quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Metropolita Antoine de Souroge - Reflexões sobre a Prece

A PRECE DE JESUS


Metropolita Antoine de Souroge

Aqueles que leram os Relatos de um Peregrino Russo estão familiarizados com a expressão “Prece de Jesus”. Ela se refere a uma oração curta, cujas palavras são: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”, que deve ser repetida constantemente. Os Relatos de um Peregrino contam a história de um homem que desejava aprender a orar sem cessar[1]. Como o personagem cuja experiência é descrita no livro é um peregrino, a maior parte de suas características psicológicas, bem como o modo pelo qual ele aprendeu a prece, estão condicionadas pelo seu modo de viver, o que torna a aplicação do conteúdo do livro menos universal do que poderia; mesmo assim ele é a melhor introdução possível para essa prece, que constitui um dos grandes tesouros da Igreja Ortodoxa.

A prece está profundamente enraizada no espírito do Evangelho, e não foi em vão que os maiores mestres da Ortodoxia sempre insistiram no fato de que a Prece de Jesus é o sumo do Evangelho como um todo. É por esta razão que a Prece de Jesus só adquire seu sentido pleno se for usada por uma pessoa que entenda esta sua relação evangélica, uma pessoa que seja um membro da Igreja de Cristo.

Todas as mensagens do Evangelho e, mais do que as mensagens, a própria realidade do Evangelho, está contida no Nome e na Pessoa de Jesus. Se você tomar a primeira metade da prece você verá de que modo ela expressa nossa fé no Senhor: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”. No centro está o nome de Jesus, este nome diante do qual todo joelho se dobrará[2], e quando o pronunciamos estamos afirmando o evento histórico da Encarnação. Estamos afirmando que Deus, o Verbo de Deus, coeterno com o Pai, se tornou homem, e que a plenitude da Divindade habitou entre nós[3] corporalmente na sua Pessoa.

Para vermos no homem da Galileia, no profeta de Israel, o Verbo encarnado de Deus, Deus feito homem, devemos ser guiados pelo espírito, porque foi o Espírito de Deus quem revelou a nós tanto a Encarnação como a Realeza de Cristo. Nós o chamamos de Cristo, e com isso afirmamos que nele se realizaram as profecias do Antigo Testamento. Afirmar que Jesus é Cristo implica que toda a história do Antigo Testamento é nossa, que a aceitamos como a verdade de Deus. Nós o chamamos de Filho de Deus, porque sabemos que o Messias esperado pelos Judeus, o homem que seria chamado de “Filho de Davi” por Bartimeu[4], é o Filho de Deus encarnado. Essas palavras contêm tudo o que sabemos, tudo em que acreditamos a respeito de Jesus Cristo, do Velho Testamento ao Novo, e da experiência da Igreja através dos séculos. Em pouquíssimas palavras fazemos uma completa e perfeita profissão de fé.

Mas isso ainda não é o bastante para compor essa profissão de fé; não é suficiente acreditar. Também o demônio crê e treme[5]. A fé não é suficiente para operar a salvação, ela apenas deve conduzir a um correto relacionamento com Deus; e assim, tendo professado, em toda integridade, direta e claramente, nossa fé na Realeza e na Pessoa, na historicidade e na divindade de Cristo, podemos nos colocar face a face com ele, num correto estado de alma: “tem piedade de mim, pecador”.

Estas palavras “tem piedade” são utilizadas em todas as Igrejas Cristãs, e, na Ortodoxia, constituem a resposta do povo a todas as petições sugeridas pelo sacerdote. Mas nossa tradução “tem piedade” é limitada e insuficiente. A palavra grega que encontramos no Evangelho e nas liturgias antigas é eleison. Esta palavra eleison tem a mesma raiz de elaion, que denomina a oliveira e o azeite extraído dela. Se olharmos no Velho e no Novo Testamentos à procura das passagens conectadas com essa ideia básica, vamos encontrá-la descrita em diversas parábolas e eventos que nos permitirão formar um conceito completo do significado dessa palavra. Encontramos, por exemplo, a oliveira no Gênesis: depois do dilúvio Noé enviou pássaros, um após outro, para descobrir onde haveria terra seca, e um destes, uma pomba – e é significativo que tenha sido uma pomba – trouxe de volta um pequeno ramo de oliveira. Este ramo convenceu Noé e todos os que estavam com ele na arca de que a ira de Deus cessara, e que Deus agora oferecia ao homem uma nova oportunidade. Todos os que se encontravam na arca puderam habitar a terra firme e começar uma nova vida, e talvez até, nunca mais cair sob a ira de Deus.

