salvo e alcançar a iluminação. A
indiferença mortal aos homens e à natureza, em relação a todas as coisas vivas
em nome de uma auto-salvação é uma manifestação odiosa de egoísmo religioso, um
ressecamento da natureza humana, é um colocar-se “no coração de eunucos
impotentes”. O amor Cristão não deve ser um “amor de vidro transparente”, na
expressão de Vasily Vasilievich Rozanov. Também o amor espiritual abstrato é um
“amor de vidro transparente”. Somente um amor espiritualizado da alma, no qual
a alma é transfigurada em espírito, é um amor vivo e Divino-humano. O desdém
que por vezes encontramos no monasticismo ascético em relação às pessoas e ao
mundo, um esfriamento do coração e uma mortificação perante tudo o que vive,
constitui uma degeneração do Cristianismo, um empobrecimento dentro do
Cristianismo. A substituição do mandamento de amor a Deus e ao próximo, dado
pelo próprio Cristo, por um mandamento de humildade exterior e obediência, o
esfriamento de qualquer forma de amor, é também uma degeneração do
Cristianismo, uma incapacidade de ajustar-se à verdade do Cristianismo. É
preciso notar que a ideia da transfiguração e da iluminação cósmica é
especialmente mais próxima do Oriente Ortodoxo. O Cristianismo Ocidental está
mais perto do ideal jurídico. E a ideia de justificação é central para a
consciência dos Católicos e dos Protestantes. Por isso, no Ocidente, as
disputas entre a liberdade e a graça, entre a fé e as boas obras, adquirem
especial importância. Daí a busca pela autoridade e por critérios exteriores da
verdade religiosa[8].
Apenas os místicos se elevam acima da asfixiante ideia do juízo de Deus, da
exigência de Deus pela justificação do homem, e eles entendem que para Deus não
é necessária a justificação do homem, mas sim o amor do homem, a transfiguração
de sua natureza. Esse é o problema central da consciência Cristã: até que ponto
a essência do Cristianismo está na justificação e no julgamento, na inexorável
justiça de Deus, ou até que ponto sua essência está na transfiguração e na
iluminação, no infinito amor de Deus. O entendimento jurídico do Cristianismo,
que produz o estado de terror espiritual atual, é um método severo por meio do
qual o Cristianismo subjugou as nações, que estavam cheias de instintos
sanguinários, crueldade e barbárie. Mas a esse entendimento se opõe uma
compreensão mais profunda do Cristianismo, visto como uma revelação de amor e
liberdade. O homem é chamado a ser criador e compartícipe nos atos de Deus na
criação. Esse é o chamado de Deus dirigido ao homem, e ao qual o homem deve
responder livremente. Para Deus, escravos obedientes e servis são totalmente
inúteis, eternamente tremendo e egoistamente voltados para si próprios. Para
Deus são necessários os filhos – livres e criativos, amorosos e atrevidos. O
homem distorceu terrivelmente a imagem de Deus, e atribuiu a Ele sua própria
psicologia perversa e pecadora. Mas é sempre preciso lembrar a verdade da
teologia apofática. Se é necessário atribuir a Deus uma vida emotiva, não se
segue daí como consequência apresentá-la sob a forma das mais vis emoções
humanas. O terror espiritual, o pânico espiritual, gerados a partir de um
entendimento jurídico sobre o relacionamento entre Deus e o homem, e a
colocação da justificação no centro da fé Cristã, nascida de um entendimento da
vida emotiva de Deus, em tudo se apresentam como as mais vis emoções da vida
humana. Mas Deus revelou a Si próprio no Filho, como Pai, como amor infinito. E
com isso está para sempre superado o entendimento de Deus como um Senhor feroz,
vingativo e furioso. “Deus, não enviou Seu Filho ao mundo para julgar o mundo,
mas para que, por meio Dele o mundo seja salvo”. “Essa é a vontade do Pai que
Me enviou, de que, todos os que Ele concedeu a Mim, nenhum pereça, mas que
ressuscitem todos no último dia[9]”.
