domingo, 28 de abril de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Capítulo IX: Dois aspectos da Igreja




O papel das duas pessoas divinas enviadas ao mundo não é o mesmo, ainda que o Filho e o Espírito Santo realizem sobre a terra a mesma obra: eles criaram a Igreja, na qual se fará a união com Deus. Como dissemos, a Igreja é ao mesmo tempo o corpo de Cristo e a plenitude do Espírito Santo, “preenchendo tudo em todos”. A unidade do corpo se refere à natureza, que aparece como o “homem único” em Cristo; a plenitude do Espírito se refere às pessoas, à multiplicidade das hipóstases humanas, das quais cada qual representa um todo, e não somente uma parte. Assim, o homem será ao mesmo tempo uma parte, um membro do corpo de Cristo por sua natureza; mas ele será também, enquanto pessoa, um ser que contém em si o todo. O Espírito Santo, que repousa como uma unção real sobre a humanidade do Filho, Chefe da Igreja, ao se comunicar com cada membro desse corpo, cria, por assim dizer, muitos cristos, muitos ungidos pelo Senhor: pessoas em vias de deificação ao lado da Pessoa divina. Sendo a Igreja a obra de Cristo e do Espírito Santo, a eclesiologia possui um duplo fundamento, e está enraizada ao mesmo tempo na cristologia e na pneumatologia.

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O Pe. Congar, em seu livro Chrétiens desunis, afirma que “o pensamento eclesiológico oriental, desde o início, vê no mistério da Igreja algo que encerra as realidades divinas, mais do que seu aspecto terrestre e suas implicações humanas, a realidade interior da unidade na fé e no amor, antes das exigências concretas da comunhão eclesiástica. Nota-se (diz ele) o desenvolvimento relativamente fraco da eclesiologia dos Padres gregos; a verdade é que eles permaneceram numa larga medida, presos a uma cristologia e, mais ainda, a uma pneumatologia, vendo a Igreja em Cristo e no Espírito Santo, mais do que em seu ser eclesiástico enquanto tal[1]”. Num certo sentido, o Pe. Congar tem razão: a teologia oriental jamais concebe a Igreja fora de Cristo e do Espírito Santo. Entretanto, isso não resulta absolutamente num desenvolvimento fraco da eclesiologia: antes, isso significa que, para a eclesiologia oriental, “o ser eclesiástico enquanto tal” é algo extremamente complexo: ele não é desse mundo, ainda que formado no seio desse mundo, ainda que existindo no mundo e para o mundo. A Igreja não pode ser reduzida pura e simplesmente ao seu “aspecto terrestre” e às “implicações humanas”, sem abandonar sua verdadeira natureza, que a distingue de todas as demais sociedades humanas. O Pe. Congar busca em vão na tradição dogmática do Oriente uma sociologia da Igreja, e deixa de lado, sem notar, a riqueza prodigiosa da tradição canônica da Igreja ortodoxa: as coletâneas de cantos variados, a obra admirável dos comentadores bizantinos como Aristino, Balsamon, Zonaras, bem como a literatura canônica moderna. Os cânones que regulam a vida da Igreja em seu “aspecto terrestre” são inseparáveis dos dogmas cristãos. Não são estatutos jurídicos propriamente ditos, mas aplicações dos dogmas da Igreja, de sua tradição revelada, a todos os domínios da vida prática da sociedade cristã. À luz dos cânones, essa sociedade aparece como uma “coletividade totalitária”, onde os “direitos dos indivíduos” não existe; mas, ao mesmo tempo, cada pessoa desse corpo constitui seu objetivo e não pode ser vista como um meio, é a única sociedade na qual o acordo entre os interesses dos indivíduos com os da coletividade não representa um problema insolúvel, pois as aspirações últimas de cada um concordam com o fim supremo de todos e esse último não pode ser realizado em detrimento dos interesses de cada um.

A bem dizer, não se trata de indivíduos e de coletividade, mas de pessoas humanas que não podem alcançar sua perfeição senão na unidade da natureza. A Encarnação é o fundamento dessa unidade de natureza; o Pentecostes é a afirmação da multiplicidade das pessoas na Igreja.

No domínio da eclesiologia, encontramo-nos novamente diante da distinção entre a natureza e as pessoas, distinção misteriosa que que entrevimos pela primeira vez quando examinamos o dogma da Trindade na tradição oriental. Isso não é de admirar, porque, como disse São Gregório de Nissa: “o cristianismo é uma imitação da natureza divina”[2]. A Igreja é uma imagem da Santa Trindade. Os Padres não cessam de repetir isso, os cânones o afirmam – por exemplo, o célebre cânone 34 das Regras Apostólicas que institui a administração sinodal das províncias metropolitanas, “a fim de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam glorificados”, na própria ordem da vida eclesiástica. É à luz do dogma da Santa Trindade que o mais maravilhoso atributo da Igreja – o da catolicidade – se revela em seu verdadeiro sentido, propriamente cristão, que não pode ser traduzido pelo termo abstrato de “universalidade”. Pois o sentido concreto da palavra “catolicidade” compreende tanto a unidade como a multiplicidade; ela assinala um acordo entre essas duas coisas ou, antes, uma certa identidade entre a unidade e a multiplicidade que faz com que a Igreja seja católica no seu conjunto, tanto quanto em cada uma de suas partes. A plenitude do todo não é uma soma das partes, pois cada parte possui a mesma plenitude que o todo. O milagre da catolicidade revela, na própria vida da Igreja, a ordem de vida própria da Santa Trindade. O dogma da Trindade, “católico” por excelência, é o modelo, o cânone de todos os cânones da Igreja, o fundamento de toda a economia eclesiástica. Deixaremos de lado as questões de ordem puramente canônica, malgrado todo o interesse que poderia haver num estudo sobre a ligação íntima entre o dogma trinitário e a estrutura administrativa da Igreja ortodoxa. Isso nos levaria muito longe de nosso tema, que nos orienta para os elementos de teologia que se referem à questão da união com Deus. É unicamente desse ponto de vista que nos propomos a examinar a eclesiologia oriental: a Igreja enquanto meio onde se realiza a união das pessoas humanas com Deus.

