Uma meditação pouco devota
A crise do Cristianismo
Crítica da Revelação
Existem duas crises. A crise dos mundos Cristão e anti-Cristão, e a
crise do mundo Cristão, a crise dentro do próprio Cristianismo. A segunda crise
é mais profunda do que a primeira. Tudo o que acontece no mundo e que nos dá a
impressão de algo que é exterior e mesmo cruamente material, tem sua fonte no
interior e no espiritual. num certo sentido, podemos dizer que o Cristianismo,
o Cristianismo histórico, está chegando a um fim, e que um renascimento só pode
ser visto a partir de uma religião do Espírito Santo que possa fazer o
Cristianismo nascer outra vez, uma vez que essa será a plenitude do
Cristianismo. A fraqueza do Cristianismo no mundo, num mundo que é presa de
movimentos que são resultado do trabalho de forças dinâmicas muitas vezes
demoníacas, corresponde ao enfraquecimento do Cristianismo histórico, e aponta
para uma transição em direção a um Cristianismo escatológico que está
relacionado ao mundo do futuro. O Cristianismo escatológico será também uma
religião do Espírito, uma religião trinitária que constituirá a realização das
promessas, esperanças e expectativas. É como se estivéssemos num entreato, e
por esse motivo nossa época é um tempo de sofrimento.
O mundo está passando por um estado de abandono de Deus. É difícil
entender o mistério do abandono de Deus em relação ao mundo e a o homem. Não
devemos racionalizar o mistério; e esse mesmo mistério colide com a tradicional
doutrina da Providência de Deus. A crise da consciência Cristã é profunda. Ela
alcança a própria ideia de Deus e o entendimento da Revelação. Os Cristãos têm
muito a aprender com esses movimentos que parecem ser anti-Cristãos e com o
próprio ateísmo, pois mesmo nesses movimentos somos convidados a sentir o sopro
do Espírito. Aquilo que se levanta na consciência do homem contra Deus, em nome
do homem, é também o verdadeiro Deus que está se levantando. A revolta contra
Deus só pode se dar em nome de Deus, em função de uma ideia mais elevada de
Deus (em grande medida, a revolta contra Deus, especialmente a revolta moral,
pressupõe a existência de Deus). Na realidade, não existem ateístas, mas apenas
idólatras. O ateísmo mergulha fundo e sofre. Ele não consiste num coração
alegre e iluminado, nem num ódio sinistro. Ele é uma afirmação de Deus.
O abandono de Deus em relação ao mundo é sua carga. Franz Baader diz
que esse peso significa que Deus está ausente. E o mundo atual é
simultaneamente pesado, sobrecarregado e absolutamente fluido. Esse peso sobre
o mundo e sua fluidificação estão conectados um ao outro. Nada existe de mais
triste do que o destino do Cristianismo, a religião da libertação e da
ressurreição. A própria ideia de Deus e da divina Providência penetrou na
experiência de modo distorcido. Uma ideia servil de Deus triunfou, e no lugar
de Deus foi construído um ídolo. A relação entre Deus e a liberdade humana foi
interpretada erroneamente. As relações entre o Cristianismo e o reino de César,
entre a Igreja e o Estado, foram realizadas de modo diabólico. A interpretação
legal do Cristianismo e da redenção, que degrada tanto a Deus como ao homem,
triunfou e transformou a vida religiosa num processo legal. A recepção da
revelação foi determinada pelo meio humano, que está sujeito à mudança e pode
tanto evoluir como deteriorar.
Até agora não se escreveu nenhuma crítica da revelação como a que é
propiciada por uma analogia com a Crítica da Razão Pura de Kant. Essa
crítica à revelação deve mostrar no que consiste a contribuição humana à
revelação. Existem duas partes na revelação: ela é divino-humana. Existe aquele
que revela a Si mesmo, e aquele a quem Ele se revela. Deus não pode se revelar
a uma pedra ou a uma árvore; embora mesmo uma árvore ou uma pedra reajam, de
uma maneira elementar, à ação de forças superiores, e isso é ainda mais
verdadeiro para um animal. A revelação se tinge de diferentes cores de acordo
com o estado mental humano e com as tendências e inclinações do homem. É como
se existisse um elemento apriorístico perante a revelação. Se não existisse no
homem uma nobreza, lado a lado com a sua baixa condição, jamais lhe teria
ocorrido a ideia de Deus, e ele não teria capacidade de receber a Sua
revelação. Não apenas o pensamento de Deus em relação a Deus, como também a
revelação, se tingem de antropomorfismo e de sociomorfismo.
É verdade que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, como o fez
com os demais deuses, mas o que realmente importa é que essa imagem e
semelhança humanas devem se aproximar da imagem e semelhança divinas. Existe
aqui uma misteriosa dialética dos dois, não a ação de um, a partir de cima e em
direção abaixo. O homem criou Deus à sua imagem e semelhança, bom ou mau, cruel
ou misericordioso, um agressor violento ou um libertador, etc. Povos, grupos
étnicos, nações inteiras, adoraram o Cristianismo, como o fizeram com todas as
religiões, no seu próprio nível, e estamparam na imagem de Deus seus próprios
desejos, e aplicaram a essa imagem duas próprias limitações, e tudo isso acabou
propiciando uma abertura admirável para a negação da própria existência de
Deus. O que está errado no antropomorfismo não consiste em descrever a Deus com
as feições da humanidade, ou a simpatia, ou em ver Nele uma necessidade de amor
correspondido, mas antes em atribuir a Ele traços de desumanidade, de crueldade
e de amor ao poder.