No Novo Testamento, na parábola do bom Samaritano, o azeite de oliva é usado para aliviar e curar. Na unção dos reis e sacerdotes no Velho Testamento, mais uma vez o azeite era derramado sobre a cabeça como uma imagem da graça de Deus que descia para ungi-los[6], dando a eles um novo poder para cumprir aquilo que estava além das capacidades humanas. O rei deveria permanecer no umbral entre a vontade dos homens e a vontade de Deus, e era chamado a liderar seu povo no cumprimento do desejo de Deus; também o sacerdote permanece num umbral, para proclamar a vontade de Deus e, mais do que isso, para agir por Deus, para pronunciar os decretos divinos e aplicar as decisões de Deus.

O azeite nos fala primeiramente do fim da ira de Deus, da paz que Deus oferece ao povo que o ofendeu; depois ele nos conta como Deus nos cura para que sejamos capazes de viver e nos tornarmos aquilo que somos chamados a ser; e como ele sabe que não somos capazes, com nossas próprias forças, de cumprir tanto com sua vontade como com as leis de nossa própria natureza criada, ele derrama sua graça abundantemente sobre nós[7]. Ele nos dá a força para fazer aquilo que de outro modo seríamos incapazes de fazer.

As palavras milost e pomiluy em Eslavônico possuem as mesmas raízes das que expressam ternura, amabilidade, e assim, quando usamos os termos eleison, “tem piedade”, pomiluy, não estamos pedindo a Deus que nos salve de sua ira, mas estamos pedindo por seu amor.

Voltando às palavras da Prece de Jesus, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”, vemos que as primeiras palavras expressam com exatidão e integridade a fé evangélica em Cristo, a Encarnação histórica do Verbo de Deus; e o final da prece expressa todas as complexas e ricas relações de amor que existem entre Deus e suas criaturas.

A Prece de Jesus é conhecida por inúmeros Ortodoxos, tanto como uma regra de oração ou, adicionalmente, como uma forma de devoção, um curto ponto focal que pode ser empregado a qualquer momento, em qualquer situação.

Muitos escritores mencionaram os aspectos físicos da prece, os exercícios respiratórios, a atenção que deve ser dada às batidas do coração e outros fatores secundários. A Filocalia é cheia de instruções detalhadas sobre a prece do coração, até com referências a técnicas Sufis. Os Padres antigos e modernos trataram desse assunto, chegando sempre à mesma conclusão: nunca se deve tentar esses exercícios sem a orientação de um pai espiritual.

O que é de uso geral e irrestrito, com a ajuda de Deus, é a prece atualizada, a repetição das palavras, sem nenhum esforço físico – nem mesmo movimentos da língua – e que pode ser utilizada de forma sistemática para adquirir uma transformação interior. Mais do que qualquer outra prece, a Prece de Jesus nos auxilia a permanecer diante da presença de Deus sem outro pensamento senão o milagre de estarmos diante dele e de que Deus esteja conosco, porque na Prece de Jesus não existe nada nem ninguém além de Deus e nós.

O uso da prece é dual, trata-se de um ato de adoração como toda prece, e, num nível ascético, ela é o foco que permite manter nossa atenção longamente na presença de Deus.

É uma prece que nos acompanha sempre, uma prece amistosa, sempre à mão e muito individual, apesar de sua monótona repetição. Quer estejamos tristes ou alegres, ela é, quando se torna habitual, um impulso para a alma, uma resposta a qualquer chamado de Deus. As palavras de São Simeão o Novo Teólogo, se aplicam a todos os possíveis efeitos que ela possa ter sobre nós: “Não se preocupe com o que virá depois, você descobrirá quando acontecer”.