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A Igreja, segundo São Cirilo de Alexandria, é “a cidade santa que não foi santificada por observar a lei – “pois a lei nada pode realizar[3]” – mas por se tornar conforme Cristo e por participar da natureza divina pela comunhão do Espírito Santo, que nos marcou com seu selo no dia de nossa libertação, quando fomos lavados de toda mancha e libertados de toda iniquidade[4]”. É no corpo de Cristo que encontramos acesso à fonte do Espírito Santo, segundo Santo Irineu[5]. Assim, é preciso estar unido ao corpo de Cristo para receber a graça do Espírito Santo. E, no entanto, tanto uma como outra – a união com Cristo e a doação da graça – são feitas pelo mesmo Espírito. São Máximo distingue diferentes modos da presença do Espírito Santo no mundo: “O Espírito Santo, diz ele, está presente em todos os homens sem exceção, como conservador de todas as coisas e vivificador das sementes naturais; mas ele está especialmente presente naqueles que possuem a lei, acusando as transgressões dos mandamentos dando testemunho da pessoa de Cristo; quanto aos cristãos, o Espírito Santo está presente em cada um deles, tornando-os filhos de Deus; mas, como Doador da sabedoria ele praticamente não está presente neles todos, mas apenas nos capazes de razão, ou seja, naqueles que, por suas lutas e labores em Deus, se tornaram dignos da habitação deificante do Espírito Santo. Pois os que não cumprem a vontade de Deus não possuem um coração racional[6]”. Assim, em relação à união com Deus, o universo se dispõe segundo círculos concêntricos dentre os quais a Igreja se encontra no centro, e onde os seus membros se tornam filhos de Deus; porém, essa adoção não constitui o fim último, pois existe um círculo ainda menos no interior da Igreja – o dos santos (os “racionais” – twn sunientwn – segundo o texto citado) que entram em união com Deus.

A Igreja é o centro do universo, o ponto onde são decididos os destinos. Todos são chamados a entrar para a Igreja, pois, se o homem é um microcosmo, a Igreja é um macroantropo, segundo São Máximo[7]. Ela cresce e se estrutura na história, introduzindo os eleitos em seu seio e unindo-os a Deus. O mundo envelhece e vai se tornando decrépito, enquanto que a Igreja é constantemente rejuvenescida e renovada pelo Espírito Santo, que é a fonte de sua vida. Num dado momento, quando a Igreja chegar à plenitude de seu crescimento determinado pela vontade de Deus, o mundo exterior morrerá, tendo consumido seus recursos vitais; quanto à Igreja, ela aparecerá em sua glória eterna, como o Reino de Deus. Ela se revelará então como o verdadeiro fundamento das criaturas que ressuscitarão na incorruptibilidade para se unirem a Deus, que será então tudo em todas as coisas. Mas alguns estarão unidos pela graça (kata carin), e outros fora da graça (para thn carin), segundo São Máximo[8]. Uns serão deificados pelas energias que adquiriram no interior de seu ser; outros permanecerão fora e para esses o fogo deificante do Espírito será uma chama exterior, intolerável a todos cujas vontades resistiram a Deus. A Igreja será assim o meio onde, na vida presente, se efetua a união com Deus, união que será consumada no século futuro, depois da ressurreição dos mortos.

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Todas as condições necessárias para atingir a união com Deus estão dadas na Igreja. É por isso que os Padres gregos a assimilam tantas vezes ao paraíso terrestre, onde os primeiros homens deveriam alcançar o estado deificado. É claro que a natureza humana já não possui a imortalidade e a incorruptibilidade primitivas, mas a morte e a corrupção se tornaram o caminho para a vida eterna, pois Cristo “assumiu tudo o que fora penetrado pela morte[9]”, e arrasou a própria morte com sua morte. Entramos na vida eterna pelo batismo e a ressurreição, segundo São Gregório de Nissa. O batismo, imagem da morte de Cristo, é já o começo de nossa ressurreição, “a saída do labirinto da morte[10]”. O corpo de Cristo, ao qual os cristãos ficam unidos pelo batismo, se torna, segundo São Atanásio, “a raiz de nossa ressurreição e de nossa salvação[11]”.