Na verdadeira humanidade está revelada não apenas a natureza do homem,
como o próprio Deus. As categorias sociais de dominação e poder foram
transferidas a Deus, e nisso está um antropomorfismo maligno. Mas na verdade
Deus não é um domo, nem alguém que exerce o poder com autoritarismo. Um
cosmomorfismo errado transferiu as categorias de poder a Deus, mas Deus,
certamente, não é nenhum “poder”, no sentido natural dessa palavra. A adoração
a Deus como “poder” é uma forma de idolatria. E Deus não é um ser, para que se
possa transferir a Ele a categoria de pensamento abstrato. Deus é o não-ser,
que é um supra-ser. Deus é o Existente, mas não um ser. Deus é Espírito, mas
não um ser. O Espírito não é um ser. O entendimento de Deus como um Espírito
concretamente existente deriva de uma profunda experiência espiritual e não de
uma experiência natural e social limitada e objetivada, que aplica erroneamente
um cosmocentrismo e um sociocentrismo à ideia de Deus. Devemos sempre nos
lembrar de que no estrato subconsciente de cada homem, mesmo do homem
contemporâneo, a alma de seus antepassados ainda sonha, remontando aos tempos
mais primitivos. Onde, então, se situam essas crenças da alma primitiva, às
quais só uns poucos têm acesso?
A alma primitiva estava ancorada na magia. Foi por meio da magia que
ela lutava para se defender contra os poderes elementais da natureza que a
ameaçavam de todos os lados, de uma natureza que era habitada por espíritos. A
magia constituiu uma habilidade técnica primordial do homem. Os cultos
agrícolas primitivos possuíam um caráter mágico. A magia buscava conhecer os
segredos dos espíritos da natureza, de maneira a obter poder sobre eles, a fim
de conseguir comandar os próprios deuses. Conhecer o nome de um ser equivalia a
obter poder sobre ele. O ritmo dos movimentos também possuía um caráter mágico:
Mana constitui um poder mágico, e dele dependia a posição social do
homem. O elemento mágico na religião consiste numa qualidade lateral à esfera
moral e apenas por meio de um processo longamente construído se chegou à moralização
da religião. O elemento material sempre foi poderoso nas religiões e isso
permanece ainda hoje. O papel desempenhado pelo grão de milho nos mistérios de
Eleusis é bem conhecido. Tratava-se de um símbolo da existência humana.
O materialismo religioso, que teve uma função enorme até os dias
atuais, é hostil ao espirito e à liberdade. Ele sempre foi um signo das algemas
da magia. A magia prometia poder ao homem, mas o mantinha agrilhoado ao ciclo
cósmico. As antigas crenças de um mundo pagão tranquilo persistem até hoje
mesmo no mundo Cristão e distorcem a própria ideia de Deus; e isso, mesmo
depois que o Cristianismo libertou o homem do poder dos demônios e dos
espíritos da natureza. A alma primitiva de nossos antepassados acreditava que
os deuses necessitavam de sacrifícios expiatórios e de sacrifícios que os
alimentassem, que os deuses precisavam de sangue e de sacrifícios humanos. Isso
permanece de uma forma diferente na crença de que o sofrimento é necessário
para acalmar a cólera de Deus.
A velha escravidão do homem se mostrou na interpretação legalista da
redenção, na experiência da relação entre Deus e o homem como um processo
legal. Aurobindo, um filósofo Indiano ainda vivo[1],
disse que a concepção da redenção combina com a escravidão. Os antigos profetas
Hebreus ergueram-se acima do pensamento religioso que exigia o sacrifício como
uma coisa primária, e colocaram a verdade e o direito no coração humano, num
posto acima de todas as demais coisas. Mas o elemento profético jamais
prevaleceu na história do Cristianismo, que se acomodou num nível social médio.
Devemos honrar o pensamento religioso Russo do século XIX, que sempre reagiu
negativamente à interpretação legalista do Cristianismo. O pensamento humano
inferior interpretou o Cristianismo como uma religião cruel. O elemento de
crueldade na interpretação do Cristianismo pode ser encontrado no ascetismo
Sírio, no monasticismo que se alimentou da Filocalia Russa, em Agostinho, na
doutrina Católica, no Calvinismo, na doutrina da predestinação, na doutrina do
inferno. E a impressão de que a chegada do Cristianismo piorou a posição do
homem deriva dos oponentes do Cristianismo.
A divisão em duas raças, dos escolhidos e dos condenados, é oposta ao
espírito do Evangelho, o qual, aliás, foi também distorcido pelo ambiente
humano que o recebeu. Quando o homem é um animal selvagem, ele também imagina
Deus como um animal selvagem. Quando ele é humano, ele imagina Deus também como
humano. A ideia inumana de Deus é uma relíquia da escuridão primitiva, que
deveria ser repelida pela nova humanidade. Possuindo uma opinião mais elevada a
respeito de sua própria dignidade e valor, o homem já não consegue se
reconciliar com uma religião de medo, vingança e inferno, com a justificação de
castigos religiosos cruéis no mundo; e, nesse processo, ganha espaço a
purificação do conhecimento de Deus. A transição para o monoteísmo entre os
Judeus foi um imenso passo adiante, mas o puro monoteísmo, tão valorizado pelo
Judaísmo, ainda constituía um entendimento despótico monárquico de Deus.