O homem é chamado à perfeição, à perfeição semelhante à do Pai Celeste. A
revelação Cristã é antes de tudo a boa nova a respeito da vinda do Reino de Deus,
que devemos buscar acima de tudo. A busca pelo Reino de Deus, portanto, não
constitui uma mera busca pela salvação pessoal. O Reino de Deus consiste na
transfiguração do mundo, na ressurreição universal, em novos céus e uma nova
terra.
IV
O conceito de mundo Cristão não apenas não obriga, como inclusive não
nos permite pensar que a realidade se restringe às almas individuais das
pessoas, que somente elas constituem a criação de Deus. A sociedade e a
natureza também constituem uma realidade e foram criadas por Deus, a sociedade
não é uma invenção humana. Desde o início ela teve raízes ontológicas, tanto
quanto a pessoa humana. E é impossível separar a pessoa humana da sociedade,
assim como é impossível separar a sociedade da pessoa humana. A pessoa e a
sociedade estão situadas numa vida interdependente, elas pressupõem uma única
proposta concreta. A vida espiritual da pessoa se reflete na vida da sociedade.
E a sociedade é uma espécie de organismo o espiritual, que é alimentado pela
vida das pessoas, e que as alimenta. A negação da realidade da sociedade constitui
um nominalismo, e essa forma de nominalismo traz consigo uma consequência fatal
para a consciência da Igreja, para um entendimento da natureza da Igreja. A
Igreja é uma sociedade espiritual, e essa sociedade está imbuída de uma
realidade ontológica, ela não pode ser limitada a uma cooperativa de almas que
desejam ser salvas. Na sociedade eclesial se realiza do Reino de Deus, e não
apenas as almas individuais se salvam aí. Quando eu digo que só é possível ser
salvo na Igreja, eu estou afirmando a sobornost, a universalidade
coletiva da salvação, a salvação por meio e no seio de uma sociedade
espiritual, a salvação com meus irmãos em Cristo e com toda a criação de Deus,
ao mesmo tempo em que nego o entendimento individualista da salvação, a
salvação no isolamento (salve-se quem puder, force um caminho para o Reino Celestial, como disse uma vez um Ortodoxo), e
repudio o egoísmo na salvação. Muitos pensam que a interpretação do
Cristianismo enquanto religião de salvação pessoal é, em primeiro lugar, uma
interpretação eclesial. Mas, de fato, isso vai contra a própria ideia de
Igreja, e submete a realidade da Igreja a uma degradação nominalista. Se
algumas das mais populares opiniões expressas no mundo Ortodoxo, se alguns
hierarcas enfatizam seu caráter eclesial, isso não significa, entretanto, que
elas sejam tão eclesiais em sua profundidade, no sentido ontológico do termo.
Houve um tempo em que o Arianismo foi popular entre os hierarcas do Oriente.
Possivelmente, essas opiniões refletem um empobrecimento e uma ossificação do
Cristianismo. No mundo não teriam havido tantas catástrofes e revoltas
terríveis, tanto ateísmo e desprezo pelo espírito, se o Cristianismo não
tivesse se tornado tão altivo, tedioso, sem criatividade, se ele não tivesse
deixado de inspirar e dirigir a vida da sociedade e da cultura humanas, se não
tivesse aprisionado a alma humana num canto qualquer, se o dogmatismo e o
ritualismo convencional e exterior não tivessem substituído a existência real
do Cristianismo dentro da existência. E o futuro das sociedades e das culturas
humanas depende disso, de até que ponto o Cristianismo será capaz de acolher o
significado de uma vida criativa e transfigurativa, até que ponto haverá dentro
do Cristianismo uma energia espiritual, capaz de gerar entusiasmo, capaz de nos
guiar da decadência para a ascensão.