[1] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[2] Isaías 45: 3.
[3] Colossenses 2: 9.
[4] Marcos 10: 47-48.
[5] Tiago 2: 19.
[6] Salmo 133: 2.
[7] Romanos 5: 20.


É PRECISO ORAR SEM CESSAR

A vida deve ser uma prece

Eu gostaria de propor alguns pontos sobre o tema: “É preciso orar sem cessar”. Espero que vocês estejam de acordo, numa certa medida, e também em suficiente desacordo para provocar o encadeamento de uma discussão.

Em primeiro lugar, ao dizer esta frase: “É preciso orar sem cessar”, é importante sublinhar o que ela significa e o que ela não significa. Com toda evidência, ela não significa uma obrigação universal de estar constantemente na igreja, nem de utilizar uma prece vocal ou manifestada de modo exterior. Isto só é possível em circunstâncias bem particulares e definidas.

Poderíamos encontrar uma primeira aproximação a essa proposta numa frase de um asceta do século VI, um homem que vivia no deserto da Síria, chamado Efraim. Em um dos seus escritos, ele disse: “Não aprisione sua prece somente em palavras, mas faça de sua vida inteira uma obra de Deus, um serviço a Deus, uma oferenda a Deus”. Este é um dos aspectos aos quais iremos retornar, pois, na época atual, existe uma forte tendência a sublinhar o fato de que a prece não é apenas vocal ou litúrgica, que ela não está apenas no pensamento e no coração, mas que ela pode igualmente se encontrar nas mãos, nas obras corporais que realizamos.

Fome de Deus

Outro aspecto da prece me parece importante: trata-se da sede, da fome, do amor a Deus percebidos com a mesma acuidade e permanência, com a mesma constância com que percebemos a fome, a sede ou a ternura. Todos sabemos, por exemplo, qualquer que seja nossa experiência de vida, que existem momentos de grande dor ou de grande alegria que nos colorem todo um dia. Qualquer que seja nossa ocupação, seja ela intelectual ou física, nos encontramos de repente na luz dessa alegria ou na sombra dessa dor. E nenhum esforço é preciso para ter consciência disso. Encontramos nas Sagradas Escrituras uma multitude de imagens: a noiva do Cordeiro, o amigo do Esposo. Vemos que a ligação que une a noiva, que une o amigo ao Esposo, é a ternura, o amor e, nos momentos de ausência e distanciamento, é o desejo de estar juntos, aquilo que os ingleses chamam de longing, os alemães sehnsucht, aquilo a que chamamos de saudade, esta maneira de suspirar pelo ausente. Tampouco isso constitui um exercício premeditado, que demanda um esforço, mas é algo que existe em nós, que não podemos evitar, assim como a dor, o sofrimento e a alegria. E no entanto esse aspecto da prece que é um grito para Deus, um grito de quem percebe sua ausência e que já não a pode suportar com o coração leve, este grito é completamente consciente. Quando estamos de luto ou quando uma grande alegria nos envolve, é preciso muita coisa para que esses sentimentos de tristeza ou de felicidade sejam deslocados pelos acontecimentos da vida. A razão pela qual a prece se vê deslocada não reside no fato de que ela deveria ser um exercício, mas está em que ela não se encontra suficientemente fundamentada numa relação com Deus, e que em muito pouco tempo perdemos este contato: podemos nos colocar numa distância quase infinita sem perceber. E é nisto que reside o problema, não no exercício da prece.

O reencontro com Deus

Um segundo ponto: na origem, em lugar da prece, do conhecimento de Deus e do conjunto de coisas que constituem nossa vida espiritual, existe um primeiro encontro, uma primeira experiência. Fora de uma experiência vivida, de um encontro real, não podemos sentir o desejo da prece, sequer podemos nos voltar para Deus como para alguém nos dirigimos e sem o qual não podemos viver, porque não podemos nos voltar para uma noção, para uma pessoa de quem nada sabemos senão pelo relato de outros. Por conseguinte, deve haver, na base, uma experiência vivida. Se ela não acontecer, a prece deve ser utilizada ou buscada de um modo diferente, pois não podemos falar de uma prece constante ou permanente endereçada a um ausente do qual não sabemos nada, e que de modo algum nos toca o coração.