Somente com o Deus que revelou a Si próprio em Seu Filho, no Deus-homem, deixou
Deus de ser um monarca despótico, e surgiu um Deus de amor e liberdade, e essa
foi a revelação de Deus em espírito e verdade. A Trindade divina marcou o
triunfo sobre as ideias monárquicas a respeito de Deus, que o pintavam como um
tirano oriental, e transferiam para Deus as ideias sociológicas de autoridade
senhorial. Mas foi apenas lentamente,
muito lentamente, que as antigas crenças servis foram superadas. Devemos notar
que na filosofia religiosa da Índia não cabe a interpretação legalista da
relação entre Deus e o homem, mas, nesse caso, isso se relaciona com o monismo.
A concepção de Deus em Shankarasharya é estática[2].
Em Eckhardt, por outro lado, ela é dinâmica. Trata-se de um dinamismo Cristão.
O divino é entendido, tanto em termos de imagens sociais – senhor,
czar, pai – como em termos de imagens dinâmicas – poder, vida, luz, espírito,
verdade, fogo. Somente a segunda interpretação é digna de Deus e digna do
homem. Também aqui foi preciso haver uma imensa mudança no conhecimento de
Deus, uma mudança que seria de fato emancipadora. Não foi fácil para o homem
despertar do antigo pesadelo no qual o ego era tiranizado por si mesmo e por Deus;
daí a crucificação de Deus. O ego se mostrou uma fatalidade tanto para o homem
em si como para Deus. Nunca é demais insistir que Deus não constitui uma
realidade tal como as realidades do mundo natural e social. Deus é espírito.
Deus é liberdade e amor. Sua revelação final e definitiva consistiu num ato
criador do Espírito, Ele se mostrou num ato criador do Espírito. No ato criador
do Espírito, no ato criador de conhecer e provar a Deus, deu-se o nascimento de
Deus de maneira vital.
A velha doutrina segundo a qual Deus criou o homem e o mundo, sem que
tivesse a menor necessidade deles, tendo-os criado apenas para Sua própria
glória, precisou ser abandonada como sendo uma doutrina servil que retira da
existência do homem e do mundo todo significado. Deus, com o homem e o mundo, é
maior do que Deus sem o homem e o mundo. O homem e o mundo constituem um enriquecimento
da vida divina. Amiel diz que Deus é o maior e mais incompreendido
Desconhecido. Leon Bloy diz que Deus é o sofredor solitário e não compreendido.
A teologia apofática está sempre certa quando se coloca contra a teologia
catafática. Somente ela reverencia o Mistério Divino, o que, de modo algum,
implica algum tipo de agnosticismo. É nisso que reside a grande verdade do
misticismo, cujo conhecimento sobre a comunhão com Deus é superior ao da
teologia.
Tudo isso conduz a uma transvaloração radical da tradicional doutrina
da Providência divina, que de fato conduziu ao ateísmo, por ter tornado a
teodicidade impossível. Deus revela a Si mesmo ao mundo e ao homem; Ele realiza
uma revelação em Espírito, mas não governa o mundo no sentido em que o mundo
entende um governo. A doutrina usual da Providência, que as pessoas reiteram
com palavras convencionais, sem pensar em seu significado real, não pode ser
combinada com o fato da existência do mal e do sofrimento do mundo. É
impossível acreditar na velha doutrina da Providência e do governo divino,
nesse mundo fenomênico, despedaçado e escravizado, que está submetido à
necessidade, e no qual é inclusive impossível encontrar um cosmo integrado[3].
Disseram-nos que Deus está presente em todas as coisas, mas é impossível
encontrar a presença de Deus na peste e no cólera, nos assassinatos, no ódio e
na crueldade, na violência, no mal e na escuridão. Uma falsa doutrina da
Providência levou a uma atitude de reverência servil diante do poder e da
autoridade, a uma apoteose de triunfo nesse mundo e ao último refúgio da
justificação do mal.
Em oposição a isso permanece o trágico sentimento pela vida. Deus está
presente na liberdade e no amor, na verdade, no direito e na beleza, mas também
na face do mal e do erro. Ele está presente, não como um juiz e vingador, mas como
um avaliador e uma consciência. E Deus é Aquele a quem é possível mudar os
horrores, as abominações e as crueldades do mundo. Havia muita verdade nas
inquietas questões de Marcião[4],
embora sua resposta a essa questão estivesse errada. Ele não entendeu o
gradualismo da revelação, e na quebra que existe nela dentro do meio humano,
que é limitado e cruel.