O staff oficial da Igreja, os profissionais da religião nos
dizem que somente a questão da salvação pessoal é necessária, que para tal
finalidade a criatividade não só não é necessária, como é perigosa. Nesse caso,
para quê conhecimento, para quê ciência e arte, para quê invenções e
descobertas, de que servem as verdades sociais, a criatividade para uma vida
melhor, se a destruição eterna me ameaça e se somente a salvação eterna é
necessária para mim? Esse tipo de consciência pânica religiosa supressiva e
absoluta, esse tipo de sentimento a respeito de si mesmo, não têm como
justificar a criatividade. Nada é necessário, quando se trata da salvação
pessoal da alma. A partir daí,
conhecimento é desnecessário, assim como a arte, a economia, e até mesmo a
existência da natureza – o mundo de Deus é desnecessário. É verdade que às
vezes eles nos dizem que é preciso que haja um poder supremo, e que exista algo
debaixo dele, na forma de uma monarquia autocrática, de tal forma que tudo
consista num sistema religioso que só seja possível graças à existência de uma
monarquia Ortodoxa, à qual seja confiada toda a organização da vida. Mas em
última análise é preciso reconhecer que o domínio de um poder supremo não só é
desnecessário para a minha salvação, como ainda é nocivo a ela. Esse tipo de
consciência religiosa é incapaz de dar justificação a qualquer tipo de questão
do mundo, ou só é capaz de fazê-lo através de inconsistência e sofrimento.
Existe uma tendência Budista dentro do Cristianismo. Ela permanece somente nos
mosteiros, mas a própria existência de mosteiros pressupõe que eles sejam
protegidos pela ordem civil. Esse tipo de consciência se inclina a justificar
uma existência burguesa pífia, medíocre e desapaixonada, e a reunir em um mesmo
sistema alguns elementos monásticos, mas nunca pode justificar a criatividade.
A questão deve ser colocada de outra forma, e o Cristianismo não apenas
permite, como ainda nos ordena colocar a questão de outra maneira. Uma pessoa
simplória, dizem-nos eles, tem mais chances de salvação do que um filósofo, e
para ela a salvação implica não precisar aprender, não precisar de cultura,
etc. mas isso deve nos levar a concluir que, para Deus, apenas os simplórios
são necessários, e que com eles Deus esgota todos os seus planos para o mundo,
com eles se cumpre a ideia de Deus para o mundo. Mas, de fato, presentemente o
simplório não passa de um mito, e na verdade ele se tornou niilista e ateu. O
filósofo e o homem culto se tornaram os fiéis. Os rústicos, os tolos e mesmo os
idiotas podem ser salvos à sua própria maneira, mas o que se quer que acredite
é que na ideia de Deus para o mundo, no esquema do Reino de Deus, tudo será
povoado exclusivamente pelos rústicos, os tolos e os idiotas. Podemos presumir,
transgredindo a humildade, que o plano de Deus para o mundo é mais elevado,
mais multiforme e esplêndido, e que nele entre a plenitude positiva do ser, a
perfeição ontológica. O Apóstolo recomenda que sejamos crianças no coração, mas
não na mente. E aqui a criatividade do homem, o aprendizado, as artes, a
melhoria da sociedade, etc., são necessárias, não para a salvação pessoal, mas
para a realização do intento de Deus em relação ao mundo e à humanidade, para a
transfiguração do cosmo, para o Reino de Deus, no qual entra toda a plenitude
da existência. O homem é chamado a ser criador, coparticipante dos feitos de
Deus na criação e na organização do mundo, e não apenas para ser salvo. E
existem ocasiões nas quais o homem é capaz, em nome da criatividade, para a
qual foi vocacionado por Deus, de renunciar a pensar a respeito de si e de sua
alma. Vários dons foram concedidos por Deus ao povo, e ninguém tem o direito de
enterrá-los no chão, pois todos esses talentos têm que ser criativamente
realizados, manifestados nas vocações objetivas do homem. Sobre isso falaram
com grande contundência os Apóstolos Paulo[10]
e Pedro[11].
