quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Nikolai Berdiaev - O problema metafísico da Liberdade




I

O problema da liberdade pode ser abordado de diversos ângulos e se vincular a todas as disciplinas filosóficas. Sou forçado a limitar meu tema à consideração das dificuldades e contradições fundamentais, às quais conduz a colocação do problema da liberdade. Mas, antes de tudo, é necessário estabelecer a relação do meu tema com a questão tradicional acadêmica a respeito do livre arbítrio. Quando a questão do livre arbítrio é enfrentada conjuntamente, tanto psicológica como eticamente, então a questão sobre a liberdade não pode ser colocada em toda sua profundidade, e sua simples exposição pressupõe a decisão de que a liberdade é uma escolha da vontade. Os ensinamentos sobre o livre arbítrio, sejam teológicos ou filosóficos, consistiam numa busca por uma visão utilitária do problema, com a intenção prática de demonstrar a responsabilidade moral e o castigo do homem. O livre arbítrio é absolutamente necessário à lei criminal, assim como é necessário para a fundamentação da retribuição além-túmulo. É digno de nota que os mais extremados aderentes do livre arbítrio frequentemente foram também inimigos da liberdade de espírito, da liberdade de consciência. Lutero baseou a liberdade religiosa numa negação radical do livre arbítrio. O problema da liberdade me interessa para além dessas sujeições utilitárias – trata-se, para mim, do problema da liberdade de espírito, enquanto princípio, inerente à base primária da existência. Veremos que é impossível derivar a liberdade da existência, ou baseá-la sobre a existência. Meu tema não será psicológico. O problema da liberdade não pode ser trabalhado estaticamente – só podemos lidar com ele dinamicamente, investigando as diversas condições e estágios da liberdade. Assim fez Santo Agostinho, que falava em libertas minor e libertas major, e que ensinava sobre as três condições de Adão diante da liberdade: posse non peccare, non posse non peccare, non posse peccare. É de Santo Agostinho que provém o ensinamento a respeito da liberdade do homem, que reconhece a liberdade humana em relação ao mal, mas que nega a liberdade para o bem. A liberdade possui sua dialética interior própria, seu próprio fado, que deve necessariamente ser explorado.

A liberdade pode ser entendida em dois sentidos diversos, tanto na linguagem diária quanto na elaboração filosófica. Na linguagem cotidiana essa distinção é mais pronunciada do que na filosofia. Existem duas liberdades. Existe uma primeira liberdade, irracional, uma liberdade de escolha entre o bem e o mal, uma liberdade como caminho, uma liberdade que pode e não pode ser conquistada, uma liberdade por meio da qual aceita-se a Verdade de Deus, mas que não é a que se recebe da Verdade de Deus. Quando dizemos que tal ou qual homem alcançou a liberdade, quando nele a natureza superior conquistou a natureza inferior, quando nele a razão venceu as demais paixões, quando o princípio espiritual subordinou a si os elementos anímicos emotivos, estamos falando da segunda liberdade. E é a respeito dessa segunda liberdade que fala o Evangelho: “conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. Aqui a liberdade é dada pela Verdade, não se trata da liberdade primordial. Não é a liberdade através da qual o homem chega à Verdade. Mas quando dizemos que um homem escolheu livremente para si o caminho da vida e que livremente percorre esse caminho, estamos falando da primeira liberdade.

Os Gregos não conheciam essa primeira liberdade, a liberdade inerente à base primária do plano da existência, uma liberdade que antecede a razão e a cognição da verdade; eles conheciam apenas a segunda liberdade, a liberdade racional, a que permite o conhecimento da verdade. Era assim que Sócrates entendia a liberdade. O entendimento da liberdade, como uma coisa indeterminada, era estranho à consciência Grega. A mentalidade dos Gregos antigos os conduziu a um entendimento da liberdade como razão, como uma vitória sobre o caos. O princípio Dionisíaco não é um princípio de liberdade. Os Gregos temiam a infinitude e, numa liberdade que se mostra insondável, como um princípio irracional e indeterminado, existe uma terrível infinitude, a possibilidade de um triunfo do caos. Para os Gregos essa liberdade era material, feita de matéria. A verdadeira liberdade era para eles um triunfo da forma. A mentalidade Grega era estática, ela consistia numa contemplação estética da harmonia do mundo. Os Gregos não conheciam uma dinâmica conectada com a liberdade. Nesse ponto sua consciência chegava ao seu limite. É interessante que somente Epicuro viu a liberdade como uma indeterminação, e que a tenha conectado com o acaso. O idealismo Grego não era propício à liberdade. A consciência Grega estava impactada pela dependência do homem em relação a Deus ou aos deuses, e a um destino, ao qual mesmo os deuses estavam submetidos. Somente na época Cristã da história do mundo revelou-se autenticamente a primeira liberdade, a liberdade irracional, ligada, não à forma, mas à matéria primordial da existência. E a esse entendimento da liberdade está ligada a ideia da Queda no pecado. A aceitação da ideia da Queda equivale à aceitação dessa verdade, de que na base dos processos do mundo jaz a liberdade primária irracional.