Filosoficamente a transvaloração da doutrina da Providência deve ser
expressa dessa maneira. As concepções que foram pensadas para o mundo
fenomênico, e que só se aplicam a ele, não podem ser transferidas a Deus. A
Providência não age na totalidade do mundo fenomênico, e isso pode ser
evidenciado apenas por meio de interpretações terrivelmente distorcidas. Nesse
nosso mundo o que mais existe é o irracional, o injusto, o desprovido de
sentido. Mas permanece um grande mistério no fato de que no destino individual
de todo homem é possível ver a mão de Deus, ver um sentido, ainda que isso não
seja suscetível de racionalização. Nem um único cabelo pode cair da cabeça de
um homem sem a vontade de Deus. Isso é verdade, não num sentido elementar, mas
num sentido mais profundo, apesar do fato de que no mundo, que “repousa no mal”
é impossível ver o governo providencial de Deus. Isso está conectado com a
interrelação entre o individual e o comum. Averroes pensava o oposto, ou seja,
que Deus estava interessado apenas nas leis gerais do mundo e da raça, mas não
no indivíduo. Ele pensava que se Deus conhecesse as partes, deveria haver uma
perpétua novidade Nele, o que contraditaria a ideia petrificada de Deus.
Nesse nosso mundo. Não apenas Deus atua: mas o destino, a necessidade,
a sorte também atuam. O destino continua a operar quando o mundo abandona a
Deus, ou quando Deus abandona o mundo. Os momentos e os tempos do abandono de
Deus foram fatídicos para a vida humana. O homem e o mundo estão sujeitos a uma
inevitável necessidade como resultado de uma liberdade erroneamente dirigida.
Por outro lado, a sorte, que desempenha uma enorme da vida, é como se fosse um
estado no qual o homem se vê perdido e desesperançado num mundo múltiplo, onde
opera uma enorme quantidade de forças, que não podem ser dominadas e que não
estão sujeitas a uma causalidade racional. Uma sorte infeliz que se apresenta a
nós como algo inteiramente sem sentido e cruel é um indicativo de que estamos
vivendo num mundo decaído no qual não existe absolutamente governo divino algum.
Mas essa mesma sorte infeliz pode receber um sentido mais elevado no meu
destino, ainda que enraizada nesse mundo fenomênico. A crença de que tudo o que
acontece a mim deve ser um significado, não pode ser expressa no sistema
cosmológico segundo o modo do racionalismo teológico. Devemos sempre nos
lembrar de que Deus é Espírito, não natureza, nem substância, nem força, nem
poder. Deus é Espírito; isso significa que Ele é liberdade. Deus é Espírito, e
isso significa que ele deve ser pensado apofaticamente em relação às realidades
do mundo natural e social. O conceito usual da Providência deriva do governo de
um estado. Deus é representado como se fosse a cabeça autocrática de um estado.
O que interessa é a emancipação do que resta dessa antiga idolatria, e isso é
muito importante. A idolatria é uma possibilidade que não diz respeito apenas
aos ídolos, mas que também se relaciona com Deus. Essa emancipação é a
purificação da revelação a partir da base de concepções que a mente humana traz
em si, e a libertação das ideias e crenças religiosas servis.
O Cristianismo ensina que a crucificação de Deus era um entrave para
ao Judeus e uma loucura para os Gregos. Mas o pensamento humano distorceu a
grande concepção de sofrimento e a crucificação do próprio Deus, ao introduzir
ideias derivadas de um mundo social decadente, e as relações que existiam
dentro dele. Tais são, por exemplo, as concepções do significado redentor do
sangue, que é tão degradante tanto para Deus como para o homem; de que Cristo
sofreu em nosso lugar, por nossos pecados; de que Deus aceitou o sacrifício de
Seu Filho a fim de receber a satisfação pelos pecados dos homens, e outras
coisas do gênero. A Queda foi interpretada como desobediência. A ideia absurda
de que Deus pode ser insultado foi colocada antes de tudo. A redenção foi
baseada na ideia de justitia vindicativa. Jean de Maistre disse que o
homem vive debaixo de uma autoridade que foi provocada, e que essa provocação
só pode ser mitigada pelo sacrifício, que um inocente deveria pagar pelos
culpados, que a limpeza exige sangue, que o sacrifício de um inocente é
agradável a Deus. Em oposição a isso está a interpretação mais elevada da
redenção, conhecida como física ou mística (Santo Atanásio o Grande). Um
conhecimento purificado de Deus deve reconhecer o caráter de mistério e a
incompreensibilidade do Deus crucificado, ou seja, do Deus que permanece necessitado[5].
Nos cultos totêmicos a oferta de um sacrifício constituía o meio de
comunhão com o sagrado. É como se o sacrifício da vítima criasse o sagrado.
Nisso havia já um pressentimento fracamente iluminado a respeito do mistério
que viria a acontecer no sacrifício de Cristo na Cruz. Mas mesmo dentro do
Cristianismo a primitiva obscuridade pagã ainda não foi inteiramente superada.
Existe um paradoxo religioso, em especial na religião Cristã: a salvação é ao
mesmo tempo uma ameaça de ruína. O Cristianismo foi interpretado como uma
armadilha. A partir do medo da perdição foi moldado o principal instrumento de
governo religioso pelo homem e pela sociedade humana. Bossuet, em sua
controvérsia com Fenelon, considerou como herético o amor desinteressado a
Deus. O utilitarismo teológico triunfou. O homem passou a pensar que era
preciso defender Deus, embora, de fato, o que fosse preciso era defender o
homem.