Esse é o plano de Deus para o homem – que a natureza da pessoa humana seja
criativa. A pessoa é salva. Mas para isso, para que a pessoa seja salva. É
preciso que ela afirme sua autêntica natureza. A natureza realmente autêntica
da pessoa está nisso, em que ela e o centro da energia criativa. Fora da
criatividade não existe pessoa. A pessoa criativa é salva para a eternidade. A
afirmação em oposição à criatividade é uma afirmação de salvação de vazio, de
não-ser. Existe, inerente ao homem, em sua existência positiva, uma psicologia
criativa. Ela pode ser suprimida ou escondida, pode ser revelada – mas ela é
ontologicamente inerente ao homem. O instinto criativo no homem não é um
instinto egoísta, e nele o homem esquece-se de si mesmo, ele emerge de si. As
descobertas científicas, as invenções técnicas, a criatividade artística, a
criatividade social, podem ser necessárias para outros e úteis para finalidades
práticas, mas a criação em si é tanto não egoísta como uma renúncia de si,
nisso reside a essência da psicologia criativa. A psicologia da criatividade é
muito distinta da psicologia da humildade e não pode ser construída em cima
dela, a humildade é uma ação espiritual mais exterior, na qual o homem está
mais preocupado com sua alma, com a sua própria superação, seu
autoaperfeiçoamento, sua salvação. A criatividade é uma ação espiritual, na
qual o homem esquece de si, renuncia a si no ato criativo, é absorvido pelo seu
objeto. Na criatividade, o homem testa a condição da extraordinária ascensão de
todo o seu ser. A criatividade é sempre um choque e um tremor, no qual o
egoísmo da vida humana de todo dia é ultrapassado. E o homem consente em
arriscar sua própria alma em nome da atividade criativa. É impossível fazer
descobertas científicas, contemplar os mistérios da existência filosoficamente,
ter percepções artísticas, criar reformas sociais, apenas numa condição de
humildade. A criatividade pressupõe outra condição espiritual, não em oposição
à humildade, mas qualitativamente distinta dela, e em outro momento da vida
espiritual. Santo Atanásio o Grande revelou a verdade sobre a homoousia,[12]
não como uma condição de humildade, mas como uma condição de ascensão criativa
e de iluminação, embora a humildade a preceda. A criatividade pressupõe uma
ascese espiritual característica, ela não faz concessões às suas paixões. A
criatividade pressupõe uma autonegação e um sacrifício, uma vitória sobre o
“poder do mundo”. A criatividade é uma revelação do amor a Deus e ao Divino, e
não a esse mundo. Por isso, o caminho da criatividade é também um caminho de
superação “do mundo”. Mas a criatividade é uma qualidade diferente da vida
espiritual, diferente da humildade e da ascese, ela é uma revelação da natureza
do homem enquanto imagem de Deus. Algumas vezes, raciocina-se da seguinte
maneira: primeiro o homem precisa ser salvo, vencer o pecado, para só então
criar. Mas esse entendimento de uma relação cronológica entre a salvação e a
criatividade está em contradição com as leis da vida. Isso nunca ocorreu, nem
há de ocorrer. Eu preciso de toda a minha vida para ser salvo, e até o fim de
minha vida não terei vencido definitivamente o pecado. De modo que nunca
acontecerá o momento em que eu estarei apto a criar. Ao contrário, assim como o
homem precisa de toda a sua vida para ser salvo, também ele precisa de toda a
sua vida para criar e para participar do processo criativo em conformidade com
seus dons e sua vocação. A relação entre a salvação e a criatividade é ideal a
interior, mas não é uma relação baseada numa sequência corporal cronológica. A
criatividade auxilia, ela não impede a salvação, uma vez que ela é a realização
da vontade de Deus, uma obediência ao chamado de Deus, uma coparticipação na
ação de Deus sobre o mundo. Seja eu um carpinteiro ou um filósofo, sou chamado
por Deus para criar construtivamente. Minha criatividade pode ser distorcida
pelo pecado, mas uma total falta de criatividade é uma expressão do total
sufocamento do homem pelo Pecado Original. Não é verdade que somente os ascetas
e os santos podem ser salvos – também eles criaram, e foram artistas com almas
humanas, O Apóstolo Paulo, a seu próprio modo espiritual, foi, por seu gênio
espiritual, um criador em alto grau, mais do que um santo.