A dificuldade para a cognição filosófica, que se baseia nas categorias do pensamento Grego, a dificuldade em conhecer essa liberdade primária irracional, esse completo indeterminismo, consiste em que é impossível construir um conceito racional em relação a isso. Todo conceito racional sobre a liberdade não passa de uma racionalização desta, mas essa racionalização equivale a matar a liberdade, como disse Bergson acertadamente. O mistério primordial da liberdade é o limite da cognição racional. Mas o estabelecimento desse limite não implica abandonar a cognição, não constitui um agnosticismo, mas corresponde a conquistar a cognição. É isso que o Cardeal Nicholas de Cusa, um dos maiores pensadores da Europa, chama de docta ignorantia, o estudo do desconhecido, a conquista da cognição. É possível um conhecimento sobre o irracional, mas ele possui uma estrutura diferente do conhecimento sobre o racional. Isso foi uma coisa nova que o filósofo Alemão introduziu em contraste com o pensamento filosófico Grego, ao colocar o problema da cognição do irracional, da existência primordial. Isso também estava enraizado no misticismo Germânico, de onde a filosofia Germânica extraiu suas concepções. A liberdade não pode ser percebida através de um conceito estático. A liberdade é dinâmica e só pode ser percebida dinamicamente. E nos aproximamos do mistério da liberdade apenas pela investigação da dinâmica da liberdade, de sua dialética interna.


II

A dinâmica da liberdade conduz à tragédia de sua autodestruição. A liberdade primária irracional pode gerar o mal em suas entranhas. Nela não existem garantias de que irá fazer o bem, de que conduzirá a Deus, de que irá salvaguardar a si mesma. A liberdade primária e irracional possui um traço fatal de autodestruição que a permite passar para o seu oposto e gerar a necessidade. Quando a liberdade penetra na via do mal, ela perde a si mesma e cai sob o domínio da necessidade, criado por ela mesma. O homem se torna escravo da natureza, escravo das baixas paixões. A liberdade primária e irracional oculta em si a possibilidade da anarquia, tanto na vida da alma individual como na vida da sociedade. A liberdade formal, desinteressada, que nada escolhe por si, indiferente à verdade e ao bem, conduz a um afastamento entre o homem e o mundo, a uma escravidão em relação aos elementos e às paixões. A necessidade natural é sempre uma forma secundária, na base da qual jaz a liberdade primária. A necessidade é filha da liberdade, mas de uma liberdade falsamente direcionada, na qual a autoafirmação de partes do mundo conduz à mútua escravidão. A liberdade primária, de sua parte, é impotente para preservar e afirmar a liberdade, e está sempre sujeita à ameaça da destruição. Foi isso que levou Santo Agostinho a negá-la, e São Tomás de Aquino a suprimi-la, considerando que a liberdade que não fosse subordinada à verdade e não conduzisse a Deus seria imperfeita, deficiente. A segunda liberdade, a liberdade racional, a liberdade em verdade e bem, conduz a uma identificação da liberdade com a verdade e o bem, com a razão, inclinando-nos a uma virtude compulsória, a um determinismo do bem e à geração de uma organização religiosa ou social, na qual a liberdade se torna filha da necessidade. Se a primeira liberdade leva à anarquia, a segunda conduz à monarquia ou a um despotismo comunista. A segunda liberdade se torna uma liberdade coercitiva, interessada e subordinada à verdade e ao bem. Mas em si mesma ela nega a liberdade de escolha, ela nega a liberdade de consciência e conduz a uma organização compulsória da existência. E dessa maneira a liberdade passa a se identificar, seja com uma necessidade Divina (nas teocracias), seja na necessidade social (nos sistemas comunistas). Se a liberdade, em seu primeiro significado, carrega consigo o perigo da destruição da liberdade pelo próprio homem, por sua volição, no segundo sentido ela traz consigo o perigo de uma negação completa da liberdade do homem. A segunda liberdade é, em essência, a liberdade de Deus, do espírito do mundo, ou da razão do mundo, a liberdade de uma sociedade organizada, mas não de uma liberdade do homem. A Verdade (ou seja lá o que for que se considere como tal) é o que organiza a verdade, mas ela liga a liberdade à aceitação da Verdade. A segunda liberdade não conhece aquilo que Dostoievsky expressou genialmente pelas palavras do Grande Inquisidor de Cristo: “Tu desejaste tanto o livre amor dos homens, que eles Te seguiram livremente, fascinados e cativados por Ti”. Eu só posso receber a mais alta e última liberdade a partir da Verdade, mas a Verdade não pode ser coercitiva e compulsória para mim – a aceitação da Verdade pressupõe minha liberdade, um livre movimento meu em direção a ela. A liberdade não é um fim, mas também um caminho. O idealismo Germânico do começo do século XIX (Fichte, Hegel), de caráter monístico, era inspirado pelo pathos da liberdade, mas em essência desconhecia a liberdade do homem, e conhecia apenas a da Divindade, do Eu do mundo, do Espírito do mundo. A primeira liberdade, por si só, conduz à autodestruição da liberdade. A segunda liberdade, contudo, em si, parte de uma negação da liberdade do homem. A liberdade é derrotada, seja pela anarquia dos elementos e das paixões, seja pela necessidade, seja pela graça.

