sábado, 25 de janeiro de 2020

Nikolai Berdiaev - Salvação e Criatividade


SALVAÇÃO E CRIATIVIDADE[1]
(1926)

Dedicado à memória de Vladimir Soloviev

“Cada um viva de acordo com a graça recebida e coloquem-se a serviço dos outros,
como bons administradores das muitas formas da graça que Deus concedeu a vocês.”
(I Pedro 4: 10)

I

A correlação entre os caminhos de salvação do homem e os caminhos da criatividade humana é uma questão extremamente central, tormentosa e aguda de nossa era. O homem se deteriora e tem sede de salvação. Mas o homem é também, por natureza, um artesão, um criador, um construtor da vida, e a sede por criatividade – por manifestar seu potencial criador – não pode ser extinta nele. Pode o homem ser salvo ao mesmo tempo em que cria, pode ele criar e ao mesmo tempo ser salvo? E como perceber o Cristianismo: será o Cristianismo exclusivamente a religião da salvação da alma para a vida eterna, ou será o potencial criativo – a criatividade – por uma vida mais elevada, justificado pela consciência Cristã?  Todas essas questões atormentam a alma contemporânea, embora elas nem sempre sejam percebidas em sua profundidade. Querendo desenvolver sua vocação existencial, seu ato criativo na vida, os Cristão nem sempre se dão conta de que existe um discurso a respeito do próprio conceito do Cristianismo, sobre a assimilação de sua plenitude. O tormento do problema da salvação e da criatividade reflete o cisma entre a Igreja e o mundo, entre o espiritual e o mundano, entre o sacro e o secular. À Igreja cabe a salvação, ao mundo secular, a criatividade. O ato criativo, que diz respeito ao mundo, não recebe uma justificação, ele não é santificado pela Igreja. Existe um profundo desdém, quase que um desprezo do mundo eclesial em relação a esses feitos na vida da cultura, na vida da sociedade, que são inteiramente processos desenvolvidos no seio do mundo. Na melhor das hipóteses a criatividade é admitida, tolerada, e pode ser disfarçadamente observada, sem que jamais se conceda a ela uma profunda justificação. A salvação é matéria de primeira classe, a única coisa necessária, enquanto que a criatividade é matéria de segunda ou terceira classe, que pode ser aplicável à vida, mas que não faz parte da essência desta. Vivemos sob o signo de um profundo dualismo religioso. A “hierocracia”, o clericalismo, constituem, segundo o entendimento da Igreja, a expressão e a justificativa para esse dualismo. A hierarquia da Igreja é, em sua essência, uma hierarquia angélica, mas não humana. No mundo humano, as hierarquias angélicas celestiais estão apenas simbolizadas. O sistema hierocrático, a soberania exclusiva do sacerdócio na vida da Igreja e, por intermédio da Igreja, também na vida do mundo, consiste na supressão do princípio humano pelo angélico, na subordinação do princípio humano ao princípio angélico, como um apelo para guiar a existência. Trata-se sempre da soberania de um simbolismo condicional[2]. Mas a supressão do princípio humano, o não consentimento de sua expressão criativa única, prejudica a capacidade do Cristianismo de ser a religião do Deus hominal. Cristo era o Deus-homem, não o Deus-anjo, e nele estavam perfeitamente unidas em uma pessoa a natureza Divina com a natureza humana, e assim essa natureza humana se via transportada à Vida Divina. A Cristo, o Deus-homem, foi o princípio fundamental da nova e espiritual raça humana, da existência de um hominidade Divina, não de uma “angelicidade” Divina. A Igreja de Cristo é uma Igreja da hominidade Divina. O princípio angélico consiste num princípio intermediário entre Deus e o homem, um princípio intermediário passivo, que transmite a energia Divina, que conduz a graça Divina, mas que não é um princípio ativo e criativo. O princípio ativo e criativo foi concedido à humanidade. Mas a limitação pecaminosa da humanidade não permite a plenitude da verdade Cristã. A soberania supressiva do princípio hierocrático angélico é um indicativo da humanidade pecadora no sentido de expressar sua natureza criativa, no sentido de aceitar o Cristianismo em sua plenitude e totalidade. O caminho de salvação para a humanidade pecadora torna óbvia sua necessidade, acima de tudo, de um princípio hierocrático angélico. Mas o caminho da criatividade permanece como um caminho humano autônomo, não santificado e não justificado, e nele o homem é deixado a só.

A não expressão religiosa do princípio humano, enquanto parte orgânica da vida do Deus-homem, a não abertura religiosa para a livre vocação do homem, cria o dualismo entre a Igreja e o mundo, entre a Igreja e a cultura, o agudo dualismo entre o sacro e o profano. Para o fiel Cristão foram criadas duas vidas, uma de primeira classe, outra de segunda classe. E esse dualismo, essa bipolaridade da existência alcança seu ápice no Cristianismo do tempo atual. Durante o medievo, o Cristianismo possuía sua própria cultura teocrática, hierocrática, que subordinava toda a criatividade da existência ao princípio religioso, que era concebido como a soberania da hierarquia angélica sobre a humana. Na cultura e sociedade medievais havia o sagrado, mas a justificação religiosa era condicionalmente simbólica. A cultura, em sua concepção, era angélica, não humana. A soberania do princípio angélico sempre conduziu ao simbolismo, ao condicional, um sinal refletido da existência celestial dentro do mundo humano, mas sem um alcance real, sem que haja uma transfiguração verdadeira da existência humana. Presentemente, o simbolismo foi rebaixado e completou-se o rompimento. O homem se rebelou em nome de sua liberdade e avançou em seu próprio caminho autônomo. A religião foi relegada a um canto obscuro de sua alma. Ele passou a pensar a Igreja de forma diferente. O Cristão atual vive em dois ritmos incongruentes – na Igreja e no mundo, pelos caminhos da salvação e pelos caminhos da criatividade. Nas sociedades teocráticas, nas culturas teocráticas, o princípio humano estava subordinado, a liberdade do homem não garantia seu consentimento à existência do Reino de Deus. Nas sociedades humanísticas e nas culturas atuais o princípio humano foi desviado de Deus e da eficácia da graça Divina. A conjunção entre o humano e o Divino já não podia ser alcançada. Os caminhos da criatividade do mundo humanístico colocaram-se sem Deus e contra Deus. O drama da atual história humanista é o drama de um profundo rompimento entre o caminho da criatividade da existência e o caminho da salvação, separados de Deus e da graça Divina. O dualismo entre a Igreja e o mundo reconhece essas formas de expressão, que as épocas orgânicas sagradas primitivas não conheceram. No mundo aconteceram tremendos desenvolvimentos criativos, nas ciências, na filosofia, na arte, no estado e na vida social, nos avanços tecnológicos, nas atitudes morais do povo, até mesmo no pensamento religioso, nas estruturas místicas da mente. Todos nós, não apenas os que não creem, mas também os fieis Cristãos, participamos do desenvolvimento do mundo, desse desenvolvimento da cultura, e a ele devotamos uma parte significativa de nosso tempo e esforço. Vamos à Igreja aos Domingos. Mas nos demais seis dias da semana nos dedicamos aos nossos trabalhos criativos e construtivos. Nossa atitude criativa diante da vida permanece não-justificada, não-santificada, não-codependente dos princípios religiosos da vida. O antigo sistema medieval teocrático e hierocrático de justificação e santificação de todos os processos da vida já não tem poder sobre nós, está moribundo. Os próprios fieis, o mesmo povo Ortodoxo participa da não-justificada e não-santificada vida do mundo, eles estão submetidos à ciência profana e não-sagrada, à economia profana e não-sagrada, às leis profanas e não-sagradas, a um estilo de vida desde muito desprovido de caráter sagrado. Os fieis e os povos Ortodoxos vivem a vida eclesial na Igreja, frequentam o templo aos Domingos e dias festivos, jejuam na Quaresma, oram a Deus de manhã e ao entardecer, mas não vivem a vida eclesial no mundo, na cultura, na sociedade, sua criatividade, na vida política e econômica, nas ciências e nas artes, nas invenções e descobertas, na moralidade cotidiana, permanece externa à Igreja e à religiosidade, segue sendo profana e mundana. É um ritmo de vida totalmente outro. Um tempestuoso desenvolvimento criativo atingiu o mundo, na cultura. Ao contrário, por longo tempo na Igreja estabeleceu-se um modo comparativamente estacionário, como que petrificado e ossificado. A Igreja passou a viver exclusivamente como guardiã, como uma ligação com o passado, isso é, ela expressava apenas um lado da vida eclesial. A hierarquia da Igreja se tornou hostil em relação à criatividade, suspeitosa quanto à cultura espiritual, ela restringiu o homem e temeu sua liberdade, e assim os caminhos da salvação foram colocados em oposição aos caminhos da criatividade. Somos salvos apenas em um plano da existência, mas moldamos totalmente nossa vida em outro plano da existência. E permanece sempre o perigo de que nesse plano, no qual criamos, podemos perecer e não sermos salvos. E não há nenhuma esperança nisso, de que esse insustentável dualismo adicional possa ser superado através da subordinação de toda nossa vida e de todo nosso impulso criativo ao princípio hierocrático, através da restauração da teocracia no antigo sentido da palavra. Não existe retorno possível ao simbolismo condicional e à sociedade hierocrática. Isso estabeleceria uma reação temporária, rejeitando a criatividade. O problema religioso sobre o homem, sobre sua liberdade e sua vocação criativa, foi colocado em toda sua agudez. E não se trata apenas de um problema do mundo, de um problema opressivo e incômodo da cultura contemporânea, mas se trata também de um problema da Igreja, do Cristianismo, enquanto religião do Deus-homem.