V
Nem toda criatividade é boa. Pode haver uma criatividade maligna. É
possível criar não apenas em nome de Deus, mas também em nome do diabo. Mas
nisso em especial, seria impossível renunciar à criatividade, em benefício do
diabo, do anti-Cristo. Com grande energia, o anti-Cristo procura demonstrar sua
pseudo-criatividade. E, se não houvesse uma criatividade Cristã e uma
organização Cristã da vida, o anti-Cristo, sua criatividade e sua organização
usurpariam mais e mais territórios, para acabar triunfando em todas as esferas
da vida. Mas para a obra de Cristo no mundo é preciso lutar exteriormente,
tanto quanto possível, por ocupar maiores extensões da existência, é preciso
ceder o mínimo ao anti-Cristo e às suas obras no mundo. Retirar-se do mundo,
negar a criatividade ao mundo, equivale a entregar o destino do mundo ao anti-Cristo.
Se nós, Cristãos, não criarmos a vida em verdadeira liberdade e fraternidade
entre povos e nações, o anti-Cristo o fará com sua falsidade. A divisão
dualista entre uma disposição espiritual social com sua moralidade – para a
qual o Cristianismo exige ascetismo, renúncia, sacrifício e amor – e a
disposição e moralidade de uma governança social e criativa, de uma economia,
etc. – para a qual o Cristianismo permite a ligação aos bens materiais, o culto
à propriedade e a sede por riqueza, a rivalidade e a competição, a vontade do
poder, etc. – já não pode existir. A consciência Cristã não pode permitir que a
sociedade seja abandonada a si mesma, que ela reconhece como deficiente e
pecadora. A renovação Cristã pressupõe uma nova criatividade espiritual e
social, a criação de uma sociedade Cristã verdadeira, e não de um governo
simbólico e convencional. É impossível continuar a tolerar a mentira
convencional dentro do Cristianismo. O socialismo anti-Cristão (de tipo
soviético) triunfa, porque o Cristianismo não resolve a questão social. O
gnosticismo anti-Cristão triunfa, porque o Cristianismo não revela sua própria
gnose Cristã. Da mesma forma, em todos os demais campos. Estamos próximos da
fronteira final. Uma cultura secular, humanista e equilibrada parece cada vez
menos possível. Já ninguém acredita numa cultura abstrata. Todo homem tem que
enfrentar uma escolha. O mundo está dividido entre princípios que se opõem. É
impossível que as coisas continuem se desenvolvendo por mais tempo, como se
desenvolveram na história recente. E junto com isso está a impossibilidade de
um retorno ao velho medievalismo. O problema da criatividade, o problema da
cultura e da sociedade Cristã é insolúvel para a hierocracia eclesial. Esse é o
problema de uma santificação religiosa do princípio humano, e não da
restauração da governança do princípio angélico. A criatividade constitui uma
esfera da liberdade humana, cheia de um amor copioso e abundante a Deus, o
mundo do homem. Para sairmos da crise do mundo e da crise do Cristianismo, é
impossível lançar mão tanto dos princípios da história recente, como dos
princípios da velha Idade Média; isso somente será possível através dos
princípios de uma nova Idade Média. A criatividade Cristã será uma ação do
monasticismo no mundo. A crise religiosa de nossa época está vinculada ao fato
de que a consciência eclesial está enfraquecida, de que ela já não possui a
compreensão da totalidade. E, cedo ou tarde, essa totalidade terá que ser
concebida e revelada, pois deverá haver um desenvolvimento positivo do mundo, e
na cultura se revelará a liberdade humana na Igreja, haverá uma revelação da
vida da humanidade na Igreja, isso é, deverá ser algo subconscientemente
eclesial. A criatividade do homem no mundo deverá ser a vida da própria Igreja,
segundo o modelo do Deus-homem. Isso não significa em absoluto que toda a
criatividade e toda criação do homem na nova história deva ser
subconscientemente eclesial. Esse processo será duplo, nele deverá ser estar
colocado o reino desse mundo, o reino do anti-Cristo. Também no humanismo