Normalmente, os filósofos colocam no centro do problema da liberdade a relação entre liberdade e necessidade, e veem nisso a principal dificuldade do problema. Mas na atualidade a maior dificuldade do problema da liberdade se mostra como a relação entre ela e a graça, entre a liberdade do homem e um Deus poderoso, um Deus livre. A história do pensamento religioso e teológico do Ocidente é cheia de disputas conectadas ao problema das relações entre liberdade e graça. A questão costuma ser apresentada assim: se Deus existe, se Ele é poderoso e livre, se a graça de Deus age sobre o mundo e sobre o homem, que espaço sobra para a liberdade humana? O homem talvez possa se esconder da necessidade da natureza, mas onde poderá ele se esconder do poder da Divindade, das energias ativas de Deus que atuam sobre a humanidade? Esse problema, que atormentou Santo Agostinho, alcançou seu ponto mais agudo no tratado de Lutero, De servo arbitrio, dirigido contra Erasmus. Lutero não se limitou a negar a liberdade do homem, como considerou ímpio o simples pensamento a respeito dessa liberdade. Poderá existir uma liberdade do homem, não apenas no sentido da liberdade em relação à natureza que o cerca e em relação à sua própria natureza, mas também no sentido de uma liberdade em relação a Deus? Se a primeira liberdade é engolida pelos elementos indomados e pela natureza passional, a segunda liberdade é tragada pela graça, pelo poder da Divindade. Por um lado, não existe a liberdade do homem, se ela depende do poderio da natureza, nem, por outro lado, se ela depende do poder de Deus. E assim vemos que não existe liberdade do homem sequer se ela depende do próprio homem, de sua natureza única, uma vez que a natureza do homem é parte do mundo natural. A liberdade do homem é como se fosse esmagada desde cima, pelo meio e por baixo, pela natureza. Os teólogos dizem que o homem foi deixado livre, e que ele descobre a liberdade pela ação da graça. Somente a natureza humana em graça pode ser chamada de livre. E nessa instância o discurso é sobre o segundo sentido da liberdade. Trata-se da liberdade dada pela Verdade. A Verdade é também uma energia que age sobre o homem e o liberta. Mas será o homem livre em relação à Verdade, em relação à graça, será a liberdade anterior à ação da graça ou consistirá a liberdade numa aceitação da Verdade e da graça? A teologia Cristã, em suas formas predominantes, ensina a respeito da influência da liberdade e da graça. Mas a liberdade é pressuposta aqui, de modo a fixar a responsabilidade e o mérito do homem. A liberdade não é mostrada como um poder criador, ela não passa da recepção da graça. Se esse problema for colocado objetivamente, e não da perspectiva do homem, é incompreensível como se possa justificar a liberdade do homem. A liberdade do homem deveria ter sua fonte em Deus e dessa forma o problema parece desaparecer. Mas se o próprio Deus colocou a liberdade no homem, e, se desse modo, o homem deve reconhecer a dependência dessa sua liberdade a Deus, ela é essencialmente a liberdade de Deus, e não a liberdade do homem. Da mesma forma, num sentido genuíno da palavra, não existe liberdade do homem, se ela depende de intermediários sociais ou naturais, se ela for imposta por ordenamentos provindos de fora dele. E então temos que encarar a questão: é possível fundamentar a liberdade do homem sobre o próprio homem, sobre a natureza humana, sobre uma fonte interior que permanece sempre humana? Se as profundezas do homem recuam até a Divindade, e se é aí que é preciso buscar a liberdade, então essa liberdade é Divina e não humana. Mas existe alguma profundidade na natureza humana, sobre a qual se possa fundamentar o humano, e uma liberdade unicamente humana?