 A Igreja é algo maior do que o paraíso terrestre; o estado dos cristãos é melhor do que a condição dos primeiros homens. Já não corremos o risco de perder irremediavelmente a comunhão com Deus, por estarmos contidos num só corpo, no qual circula o sangue de Cristo que “nos purifica de todo pecado e de toda mancha. O Verbo assumiu a carne para que pudéssemos receber o Espírito Santo[12]”. Essa presença do Espírito Santo em nós, condição de nossa deificação, não pode ser perdida. A noção de estado de graça do qual os membros da Igreja poderiam ser privados, bem como a distinção entre pecados mortais e pecados veniais, são coisas estranhas à tradição oriental. Todo pecado, por menor que seja – desde o estado interior do coração até qualquer ato exterior – pode tornar a natureza opaca, impenetrável à graça. A graça permanecerá inativa, ainda que sempre presente, unida à pessoa que recebeu o Espírito Santo. A vida sacramental – a “vida em Cristo[13]” – se apresentará como uma luta incessante pela aquisição da graça que deverá transfigurar a natureza, luta na qual as ascensões e quedas se alternarão, sem que as condições objetivas da salvação jamais sejam retiradas do homem. O estado de graça, na espiritualidade oriental, não possui um sentido absoluto e estático. Trata-se de uma realidade dinâmica e matizada, que varia segundo as flutuações da vontade enferma do homem. Todos os membros da Igreja que aspiram à união com Deus estão em maior ou menor grau na graça, e em maior ou menor grau privados da graça. “Toda a Igreja é a Igreja dos penitentes, toda a Igreja é a Igreja dos que perecem”, dizia Santo Efrém o Sírio[14].

Para se libertar de todo ataque do pecado e crescer sem cessar na graça, é preciso se enraizar cada vez mais na unidade da natureza que tem como hipóstase o próprio Cristo. O sacramento do corpo e do sangue é uma realização da unidade de nossa natureza com Cristo e, ao mesmo tempo, com todos os membros da Igreja. “Aprendamos a maravilha desse sacramento, diz São João Damasceno, a finalidade de sua instituição, os efeitos que ele produz. Nós nos tornamos um só corpo, segundo a Escritura, membros de sua carne e ossos de seus ossos. É isso que opera o alimento que Ele nos dá: Ele se mistura conosco, a fim de que nos tornemos todos uma só coisa, como um corpo unido à Cabeça[15]”. E São João Damasceno especifica: “Se o sacramento é uma união com Cristo com Cristo e ao mesmo tempo uma união de uns com os outros, ele nos traz, de todo modo, a unidade com aqueles que o recebem como nós[16]”. Na Eucaristia, a Igreja aparece uma única natureza unida a Cristo. “Tu me concedeste, Senhor, que esse templo corruptível – minha carne humana – se unisse à Tua santa Carne, que meu sangue se misturasse ao Teu; doravante, serei Teu membro transparente e translúcido (...) Fui arrebatado para fora de mim mesmo, eu me vejo – ó maravilha – tal como me tornei. Ao mesmo tempo em que temo por mim e me envergonho, eu Te venero e Te temo, e não sei onde me abrigar, para qual fim empregar esses membros novos temíveis e divinizados[17]”. É assim que São Simeão o Novo Teólogo exalta em um de seus hinos a união eucarística que é realizada em nossa qualidade de membros de Cristo. Ela introduz até o fundo de nossa natureza o “fogo da divindade”, inseparável do Corpo e do Sangue de Cristo: “eu comungo com fogo, eu que não passo de palha, mas – ó milagre - sinto-me subitamente abrasado sem ser consumido, como outro a sarça ardente de Moisés[18]”.

Na Igreja, por intermédio dos sacramentos, nossa natureza entra em união com a natureza divina na hipóstase do Filho, Chefe do corpo místico. Nossa humanidade se torna consubstancial à humanidade deificada, unida à pessoa de Cristo, mas nossa pessoa ainda não atingiu a perfeição, donde a hesitação de São Simeão que se sente cheio de temor e de vergonha diante de si mesmo, sem saber o que fazer com seus membros “temíveis e divinizados”. Nossa natureza é unida a Cristo na Igreja, que é Seu corpo, e essa união se realiza na vida sacramental, mas é preciso que cada pessoa dessa natureza uma se torne conforme Cristo – Cristoeidos. é preciso que as hipóstases humanas se tornem, elas também, “com duas naturezas”, reunindo em si a natureza criada com a plenitude da graça incriada, com a divindade que é conferida pelo Espírito Santo, apropriada por cada membro do corpo de Cristo. Pois a Igreja não consiste apenas na natureza una na hipóstase de Cristo, ela é também as hipóstases múltiplas na graça do Espírito Santo.

Mas essa multiplicidade não pode se realizar senão na unidade. A vida cristã, a vida em Cristo é um caminho que conduz da multiplicidade da corrupção – a dos indivíduos que fraturam a humanidade em pedacinhos – para a unidade de uma natureza pura, na qual aparece uma nova multiplicidade, aquela das pessoas unidas a Deus no Espírito Santo. O que era dividido por baixo, na natureza compartilhada entre muitos indivíduos, deve se unir num único fundamento, em Cristo, para se dividir pelo alto, nas pessoas dos santos que assimilaram as flamas deificantes do Espírito Santo.