reside uma grande mentira, uma revolta contra Deus, nele está colocada a
destruição do homem e a extinção da existência. Mas também acontece uma busca
positiva da liberdade humana, uma revelação dos poderes criativos do homem. O
processo criativo que se seguirá na humanidade não poderá permanecer neutro,
ele terá que ser positivamente eclesial, para ser consciente de si mesmo, ou
definitivamente ele se tornará anti-eclesial, anti-Cristão, satânico. No mundo,
na cultura, deverá se efetuar uma verdadeira separação ontológica, não formal e
exteriormente eclesial, mas interiormente espiritual e ontologicamente
eclesial. Nisso está o sentido de nossos tempos. As energias Divinas são
eficazes em qualquer parte do mundo através de caminhos múltiplos e
frequentemente indiscerníveis. E não fará sentido chamar os “pequeninos” de
nosso tempo, os filhos pródigos que retornam à Igreja, negando todo sentido
positivo do processo criativo, que se desenvolve no mundo.
Nos tempos recentes todos os povos espiritualmente significativos
estavam espiritualmente isolados. O gênio, o inovador criativo, se encontra
terrivelmente, tragicamente isolado. Não há uma consciência religiosa de que o
gênio possa ser um mensageiro dos céus. Muito raramente podemos ouvir algumas
vozes, como as de alguns Católicos, que pedem a canonização de Cristóvão
Colombo. Seu isolamento enquanto gênio dá lugar a um dualismo, que exclui toda
e qualquer discussão. Somente uma renovação cristã, que seja criativa, seria
capaz de superar esse dualismo. Mas a renovação criativa da Igreja não pode ser
concebida em categorias hierocráticas, é impossível forçá-la dentro da
estrutura de um profissionalismo eclesial, é impossível pensar nisso
exclusivamente como um processo “sacro”, em contraste com os processos
“profanos”. A renovação criativa da Igreja virá da comoção do mundo, da
cultura, das energias religiosas criativas acumuladas no mundo. Mais do que
nunca precisamos acreditar que Cristo age dentro da própria raça humana
espiritual, que ele não a abandonou, embora para nós essa atuação seja
invisível. Os Cristãos se veem diante da tarefa da Igrejificação da totalidade
da vida. Mas essa Igrejificação não implica a subordinação invariável de todos
os aspectos da vida à Igreja, mas ela deve ser entendida de outra maneira, isso
é, ela não significa a retomada da teocracia e da hierocracia. A Igrejificação
deve inevitavelmente ter a seu lado o reconhecimento pela Igreja da
criatividade espiritual, que uma consciência eclesial hierocrática diferenciada
deverá ser proposta externamente à Igreja. A Igreja, num sentido profundo do
termo, sempre viveu no mundo, e ela sempre teve processos eclesiais
subconscientes no mundo. A plenitude da Igreja, enquanto vida humana Divina, a
revelação de uma consciência integral da Igreja implica a deificação por meio
de uma nova experiência espiritual da humanidade. E é impossível que essa
experiência espiritual permaneça injustificada e não-santificada. O homem está
imensamente ansioso e sedento pela santificação de suas aspirações criativas. A
Igreja é vida, e a vida é movimento, criatividade. É impossível resistir por
mais tempo se o movimento criativo tiver que permanecer fora da Igreja e em
oposição a ela, e se a Igreja tiver que permanecer imóvel e desprovida de vida
criativa, certas formas da consciência da Igreja reconheceram prontamente uma
teofania, uma “manifestação de Deus” nas formas ossificadas da existência, nos
corpos imperturbáveis da história – como, por exemplo, na regra monárquica. Mas
seguiram-se tempos, nos quais a consciência da Igreja foi obrigada a reconhecer
a teofania na criatividade. Tudo o que está fora da Igreja, todo o secular,
toda a criatividade humanista murchou e se viu num impasse. A cultura se tornou
insípida. Uma sede de eternidade atormenta o povo. E isso significa que deve se
seguir uma época em que a criatividade seja da Igreja, que seja Cristã e
Divino-humana. A Igreja não pode ser uma faceta da vida, uma faceta da alma.