Atualmente, o pensamento se tornou sujeito à influência dissecadora do nominalismo. Na consciência da humanidade, a realidade ontológica se acha decomposta e pulverizada. Esse processo afeta igualmente a consciência da Igreja. E também, o quanto as tendências mais reacionárias do pensamento da Igreja se apropriaram de um entendimento nominalista da própria Igreja. Elas cessaram de compreender a Igreja de forma integral, como um organismo espiritual universal, como uma realidade ontológica, como um cosmo Cristificado. Prevaleceu um entendimento diferenciado da Igreja, seja como instituição, como comunidade de fieis, como hierarquia ou como templo. A Igreja foi transformada num estabelecimento de cura, dentro da qual se tratam as almas individuais no sentido de cura. Dessa maneira se afirma um individualismo Cristão, indiferente ao destino da sociedade humana e do mundo. A Igreja existe para a salvação de almas individuais, mas não tem relação com os aspectos criativos da vida, com a transfiguração da ordem social e cósmica. Esse tipo de Ortodoxia exclusivamente ascético-monástica só foi possível na Rússia, porque ali a Igreja se incumbiu de toda a organização da vida do estado. Somente a presença de uma monarquia autocrática consagrada pela Igreja tornou possível tal individualismo Ortodoxo, essa separação entre o Cristianismo e a vida do mundo. A monarquia Ortodoxa preservou e guardou o mundo, e a ordem eclesial foi também mantida por ela. A Igreja era indiferente, não apenas à organização da vida social e cultural, como ainda à organização da vida eclesial, à vida das paróquias, à organização de uma autoridade eclesial não dependente dela. A existência de uma monarquia autocrática Ortodoxa constitui o lado visível da Ortodoxia ascético-monástica, de uma Ortodoxia como uma religião voltada exclusivamente para a salvação pessoal. Por isso o colapso da monarquia autocrática, do império Russo Ortodoxo, implicou uma modificação substancial na consciência da Igreja. A Ortodoxia já não podia seguir predominantemente ascético-monástica. O Cristianismo não podia ser reduzido à salvação individua de almas separadas. A Igreja inevitavelmente se voltou para a vida da sociedade e do mundo, e inevitavelmente teve que participar da formação da vida. Na monarquia autocrática, como no tipo da teocracia Ortodoxa, era o princípio angélico, não o humano, que reinava. O czar, de acordo com esse conceito, é em essência o ordenador angélico, não o humano. O Colapso da teocracia Ortodoxa tinha que conduzir ao despertar do ativismo criativo de uma nação verdadeiramente Cristã, um ativismo humano, para a formação de uma sociedade Cristã. Essa reviravolta deveria começar antes de tudo com o povo Ortodoxo se tornando responsável pelo destino da Igreja no mundo, numa atualidade histórica, de tal forma a que se obrigasse a tomar sobre si a formação eclesial, a vida das paróquias, tudo o que dissesse respeito ao templo, à organização da vida eclesial, às fraternidades, etc. Mas essa mudança da psicologia Ortodoxa não podia ficar restrita à formação da vida eclesial, ela deveria se estender a todos os aspectos da vida. Tudo na vida deveria ser pensado como vida eclesial. Na Igreja, entram todos os aspectos da vida. Uma reviravolta é inevitável para uma compreensão integral da Igreja, isso é, para a superação do nominalismo e do individualismo da Igreja. O entendimento do Cristianismo exclusivamente como uma religião de salvação pessoal, a coerção do escopo da Igreja a algo que exista paralelamente a todo o demais – quando a Igreja se propõe a ser a plenitude da existência – seria também a fonte das maiores desordens e catástrofes no mundo Cristão. O rebaixamento do homem, de sua liberdade e vocação criativa, a imposição dessa forma de entender o Cristianismo, evocaria também a revolta e a rebelião do homem em nome de sua liberdade e criatividade. Sobre esse ponto desolador, que permaneceria no mundo para o Cristianismo, o anti-Cristo iria iniciar sua própria torre da Babilônia e levar sua construção até o máximo possível. Seduzindo a liberdade do espírito humano, a liberdade da criatividade humana acabaria por perecer nesse caminho. A Igreja deveria ter se guardado dos elementos malignos do mundo e de seus desenvolvimentos para o mal. Mas a guarda genuína das coisas santas só e possível se admitirmos a criatividade Cristã.


II

Sobre quais bases espirituais o individualismo Ortodoxo se fundamenta, sobre quais se justifica seu entendimento do Cristianismo, enquanto religião de salvação pessoal, indiferente ao destino da sociedade e do mundo? O Cristianismo do passado era extraordinariamente magnificente, diverso e plural. Nos Evangelhos, nas Epístolas Apostólicas, na literatura Patrística e na tradição da Igreja é possível encontrar as bases para diferentes compreensões do Cristianismo. O entendimento do Cristianismo como religião de salvação pessoal, que desconfia de toda e qualquer criatividade, encontra-se exclusivamente na literatura ascética Patrística, que não representa a totalidade do Cristianismo, e nem sequer a totalidade da literatura Patrística. A Dobrotoliubie-Filocalia[3] é como se tivesse filtrado todo o remanescente. Na ascese está expressa a verdade eterna, que penetra no caminho espiritual interior como um momento inevitável. Mas ela não constitui a totalidade da verdade Cristã. A heroica luta contra a natureza do velho Adão, contra as paixões pecaminosas, promoveu um determinado aspecto da verdade Cristã e exagerou esse ponto, abarcando todas as demais dimensões. As verdades reveladas nos Evangelhos e nas Epístolas foram deixadas de lado num segundo plano, e foram sufocadas. Na base de todo o Cristianismo, na base de todo caminho espiritual do homem, no caminho da salvação para a vida eterna, foi estabelecida a humildade. O homem precisa ser humilde, e todo o resto acontece por si só. A humildade é o único método de atividade espiritual interior. A humildade filtra tudo e sufoca o amor, que se revela no Evangelho e se manifesta como o fundamento do Novo Testamento com o homem. O conceito ontológico da humildade consiste numa vitória real sofre a autoafirmação humana autocentrada, sobre a disposição pecadora do homem a se situar no centro de gravidade da vida e a estabelecer a si próprio na fonte da vida – esse é sentido da vitória sobre o orgulho. O conceito de humildade está na real transfiguração da natureza humana, no domínio do homem espiritual sobre o homem anímico e carnal. Mas a humildade não deve sufocar e apagar o espírito. A humildade não consiste numa obediência exterior, submissa e subordinada. O homem pode ser muito disciplinado, obediente e submisso, e ainda assim não ser humilde. Vemos isso, por exemplo, no Partido Comunista Russo. A humildade constitui uma mudança eficaz na natureza da alma – e não uma subordinação exterior que, entretanto, deixa intacta a natureza –, ela exige um trabalho interior sobre si mesmo, exige a libertação do poder das paixões, da natureza inferior, que o homem costuma aceitar como sendo seu verdadeiro “eu”. Na humildade está afirmada a verdadeira hierarquia do ser, na qual o homem espiritual tem precedência sobre o homem anímico, onde Deus tem precedência sobre o mundo. A humildade e o caminho para uma autopurificação e para uma autodefinição. A humildade não constitui uma aniquilação da vontade humana, mas a iluminação da vontade humana, sua livre submissão à Verdade. O Cristianismo não pode negar a humildade como um momento do caminho espiritual interior. Mas a humildade não constitui a totalidade da vida espiritual. A humildade é um meio legítimo. Mas ela não é o único caminho para a vida espiritual. A vida espiritual e incomensuravelmente mais complexa e plural. E é impossível dar uma resposta a todas as questões do espírito apenas pregando a humildade. E a humildade pode ser falsamente, e também externamente concebida. Para a vida espiritual interior e o caminho espiritual ela deve ser posta em prática com absoluta primazia, porém mais primária, mais profunda, mais primordial do que todas as nossas relações com a vida social e com o mundo. É no mundo espiritual, nas profundezas do mundo espiritual, que se definem todas as nossas relações com a vida. Isso é um axioma religioso, um axioma dos místicos. Mas é possível um conceito de humildade, que distorça toda nossa vida espiritual, que não acomode a verdade Divina do Cristianismo, a Divina plenitude. E é nisso que reside a complexidade da questão.