Em seguida, depois desse primeiro encontro, existe um retorno, podemos dizer, uma “recaída” ao nível da fé. São Macário do Egito tem uma passagem notável em que nos diz que quando um homem encontra a Deus face a face num instante de êxtase ou de aprofundamento, ele é inteiramente absorvido por este encontro, e este encontro lhe bastará completamente: ele não precisará de outra coisa senão desta presença divina. Mas Deus, diz São Macário, cuida não apenas do santo que o tenha encontrado, mas dos pecadores que precisam de um testemunho. E ele se retira dele, como o mar se retira da praia deixando-a seca. Nesse instante, ele se vê exatamente na situação descrita na epístola aos Hebreus como a definição da fé: a certeza de algo infinito[1]. É uma certeza, porque no momento anterior ele viveu esse encontro e ele sabe ter encontrado aquele que é o Deus vivo. Mas, por outro lado, este Deus vivo se retira e se torna invisível, não mais a Presença soberana.

Assim é que existe um duplo elemento: de um lado, uma certeza, de outro a perda de vista. Daí provém esse grito da alma, o grito de uma alma que se sente despossuída da única coisa que preenchia sua insondável profundeza, um grito fundamentado numa certeza de que será ouvido e que exprime a angústia complexa do órfão abandonado, uma angústia profunda de si. Nos momentos em que encontramos a Deus, seja no maravilhamento, seja na angústia que se segue ao encontro e que é por ele determinada, a prece é fácil...

É nos intervalos, quando a intensidade da emoção ou da realidade vivida se esvai, que a prece se torna ascese, um esforço consciente, um exercício sistemático. Mas a que se destina ele? Pois bem, esse esforço sistemático se destina a uma educação, uma educação para a descoberta de Deus de uma parte, e para a sua percepção, de outra. Procura e descoberta de Deus, da fé, da prece. Podemos utilizar a prece para essa busca, pois cada ciência, cada passo da humanidade tem seus métodos e a prece é um dos métodos que nos permite buscar e encontrar a Deus.

Diferentes aspectos da prece se apresentam então. Um dos fundadores do Movimento dos Estudantes Cristãos na Rússia, em 1905, era ateu. Entretanto, ele sentia em si este “vazio da forma divina” de que falava o arcebispo de Canterbury. E ele sentia que nada poderia preenchê-lo, salvo a presença de Deus. Ele se retirou para a Finlândia por todo um ano e nos contou que percorria as florestas, gritando: “Senhor, se você existe, revele-se!”. E num dado instante, subitamente, ele teve a sensação da presença de Deus. Esta é uma das maneiras como a prece pode ser uma busca e uma descoberta de Deus. Mas na maior parte do tempo, creio eu, vamos tateando, num passo tímido de nosso coração, de nosso intelecto e de todo nosso ser, às cegas, o que faz que busquemos como quem procura na escuridão, com as mãos estendidas, na esperança de que essas mãos encontrem aquilo que elas tanto desejam encontrar. Este tatear, esta busca, esta caminhada cega, aonde nos conduzirão elas?

Em primeiro lugar, para nossas próprias profundezas. Quero aqui insistir num fato: não se trata aqui de profundidades psicológicas, mas daquelas que ultrapassam toda profundeza humana e que nos permitem encontrar, no mais fundo de nós mesmos, uma porta aberta para o próprio Deus.

A prece espontânea e a prece formal

Outro elemento: a educação da percepção, a revitalização da chama que por um instante se acendeu no momento de nosso encontro com Deus. E para começar, a prece espontânea que deve brotar no instante mesmo em que esta chama se acende e que deve nos alimentar hora após hora, dia após dia, enquanto puder manter viva e espontânea essa experiência natural espontânea da resposta da alma ante a presença e o encontro com Deus. Prece espontânea, enraizada no maravilhamento com que somos tomados no instante do encontro, ou ao contrário no sentido trágico que nos resta no momento em que já não existe o encontro, mas a certeza, a lembrança indubitável de que este encontro existiu, mas cessou. Enquanto durar essa prece espontânea, enquanto existir suficiente maravilhamento em nosso coração ou suficiente angústia em nossa alma, essa prece espontânea continuará viva e vigorosa; mas num dado instante, rápido ou não, chegamos a um período no qual perdemos essa intensidade interior. Então a prece espontânea deve se transformar naquilo que eu chamarei, na falta de uma expressão melhor, numa prece de convicção. Esta prece consiste na certeza intelectual que nos resta quando o fogo que nos abrasava originalmente parece se extinguir em nós.