Nós esperamos que todas as atitudes criativas e transfigurativa diante da vida
passem do mundo para a Igreja. Somente dentro da Igreja pode ser preservada e
revelada a imagem e a liberdade do homem, que sofreu uma destruição pelos
processos que aconteceram no mundo. Nessa civilização sem Deus, na qual perece
a imagem do homem e a liberdade do espírito, a criatividade se enfraquece, e
rapidamente instala-se a barbárie. A Igreja deve, mais uma vez, salvar a
cultura espiritual, a liberdade espiritual do homem. É isso que eu chamo de
estabelecimento de uma nova Idade Média. O desejo por uma real transfiguração
da vida desperta agora, não meramente no nível pessoal, mas também na sociedade
e no mundo. E essa boa vontade não pode ser diminuída pela percepção de que o
Reino de Deus sobre a terra não é possível. O Reino de Deus existe por toda
eternidade e em cada instante da vida, e ele não depende de que no mundo o
poder do mal seja vitorioso exteriormente. Nossa tarefa consiste em devotar
toda nossa vontade e toda nossa vida à vitória do poder do bem, da verdade de
Cristo, em tudo e em toda parte.
A vida humana está partida e fragmentada por duas tragédias – a
tragédia da Igreja e a tragédia da cultura. Essas tragédias são causadas por
uma deficiência dualista, por um empobrecimento da Igreja devido a um entendimento
diferenciado e hierárquico a respeito de si mesma, que coloca a Igreja sempre
em oposição ao mundo. Nós, Cristãos, não devemos amar “o mundo”, mas devemos
vencer “o mundo”. Mas esse “mundo” a ser superado, para os santos Padres,
consiste nas paixões a serem vencidas, o pecado e o mal, mas não a criação de
Deus, não o cosmo. A Igreja está em oposição a semelhante “mundo”, mas não em
oposição ao cosmo, à criação de Deus, à plenitude positiva da existência. A
resolução das duas tragédias está na vida, e não numa percepção exclusivamente
teórica do Cristianismo; ela está numa religião que seja não apenas de
salvação, mas também de criatividade, uma religião de transfiguração do mundo,
de uma ressurreição universal, do amor de Deus e do homem, isso é, numa atenção
total da verdade Cristã focada no Deus-homem, focada no Reino de Deus. E a
solução positiva está colocada desse lado da oposição entre heteronomia e
autonomia. A criatividade não é heterônima, nem autônoma, ela é inteiramente
não “nômica”, ela é Divino-humana, ela é uma revelação do amor profuso do homem
por Deus, ela é a resposta do homem ao chamado de Deus, à expectativa de Deus.