A construção de uma vida baseada apenas no espírito de humildade cria um sistema autoritativo e hierocrático exterior. Todas as questões que dizem respeito à forma social e à criatividade cultural passam a ser decididas em função da humildade. Isso poderia ser uma organização sutil da sociedade, na qual as pessoas seriam o mais humildes possível, e obedeceriam ao máximo. Mas isso censuraria toda a gama da vida, na qual reside a expressão dos instintos criativos do homem. Assim, em essência, não seria resolvida nenhuma questão, mas elas seriam consideradas apenas na medida em que favorecessem a humildade do homem. A deterioração da humildade resulta nisso, em que ela deixa de ser entendida interiormente, ela deixa de ser um ato secreto, místico, um tesouro, uma manifestação da vida espiritual interior. A humildade se transforma num sistema exterior de organização da vida, que reprime o homem. A humildade, em sua essência mística, não é absolutamente contrária à liberdade, ela é um ato de liberdade e pressupõe a liberdade. Apenas a humildade livre, a livre subordinação do homem anímico ao homem espiritual possui significado e valor religioso. A humildade compulsória, imposta, é determinada por uma estrutura exterior da vida e não possui significado para a vida espiritual. Escravidão e humildade são condições espirituais variantes. Tornar-me humilde em meu caminho espiritual interior implica que num ato livre eu coloco a fonte da minha vida em Deus, e não em mim mesmo. Para uma análise fenomenológica fica evidente que minha liberdade precede minha humildade. A humildade é mais interior, é um tesouro, uma condição espiritual mais secreta. Mas, tendo decaído e se degradado, ela se torna deteriorada e se transforma num sistema de vida externo compulsoriamente imposto, que nega a liberdade e coage o homem. Do solo da humildade estão prontas a brotar a hipocrisia e a “piedosidade”. Da mesma forma como o conceito ontológico da humildade consiste na libertação do homem espiritual, uma humildade degenerada mantém o homem numa condição de restrição e opressão, acorrentando seu potencial criativo. Os grandes ascetas e santos travaram uma luta heroica de libertação espiritual do homem, de oposição à natureza inferior, contra o poder das paixões. Os corrompedores da humildade negam a heroica luta pela liberação espiritual do homem e mantêm o homem submetido a um sistema autoritário de vida. Quando eu me humilho diante a vontade de Deus, quando eu venço em mim mesmo a revolta egoísta do escravo, eu parto da liberdade e me dirijo à liberdade. O egoísmo me escraviza, e eu desejo me libertar dele. A humildade é um dos métodos de transição de uma condição na qual prevalece a natureza inferior, para uma condição na qual a natureza superior governa, isso é, ela implica o crescimento do homem, sua ascensão espiritual. A humildade deteriorada, por seu turno, busca um sistema de vida no qual nunca entra a libertação, na qual a ascensão espiritual nunca é alcançada, na qual a natureza superior jamais se mostra. A libertação do espírito, a manifestação da natureza superior é considerada como uma condição não humilde, como uma deficiência da humildade: a humildade, de meio, se torna um fim em si mesma.

Começa-se por opor a humildade ao amor. O caminho do amor e considerado não humilde, por ser um caminho audacioso. O Evangelho é substituído pela Dobrotoliubie-Filocalia. Desde quando posso eu, pecador e indigno, pretender amar meu irmão, meu próximo? Meu amor estaria infectado pelo pecado. Primeiro é preciso que eu me humilhe, e então aparecerá o amor, como uma fruição da humildade. Mas eu posso ser humilde por toda minha vida sem jamais atingir uma condição sem pecado. E assim, tampouco o amor irá aparecer jamais. Então, como posso eu, o pecador, pretender a perfeição espiritual, atrever-me à sublimidade do espírito, alcançar o ápice da vida espiritual? Em primeiro lugar é preciso vencer o pecado pela humildade. Mas isso toma toda a vida e não deixa tempo nem forças para uma vida espiritual criativa. E isso só é possível nesse mundo, e mesmo assim é improvável, uma vez que nesse mundo só a humildade é possível. A humildade degenerada cria um sistema de vida no qual a vida não passa de um cotidiano banal, burguês, considerado mais honrado do que um modesto, Cristão e moral objetivo de uma vida espiritual mais elevada, e no qual o amor, a contemplação, a percepção e a criatividade são sempre suspeitos de orgulho e de uma humildade deficiente. Regatear no mercado, viver uma vida familiar egoísta, servir na polícia ou nos escritórios do fisco, tudo humildemente, sem presunção, sem ousadia. Por outro lado, a aspiração a uma fraternidade Cristã entre os povos, a realização da verdade de Cristo em vida, tornar-se filósofo ou poeta – um filósofo Cristão, um poeta Cristão – mas não de forma humilde, e sim orgulhosamente, presunçosamente, audaciosamente. O comerciante pode não apenas ser sovina, como até desonrado, e ainda assim estar menos sujeito ao perigo da morte eterna, do que aquele que por toda sua vida buscou o verdadeiro e a verdade, que tem sede de uma vida de beleza – como, por exemplo, Vladimir Soloviev, o Gnóstico[4], o poeta da vida, que buscava a verdadeira vida e a fraternidade do povo, e que está exposto ao perigo da morte eterna, por ser insuficientemente humilde, por ser orgulhoso. Aqui começa um círculo vicioso e sem esperanças. A aspiração por uma realização da Verdade de Deus, do Reino de Deus, das alturas espirituais e da perfeição espiritual, é proclamada como imperfeição espiritual, uma falta de humildade. Mas então, onde está o erro básico da humildade degenerada e de seu sistema de vida? O erro básico se esconde de tocaia no falso conceito da correlação entre o pecado e os caminhos de libertação do pecado, ou o atingimento de uma vida espiritual mais elevada. Eu não posso raciocinar assim – o mundo jaz no mal, eu sou um pecador, e por ser minha aspiração a uma realização da Verdade de Cristo e de um amor fraterno entre a humanidade, uma pretensão orgulhosa, uma deficiência de humildade, e, tendo isso em vista, todo impulso autêntico em direção a uma realização em amor e verdade consistirá numa vitória sobre o pecado, numa libertação do pecado. Eu não posso dizer isso – a aspiração por uma perfeição espiritual e pelas alturas do espírito constituem orgulho e falta de humildade, uma consciência insuficiente da pecaminosidade do homem, e, tendo isso em vista, todo avanço em direção a uma perfeição espiritual e às alturas do espírito será um caminho para a vitória sobre o pecado. Eu não posso falar assim – eu sou um pecador e, tendo isso em vista, minha audácia em apreender o mistério do ser e em criar a beleza já constitui em si uma vitória sobre o pecado, uma transfiguração da vida. É impossível dizer: o pecado distorce e perverte tanto o amor, como a perfeição espiritual, a cognição e tudo o mais, e, por conseguinte, não existe vitória sobre o pecado a partir de nenhum desses caminhos. Sendo assim, é também possível afirmar o contrário: o caminho da humildade foi distorcido e pervertido pelo pecado e a voracidade humana, e a humildade se encontra distorcida, degenerada, pervertida, transformada em escravidão, egoísmo e covardia. A humildade já não é uma garantia contra a distorção e a degeneração, tanto quanto o amor e o conhecimento.