Não convém buscar o que é pessoal, pois a perfeição da pessoa se realiza no abandono total, na renúncia a si mesmo. Toda pessoa que busca se afirmar não desemboca senão no esfacelamento da natureza, no ser particular, individual, realizando uma obra contrária à de Cristo. “Quem não ajunta comigo, dissipa[19]”.  Ora, é preciso dissipar, mas com Cristo, abandonar a natureza própria que é, na verdade, a natureza comum, para ajuntar, para adquirir a graça que deve ser apropriada por cada pessoa, tornar-se sua. “Se vocês não forem fiéis ao que é de outrem, quem lhes dará o que é de vocês? [20]”. Nossa natureza pertence a outro, pois Cristo a adquiriu com Seu sangue precioso; a graça incriada pertence a nós – ela nos foi dada pelo Espírito Santo. Esse é o mistério insondável da Igreja, obra de Cristo e do Espírito Santo, uma em Cristo, múltipla no Espírito; uma só natureza humana na hipóstase de Cristo, muitas naturezas humanas na graça do Espírito Santo. E ainda assim, Igreja una – por ser um só corpo, uma única natureza unida a Deus na pessoa de Cristo, pois nossa união pessoal, a união perfeita com Deus em nossas pessoas, só se realizará no século futuro. As uniões sacramentais que a Igreja nos propõe – e mesmo a mais perfeita de todas, a união eucarística – se referem à nossa natureza, na medida em que ela é recebida na pessoa de Cristo. Em relação às nossas pessoas, os sacramentos são meios, dados que devem ser realizados, adquiridos, ou se tornarem plenamente nossos ao longo de lutas constantes, nas quais nossa vontade se conformará à vontade de Deus, no Espírito Santo presente em nós. Prodigados à nossa natureza, os sacramentos eclesiásticos nos tornam aptos à vida espiritual na qual se realiza a união de nossas pessoas com Deus. Nossa natureza recebe na Igreja todas as condições objetivas para essa união. As condições subjetivas só dependem de nós.

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Como dissemos em muitas ocasiões, a Igreja tem dois aspectos, assinalados por São Paulo na Epístola aos Efésios, epístola eclesiológica por excelência. Esses dois aspectos, ou antes, esses dois caracteres fundamentais da Igreja estão de tal forma intimamente ligados entre si, que São Paulo os expõe num único versículo[21]. A Igreja é representada aqui[22] como a realização da economia Trinitária, como uma revelação do Pai na obra do Filho e do Espírito Santo. O Pai de glória dá aos fiéis o Espírito de sabedoria e de revelação, a fim de que eles reconheçam sua vocação (klhsis), a união pessoal para cada um, a riqueza e a glória de sua herança (klhrnomia) que aparecerá nos santos, na união realizada pela multitude das pessoas humanas; o mesmo Espírito nos faz reconhecer a obra divina que o Pai opera em Cristo; trata-se do testemunho dado à divindade de Cristo. O aspecto cristológico da Igreja nos é revelado assim através de seu aspecto pneumatológico: o Espírito revela a cada um o Cristo que o Pai ressuscitou dos mortos e fez sentar-Se à Sua direita, acima de toda dominação, de todo poder, de todo nome que pode ser nomeado nos séculos presente e futuro, colocando tudo sob Seus pés e constituindo-O chefe da Igreja. A seguir vem a definição da Igreja (versículo 23) na qual os dois aspectos, os dois princípios – cristológico e pneumatológico – são dados simultaneamente e quase que fundidos numa síntese suprema: a Igreja, “a qual é o seu corpo, a plenitude Daquele que plenifica tudo em todas as coisas”. A Igreja é nossa natureza recapitulada por Cristo, contida em Sua hipóstase, ela é um organismo teândrico, divino-humano; e, no entanto, ainda que nossa natureza se encontre encastrada no corpo de Cristo, nem por isso as pessoas humanas são arrastadas pelo processo físico e inconsciente de uma deificação que suprimiria a liberdade, que negaria as próprias pessoas. Uma vez libertas do determinismo do pecado, não podemos cair sob um determinismo divino. A graça não destrói a liberdade, pois ela não é uma força unitiva que procede do Filho, Chefe hipostático de nossa natureza; ela possui um outro princípio hipostático, outra fonte, independente do Filho – o Espírito Santo, que procede do Pai. Assim, a Igreja possui ao mesmo tempo um caráter orgânico e pessoal, uma originalidade de necessidade e de liberdade, de objetivo e subjetivo, ela constitui uma realidade estável e definida, mas também uma realidade em devir. Unida a Cristo, “enipostatizada”, ela é um ser teândrico, com duas naturezas, duas vontades inseparavelmente unidas, união da criatura a Deus realizada na pessoa de Cristo. Por outro lado, nas pessoas humanas, que são as hipóstases múltiplas de sua natureza, a Igreja só atinge virtualmente sua perfeição. O Espírito Santo se comunica a cada pessoa.  A cada membro do corpo de Cristo Ele abre a plenitude da herança divina, mas as pessoas humanas, as hipóstases criadas da Igreja, não podem se tornar “de duas naturezas”, a menos que se elevem livremente para a união perfeita com Deus, a menos que realizem em si essa união pelo Espírito Santo e por sua vontade. A hipóstase divina do Filho desceu sobre nós, reuniu em si a natureza criada à natureza incriada, a fim de permitir às hipóstases humanas se elevarem a Deus, a fim de reunir nelas, por sua vez, a graça incriada à natureza criada, no Espírito Santo.

Nós somos chamados a realizar, a construir nossa pessoa na graça do Espírito Santo. Mas nós construímos, segundo São Paulo, sobre um fundamento já estabelecido, sobre uma pedra inabalável que é Cristo[23]. Fundamentados em Cristo que contém nossa natureza em sua pessoa divina, devemos adquirir a união com Deus em nossas pessoas criadas; devemos nos tornar, à imagem de Cristo, pessoas com duas naturezas, ou seja, segundo as palavras audaciosas de São Máximo, devemos reunir “pelo amor a natureza criada à natureza incriada, fazendo-as aparecer na unidade e na identidade pela aquisição da graça[24]”. A união cumprida na pessoa de Cristo deve ser realizada em nossas pessoas pelo Espírito Santo e a nossa liberdade. Daí provêm os dois aspectos da Igreja: o aspecto realizado e o aspecto do devir. O último se fundamenta sobre o primeiro, que é sua condição objetiva.