Nós acreditamos que no Cristianismo estão contidos poderes criativos
inexauríveis. E a revelação desses poderes podem salvar o mundo da decadência e
do declínio. A questão de nossos tempos consiste não na luta entre o Cristianismo
eclesial e o não-eclesial, mas numa luta espiritual dentro da Igreja, entre
correntes internas, uma exclusivamente conservadora e outra criativa. E um
monopólio da eclesialidade não pode pertencer exclusivamente às correntes
conservadoras hostis a criatividade. Disso depende o futuro da Igreja sobre a
terra, o futuro do mundo e da humanidade. Na Igreja encontra-se um princípio
conservador eterno, e ele deve proteger imutavelmente o sagrado e a tradição.
Mas na Igreja deve também existir um princípio criativo eterno, um princípio
transfigurador, orientado para a Segunda Vinda de Cristo, para o triunfo do
Reino de Deus. Na fundação da fé Cristã está não só o sacerdotal, mas também o
profético, “Mas temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de
nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a medida de sua
fé[13]”.
A criatividade, a descoberta criativa do gênio do homem é, nos tempos
presentes, uma profecia, que deve ter seu significado sagrado restaurado.
[1]
Traduzimos “Creativity” – a capacidade de criar (the ability to create)
– por “Criatividade”, que é sua tradução correta, lembrando que essa última
costuma ser mais associada à imaginação, ou seja, a uma ferramenta da
criatividade, do que à capacidade, ao potencial criador que cada
homem traz dentro de si.
[2]
N.T.: a linguagem eufemística Russa fala do monasticismo como a adoção de uma
roupagem e de uma vida angélica, como a imagem de uma prática, que não
sensibiliza a mente Ocidental, mas que esconde ainda o cisma dualista
mencionado acima.
[3]
Trata-se da versão Russa da Filocalia dos Padres Népticos, com algumas
diferenças em relação a essa.
[4]
Utilizo o termo “gnóstico” não no sentido da gnose herética de Valentino ou
Basilides, mas no sentido de um conhecimento religioso, de uma livre teosofia
(não confundir com o “teosofismo” de Elena Blavatsky – N.T.), como em Clemente
de Alexandria, Orígenes, Franz Baader e Vladimir Soloviev.
[5] A
restauração cósmica.
[6]
“O medo do tormento é o caminho do escravo, o desejo de recompensa é o caminho
do mercenário. Mas Deus deseja aquele que o procura pelo caminho do amor
filial” (Revelatory Narratives of a Wanderer to his Spiritual Father, pg
35).
[7] Jacques-Bénigne
Bossuet foi um bispo e teólogo francês, um dos principais teóricos do
absolutismo por direito divino, defendendo o argumento que o governo era divino
e que os reis recebiam seu poder de Deus. Embora fosse moderado com os
Protestantes, ele atacou, dentro do Catolicismo, o Quietismo, forma de
misticismo praticada pelo Arcebispo de Cambray, François Fenélon. Bossuet era, por natureza, um intelectual e
um teólogo, e não podia compreender uma forma de misticismo que consistia numa
contemplação devocional passiva e no total abandono perante a presença divina
de Deus.
[8]
Num certo sentido o dogma da infalibilidade papal e a gnoseologia de Kant se
baseiam no mesmo princípio de um critério justificador da Verdade externo e
jurídico.
[9]
João 3: 13; 6: 39-40.
[10] 1
Coríntios 12: 28.
[11] 1
Pedro 4: 10.
[12]
“De mesma essência”, de Cristo em relação ao Pai, em contraste com a homoiousia,
“de essência similar” da definição herética do Arianismo, na qual se nega, de
fato, a plena Divindade da natureza de Cristo, negando-se assim o efeito salvífico
da Encarnação. O famoso aforismo de Santo Atanásio, em sua obra Da Encarnação,
declara: “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”, mas no
sentido da theosis, não de um panteísmo qualquer.
[13]
Romanos 12: 6.
Nenhum comentário:
Postar um comentário