III

Houve tentativas de fundamentar a liberdade do homem sobre a substancialidade da alma humana. A alma humana seria uma substância e a liberdade seria o que determina essa substância desde dentro, a partir de um poder criador substancial, e não a partir de fora. Esse tipo de fundamentação é característica do espiritualismo. E o mais notável ensinamento a respeito da liberdade, fundamentado na ideia da substância, pertence ao filósofo Russo Lev Mikhaïlovitch Lopatine e foi desenvolvido na sua obra The positive tasks of Philosophy. A esse tipo de resolução filosófica do problema pertence também Maine de Biran. Essa espécie de espiritualismo defende a liberdade do homem, inferindo-a a partir de uma energia espiritual interior da natureza humana, e nisso é como se ela possuísse uma vantagem sobre o monismo idealista, que sempre afirma, seja a liberdade de Deus, seja a do espírito do mundo, mas nunca a do homem. Quando Hegel define a liberdade com as palavras: “A liberdade existe por si só[1]”, para ele, essencialmente, nessa condição – a de existir por si só – pode apenas ser encontrada a liberdade do espírito do mundo, mas não a do homem. Para o espiritualismo de Lopatine, que consiste num pluralismo e não num monismo, a liberdade é uma forma pessoalmente singular de uma causalidade interna, uma causação a partir de um poder substancial. A liberdade assim consiste definitivamente num determinismo, mas num determinismo desde dentro, das próprias substâncias, e não nascido de suas correlações. Mas esse espiritualismo pluralístico também falha na tentativa de resolver o problema da liberdade, do mesmo modo que o idealismo monístico. O ensinamento a respeito das substâncias é inteiramente impróprio para a liberdade. Se a liberdade deve ser determinada pela natureza, pela minha natureza, então ela deve ser determinada por essa natureza substancial. Se eu devo ser definido por minha natureza, isso é também uma espécie de determinismo, do mesmo modo como se eu for definido por uma natureza situada fora de mim. Ser escravo da própria natureza não constitui uma liberdade maior do que ser escravo de uma espécie de natureza estranha a mim. Da mesma forma, dentro da natureza substancial situa-se um ponto mais baixo do que tudo, um chão da liberdade, ao mesmo tempo em que essa natureza é insondável e sem fundamento. Uma liberdade que não possua esse ponto mais baixo, ou chão, ou fundamento, que não está enraizada em nada, tampouco pode estar enraizada nas substâncias, dentro da natureza substancial do homem. Esse ensinamento nega o mistério irracional da liberdade. A liberdade não é determinada pela natureza, ela em si determina a natureza. A substância é uma categoria naturalística, mas ela foi trabalhada, não pelas ciências naturais, que não têm necessidade de substância, mas pela metafísica naturalística.

O ensinamento de Kant a respeito de um caráter mentalmente postulado, a respeito de uma liberdade que jaz fora do mundo das aparências, contém em si essa semente de verdade, essa liberdade que não depende de nenhum tipo de natureza. Mas esse ensinamento sofre de dualismo, no qual a liberdade é relegada à coisa-em-si e não possui lugar de espécie alguma em nosso mundo de aparências. É precisamente nisso que se encontra a oposição básica entre a ordem da liberdade e a ordem da natureza. Nenhuma definição é aplicável à liberdade, nenhuma definição relativa à natureza e às substâncias. A liberdade não pode possuir nenhum tipo de raiz dentro da existência. A liberdade do homem também não pode ser exclusivamente definida pela graça Divina. A liberdade do homem também não possui sua fonte na natureza humana, na substância humana, e menos ainda na natureza desse mundo. Mas, nesse caso, será possível conceber a liberdade pelo pensamento? O problema da liberdade se torna de uma dificuldade extraordinária, e as dificuldades “quase insolúveis” parecem insuperáveis. A razão deve encarar a tentação de negar a liberdade do homem. E, quando ela pensa na liberdade de Deus, ela se inclina a considerá-la idêntica à necessidade Divina. É como se na existência não exista espaço para a liberdade. E as ontologias filosóficas mais significativas foram sistemas deterministas. O monismo sempre foi determinista e não encontrou lugar para a liberdade. O pathos da liberdade pressupõe um certo dualismo, embora não de caráter ontológico. A ponderação e a fundamentação da liberdade só é possível mediante uma distinção entre espírito e natureza, estabelecendo-se uma qualificação diferente do mundo espiritual, diverso da qualificação do mundo natural. A metafísica espiritualista tradicional não pode ser vista como um ensinamento a respeito do espírito, do mundo espiritual e da vida espiritual; ao contrário, ele é uma forma do naturalismo, um entendimento do espírito como natureza, como substância. Mas o espírito não é a natureza, não é uma substância, sequer é uma realidade em sentido algum, no qual se insira a realidade do mundo natural. O problema da liberdade é um problema do espírito, e não pode ser resolvido por nenhuma metafisica naturalística da existência.