Sob seu aspecto cristológico, a Igreja aparece como um organismo composto por duas naturezas, duas operações e duas vontades. Na história do dogma cristão, todas as heresias cristológicas revivem e se reproduzem a respeito da Igreja. Assim, veremos surgir um nestorianismo eclesiológico, o erro daqueles que pretendem separar a Igreja em dois seres distintos: a Igreja celeste, invisível, única verdadeira e absoluta, e a Igreja (ou antes, “as igrejas”) terrestre, imperfeita e relativa, perdida nas trevas, meras sociedades humanas tentando se aproximar, na medida de suas possibilidades, da perfeição transcendente. Ao contrário, o monofisitismo eclesiológico se traduzirá no desejo de ver na Igreja um ser divino por excelência, onde cada detalhe é sagrado, onde tudo se impõe com um caráter de necessidade divina, na qual nada pode ser mudado ou modificado, pois a liberdade humana, a “sinergia”, a cooperação dos homens com Deus não tem lugar nesse organismo hierático que exclui o lado humano: trata-se de uma magia da salvação que se exerce nos sacramentos e nos ritos fielmente cumpridos. Essas duas heresias eclesiológicas de tendência oposta apareceram quase ao mesmo tempo no século XVII: a primeira surgiu no território do patriarcado de Constantinopla (o protestantismo oriental de Cirilo Loukaris), o segundo se desenvolveu na Rússia sob a forma do cisma chamado de “partidários do velho rito”. Os dois erros eclesiológico foram fulminados pelos grandes Concílios de Jerusalém e Moscou. O monotelismo na eclesiologia se expressará sobretudo por uma negação da economia da Igreja diante do mundo exterior, para cuja salvação a Igreja foi fundada. O erro contrário (que não teve precedente nas heresias cristológicas, a menos que consideremos uma espécie de semi-nestorianismo) consiste numa atitude de compromisso pronta a sacrificar a verdade aos objetivos da economia eclesiástica em relação ao mundo: trata-se do relativismo eclesiológico dos chamados movimentos “ecumênicos” e outros semelhantes. A heresia apolinarista, que negava o espírito humano na humanidade de Cristo, se traduz no domínio eclesiológico pela recusa em admitir a plena consciência humana, por exemplo no ministério doutrinal da Igreja: a verdade se revelaria aos concílios como um deus ex machina, independentemente dos presentes.

Assim, tudo o que pode ser afirmado ou negado a respeito de Cristo pode sê-lo igualmente a respeito da Igreja, na medida em que ela é um organismo teândrico, ou, mais exatamente, uma natureza criada unida inseparavelmente a Deus na hipóstase do Filho, um ser que, como Ele, possui duas naturezas, duas vontades, duas operações inseparáveis e distintas ao mesmo tempo. Essa estrutura cristológica determina uma ação permanente e necessária do Espírito Santo sobre a Igreja, ação funcional em relação a Cristo, que conferiu o Espírito ao colégio dos apóstolos sob a forma do sopro. Essa união impessoal com o Espírito Santo, essa santidade condicional da hierarquia eclesiástica confere um caráter objetivo, independente das pessoas e das intenções, antes de tudo às ações teúrgicas do clero. Os sacramentos e os ritos sagrados realizados na Igreja comportam assim duas vontades, duas operações que são exercidas simultaneamente: o sacerdote invoca o Espírito Santo ao abençoar o pão e o vinho sobre o altar, e o Espírito Santo opera o sacramento eucarístico; o confessor pronuncia as palavras da absolvição, e as faltas são remidas pela vontade de Deus; o bispo impõe as mãos sobre o ordenando, e o Espírito Santo confere a graça sacerdotal, etc. O mesmo acordo entre as duas vontades acontece no exercício do poder episcopal, ainda que com uma certa nuança. Os atos que emanam do poder episcopal possuem um caráter obrigatório, pois o bispo age pelo poder divino; quando nos submetemos à sua vontade, submetemo-nos à vontade de Deus. Porém, aqui existe um elemento pessoal inevitável: caso o bispo não tenha adquirido pessoalmente a graça, se ele não tiver a inteligência iluminada pelo Espírito Santo, ele pode agir segundo as motivações humanas e pode errar no exercício do poder divino que lhe foi conferido. Claro, ele carregará a responsabilidade de seus atos diante de Deus, mas eles não deixarão de ter um caráter objetivo e obrigatório, salvo nos casos em que um bispo age contrariamente aos cânones, ou seja, em desacordo com a vontade comum da Igreja; ele se torna então um cúmplice de um cisma e se coloca fora da unidade eclesiástica. As definições dos Concílios exprimem também o acordo entre as duas vontades na Igreja: é por isso que o primeiro Concílio, o dos apóstolos, modelo de todos os Concílios da Igreja, fez preceder suas definições pela fórmula “assim quis o Espírito Santo e nós também[25]”. Entretanto, se os Concílios testemunham a tradição por meio de suas decisões obrigatórias e objetivas, a própria Verdade que eles afirmam não está submetida às formas canônicas. Com efeito, a tradição possui um caráter pneumatológico: trata-se da vida a Igreja no Espírito Santo. A Verdade não pode possuir um critério exterior, sendo manifesta por si mesma através de uma evidência interior, dada, numa maior ou menor medida, a todos os membros da Igreja, pois todos são chamados a conhecer, guardar e defender as verdades da fé. Aqui, o aspecto cristológico concorda com o aspecto pneumatológico no caráter católico da Igreja: pelo poder recebido de Cristo, a Igreja afirma aquilo que o Espírito revela. Mas a faculdade de definir, de expressar, de manter dentro de dogmas precisos os mistérios insondáveis para a inteligência humana, pertencem ao aspecto cristológico da Igreja, fundamentado sobre a encarnação do Verbo.