O pecado só pode ser vencido com grande dificuldade e somente pelo poder da graça. Mas o caminho para essa vitória, para a aquisição da graça, é plural, e abarca toda a plenitude do ser. Nosso amor ao próximo, nosso conhecimento, nossa criatividade, estão decididamente distorcidos pelo pecado e carregam em si o selo da imperfeição, mas, de fato, também o caminho da humildade está distorcido elo pecado e carrega em si o selo da imperfeição. Cristo ordenou em primeiro lugar amar a Deus e ao próximo, e, acima de tudo, buscar o Reino de Deus e a perfeição semelhante à perfeição do Pai Celestial. A Dobrotoliubie-Filocalia – na qual não foram incluídos as mais notáveis obras místicas de São Máximo o Confessor, nem de São Simeão o Novo Teólogo, dentre outros – é em primeiro lugar uma coleção de normas ascéticas e morais destinadas a monges, e não a expressão a expressão da total plenitude do Cristianismo e de seus caminhos. Não apenas o espírito do Evangelho e das Epístolas, como também o espírito da Patrística Grega em suas correntes mais profundas, diverge dela, como, por exemplo, em relação ao espírito exclusivista da Ortodoxia de Teófano o Eremita. Definitivamente, em Teófano o Eremita existe muito de verdadeiro e de eterno, em especial em seu livro O Caminho da Salvação, mas sua atitude em relação à vida no mundo é depressiva e tímida, e seu Cristianismo é murcho e debilitado. A ideia central da Patrística Oriental encontra-se na theosis, ou deificação da criatura, na transfiguração do mundo, do cosmo, e não na ideia de uma salvação pessoal.  Não é por acaso que os grandes mestres da Igreja do Oriente se inclinaram para a ideia de apokatastasis[5], e não apenas São Clemente de Alexandria e Orígenes, como também São Gregório de Nissa, São Gregório Naziano e São Máximo o Confessor.  A concepção jurídica do processo do mundo, a concepção jurídica da expiação, a construção do inferno, a salvação dos escolhidos e a perdição eterna de todo o resto da humanidade estão expressos principalmente na Patrística Ocidental, em Santo Agostinho, e na Escolástica Ocidental. Para a Patrística Grega clássica, o Cristianismo não era apenas a religião da salvação pessoal. Ela estava orientada para a apreensão cósmica do Cristianismo, ela propunha a ideia da iluminação e da transfiguração do mundo, da deificação do criado. Somente mais tarde a consciência Cristã adotou com mais ênfase a ideia do inferno, mais do que a da transfiguração e theosis do mundo. Isso aconteceu, talvez, como resultado da preponderância de nações bárbaras com seus instintos ferozes. Essas nações precisavam estar sujeitas a uma disciplina severa e intimidadora, uma vez que sua carne e sangue, suas paixões, ameaçavam arruinar o Cristianismo e toda forma de ordem do mundo. O Cristianismo, visto como uma religião de salvação pessoal da perdição eterna através da humildade, conduziu ao pânico e ao terror. O homem passou a viver debaixo de uma tensão horrível de terror em relação à perdição eterna, e assim ele consentiria com qualquer coisa, desde que pudesse evitá-la. O sistema autoritário de obediência e submissão criou uma emoção atingida pelo medo da perdição, um terror pânico dos castigos eternos do inferno[6]. Debaixo de tal disposição espiritual, sob esse tipo de estado mental, uma atitude criativa em relação à vida era muito difícil. Não há tempo para a criatividade quando se está sob a ameaça da destruição. Toda a existência é colocada debaixo do signo do terror, do medo. Quando a peste é devastadora e a segunda morte nos ameaça, não temos tempo para a criatividade, estamos ocupados exclusivamente com medidas de salvação da peste. Algumas vezes o Cristianismo foi também concebido como uma salvação contra a devastação da peste. A criatividade e a construção da vida se tornaram possíveis apenas graças ao sistema dualista, que garantiu momentos de esquecimento em relação à salvação e à perdição. O homem devotou-se à ciência, à arte ou à ordem social, esquecendo-se nesses momentos da ameaça da destruição, revelando para si mesmo uma outra esfera do ser, separada dessa esfera na qual a perdição e a salvação são cumpridas – e essas duas esferas não se conectavam. O entendimento do Cristianismo como uma religião de salvação pessoal da perdição constitui um sistema de egoísmo transcendental, de um utilitarismo e de uma Eudaimonia transcendentais. Konstantin Leontiev, como a audácia típica dele, professou essa religião de egoísmo transcendental. Mas isso foi porque sua atitude em relação à vida do mundo era inteiramente pagã, e ele conjugou dualistamente em si o homem de Athos e a Ortodoxia ascético-monástica de Optina, juntamente com o homem da Renascença Italiana do século XVI. Com uma consciência transcendental, o  homem não está preocupado em atingir uma alta perfeição na vida, mas com aquilo que diz respeito à salvação de sua própria alma, com o pensamento de receber sua própria satisfação eterna. O egoísmo transcendental e o eudaimonismo negam de maneira inata o caminho do amor, e não podem ser fieis ao mandamento Evangélico, que nos manda perder nossa alma para que possamos ganhá-la, renunciar a ela em favor do nosso próximo, aprender o amor acima de tudo, esse amor incondicional por Deus e pelo próximo. Mas, propor o Cristianismo como uma religião de egoísmo transcendental, desconhecendo o amor incondicional pela perfeição Divina, equivale a blasfemar o Cristianismo. Ou se trata de um Cristianismo bárbaro, que rebaixa a selvageria das paixões, mas é distorcido por elas, ou se trata de um Cristianismo degenerado, enfraquecido e empobrecido. O Cristianismo era, é e sempre será não só uma religião de salvação pessoal e medo da perdição, mas também uma religião da transfiguração do mundo, da deifi9cação da criatura, uma religião cósmica e social, uma religião de amor incondicional, um amor por Deus e pelo homem, a aliança e a promessa do Reino de Deus. Sob o entendimento individualista e ascético do Cristianismo, como uma religião de salvação pessoal, que diz respeito apenas à própria alma de alguém, a revelação sobre a ressurreição de todas as criaturas é ininteligível e desnecessária. Para uma religião de salvação pessoal não existe uma perspectiva escatológica mundial, não existe conexão com as pessoas, nem da alma individual humana com o mundo, com o cosmo, com toda a criação. Dessa forma se nega uma ordem hierárquica da existência, na qual tudo está interligado, e da qual o destino individual não pode ser destacado. O entendimento individualista da salvação é mais típico do pietismo Protestante do que do Cristianismo enquanto Igreja. Eu não posso me salvar por mim mesmo, na solidão, eu só posso ser salvo junto com meus irmãos, junto com toda a criação de Deus, eu não posso pensar apenas na minha própria salvação, eu devo também pensar na salvação de todos, de todo o mundo. E, de fato, a salvação não passa da expressão exotérica do atingimento das alturas espirituais, da perfeição, da semelhança para com Deus, como o supremo valor da vida na terra.