IV

Se a liberdade não pode estar enraizada em nenhuma espécie de existência, em nenhuma espécie de natureza, em nenhuma espécie de substância, então só resta um caminho para a afirmação da liberdade: o reconhecimento de que a fonte da liberdade está no nada, a partir do qual Deus criou o mundo. A liberdade se manifestou antes da existência e ela determina por si só o plano da existência. Ela pertence a uma ordem e a um plano diferentes da ordem e do plano da existência. A liberdade é absolutamente real, mas não no sentido em que o mundo é real. A liberdade só se revela na experiência da vida espiritual, ela não se revela na experiência da experiência do mundo. A liberdade não apenas não constitui uma experiência externa, como também não é uma experiência anímica emotiva, ela não se encontra na experiência de nenhuma espécie de natureza. O mundo natural é sempre determinado, e o mundo anímico emotivo e também determinado. Somente dentro da capacidade única da experiência espiritual é possível discernir o mistério da liberdade. O mundo espiritual, qualitativamente distinto do mundo natural, no qual se incluem nossas almas e corpos, não é de modo algum um mundo Kantiano de coisas-em-si. Seria totalmente impróprio dizer que a vida do corpo e da alma é aparência, enquanto que a vida do espírito é a coisa-em-si. Isso constitui um dualismo infrutífero, que conduz à negação de toda possibilidade real de uma experiência espiritual, coisa que também vemos em Kant, e que não permite a possibilidade de uma experiência espiritual. Mas no meio disso, a liberdade que aqui se revela dentro de uma experiência espiritual não consiste apenas na segunda – a alta liberdade na Verdade – mas também na primeira, a liberdade irracional e sem fundamento. Apenas a experiência espiritual nos revela isso, que se manifesta antes da existência do mundo natural, que nos conduz a ter um contato com o insondável e o sem fundamento, que tem sua base não em qualquer tipo de existência, nem em nós mesmos, nem no mundo, nem em Deus. Todas as dificuldades insuperáveis da liberdade estão conectadas com o pensamento dirigido exclusivamente ao mundo natural, o sinal básico daquilo que se manifesta como determinismo. Mas no mundo espiritual não existe qualquer espécie de determinismo natural. O mundo espiritual não constitui um grau mais alto do que o mundo natural, ele não entra na hierarquia do mundo natural, ele possui uma condição qualitativa diferente, dentro da qual o mundo natural se mistura em todos os seus graus.

E é dentro de uma experiência espiritual que podemos discernir que, se a liberdade está enraizada em alguma coisa, ela terá que estar enraizada no nada, terá se manifestado antes da existência, antes da criação do mundo. Isso significa também que a liberdade é insondável e sem fundamento. Essas duas características recuam até o nada. Esse é o ungrund de Jacob Boehme. Isso significa que a liberdade está conectada com a potencialidade, que é mais profunda do que qualquer formação ou atualização da existência. A potencialidade da existência do mundo é anterior à existência do mundo em si. De acordo com o ensinamento da teologia Cristã, Deus criou o mundo a partir do nada. Isso significa também que Deus criou o mundo a partir da liberdade. Isso pode ser expresso de forma inversa, ou seja, que Deus criou o mundo livre e com toda a liberdade. Isso não significa que Deus criou o mundo a partir da matéria, como pensavam os antigos Gregos, uma vez que o nada não é matéria, mas liberdade. E se, ao contrário, a liberdade estivesse enraizada na existência, então ela proviria apenas de Deus e em Deus, isso é, a liberdade do homem, a liberdade da criação, não existiriam. Mas fora de Deus está o nada, a partir do qual ele criou o mundo, e é no nada que se encontra a fonte. O não-ser livre está fora do Deus criador para a teologia positiva (catafática), mas é interior à indizível Divindade para a teologia negativa (apofática). A partir dessa liberdade o nada anui à própria criação do mundo, e ela floresce desde o misterioso ventre da potencialidade. A primeira liberdade, a liberdade irracional, é uma pura potencialidade, alojada dentro do nada. E nós percebemos dentro de nós esse vazio livre. Por sua vez, a segunda liberdade, a liberdade em Verdade, recebida da Verdade, é diferente. A segunda, mais elevada, constitui a transfiguração e a iluminação dessa liberdade obscura, desse nada irracional, por intermédio da ideia criadora de Deus sobre o homem e o cosmo, através da luz do Logos, por meio da ação da graça de Deus. Essa transfiguração e essa iluminação, obtidas pela interação mútua entre o poder criador de Deus, sua graça, e a própria liberdade primordial, resultam da ação da graça sobre a liberdade interior, sem violência ou coerção. A primeira liberdade é uma liberdade potencial, ela é a possibilidade de oposição. A segunda liberdade é a liberdade da realização, da realização da Verdade, da iluminação das trevas. A segunda liberdade não existe sem a primeira liberdade. Já vimos que a segunda liberdade, vista em si mesma, descamba para a tirania e falha em superar a tragédia da liberdade. A mais alta liberdade do homem não está na natureza do homem, não pertence à sua substância, mas consiste na ideia de Deus sobre o homem, na imagem e semelhança de Deus no homem. A pessoa não constitui uma individualidade natural do home, mas é antes uma ideia de Deus. A realização da ideia de Deus sobre o homem, entretanto, pressupõe a ação da liberdade que permanece alojada no nada. E somente o Cristianismo conhece o mistério de reconciliar essas duas liberdades e superar a tragédia da liberdade. Nisso consiste a ação da graça sobre nossa liberdade, sua iluminação desde dentro.