O mesmo princípio está na base do culto das santas imagens, que expressam as coisas invisíveis e as tornam realmente presentes, visíveis e agentes. Um ícone, uma cruz, não são simplesmente figuras para orientar nossa imaginação durante a prece: eles são centros materiais nos quais repousa uma energia, uma virtude divina que se une à arte humana.

Da mesma forma, a água benta, o sinal da cruz, as palavras da Escritura lidas durante o ofício, o canto sagrado, os objetos de culto, os ornamentos eclesiásticos, o incenso, a luz das velas, são símbolos no sentido realista da palavra, sinais materiais da presença do mundo espiritual. O simbolismo ritual é mais do que uma representação dirigida aos sentidos para nos lembrar realidades de ordem espiritual. A palavra anamnhsis não significa apenas “comemoração”: antes, ela designa uma iniciação ao mistério, a revelação de uma realidade permanentemente presente na Igreja. É nesse sentido que São Máximo fala dos símbolos litúrgicos. O ofício da Eucaristia apresenta para ele todo o conjunto da Providência salutar de Deus. A entrada da santa assembleia representa a primeira vinda do Salvador. A subida do grande pontífice ao altar e ao seu trono são a imagem da Ascensão. A entrada dos assistentes simboliza o ingresso dos Gentios na Igreja. O perdão dos pecados é o julgamento de Deus que revela a cada um particularmente a vontade divina a seu respeito. Os cantos sagrados exprimem a alegria que abraça os corações puros elevando-os para Deus. As invocações de paz lembram a vida pacífica de contemplação que se segue às lutas atrozes da ascese. A leitura do Evangelho, a descida do grande pontífice de seu trono, a expulsão dos catecúmenos e dos penitentes, e o fechamento das portas da igreja simbolizam os atos do Juízo Final: o segundo advento do Senhor, a separação entre os eleitos e os danados, a desaparição do mundo visível. Em seguida, a entrada das santas espécies representa a revelação do além; o beijo da paz, a união de todas as almas em Deus que se efetua progressivamente. A confissão de fé constitui a grande ação de graça dos eleitos. O Sanctus representa a elevação das almas aos coros dos anjos que, na imobilidade de seu movimento eterno ao redor de Deus, bendizem e canta a Trindade simples. O Pater representa nossa filiação em Cristo, e o canto final “Um só é Santo, um só Senhor” faz pensar na entrada suprema da criatura no abismo da união divina[26]. As festas eclesiásticas nos fazem participar dos eventos da vida terrestre de Cristo num plano mais profundo do que o dos simples fatos históricos, pois na Igreja já não somos espectadores de fora, mas testemunhas iluminadas pelo Espírito Santo.

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Nós examinamos o aspecto cristológico da Igreja, as condições, por assim dizer, objetivas e imutáveis, fundamentadas sobre o fato de que Cristo é o Chefe de seu corpo místico, e que nossa natureza está contida em Sua hipóstase, o que faz da Igreja um organismo com duas naturezas. Mas, como dissemos, a Igreja é incompleta se abstrairmos um outro aspecto, mais interior, menos aparente, mas tanto mais importante na medida em que se refere à própria finalidade da Igreja: a união com Deus, que deve se efetuar em cada pessoa humana. Esse é seu aspecto pneumatológico, que tem por princípio o mistério do Pentecostes. A diferença entre esses dois aspectos da Igreja fica manifesto se compararmos o modo de presença da graça nos sacramentos, nos atos teúrgicos, na hierarquia, no poder eclesiástico, no culto, nos símbolos sagrados, nos quais ela possui um certo caráter de necessidade predeterminada, com outra ordem da graça na Igreja, com uma presença da graça mais íntima, não apenas exterior e funcional, mas unida ao próprio ser que a carrega: a graça que se torna própria de cada pessoa, adquirida e pessoal. Se, no primeiro modo, a presença da graça possui um caráter de objetividade, quase gostaríamos de dizer que o segundo modo é subjetivo, se esse termo não possuísse um sentido pejorativo, como algo “incerto”. Diremos antes que a primeira presença está na base de uma predeterminação, enquanto que a segunda se fundamenta sobre uma eleição. Trata-se de manifestações da graça nas relíquias, nos lugares santificados pelas aparições da Virgem ou pela oração dos santos, nas fontes milagrosas, nas imagens taumatúrgicas, nos dons carismáticos, nos milagres; enfim, nas pessoas humanas que a adquiriram, como os santos. É a graça que opera nas pessoas e pelas pessoas como uma força própria a elas – virtudes divinas e incriada apropriadas às pessoas criadas nas quais se efetua a união com Deus. Pois o Espírito Santo confere a divindade às pessoas humanas chamadas a realizar em si a união deificante – mistério que se revelará no século futuro, mas cujas primícias transparecem já aqui em baixo, naqueles que se assimilaram a Deus.