III

Todos os maiores místicos Cristãos colocaram um amor fiel confesso a Deus e a união com Deus acima da salvação pessoal. Um Cristianismo mais exterior costuma criticar os místicos por isso, porque para eles o centro de gravidade da vida espiritual reside totalmente fora do caminho da salvação espiritual, e eles seguem uma perigosa senda de amor místico. O místico, de fato, representa um grau inteiramente diferente da vida espiritual em relação ao asceta. O místico pode estudar – é típico dele – lendo os Hinos de São Simeão o Novo Teólogo. O místico também entende a salvação como iluminação e transfiguração, a deificação da criatura, como uma superação do isolamento do conjunto das criaturas, isso é, da separação em relação a Deus. A ideia da theosis gravita acima da ideia de salvação. Isso foi lindamente expresso por São Simeão o Novo Teólogo: “Estou imbuído de Seu amor e beleza, e cheio da delícia e doçura Divinas. Eu me tornei partícipe do esplendor e da glória; minha face, como a do meu Bem-Amado, brilha, todos os meus membros trazem em si o esplendor. Por isso, juntamente, eu me torno mais belo do que o belo, mais divino do que os deuses, mais poderoso do que os poderosos, maior do que os reis e mais venerável do que tudo o que possa ser visto, na terra e acima da terra, e ainda nos céus e mais do que tudo o que está além dos céus”. Mencionei acima o maior místico da Ortodoxia Oriental. Seria possível aqui citar inúmeros fragmentos de místicos do Ocidente, Católicos Latinos e místicos Alemães, que concordam com esse pensamento, de que no centro de gravidade místico jamais se encontra o anseio pela salvação. Os místicos católicos superaram o “jurisdicismo” da teologia Católica, o entendimento legalista das relações entre Deus e o homem. A disputa de Bossuet com Fenelon foi também a disputa entre um teólogo e um místico[7]. No caminho místico existe sempre um esquecimento incondicional e um deslocamento do “eu”, uma abertura amorosa incomensurável perante Deus. Mas o amor a Deus é uma condição criativa do espírito, nele está a superação de todas as restrições, uma libertação, uma revelação afirmativa do homem espiritual. A humildade não passa de um meio, e, mesmo assim, de um meio negativo. O amor a Deus é um fim, desde já um fim positivo. O amor a Deus é desde logo uma transfiguração criativa da natureza humana. Mas o amor a Deus é semelhante ao amor pelas alturas espirituais, pelo Divino na vida. O eros Divino constitui uma ascensão espiritual, um crescimento espiritual, uma vitória da condição criativa do espírito sobre a condição restritiva, uma abertura das asas da alma, de que falava Platão no Fedro. O conteúdo afirmativo do ser é vivo, criativo, é um amor que transfigura. O amor não é algo particular, um aspecto separado da vida, o amor é a totalidade da vida, a plenitude da vida. O conhecimento é como uma revelação do amor, de um amor cognitivo, uma união cognitiva do amante para com seu objeto amado, para com a existência, para com Deus. A criatividade do bel é como uma revelação da harmonia do amor na existência. O amor é a afirmação da face do amado na eternidade e em Deus, isso é, é a afirmação da existência. O amor é um princípio básico ontológico. Mas o amor é inseparável do amor ao próximo, do amor pela criação de Deus. O Cristianismo é também uma revelação do amor Divino-humano. Esse amor me salva, vale dizer, não apenas o amor a Deus, mas também o amor aos homens, transfigura minha natureza. O amor ao próximo, aos irmãos, toda ação amorosa entra no caminho da minha salvação, da minha transfiguração. No caminho da minha salvação entra o amor pelos animais e plantas, por cada coisa, pelas pedras, pelos rios e mares, pelas colinas e campos. também por intermédio deles eu posso ser salvo, e todo o mundo pode ser salvo e alcançar a iluminação. A indiferença mortal aos homens e à natureza, em relação a todas as coisas vivas em nome de uma auto-salvação é uma manifestação odiosa de egoísmo religioso, um ressecamento da natureza humana, é um colocar-se “no coração de eunucos impotentes”. O amor Cristão não deve ser um “amor de vidro transparente”, na expressão de Vasily Vasilievich Rozanov. Também o amor espiritual abstrato é um “amor de vidro transparente”. Somente um amor espiritualizado da alma, no qual a alma é transfigurada em espírito, é um amor vivo e Divino-humano. O desdém que por vezes encontramos no monasticismo ascético em relação às pessoas e ao mundo, um esfriamento do coração e uma mortificação perante tudo o que vive, constitui uma degeneração do Cristianismo, um empobrecimento dentro do Cristianismo. A substituição do mandamento de amor a Deus e ao próximo, dado pelo próprio Cristo, por um mandamento de humildade exterior e obediência, o esfriamento de qualquer forma de amor, é também uma degeneração do Cristianismo, uma incapacidade de ajustar-se à verdade do Cristianismo. É preciso notar que a ideia da transfiguração e da iluminação cósmica é especialmente mais próxima do Oriente Ortodoxo. O Cristianismo Ocidental está mais perto do ideal jurídico. E a ideia de justificação é central para a consciência dos Católicos e dos Protestantes. Por isso, no Ocidente, as disputas entre a liberdade e a graça, entre a fé e as boas obras, adquirem especial importância. Daí a busca pela autoridade e por critérios exteriores da verdade religiosa[8]. Apenas os místicos se elevam acima da asfixiante ideia do juízo de Deus, da exigência de Deus pela justificação do homem, e eles entendem que para Deus não é necessária a justificação do homem, mas sim o amor do homem, a transfiguração de sua natureza. Esse é o problema central da consciência Cristã: até que ponto a essência do Cristianismo está na justificação e no julgamento, na inexorável justiça de Deus, ou até que ponto sua essência está na transfiguração e na iluminação, no infinito amor de Deus. O entendimento jurídico do Cristianismo, que produz o estado de terror espiritual atual, é um método severo por meio do qual o Cristianismo subjugou as nações, que estavam cheias de instintos sanguinários, crueldade e barbárie. Mas a esse entendimento se opõe uma compreensão mais profunda do Cristianismo, visto como uma revelação de amor e liberdade. O homem é chamado a ser criador e compartícipe nos atos de Deus na criação. Esse é o chamado de Deus dirigido ao homem, e ao qual o homem deve responder livremente. Para Deus, escravos obedientes e servis são totalmente inúteis, eternamente tremendo e egoistamente voltados para si próprios. Para Deus são necessários os filhos – livres e criativos, amorosos e atrevidos. O homem distorceu terrivelmente a imagem de Deus, e atribuiu a Ele sua própria psicologia perversa e pecadora. Mas é sempre preciso lembrar a verdade da teologia apofática. Se é necessário atribuir a Deus uma vida emotiva, não se segue daí como consequência apresentá-la sob a forma das mais vis emoções humanas. O terror espiritual, o pânico espiritual, gerados a partir de um entendimento jurídico sobre o relacionamento entre Deus e o homem, e a colocação da justificação no centro da fé Cristã, nascida de um entendimento da vida emotiva de Deus, em tudo se apresentam como as mais vis emoções da vida humana. Mas Deus revelou a Si próprio no Filho, como Pai, como amor infinito. E com isso está para sempre superado o entendimento de Deus como um Senhor feroz, vingativo e furioso. “Deus, não enviou Seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que, por meio Dele o mundo seja salvo”. “Essa é a vontade do Pai que Me enviou, de que, todos os que Ele concedeu a Mim, nenhum pereça, mas que ressuscitem todos no último dia[9]”. O homem é chamado à perfeição, à perfeição semelhante à do Pai Celeste. A revelação Cristã é antes de tudo a boa nova a respeito da vinda do Reino de Deus, que devemos buscar acima de tudo. A busca pelo Reino de Deus, portanto, não constitui uma mera busca pela salvação pessoal. O Reino de Deus consiste na transfiguração do mundo, na ressurreição universal, em novos céus e uma nova terra.