V

Conectada a essa liberdade potencial, anterior à existência, alojada no abismo do nada, está a possibilidade de criação. A possibilidade de mudança e de desenvolvimento do mundo nasce da liberdade. Apenas na superfície, no plano raso do mundo natural, vemos o desenvolvimento. Mas a teoria evolucionista é completamente ineficaz para conceber as fontes do desenvolvimento no mundo. O entendimento disso só é possível quando se ultrapassa o movimento horizontal por um movimento vertical. Na medida da profundidade, é ao longo dessa vertical que acontece essa criação a partir da liberdade, a partir de uma potencialidade insondável, e daí ela se projeta na superfície, como desenvolvimento. Para além do desenvolvimento no mundo estão ocultas ações criadoras, em especial porque as ações criadoras pressupõem da liberdade, e a liberdade pressupõe essa insondável potencialidade que nasce do nada. Sem a potencialidade, sem o nada, nada no mundo se transformaria, não haveria desenvolvimento, nem criação ou criatividade. O ensinamento de Aristóteles a respeito do ato e da potencialidade inclui essa grande verdade, mas ele foi distorcido e estreitamente interpretado. Os Gregos temiam o infinito (apeiron) e, por isso, costumavam interpretar de modo impreciso o significado da potencialidade, coisa que passaram aos Escolásticos. Na potencialidade existe mais do que o que existe em ato, pois na potencialidade existe um infinito, enquanto que em ato tudo é sempre limitado. A infinitude da potencialidade é a fonte da liberdade e da mudança criadora e de tudo o que existe de novo no mundo. A existência efetiva do mundo constitui uma esfera final e limitada em comparação com a potencialidade ilimitada e insondável do abismo, que jaz abaixo do ser e é mais profundo do que ele. A evolução dentro do mundo se apresenta a nós como uma interação determinada e delimitada das forças terrenas e de sua redistribuição. Mas a criatividade não é determinada, num certo sentido ela sempre será a criação a partir do nada, isso é, a partir da liberdade. A criatividade livre constitui também uma liberdade não determinada, que abre seu caminho através das forças de mundo e as altera, e que não é determinada por elas. Assim só é possível dizer que, na vida do homem e na vida do mundo, existe uma grande possibilidade, a possibilidade de uma nova vida e de um novo mundo. O determinismo evolucionista constitui uma visão conservadora do mundo. O Darwinismo é conservador, o Marxismo é conservador, embora eles ainda apresentem alguns ensinamentos revolucionários, derrubando a visão de mundo religiosa tradicional. Apenas a possibilidade da liberdade criativa abre uma brecha no fechado sistema conservador do mundo, dentro do qual só é possível a redistribuição da matéria e da energia. O naturalismo igualmente afirma um sistema fechado conservador do mundo, e esse naturalismo às vezes assume a forma de um naturalismo teológico. Pois, se o mundo não se apresenta como um sistema conservador fechado, deve existir obrigatoriamente uma fonte insondável, uma potencialidade infinita, isso é, o “nada” livre, anterior ao ser, e que determina a existência.

N princípio era o Verbo, o Logos. Essa é uma verdade eterna em relação à toda a existência positiva. O mundo não poderia ter sido criado, ele não poderia ter um princípio sem o Logos. Mas no princípio havia algo como que o nada, a potencialidade, havia a liberdade, e essa liberdade, esse nada, estava fora da existência e, dessa maneira, não existe contradição com o fato de que no princípio era o Verbo. O Logos desceu até o nada e dali criou o mundo, o sol brilhou sobre o abismo mais profundo do que o ser. O Logos Divino interagiu com a liberdade. Aqui está o porquê de não ser a liberdade um problema psicológico ou moral – o livre arbítrio – mas, antes, um problema metafísico sobre o princípio das coisas, aconteceu um encontro de duas infinitudes – a infinitude do potencial, do nada, e a infinitude do real, a infinitude de Deus. Daí provém que havia também duas liberdades – a liberdade que nasce da infinitude da potencialidade, e a liberdade que vem da infinitude da graça de Deus, da Luz de Deus.