Assim, podemos dizer que sob o aspecto cristológico a Igreja se apresenta como uma absoluta estabilidade, como o fundamento imutável de que fala São Paulo, ao dizer: “Vocês foram edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular. Nele, todo o edifício, bem coordenado, se ergue para ser um templo santo no Senhor. Nele, também foram vocês edificados para constituir uma morada de Deus no Espírito[27]”. Sob seu aspecto pneumatológico, o da economia do Espírito Santo em relação às pessoas humanas (contemplado por São Paulo no final do teto citado), a Igreja possui um caráter dinâmico, ela tende ao seu fim último, para a união de cada pessoa humana com Deus. Sob o primeiro aspecto, a Igreja se apresenta como o corpo de Cristo; sob o segundo, como uma chama que possui uma base única e muitas pontas divididas. Os dois aspectos são inseparáveis, e, no entanto, no primeiro a Igreja existe na hipóstase de Cristo, enquanto que no segundo podemos entrever seu ser próprio, distinto daquele de seu Chefe.

Com efeito, se retomarmos a imagem da união de Cristo com a Igreja em São Paulo, a imagem da união dos cônjuges, podemos constatar que Cristo é o Chefe de Seu corpo, Chefe da Igreja, no mesmo sentido em que o marido é o chefe do corpo único dos dois cônjuges no casamento[28]. Nessa união misteriosa (to musthrion touto mega estin, diz São Paulo[29]), o corpo único, a natureza comum aos dois recebe a hipóstase do Esposo: a Igreja é a “Igreja de Cristo”. Mas ela não deixa de ser a outra pessoa da união, submissa ao Esposo, distinta dele enquanto Esposa. Como no Cântico dos Cânticos, assim como em outros textos do Antigo Testamento que exprimem, segundo os Padres, a união de Cristo com a Igreja sob a imagem da união carnal, a Esposa se apresenta necessariamente com traços pessoais: é uma pessoa que é amada pelo Esposo e que o ama por sua vez. Podemos nos perguntar inevitavelmente: qual é essa outra pessoa, a da Igreja, distinta da pessoa de seu Chefe? Quem é a Esposa nessa união “numa só carne” – eis sarka mian? Qual é a hipóstase própria da Igreja? Certamente não é a hipóstase do Espírito Santo. Como vimos no decurso de nossa última lição, o Espírito Santo, em seu advento pessoal, contrariamente ao Filho, não comunica à Igreja sua hipóstase que permanece oculta, não revelada. Ele se dissimula, se identifica, por assim dizer, com as pessoas humanas que ele capacita para a segunda natureza – a divindade, as energias deificantes. Ele se torna o princípio da deificação das pessoas, a fonte das riquezas incriadas em cada uma delas; Ele confere a cada pessoa sua perfeição última, mas Ele não se torna a pessoa da Igreja. Com efeito, o Espírito Santo não contém em Si as hipóstases humanas, como Cristo contém a natureza, mas Ele Se dá separadamente a cada pessoa. A Igreja, em seu ser próprio, enquanto Esposa de Cristo, aparece então como uma multitude de hipóstases criadas. É a pessoa, ou antes, são as pessoas humanas que são as hipóstases da natureza una da Igreja. É por isso que os Padres, em seus comentários sobre os Cânticos, veem na Esposa ao mesmo tempo a Igreja e cada pessoa que entra em comunhão com Deus. Mas digamos com São Paulo: to musthrion touto mega estin, "esse mistério é grande”. Ele pertence ao século futuro, no qual a Igreja alcançará sua perfeição no Espírito Santo, quando as pessoas humanas reunirão em si sua natureza criada à plenitude incriada e se tornarão hipóstases humanas deificadas, ao redor de Cristo, hipóstase divina encarnada.

Seguir-se-ia daí que antes da consumação dos séculos, antes da ressurreição dos mortos e do Juízo Final, a Igreja não teria uma hipóstase própria, uma hipóstase criada, porque nenhuma das pessoas humanas teria ainda alcançado a união perfeita com Deus. Porém, dizer isso equivale a desconhecer o próprio coração da Igreja, um de seus mistérios mais secretos, seu centro místico, sua perfeição já realizada numa pessoa humana plenamente unida a Deus, e que se encontra além da ressurreição e do Juízo. Essa pessoa é Maria, a Mãe de Deus. Aquela que deu ao verbo sua humanidade e que colocou no mundo a Deus feito homem, que se fez voluntariamente um meio da Encarnação, realizada em sua natureza purificada pelo Espírito Santo. Mas o Espírito Santo desceu uma vez mais sobre a Virgem, no dia do Pentecostes – e dessa vez, não para se servir de sua natureza como um meio, mas para Se dar à sua pessoa, para se tornar o meio de sua deificação. E a natureza puríssima que carregou em si o Verbo entrou em união perfeita com a divindade na pessoa da Mãe de Deus. Se ela ainda permaneceu nesse mundo, se ela se submeteu às condições da vida humana até aceitar a morte, foi em virtude de sua vontade perfeita, na qual ela reproduziu a kenosis voluntária de seu Filho. Mas a morte já não tinha poder sobre ela: assim como seu Filho, ela ressuscitou e subiu ao céu, como a primeira hipóstase humana que realizou em si o fim último para o qual foi criado o mundo. A Igreja e todo o universo têm desde então sua realização plena, seu ponto máximo pessoal que abre o caminho da deificação a todas as criaturas.