IV

O conceito de mundo Cristão não apenas não obriga, como inclusive não nos permite pensar que a realidade se restringe às almas individuais das pessoas, que somente elas constituem a criação de Deus. A sociedade e a natureza também constituem uma realidade e foram criadas por Deus, a sociedade não é uma invenção humana. Desde o início ela teve raízes ontológicas, tanto quanto a pessoa humana. E é impossível separar a pessoa humana da sociedade, assim como é impossível separar a sociedade da pessoa humana. A pessoa e a sociedade estão situadas numa vida interdependente, elas pressupõem uma única proposta concreta. A vida espiritual da pessoa se reflete na vida da sociedade. E a sociedade é uma espécie de organismo o espiritual, que é alimentado pela vida das pessoas, e que as alimenta. A negação da realidade da sociedade constitui um nominalismo, e essa forma de nominalismo traz consigo uma consequência fatal para a consciência da Igreja, para um entendimento da natureza da Igreja. A Igreja é uma sociedade espiritual, e essa sociedade está imbuída de uma realidade ontológica, ela não pode ser limitada a uma cooperativa de almas que desejam ser salvas. Na sociedade eclesial se realiza do Reino de Deus, e não apenas as almas individuais se salvam aí. Quando eu digo que só é possível ser salvo na Igreja, eu estou afirmando a sobornost, a universalidade coletiva da salvação, a salvação por meio e no seio de uma sociedade espiritual, a salvação com meus irmãos em Cristo e com toda a criação de Deus, ao mesmo tempo em que nego o entendimento individualista da salvação, a salvação no isolamento (salve-se quem puder, force um caminho para o Reino  Celestial, como disse uma vez um Ortodoxo), e repudio o egoísmo na salvação. Muitos pensam que a interpretação do Cristianismo enquanto religião de salvação pessoal é, em primeiro lugar, uma interpretação eclesial. Mas, de fato, isso vai contra a própria ideia de Igreja, e submete a realidade da Igreja a uma degradação nominalista. Se algumas das mais populares opiniões expressas no mundo Ortodoxo, se alguns hierarcas enfatizam seu caráter eclesial, isso não significa, entretanto, que elas sejam tão eclesiais em sua profundidade, no sentido ontológico do termo. Houve um tempo em que o Arianismo foi popular entre os hierarcas do Oriente. Possivelmente, essas opiniões refletem um empobrecimento e uma ossificação do Cristianismo. No mundo não teriam havido tantas catástrofes e revoltas terríveis, tanto ateísmo e desprezo pelo espírito, se o Cristianismo não tivesse se tornado tão altivo, tedioso, sem criatividade, se ele não tivesse deixado de inspirar e dirigir a vida da sociedade e da cultura humanas, se não tivesse aprisionado a alma humana num canto qualquer, se o dogmatismo e o ritualismo convencional e exterior não tivessem substituído a existência real do Cristianismo dentro da existência. E o futuro das sociedades e das culturas humanas depende disso, de até que ponto o Cristianismo será capaz de acolher o significado de uma vida criativa e transfigurativa, até que ponto haverá dentro do Cristianismo uma energia espiritual, capaz de gerar entusiasmo, capaz de nos guiar da decadência para a ascensão.

O staff oficial da Igreja, os profissionais da religião nos dizem que somente a questão da salvação pessoal é necessária, que para tal finalidade a criatividade não só não é necessária, como é perigosa. Nesse caso, para quê conhecimento, para quê ciência e arte, para quê invenções e descobertas, de que servem as verdades sociais, a criatividade para uma vida melhor, se a destruição eterna me ameaça e se somente a salvação eterna é necessária para mim? Esse tipo de consciência pânica religiosa supressiva e absoluta, esse tipo de sentimento a respeito de si mesmo, não têm como justificar a criatividade. Nada é necessário, quando se trata da salvação pessoal da alma.  A partir daí, conhecimento é desnecessário, assim como a arte, a economia, e até mesmo a existência da natureza – o mundo de Deus é desnecessário. É verdade que às vezes eles nos dizem que é preciso que haja um poder supremo, e que exista algo debaixo dele, na forma de uma monarquia autocrática, de tal forma que tudo consista num sistema religioso que só seja possível graças à existência de uma monarquia Ortodoxa, à qual seja confiada toda a organização da vida. Mas em última análise é preciso reconhecer que o domínio de um poder supremo não só é desnecessário para a minha salvação, como ainda é nocivo a ela. Esse tipo de consciência religiosa é incapaz de dar justificação a qualquer tipo de questão do mundo, ou só é capaz de fazê-lo através de inconsistência e sofrimento. Existe uma tendência Budista dentro do Cristianismo. Ela permanece somente nos mosteiros, mas a própria existência de mosteiros pressupõe que eles sejam protegidos pela ordem civil. Esse tipo de consciência se inclina a justificar uma existência burguesa pífia, medíocre e desapaixonada, e a reunir em um mesmo sistema alguns elementos monásticos, mas nunca pode justificar a criatividade. A questão deve ser colocada de outra forma, e o Cristianismo não apenas permite, como ainda nos ordena colocar a questão de outra maneira. Uma pessoa simplória, dizem-nos eles, tem mais chances de salvação do que um filósofo, e para ela a salvação implica não precisar aprender, não precisar de cultura, etc. mas isso deve nos levar a concluir que, para Deus, apenas os simplórios são necessários, e que com eles Deus esgota todos os seus planos para o mundo, com eles se cumpre a ideia de Deus para o mundo. Mas, de fato, presentemente o simplório não passa de um mito, e na verdade ele se tornou niilista e ateu. O filósofo e o homem culto se tornaram os fiéis. Os rústicos, os tolos e mesmo os idiotas podem ser salvos à sua própria maneira, mas o que se quer que acredite é que na ideia de Deus para o mundo, no esquema do Reino de Deus, tudo será povoado exclusivamente pelos rústicos, os tolos e os idiotas. Podemos presumir, transgredindo a humildade, que o plano de Deus para o mundo é mais elevado, mais multiforme e esplêndido, e que nele entre a plenitude positiva do ser, a perfeição ontológica. O Apóstolo recomenda que sejamos crianças no coração, mas não na mente. E aqui a criatividade do homem, o aprendizado, as artes, a melhoria da sociedade, etc., são necessárias, não para a salvação pessoal, mas para a realização do intento de Deus em relação ao mundo e à humanidade, para a transfiguração do cosmo, para o Reino de Deus, no qual entra toda a plenitude da existência. O homem é chamado a ser criador, coparticipante dos feitos de Deus na criação e na organização do mundo, e não apenas para ser salvo. E existem ocasiões nas quais o homem é capaz, em nome da criatividade, para a qual foi vocacionado por Deus, de renunciar a pensar a respeito de si e de sua alma. Vários dons foram concedidos por Deus ao povo, e ninguém tem o direito de enterrá-los no chão, pois todos esses talentos têm que ser criativamente realizados, manifestados nas vocações objetivas do homem. Sobre isso falaram com grande contundência os Apóstolos Paulo[10] e Pedro[11]. Esse é o plano de Deus para o homem – que a natureza da pessoa humana seja criativa. A pessoa é salva. Mas para isso, para que a pessoa seja salva. É preciso que ela afirme sua autêntica natureza. A natureza realmente autêntica da pessoa está nisso, em que ela e o centro da energia criativa. Fora da criatividade não existe pessoa. A pessoa criativa é salva para a eternidade. A afirmação em oposição à criatividade é uma afirmação de salvação de vazio, de não-ser. Existe, inerente ao homem, em sua existência positiva, uma psicologia criativa. Ela pode ser suprimida ou escondida, pode ser revelada – mas ela é ontologicamente inerente ao homem. O instinto criativo no homem não é um instinto egoísta, e nele o homem esquece-se de si mesmo, ele emerge de si. As descobertas científicas, as invenções técnicas, a criatividade artística, a criatividade social, podem ser necessárias para outros e úteis para finalidades práticas, mas a criação em si é tanto não egoísta como uma renúncia de si, nisso reside a essência da psicologia criativa. A psicologia da criatividade é muito distinta da psicologia da humildade e não pode ser construída em cima dela, a humildade é uma ação espiritual mais exterior, na qual o homem está mais preocupado com sua alma, com a sua própria superação, seu autoaperfeiçoamento, sua salvação. A criatividade é uma ação espiritual, na qual o homem esquece de si, renuncia a si no ato criativo, é absorvido pelo seu objeto. Na criatividade, o homem testa a condição da extraordinária ascensão de todo o seu ser. A criatividade é sempre um choque e um tremor, no qual o egoísmo da vida humana de todo dia é ultrapassado. E o homem consente em arriscar sua própria alma em nome da atividade criativa. É impossível fazer descobertas científicas, contemplar os mistérios da existência filosoficamente, ter percepções artísticas, criar reformas sociais, apenas numa condição de humildade. A criatividade pressupõe outra condição espiritual, não em oposição à humildade, mas qualitativamente distinta dela, e em outro momento da vida espiritual. Santo Atanásio o Grande revelou a verdade sobre a homoousia,[12] não como uma condição de humildade, mas como uma condição de ascensão criativa e de iluminação, embora a humildade a preceda. A criatividade pressupõe uma ascese espiritual característica, ela não faz concessões às suas paixões. A criatividade pressupõe uma autonegação e um sacrifício, uma vitória sobre o “poder do mundo”. A criatividade é uma revelação do amor a Deus e ao Divino, e não a esse mundo. Por isso, o caminho da criatividade é também um caminho de superação “do mundo”. Mas a criatividade é uma qualidade diferente da vida espiritual, diferente da humildade e da ascese, ela é uma revelação da natureza do homem enquanto imagem de Deus. Algumas vezes, raciocina-se da seguinte maneira: primeiro o homem precisa ser salvo, vencer o pecado, para só então criar. Mas esse entendimento de uma relação cronológica entre a salvação e a criatividade está em contradição com as leis da vida. Isso nunca ocorreu, nem há de ocorrer. Eu preciso de toda a minha vida para ser salvo, e até o fim de minha vida não terei vencido definitivamente o pecado. De modo que nunca acontecerá o momento em que eu estarei apto a criar. Ao contrário, assim como o homem precisa de toda a sua vida para ser salvo, também ele precisa de toda a sua vida para criar e para participar do processo criativo em conformidade com seus dons e sua vocação. A relação entre a salvação e a criatividade é ideal a interior, mas não é uma relação baseada numa sequência corporal cronológica. A criatividade auxilia, ela não impede a salvação, uma vez que ela é a realização da vontade de Deus, uma obediência ao chamado de Deus, uma coparticipação na ação de Deus sobre o mundo. Seja eu um carpinteiro ou um filósofo, sou chamado por Deus para criar construtivamente. Minha criatividade pode ser distorcida pelo pecado, mas uma total falta de criatividade é uma expressão do total sufocamento do homem pelo Pecado Original. Não é verdade que somente os ascetas e os santos podem ser salvos – também eles criaram, e foram artistas com almas humanas, O Apóstolo Paulo, a seu próprio modo espiritual, foi, por seu gênio espiritual, um criador em alto grau, mais do que um santo.