VI

Vimos que a segunda liberdade pode ser entendida falsamente, e que assim ela degenera em violência a coerção. Mas em seu verdadeiro entendimento, sem negar a primeira liberdade, mas pressupondo-a inevitavelmente, a segunda liberdade é mais elevada, ela é a liberdade última, a autêntica libertação do homem desse mundo. A libertação genuína é dada pelo conhecimento e a realização da Verdade, que inclui em si a liberdade. Alcançar a mais alta liberdade, como um objetivo de vida, significa alcançar a autêntica espiritualidade. O espírito é liberdade e, na espiritualidade, na vida espiritual, não existe nenhuma determinação exterior, não existe compulsão, não existe situação externa. Uma posição externada com coerção de uma parte sobre outra é característica do mundo natural. A vida espiritual é uma vida livre, e nisso está seu sinal constitutivo. Alcançar a espiritualidade equivale a superar a tragédia da liberdade, suas contradições são desfeitas, o que parecia até então insuperável. A espiritualidade autêntica implica a iluminação do irracional, daquela que até então era a liberdade escura, mas sem sua aniquilação, sem forçá-la. O problema da liberdade não pode ser resolvido dentro dos limites da filosofia racional. A dialética não consegue preenchê-lo, as dificuldades insuperáveis permanecem. Mas a cognição filosófica pode se aproximar de seus limites e ir além, fornecendo a solução final a outras áreas. Estou inclinado a pensar que é nisso que consiste a tarefa da filosofia em todas as áreas da cognição. Uma filosofia que desvende a dialética da liberdade nos conduzirá ao Cristianismo, como uma solução positiva para a tragédia da liberdade, a tragédia da liberdade e da necessidade. O problema da liberdade do homem, tão difícil para o pensamento filosófico, só pode ser resolvido pela ideia do Deus-homem e da humanidade Divinizada, que vai além dos limites da filosofia pura. Apenas no Deus-homem se revela uma saída para além da fronteira do mal existente na liberdade e o bem existente na necessidade, da liberdade que gera o mal e da necessidade que compele à bondade, e nesse ponto se alcança a iluminação e a transfiguração da liberdade, de uma liberdade cheia de amor, não a liberdade do primeiro Adão, ainda considerada como a liberdade do mal, mas antes a liberdade do segundo Adão, que pelo livre amor conquistou os princípios obscuros da liberdade. Isso com certeza não quer dizer que, tanto na filosofia quanto na teologia Cristã, bem como na prática Cristã, o problema da liberdade tenha sido devidamente colocado e corretamente resolvido. Ao contrário, aqui surgiram algumas das maiores divergências. A liberdade e a graça muitas vezes são colocadas em oposição, e a graça é vista como uma força acima da liberdade. Mas o Cristão, em seu ideal de pureza, inclui em si a resolução do problema da liberdade. Fora do Cristianismo, o determinismo é essencialmente inevitável. Toda filosofia naturalista é determinista. E quando a filosofia espiritualista procura estabelecer uma base para a liberdade, ela o faz fracamente e com contradições, identificando a liberdade com a substância, isso é, dentro de uma categoria naturalista. Uma questão difícil para a metafísica Cristã está em reconciliar a liberdade do homem com a onipotência de Deus, com a onisciência Divina. A partir desse fundamento gerou-se o ensinamento sobre a predestinação, que encontrou suma máxima expressão em Calvino. Mesmo Santo Agostinho encontrou aqui uma dificuldade insuperável. O caminho mais crível seria aquele no qual existe consciência, que a liberdade constitui uma linha limítrofe para a presciência de Deus, que o próprio Deus coloca um limite à sua presciência, uma vez que Ele deseja a liberdade vê na liberdade o sentido da criação. A esse ponto de vista inclina-se Charles Secrétan em sua obra La Philosofie de la Liberté, uma das mais sutis investigações filosóficas a respeito da liberdade.