São Gregório Palamas, em suas homilias marianas, enxerga na Mãe de Deus uma pessoa criada que reúne em si todas as perfeições criadas e incriadas, a realização absoluta da beleza da criação. “Ao desejar criar, diz ele, uma imagem da beleza absoluta e manifestar claramente aos anjos e aos homens o poder de Sua arte, Deus fez Maria verdadeiramente belíssima. Ele reuniu nela as belezas parciais que distribuíra às outras criaturas e a constituiu como o ornamento comum a todos os seres visíveis e invisíveis; ou melhor, Ele fez dela como que uma mistura de todas as perfeições divinas, angélicas e humanas, uma beleza sublime que embelezava os dois mundos, elevando-se da terra até no céu, e inclusive ultrapassando a esse último[30]”. Segundo o esmo doutor, a Mãe de Deus é “o limite entre o criado e o incriado[31]”. Ela ultrapassou o limite que nos separa do século futuro. É por isso que, livre das condições temporais, Maria é a causa daquilo que a precedeu; e ela preside ao mesmo tempo aquilo que veio depois dela. Ela concede os bens eternos. É por meio dela que os homens e os anjos recebem a graça. Nenhum dom pode ser recebido na Igreja sem a assistência da Mãe de Deus, primícias da Igreja glorificada[32]. Ora, é necessário que, tendo alcançado o termo do devir, ela presida aos destinos da Igreja e do universo que ainda se desenrolam no tempo.

Um hino mariano da Igreja do Oriente exalta a Mãe de Deus como uma pessoa humana que atingiu a plenitude do ser divino: “Cantemos, fiéis, à Glória do Universo, a Porta do Céu, a Virgem Maria, Flor da raça humana e Geratriz de Deus, aquela que é o Céu e o Templo da Divindade, Aquela que subverteu as fronteiras do pecado, Aquela que é a afirmação de nossa fé. Nascido dela, o Senhor combate por nós. Seja pleno de audácia, ó povo de Deus, pois Ele venceu os inimigos, Ele que é todo-poderoso[33]”.

O mistério da Igreja está inscrito nas duas pessoas perfeitas: na pessoa divina de Cristo e na pessoa humana da Mãe de Deus.



[1] Pe. (Yves Georges) Marie-Joseph Congar, Chrètiens desunis, pg. 14.
[2] De professione christiana, P.G., t. 46, col. 244C.
[3] Hebreus 3: 19.
[4] In Isaiam, V, I, c. 52, §1, P.G., t. 70, col. 1144CD.
[5] Adv. Haeres., V, 24, §1, P.G., t. 7, col. 966ss.
[6] Capita theologica et oeconomica, Centúria I, 73, P.G., t. 90, col. 1209A.
[7] Mystagogie, cap. II-IV, P.G., t. 91, col. 668-672.
[8] Quaestiones ad Thalassium, LIX, P.G., t. 90, col. 609BC; Capita Theol. et aecon., Centúria IV, 20, ibid., col. 1312C.
[9] São Gregório de Nazianze, Or. 30 (4ª. Teológica, 2ª. Sobre o Filho), P.G., t. 34, col. 132B.
[10] Oratio catechetica magna, cap. 35, P.G., t. 45, col. 88ss.
[11] Oratio III contra Arianos, §13, P.G., t. 25, col, 393-396.
[12] Santo Atanásio, De incarnatione et contra Arianos, §8, P.G., t. 26, col. 996C.
[13] Cf. o título do tratado sobre os Sacramentos de Nicholas Cabasilas.
[14] Cf. P. G. Florovsky, Os Padres Orientais do século IV, Paris, 1931, pg. 232.
[15] In Joannem, homilia XLVI, P.G., t. 59, col 260.
[16] De  fide orth., IV, 13, P.G., t. 94, col. 1153B.
[17] São Simeão o Novo Teólogo, trad. fr., Vie spirituelle, XXVII, 3, 1931.
[18] Ibid., pg. 304.
[19] Mateus 12: 30.
[20] Lucas 16: 12.
[21] ... a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todas as coisas (Efésios 1: 23).
[22]  Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, lhes dê um espírito de sabedoria que lhes revele Deus, e faça que vocês o conheçam profundamente. Que lhes ilumine os olhos da mente, para que compreendam a esperança para a qual ele os chamou; para que entendam como é rica e gloriosa a herança destinada ao seu povo; e compreendam o grandioso poder com que ele age em favor de nós que acreditamos, conforme a sua força poderosa e eficaz. Ele a manifestou em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita no céu, muito acima de qualquer principado, autoridade, poder e soberania, e de qualquer outro nome que se possa nomear, não só no presente, mas também no futuro. De fato, Deus colocou tudo debaixo dos pés de Cristo e o colocou acima de todas as coisas, como Cabeça da Igreja (Efésios 1: 17-22).
[23] I Coríntios 2: 11.
[24] De ambiguis, P.G., t. 91, col. 1308B.
[25] Atos 15: 28.
[26] Mystagogia, cap. 8-21, P.G., t. 91, col. 688-697.
[27] Efésios 2: 21-22.
[28] “...os dois serão uma só carne” (Efésios 5: 31).
[29] Efésios 5: 32.
[30] In Dormitionem, P.G., t. 151, col. 468AB.
[31] Ibid., col. 472B.
[32] Ibid., col. 472 – 473A; In praesentationem, II, 158-159; 162.
[33] Dogmático do Primeiro Tom (Octoecos).