Uma fé vigorosa e um intenso sentido religioso foram expressos na
história de duas maneiras, seja numa ardente busca pela perfeição e o amor ao
Reino de Deus, seja, por outro lado, numa perseguição fanática e cruel contra
os que tivessem outra crença. A esses dois tipos correspondem duas maneiras de
interpretar a Deus. A vitória final sobre a escuridão, e a alegria, só são
possíveis mediante o pensamento apofático sobre o divino, enquanto que a velha
maneira de ver as coisas, que infectou o ensinamento teológico, deu azo a
pensamentos sombrios. Purgatório, paraíso, inferno – todas essas concepções
pertencem ainda a esse mundo. Analisando nossas ideias a respeito de Deus,
tentemos imaginar que o Deus Onipotente considera como o supremo bem o sofrimento
de Suas criaturas. Como é possível aceitar tal concepção? Nada, senão um
ameaçador estado de medo seria capaz de conciliar o homem com a doutrina
Calvinista da predestinação. Uma forma de pensar mais elevada e livre deve
reconhecer a humanidade de Deus. De outro modo, aquilo que é idolatricamente
chamado de Deus e um demônio, e não Deus. Deus ama o homem e o mundo, e não
pode ser entendido de outra maneira, senão em termos de valor, e o valor
constitui uma atividade criadora.
Existe uma passagem notável em Kierkegaard sobre a relação do homem
com Jesus Cristo. O chamado aqueles que trabalham e estão sobrecarregados
provém do Cristo humilhado, não do Cristo em glória. Mas a Igreja Cristã não
reconhece o Cristo esvaziado, kenótico. E ela tampouco quer reconhecer o
fato de que Cristo é contemporâneo, uma verdade que é especialmente cara a
Kierkegaard. Cristo estava incógnito no mundo, e essa foi a sua kenosis.
Por isso a sua aceitação exige fé, ou seja, liberdade. Seu imediato reconhecimento,
sem possibilidade alguma de desvio, teria feito do Deus-homem um ídolo. Cristo
só fala em humilhação, jamais em exaltação, enquanto que o homem pretende
começar pela exaltação, jamais pela humilhação. Para Kierkegaard, a
transformação da Igreja num objeto de glória no mundo foi sua ruína. Cristo via
o sofrimento como triunfo, e é preciso imitá-Lo, não ser arrebatado por Ele,
nem adorá-Lo. Eu já disse que não apenas Jesus Cristo, como o próprio Deus está
incógnito no mundo, e que a liberdade do homem está ligada a esse fato. Nisso
reside o mistério da revelação, mas os homens desejam afastar esse mistério e
transformar a revelação numa questão de necessidade.
O outro lado da negação do mistério e da kenosis divina é o
ateísmo. Não está em poder do homem negar coisas que são visíveis, que passam
por cima de seu julgamento, e ele curva sua cabeça diante de sua realidade. Mas
está em seu poder, ou pelo menos ele assim pensa, negar a realidade de Deus. Ao
homem foi concedida a liberdade para experimentar a negação de Deus, e essa
liberdade é garantida pela kenosis e o incógnito de Deus. O ateísmo não
passa de uma experiência da vida do homem, um momento dialético no conhecimento
de Deus. Passar pela experiência do ateísmo pode constituir uma purificação da
ideia humana de Deus, uma emancipação a partir da base do sociomorfismo. Mas
existem dois tipos de ateus: os que sofrem e os maliciosos. Não vou me referir
ao ateu iluminista. Dostoievski desprezava o ateu sofredor. Nietzsche era o
tipo do ateu que sofre. Mas existem os ateus maliciosos e satisfeitos de si,
que dizem: ‘Graças a Deus, Deus não existe’. O ateísmo sofredor é uma forma de
experiência religiosa, e mesmo de piedade. O ateísmo malicioso comumente
significa que o homem não conseguiu lidar com o teste imposto pelo sofrimento
incomensurável do mundo e do homem. Ele é pior do que o primeiro tipo de ateu,
mas também ele indica acima de tudo a presença de uma revolta contra as falsas
e degradantes ideias a respeito de Deus. Os fiéis, portanto, não devem se
preocupar com os ateus; eles não devem entrar numa experiência e em desafios
que não são os seus; e isso, acima de tudo, pelo fato de que entre os fiéis a
fé, muitas vezes, foi alcançada com demasiada facilidade. Feuerbach foi um ateu
devotado, e por meio dele a concepção humana de Deus foi purificada. O homem, a
sociedade e o mundo podem passar por um estado de abandono de Deus, e, dentro
dos limites do pensamento humano isso pode se refletir sob a forma de ateísmo. É
difícil para o homem suportar o incógnito Divino e a kenosis de Cristo.
Seria preferível a majestade imperial de Deus e do Deus-homem. O homem,
primeiro que tudo, racionaliza a divina Providência e a adapta ao seu próprio
nível, e então ele se levanta contra sua própria ideia falsa e se torna ateu.
No primeiro estado ele não estava mais próximo de Deus do que no segundo.
No caso da revelação, que é fundamental para a vida religiosa, a mesma
coisa aconteceu com todas as manifestações do Espírito: elas foram objetificadas[6].
É preciso reconhecer o fato de que a revelação Cristã não poderia desempenhar
um papel social, nem se tornaria uma força histórica propulsora, se ela não
tivesse sido objetificada, ou seja, socializada e adaptada ao nível das massas.