V

Nem toda criatividade é boa. Pode haver uma criatividade maligna. É possível criar não apenas em nome de Deus, mas também em nome do diabo. Mas nisso em especial, seria impossível renunciar à criatividade, em benefício do diabo, do anti-Cristo. Com grande energia, o anti-Cristo procura demonstrar sua pseudo-criatividade. E, se não houvesse uma criatividade Cristã e uma organização Cristã da vida, o anti-Cristo, sua criatividade e sua organização usurpariam mais e mais territórios, para acabar triunfando em todas as esferas da vida. Mas para a obra de Cristo no mundo é preciso lutar exteriormente, tanto quanto possível, por ocupar maiores extensões da existência, é preciso ceder o mínimo ao anti-Cristo e às suas obras no mundo. Retirar-se do mundo, negar a criatividade ao mundo, equivale a entregar o destino do mundo ao anti-Cristo. Se nós, Cristãos, não criarmos a vida em verdadeira liberdade e fraternidade entre povos e nações, o anti-Cristo o fará com sua falsidade. A divisão dualista entre uma disposição espiritual social com sua moralidade – para a qual o Cristianismo exige ascetismo, renúncia, sacrifício e amor – e a disposição e moralidade de uma governança social e criativa, de uma economia, etc. – para a qual o Cristianismo permite a ligação aos bens materiais, o culto à propriedade e a sede por riqueza, a rivalidade e a competição, a vontade do poder, etc. – já não pode existir. A consciência Cristã não pode permitir que a sociedade seja abandonada a si mesma, que ela reconhece como deficiente e pecadora. A renovação Cristã pressupõe uma nova criatividade espiritual e social, a criação de uma sociedade Cristã verdadeira, e não de um governo simbólico e convencional. É impossível continuar a tolerar a mentira convencional dentro do Cristianismo. O socialismo anti-Cristão (de tipo soviético) triunfa, porque o Cristianismo não resolve a questão social. O gnosticismo anti-Cristão triunfa, porque o Cristianismo não revela sua própria gnose Cristã. Da mesma forma, em todos os demais campos. Estamos próximos da fronteira final. Uma cultura secular, humanista e equilibrada parece cada vez menos possível. Já ninguém acredita numa cultura abstrata. Todo homem tem que enfrentar uma escolha. O mundo está dividido entre princípios que se opõem. É impossível que as coisas continuem se desenvolvendo por mais tempo, como se desenvolveram na história recente. E junto com isso está a impossibilidade de um retorno ao velho medievalismo. O problema da criatividade, o problema da cultura e da sociedade Cristã é insolúvel para a hierocracia eclesial. Esse é o problema de uma santificação religiosa do princípio humano, e não da restauração da governança do princípio angélico. A criatividade constitui uma esfera da liberdade humana, cheia de um amor copioso e abundante a Deus, o mundo do homem. Para sairmos da crise do mundo e da crise do Cristianismo, é impossível lançar mão tanto dos princípios da história recente, como dos princípios da velha Idade Média; isso somente será possível através dos princípios de uma nova Idade Média. A criatividade Cristã será uma ação do monasticismo no mundo. A crise religiosa de nossa época está vinculada ao fato de que a consciência eclesial está enfraquecida, de que ela já não possui a compreensão da totalidade. E, cedo ou tarde, essa totalidade terá que ser concebida e revelada, pois deverá haver um desenvolvimento positivo do mundo, e na cultura se revelará a liberdade humana na Igreja, haverá uma revelação da vida da humanidade na Igreja, isso é, deverá ser algo subconscientemente eclesial. A criatividade do homem no mundo deverá ser a vida da própria Igreja, segundo o modelo do Deus-homem. Isso não significa em absoluto que toda a criatividade e toda criação do homem na nova história deva ser subconscientemente eclesial. Esse processo será duplo, nele deverá ser estar colocado o reino desse mundo, o reino do anti-Cristo. Também no humanismo reside uma grande mentira, uma revolta contra Deus, nele está colocada a destruição do homem e a extinção da existência. Mas também acontece uma busca positiva da liberdade humana, uma revelação dos poderes criativos do homem. O processo criativo que se seguirá na humanidade não poderá permanecer neutro, ele terá que ser positivamente eclesial, para ser consciente de si mesmo, ou definitivamente ele se tornará anti-eclesial, anti-Cristão, satânico. No mundo, na cultura, deverá se efetuar uma verdadeira separação ontológica, não formal e exteriormente eclesial, mas interiormente espiritual e ontologicamente eclesial. Nisso está o sentido de nossos tempos. As energias Divinas são eficazes em qualquer parte do mundo através de caminhos múltiplos e frequentemente indiscerníveis. E não fará sentido chamar os “pequeninos” de nosso tempo, os filhos pródigos que retornam à Igreja, negando todo sentido positivo do processo criativo, que se desenvolve no mundo.