VII

A liberdade está na base do desígnio de Deus concernente ao mundo e ao homem. A liberdade gera o mal, mas sem a liberdade não existe nada que seja bom. A bondade compulsória não seria boa. Aqui está a contradição fundamental da liberdade. A liberdade para o mal constitui evidentemente uma condição para a liberdade para o bem. Abolir o mal forçadamente, sem deixar traços, implica não restar nada para uma liberdade voltada para o bem. É por isso que Deus tolera a existência do mal. A liberdade gera a tragédia da vida e o sofrimento da existência. Por isso a liberdade é algo difícil e áspero. Nem a liberdade é algo fácil, nem uma vida em liberdade é uma vida fácil. É mais fácil viver dentro da necessidade. Dostoievsky, que tinha profundos pensamentos sobre a liberdade, sugeriu que a coisa mais difícil para o homem está em suportar a liberdade de espírito, a liberdade de escolha. O homem está pronto para abdicar da liberdade em nome de mitigar o sofrimento da vida por meio de alguma organização compulsória do bem (como nas teocracias compulsórias e no Comunismo Stalinista). Seria um erro pensar que o homem valoriza especialmente a liberdade. Ao contrário, ele tende sempre a ver o dom da liberdade como algo fatal e de modo algum a defende. Não estou falando aqui da liberdade no sentido político, mas exclusivamente da liberdade no sentido metafísico. Mas a liberdade metafísica tem suas próprias consequências vivas e práticas, ela possui sua própria projeção social. Não existe nenhuma espécie de expressão adequada para a liberdade metafísica na vida social. Aqui as correlações são demasiado complexas e misturadas. A liberdade, numa projeção política, costuma ser entendida como os direitos do homem, como as pretensões do homem. Mas se a liberdade é tomada em sua profundidade metafísica, então é forçoso reconhecer que a liberdade não é de modo algum uma questão de direitos e de pretensões humanas, mas antes uma obrigação. O homem deve ser livre em espírito, ele tem que carregar o peso da liberdade até o fim, uma vez que a liberdade está incluída na ideia que Deus faz dele, ela consiste na sua semelhança para com Ele. Deus pede que o homem seja livre, Ele espera do homem o ato da liberdade. Deus precisa da liberdade do homem, mais ainda do que o próprio homem. O homem está pronto para renunciar à liberdade em nome de uma vida fácil, mas Deus não renuncia à liberdade do homem, uma vez que é nisso que está amarrado seu desígnio para a criação do mundo. O ensinamento a respeito do livre arbítrio, tradicionalmente defendido pela teologia Cristã, constitui uma vulgarização do problema da liberdade e uma adaptação dessa com fins utilitários. O ensinamento sobre a liberdade deve estar conectado com o ensinamento sobre o espírito, a respeito do qual eu abordei em meu estudo Freedom and the Spirit.

O problema da liberdade é uma questão filosófica central. A ele estão vinculadas não apenas todas as disciplinas filosóficas (a metafísica, a teoria do conhecimento, a ética, a filosofia da história), como ainda a filosofia se torna contígua à teologia. A história do ensinamento sobre a liberdade é notavelmente a história dos ensinamentos religiosos e teológicos sobre a liberdade. Santo Agostinho e Lutero tiveram grande importância para a questão da liberdade, assim como para os filósofos acadêmicos. E eu me utilizei não apenas da filosofia, mas também da teologia, pois de outra forma é impossível considerar o problema em toda sua profundidade. O problema da liberdade é central e definitivo para a metafísica, e pode ser orientado em prol de todas as questões filosóficas básicas. É possível fazer-se uma classificação dos tipos de conceitos verbais filosóficos de acordo com sua maior ou menor relação com o problema da liberdade. Para o problema da liberdade a diferença mais nítida é entre a filosofia da antiguidade, dos Gregos, em contraste com a filosofia do período Cristão, na história da autoconsciência humana. Aqui o problema da liberdade envolve-se com a questão do infinito e do finito. Os Gregos consideravam que a perfeição era finita. O finito é determinístico. Para eles, o infinito era imperfeito e não determinístico. A perfeição consistia em estabelecer limites, definições, ou seja, ela era determinada. Um entendimento semelhante passou para os Escolásticos medievais, quando Aristóteles foi prescrito, em especial para o sistema de São Tomás de Aquino. Mas no mundo Cristão, na essência do Cristianismo, havia uma infinitude revelada, não apenas com significado negativo, mas também positivo. E com a infinitude revela-se a liberdade, como uma indeterminação. Com Orígenes encontramos um dos primeiros ensinamentos a respeito da liberdade. A filosofia Alemã se distingue ainda mais da filosofia antiga e medieval, na medida em que ela vê na irracionalidade a base da existência e investiga a questão da liberdade a partir daí. Mas o idealismo Alemão tende para um monismo idealista, no qual o problema da liberdade evanesce e a liberdade do homem se esvai. A autêntica filosofia Cristã é uma filosofia de liberdade, e uma solução autêntica para a questão da liberdade só pode ser construída procedendo da ideia do Deus-homem. E a filosofia religiosa Russa, mais do que todas, entendeu o problema da liberdade, como uma indeterminação e como uma infinitude.



[1]Freiheit ist bei sich selbst zu sein”.



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