Existe uma contradição, a partir da qual não existe saída dentro dos limites do
mundo fenomênico. A objetificação constitui uma distorção da espiritualidade, e
ao mesmo tempo ela representa uma necessidade para a realização dos destinos da
humanidade e do mundo, para os movimentos em direção ao Reino do Espírito. Mas
nesse caminho, as ilusões e distorções da objetificação devem ser arrancadas
fora, deve haver uma limpeza. E essa é a missão do lado profético da religião e
da filosofia. A revelação não pode ser interpretada com um espírito de ingênuo
realismo, como costuma ser nos livros de teologia. A revelação não cai do nada
sobre a cabeça dos homens. Ela de modo algum consiste numa abertura para
qualquer realidade no mundo das coisas. Uma crítica filosófica da revelação,
coisa que ainda não foi feita, terá que ser em primeiro lugar uma crítica desse
realismo ingênuo, do mesmo modo como a critica de Kant sobre a razão consistiu
na retirada das ilusões de mesmo tipo de tolo realismo. Deverá ser
essencialmente a emancipação final das ilusões do naturalismo religioso e
metafísico. A crítica da revelação que foi feita nos séculos recentes,
consistiu essencialmente no triunfo final do naturalismo e na negação de Deus,
do Espírito e da religião. O que eu tenho em mente é antes uma crítica da
revelação que conduza ao triunfo da espiritualidade, à libertação do espírito
das distorções materialista e naturalistas. Deus não é um objeto. Deus não é
uma coisa. Deus é Espírito. Não podemos entrar em comunhão com o mistério do
Espírito por meio de nenhum tipo de objetificação. O mistério jamais se revela
no objeto. No objeto, somente é possível encontrar o simbolismo do Espírito,
jamais sua realidade.
A revelação é a presença do Espírito em mim, no sujeito; trata-se de
uma experiência espiritual, de uma vida espiritual. A interpretação
intelectualista da revelação que encontra sua expressão nos dogmas constitui
precisamente sua objetificação, seu ajuste ao nível médio do pensamento normal.
Mas os eventos do Espíritos descritos na Santa Escritura, as manifestações do
Espírito nas vidas dos apóstolos e dos santos não foram de caráter intelectual,
mas toda a natureza espiritual do homem operou ali conjuntamente. Assim, a
doutrina intelectual e racionalista de Deus enquanto ato puro, que desempenhou
papel importante no escolasticismo Católico, deriva, não da Bíblia, nem da
revelação, mas de Aristóteles. Essa doutrina, que pretende ir ao encontro das
necessidades de uma razão abstrata, transforma Deus, por assim dizer, em pedra;
ela retira Dele toda vida interior e toda força dinâmica. Mas Deus é vida;
vida, não existência, se entendermos por esse termo o conceito racional de
existência. A existência é secundária, não primária; ela surge após a divisão
entre sujeito e objeto; ela é produto de um pensamento, de uma racionalização.
A esse respeito, a filosofia religiosa Hindu vai mais alto e mais longe do que
a filosofia ontológica Ocidental, que está demasiado submetida às categorias de
Aristóteles.
O único caminho verdadeiro é o caminho da descrição intuitiva da
experiência espiritual, e, ao longo desse caminho se torna claro que na
revelação tanto Deus como o homem são ativos, que a revelação possui um caráter
divino-humano. O fenômeno religioso tem dois lados: trata-se de uma abertura de
Deus no homem e do homem em Deus. A ânsia do homem por Deus vem à luz nela,
assim como a ânsia de Deus pelo homem. A teologia racional tradicional nega
esse anseio de Deus pelo homem, por medo de introduzir uma vida afetiva
passional em Deus. Pois o conceito racional de perfeição não admite a ânsia e a
necessidade na noção de completude: ele prefere a perfeição de uma pedra. Nesse
caso, as relações entre Deus e o homem cessam de ser um drama de dois, que é
capaz de uma resolução num terceiro. A revelação é um ato criativo do Espírito;
ela possui um caráter a um tempo teogônico e antropogônico. Trata-se apenas de
misticismo, mas com outra linguagem, e de uma teosofia Cristã que se ergue
acima da ingênua interpretação realista da revelação, acima do entendimento
naturalista e racional de Deus. Talvez tenha sido apenas Jacob Boehme, o grande
místico teosófico, que teve mais sucesso em fornecer uma expressão simbólica ao
mistério da vida divina. A experiência espiritual só pode ser expressa em símbolos,
jamais em conceitos. Mas uma crítica filosófica tem que ser capaz de entender
esse caráter simbólico da linguagem da metafísica religiosa. A questão mais
importante na crítica da revelação, assim, é uma questão, não de metafísica,
mas de meta-história.
Na crítica da revelação o problema da relação entre revelação e
história é de imensa importância. O Cristianismo é a revelação de Deus na
história, não na natureza. A Bíblia conta a história da revelação de Deus na
história. O mistério do Cristianismo está vinculado à encarnação de Deus. É costumeiro
dizer que a revelação Cristã não é uma revelação abstrata do Espírito, mas do
Espírito operativo na história. Deus penetra na história: a meta-história entra
na história. O advento de Jesus Cristo é um fenômeno histórico, um fato
histórico no tempo. Mas desse fato nasce um problema particularmente complexo
que se tornou agudo a partir da crítica bíblica, pela investigação do
Cristianismo desde o ponto de vista da história científica. O Cristianismo foi
desenhado e cristalizado quanto os homens aceitaram confiantemente os mitos e
as lendas como realidade, quando ainda não existiam a crítica histórica nem a
ciência da história. Poderá minha fé, da qual depende minha salvação e a vida
eterna, depender por sua vez de fatos históricos que são objeto de disputa? Pode
minha fé ser preservada se a pesquisa histórica, baseada na aparência dos fatos
e em novos materiais, provar cientificamente que certas coisas narradas pela
Santa Escritura como fatos, não existiram, que não são eventos históricos, mas
mitos, lendas, doutrinas teológicas criadas pela a comunidade de fieis Cristãos?