Nos tempos recentes todos os povos espiritualmente significativos estavam espiritualmente isolados. O gênio, o inovador criativo, se encontra terrivelmente, tragicamente isolado. Não há uma consciência religiosa de que o gênio possa ser um mensageiro dos céus. Muito raramente podemos ouvir algumas vozes, como as de alguns Católicos, que pedem a canonização de Cristóvão Colombo. Seu isolamento enquanto gênio dá lugar a um dualismo, que exclui toda e qualquer discussão. Somente uma renovação cristã, que seja criativa, seria capaz de superar esse dualismo. Mas a renovação criativa da Igreja não pode ser concebida em categorias hierocráticas, é impossível forçá-la dentro da estrutura de um profissionalismo eclesial, é impossível pensar nisso exclusivamente como um processo “sacro”, em contraste com os processos “profanos”. A renovação criativa da Igreja virá da comoção do mundo, da cultura, das energias religiosas criativas acumuladas no mundo. Mais do que nunca precisamos acreditar que Cristo age dentro da própria raça humana espiritual, que ele não a abandonou, embora para nós essa atuação seja invisível. Os Cristãos se veem diante da tarefa da Igrejificação da totalidade da vida. Mas essa Igrejificação não implica a subordinação invariável de todos os aspectos da vida à Igreja, mas ela deve ser entendida de outra maneira, isso é, ela não significa a retomada da teocracia e da hierocracia. A Igrejificação deve inevitavelmente ter a seu lado o reconhecimento pela Igreja da criatividade espiritual, que uma consciência eclesial hierocrática diferenciada deverá ser proposta externamente à Igreja. A Igreja, num sentido profundo do termo, sempre viveu no mundo, e ela sempre teve processos eclesiais subconscientes no mundo. A plenitude da Igreja, enquanto vida humana Divina, a revelação de uma consciência integral da Igreja implica a deificação por meio de uma nova experiência espiritual da humanidade. E é impossível que essa experiência espiritual permaneça injustificada e não-santificada. O homem está imensamente ansioso e sedento pela santificação de suas aspirações criativas. A Igreja é vida, e a vida é movimento, criatividade. É impossível resistir por mais tempo se o movimento criativo tiver que permanecer fora da Igreja e em oposição a ela, e se a Igreja tiver que permanecer imóvel e desprovida de vida criativa, certas formas da consciência da Igreja reconheceram prontamente uma teofania, uma “manifestação de Deus” nas formas ossificadas da existência, nos corpos imperturbáveis da história – como, por exemplo, na regra monárquica. Mas seguiram-se tempos, nos quais a consciência da Igreja foi obrigada a reconhecer a teofania na criatividade. Tudo o que está fora da Igreja, todo o secular, toda a criatividade humanista murchou e se viu num impasse. A cultura se tornou insípida. Uma sede de eternidade atormenta o povo. E isso significa que deve se seguir uma época em que a criatividade seja da Igreja, que seja Cristã e Divino-humana. A Igreja não pode ser uma faceta da vida, uma faceta da alma. Nós esperamos que todas as atitudes criativas e transfigurativa diante da vida passem do mundo para a Igreja. Somente dentro da Igreja pode ser preservada e revelada a imagem e a liberdade do homem, que sofreu uma destruição pelos processos que aconteceram no mundo. Nessa civilização sem Deus, na qual perece a imagem do homem e a liberdade do espírito, a criatividade se enfraquece, e rapidamente instala-se a barbárie. A Igreja deve, mais uma vez, salvar a cultura espiritual, a liberdade espiritual do homem. É isso que eu chamo de estabelecimento de uma nova Idade Média. O desejo por uma real transfiguração da vida desperta agora, não meramente no nível pessoal, mas também na sociedade e no mundo. E essa boa vontade não pode ser diminuída pela percepção de que o Reino de Deus sobre a terra não é possível. O Reino de Deus existe por toda eternidade e em cada instante da vida, e ele não depende de que no mundo o poder do mal seja vitorioso exteriormente. Nossa tarefa consiste em devotar toda nossa vontade e toda nossa vida à vitória do poder do bem, da verdade de Cristo, em tudo e em toda parte.

A vida humana está partida e fragmentada por duas tragédias – a tragédia da Igreja e a tragédia da cultura. Essas tragédias são causadas por uma deficiência dualista, por um empobrecimento da Igreja devido a um entendimento diferenciado e hierárquico a respeito de si mesma, que coloca a Igreja sempre em oposição ao mundo. Nós, Cristãos, não devemos amar “o mundo”, mas devemos vencer “o mundo”. Mas esse “mundo” a ser superado, para os santos Padres, consiste nas paixões a serem vencidas, o pecado e o mal, mas não a criação de Deus, não o cosmo. A Igreja está em oposição a semelhante “mundo”, mas não em oposição ao cosmo, à criação de Deus, à plenitude positiva da existência. A resolução das duas tragédias está na vida, e não numa percepção exclusivamente teórica do Cristianismo; ela está numa religião que seja não apenas de salvação, mas também de criatividade, uma religião de transfiguração do mundo, de uma ressurreição universal, do amor de Deus e do homem, isso é, numa atenção total da verdade Cristã focada no Deus-homem, focada no Reino de Deus. E a solução positiva está colocada desse lado da oposição entre heteronomia e autonomia. A criatividade não é heterônima, nem autônoma, ela é inteiramente não “nômica”, ela é Divino-humana, ela é uma revelação do amor profuso do homem por Deus, ela é a resposta do homem ao chamado de Deus, à expectativa de Deus. Nós acreditamos que no Cristianismo estão contidos poderes criativos inexauríveis. E a revelação desses poderes podem salvar o mundo da decadência e do declínio. A questão de nossos tempos consiste não na luta entre o Cristianismo eclesial e o não-eclesial, mas numa luta espiritual dentro da Igreja, entre correntes internas, uma exclusivamente conservadora e outra criativa. E um monopólio da eclesialidade não pode pertencer exclusivamente às correntes conservadoras hostis a criatividade. Disso depende o futuro da Igreja sobre a terra, o futuro do mundo e da humanidade. Na Igreja encontra-se um princípio conservador eterno, e ele deve proteger imutavelmente o sagrado e a tradição. Mas na Igreja deve também existir um princípio criativo eterno, um princípio transfigurador, orientado para a Segunda Vinda de Cristo, para o triunfo do Reino de Deus. Na fundação da fé Cristã está não só o sacerdotal, mas também o profético, “Mas temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a medida de sua fé[13]”. A criatividade, a descoberta criativa do gênio do homem é, nos tempos presentes, uma profecia, que deve ter seu significado sagrado restaurado.



























[1] Traduzimos “Creativity” – a capacidade de criar (the ability to create) – por “Criatividade”, que é sua tradução correta, lembrando que essa última costuma ser mais associada à imaginação, ou seja, a uma ferramenta da criatividade, do que à capacidade, ao potencial criador que cada homem traz dentro de si. 
[2] N.T.: a linguagem eufemística Russa fala do monasticismo como a adoção de uma roupagem e de uma vida angélica, como a imagem de uma prática, que não sensibiliza a mente Ocidental, mas que esconde ainda o cisma dualista mencionado acima.
[3] Trata-se da versão Russa da Filocalia dos Padres Népticos, com algumas diferenças em relação a essa.
[4] Utilizo o termo “gnóstico” não no sentido da gnose herética de Valentino ou Basilides, mas no sentido de um conhecimento religioso, de uma livre teosofia (não confundir com o “teosofismo” de Elena Blavatsky – N.T.), como em Clemente de Alexandria, Orígenes, Franz Baader e Vladimir Soloviev.
[5] A restauração cósmica.
[6] “O medo do tormento é o caminho do escravo, o desejo de recompensa é o caminho do mercenário. Mas Deus deseja aquele que o procura pelo caminho do amor filial” (Revelatory Narratives of a Wanderer to his Spiritual Father, pg 35).
[7] Jacques-Bénigne Bossuet foi um bispo e teólogo francês, um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino, defendendo o argumento que o governo era divino e que os reis recebiam seu poder de Deus. Embora fosse moderado com os Protestantes, ele atacou, dentro do Catolicismo, o Quietismo, forma de misticismo praticada pelo Arcebispo de Cambray, François Fenélon.  Bossuet era, por natureza, um intelectual e um teólogo, e não podia compreender uma forma de misticismo que consistia numa contemplação devocional passiva e no total abandono perante a presença divina de Deus.
[8] Num certo sentido o dogma da infalibilidade papal e a gnoseologia de Kant se baseiam no mesmo princípio de um critério justificador da Verdade externo e jurídico.
[9] João 3: 13; 6: 39-40.
[10] 1 Coríntios 12: 28.
[11] 1 Pedro 4: 10.
[12] “De mesma essência”, de Cristo em relação ao Pai, em contraste com a homoiousia, “de essência similar” da definição herética do Arianismo, na qual se nega, de fato, a plena Divindade da natureza de Cristo, negando-se assim o efeito salvífico da Encarnação. O famoso aforismo de Santo Atanásio, em sua obra Da Encarnação, declara: “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”, mas no sentido da theosis, não de um panteísmo qualquer.
[13] Romanos 12: 6.

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