A história oficial da Igreja não reconhece que tal problema possa ser colocado,
porque ela não permite que a crítica histórico toque as coisas sagradas. O modo
como a história foi falsificada a partir dessas bases é bem conhecido. Mas a
religião espiritual está ligada ao entendimento de que nenhuma religião pode se
colocar acima da verdade, porque Deus é a verdade, e Ele deve ser conhecido em
espírito e verdade.
Isso significa que o conceito de revelação histórica envolve uma
contradição, e que ele é um produto do materialismo religioso. Ele corresponde
a estágios da revelação que ficaram no passado. Somente a revelação espiritual
existe, a revelação do Espírito, enquanto que a revelação histórica é a simbolização
no mundo fenomênico histórico de eventos que tiveram lugar no mundo histórico
noumênico. Mas a totalidade do mistério reside no fato de que eventos
noumênicos irrompem e penetram no mundo fenomênico, o meta-histórico irrompe e penetra
no mundo histórico. Não existe uma separação absoluta entre essas duas esferas.
Mas quando a meta-história penetra na história, ela não apenas se revela na
história como ainda se adapta às limitações dos tempos e lugares históricos. A luz
brilha nas trevas. O Deus infinito fala com uma linguagem humana finita, dentro
das condições limitadas de um certo período e de uma certa nação. A revelação é
sempre algo oculto; na revelação existe tanto o exotérico como o esotérico.
A crítica histórica científica
precisa ser absolutamente livre, porque seu trabalho deve possuir um
significado purificador e libertador para o pensamento Cristão. Mas a crítica
histórica não pode decidir nenhum tipo de questão religiosa e espiritual. Por princípio,
ela tem limites. Esses limites podem ser vistos na teoria mitológica que nega a
existência histórica de Jesus. A teoria mitológica, que está sujeita a sérias dúvidas
no terreno da história, também possuiu alguma utilidade, na medida em que
revelou os limites da crítica histórica.
Aquilo que é chamado de “o problema de Jesus” não pode ser resolvido
pela investigação histórica; ele elude sua apreensão. Não existem dados
históricos apropriados para que se escreva uma biografia do homem Jesus; e,
religiosamente falando, é assim que deve ser. Trata-se de um mistério que não pode
ser visto desde fora na história, mas que se revelou na experiência religiosa
da comunidade Cristã. A solução para o “problema de Jesus” reside nessa esfera
na qual a história chega a tocar a meta-história. Mas para a ciência histórica
a meta-história não existe como uma realidade, mas apenas como crenças e ideias
das sociedades eclesiais. O erro do período que ainda não possuía uma ciência e
uma crítica históricas está no fato de que a história era vista como
meta-história, ou seja, como sagrada, e assim elementos de origem humana e distorções
humanas eram considerados como partes intocáveis da revelação divina. Isso fica
especialmente claro na Bíblia, onde podemos ver o mundo da religião e dos
fenômenos religiosos, mas onde muitos deles estão misturados com eventos históricos
ordinários e com distorções devidas ao limitado pensamento do povo Hebreu. O
entendimento dos antigos Hebreus a respeito de Deus foi produto da mente ainda
não iluminada do povo Hebreu, e somente nos Profetas aparece um movimento que
se coloca acima desse modo limitado de pensar. Assim também nos Evangelhos, nos
quais é contada a meta-história dos acontecimentos, permanece a marca da
limitação de linguagem e de concepção do povo Hebreu daquele período de sua
existência. Ali o mundo eterno e divino só aparece em flashes. A Bíblia e o
Evangelho foram compostos como matéria de história, com todas as limitações e
toda a complexidade da história. Mas neles brilha o supra-histórico.
Não pode haver nenhuma autoridade histórica, mas é devido ao fato de
que a meta-história está enraizada na história, que a história recebe seu
significado. A revelação Cristã tanto atua na história, quanto é distorcida pela
história. Nisso reside a complexidade da relação entre o divino e o humano, a
complexidade da interação entre Deus, a liberdade humana e a necessidade. A revelação
infinita se mostra no finito, mas o finito não encontra espaço para o infinito.
A perspectiva do infinito sempre permanece, a criatividade infinita, a
revelação infinita. O homem não é uma criatura estática que se apresenta de uma
vez por toda num aspecto pronto. O homem é uma criatura dinâmica, criativa e em
desenvolvimento. O infinito jaz oculto dentro dele. O escopo do pensamento humano
muda; ele pode se expandir e se contrair; ele pode se tornar mais profundo e
logo ser trazido à superfície; e isso determina o caráter gradual e incompleto
da revelação. O infinito é possível, mas na revelação do Espírito e no mundo
espiritual. A cristalização do finito distorce não apenas a visão do futuro,
como também do passado. Um pensamento limitado, restrito e superficial, esse é
o pensamento do homem comum, do dia-a-dia, e é com ele que é recebida a revelação
que corresponde à sua própria natureza. Podem ser levantadas objeções à possibilidade
de uma nova revelação, de uma revelação que continua e se completa, mas apenas se
a pessoa adotar uma visão estática do homem e não lhe conceder mais do que um
papel absolutamente passivo na recepção da revelação. Mas a revelação e
divino-humana.
A historicidade possui um significado tanto positivo quanto negativo. Tudo
o que existe, todas as coisas vivas são históricas e possuem uma história. A historicidade
indica a possibilidade da existência de coisas novas, e ao mesmo tempo ela
indica uma relatividade e uma limitação. A historicidade distorce. O Cristianismo
é histórico, e nisso está sua força e seu dinamismo, e ao mesmo tempo o Cristianismo
é distorcido pela história. Ele é distorcido pelo tempo histórico, ele se torna
relativo. O historicismo é, no fundo, uma falsa filosofia da história. O historicismo
não leva em consideração o significado. Somente o pensamento messiânico construiu
a história e permitiu a revelação do sentido da história. O pensamento messiânico
aguarda uma revelação numa manifestação futura que proclamará um sentido mais
alto da história, ele aguarda a aparição do Messias e do reino messiânico. O pensamento
Grego não conheceu nenhuma expectativa messiânica; para ele, a história era um
ciclo e a Era de Ouro estava no passado, e, assim, ele não tinha uma filosofia
da história e nenhum conhecimento de um significado para a história. O messianismo
teve origens nos primitivos Hebreus e em parte nos Persas.
O Cristianismo continua sendo messiânico; ele espera pelo segundo advento
do Messias e o reino messiânico. Mas a teologia Católica Romana se opôs a
qualquer introdução da ideia messiânica no Cristianismo, por medo do
profetismo. É fora de discussão que o primitivo Cristianismo foi construído
sobre uma estrutura escatológica. Mas a perspectiva de um longo caminho
histórico entre as duas aparições de Cristo, o Messias, logo se descortinou; em
lugar do Reino de Deus, a Igreja tomou forma, e o Cristianismo, tendo se
tornado histórico, passou a se adaptar a esse mundo, ao reino de César. Apenas uns
poucos, dentro do “Cristianismo histórico”, esperaram pela nova revelação do
Espírito Santo, e, frequentemente, de forma distorcida. O lado profético do
Cristianismo enfraqueceu-se e desapareceu quase que por completo. O Cristianismo
histórico tomou um caráter organizado dogmático e autoritário. A Igreja histórica
foi vista como a chegada do Reino de Deus. A ideia de Reino de Deus que permeia
o Evangelho é uma ideia profética – o “Reino por vir”. Não existe ainda um
Reino de Deus; nosso mundo não se parece com o Reino de Deus; ele só pode ser
pensado escatologicamente.
A impotência do Cristianismo histórico que se revela em nosso tempo é
determinada e pode ser explicada pela debilitação do espírito profético, por
uma condição de ossificação, e por um espírito que é exclusivamente sacramental
e sacerdotal. A expectativa de uma nova revelação do Espírito Santo desapareceu
de vista. Direi algo a esse respeito no último capítulo desse livro. No
momento, o problema me interessa apenas do ponto de vista da crítica da
revelação. Nunca será demais repetir que se trata de uma revelação
divino-humana, que o Cristianismo é a religião do Deus-homem, que ele assume
uma crença não só em Deus, como também no homem, que pressupõe a atividade não somente
de Deus, mas também do homem. Somente assim pode ser entendido o trágico
destino do Cristianismo na história. Nas palavras sutis de Franz Baader, o homem
pretendeu ser homem sem Deus, mas Deus não quis ser Deus sem o homem, e assim
ele se tornou Homem. A ideia de uma revelação contínua não deve ser confundida com
a ideia racionalista de Gotthold Lessing[7]
de um treinamento religioso da humanidade. Existe uma dialética existencial
complexa do divino e do humano, e isso parece não ficar muito claro no pensamento
Alemão.
[1]
Berdiaev escreveu O Divino e o Humano em 1944, quando Aurobindo
(1872-1950) ainda era vivo.
[2]
N.T.: Devemos nos lembrar que o Hinduísmo, do qual Shankarasharya é um
intérprete destacado, não conhece nada parecido com o conceito Cristão de Deus.
Brahma não é Deus, no sentido Cristão do termo, assim como a trindade
Brahma-Vishnu-Krishna não tem nenhuma relação com a Santa Trindade Cristã.
[3] A
física contemporânea destruiu a velha doutrina do cosmo.
[4]
Marcião de Sinope - ou Marcion - foi um dos mais proeminentes heréticos do
Cristianismo primitivo. A sua teologia, chamada Marcionismo, que propunha dois
deuses distintos – um no Antigo Testamento e outro no Novo Testamento – foi
denunciada pelos Pais da Igreja e ele foi excomungado.
[5]
“The God Who stands in need”.
[6] NO
sentido de terem sido tratadas como “objeto”.
[7]
Gotthold Ephraim Lessing, poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão,
considerado um dos maiores representantes do Iluminismo, conhecido também por
sua crítica ao antissemitismo e defesa do livre pensamento e tolerância
religiosa.
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