Frequentemente, sabemos ter a fé, sabemos que em alguma parte de nós tivemos uma experiência, mas ela parece haver descido tão profundamente em nós que já não somos capazes de alcançá-la. Então, é preciso orar, com uma prece da vontade, uma prece de convicção. É preciso também avivar aquela chama por meio da meditação, e por uma dupla meditação: de um lado, uma lembrança sóbria e precisa daquilo que aconteceu – porque esquecemos com demasiada facilidade mesmo os mais preciosos bens que foram depositados em algum lugar de nossa alma – daquilo que foi e que no entanto deixou de ser uma experiência vivida; e de outro lado, a meditação das próprias preces que utilizamos. Muitas vezes, de fato, essas preces já não surtem efeito sobre nós, já não causam impacto em nossa alma, porque as palavras que empregamos são pobres, não por natureza, mas em relação a nós. São palavras sobre as quais jamais refletimos, cuja substância jamais expressamos por nós mesmos, cujo sentido espiritual se reduziu ao uso que fazíamos dela a cada dia pelas ruas, enquanto que na verdade elas possuíam uma riqueza, uma textura profunda, que deixamos escapar por não termos prestado atenção nelas. Isto também acontece porque as palavras que utilizamos, que eventualmente poderiam possuir ressonâncias emocionais extremamente ricas que nos teriam permitido enfeixar todo um mundo de experiências vividas, não o fazem porque nunca notamos essa riqueza de cristalização contida nelas. Assim, existe aí uma necessidade viva.

Prece e vida

Enfim, como último elemento importante, a prece que dirigimos a Deus estará morta de não for provada e sustentada por uma experiência de vida. Se, ao final de nossa jornada, fizermos a Deus discursos sentimentais que contradizem nossas ações, pouco a pouco, quanto mais rezarmos, mais essas palavras se tornarão mortas, porque somente a sua aplicação e sua integração à vida podem lhes dar substância e intensidade.

Orar enquanto viver

Um outro problema prático se coloca agora: quanto tempo dedicar à prece? Responderei brevemente. Se é verdade que a prece é uma das mais elevadas formas de nossa consciência de Deus, de nossa vida em Deus, se ela é a fome, a sede, o ardor, o amor, é preciso orar tanto quanto se vive, tanto quanto se ama, tanto quanto se tem um cuidado ativo com o destino, de si, dos outros, do mundo e de Deus.

Para poder fazê-lo, duas coisas são importantes. Primeiro, é preciso saber encontrar tempo para orar e, para isto, é preciso resgatar o tempo. Resgatar o tempo consiste em fazer uso do tempo perdido. Existe tanto tempo inútil ao longo do dia que, se dermos a Deus apenas o tempo que jogamos ao vento, teremos mais ocasiões de orar do que seremos capazes de preencher, dado o estado espiritual em que nos encontramos. É preciso também resgatar o tempo vivido, ou seja, integrar a vida e a prece de tal modo que as duas, vida e prece, se tornem dois fios perpendiculares de uma mesma trama, enriquecendo-se mutuamente. De outro lado, devemos aprender algo que constitui uma ciência rara, ao que me parece, em função das reações que tenho encontrado: é a ciência de dominar o tempo. O tempo parece fugir: é preciso aprender a impedi-lo de fugir, segurá-lo nas mãos, possuí-lo e fazer com que esse tempo contenha a eternidade.

Prece e ação

Uma última palavra: eu assinalei no início destas considerações a frase de Efraim o Sírio que estabelece o tema da prece e da ação. Ela levanta alguns problemas. A trama da vida é feita de contemplação e de ação, de prece e de ação: estas são o direito e o inverso de uma mesma realidade interior. Elas estão ligadas pela caridade e unidas na caridade. Se nossa prece não for fundamentada na caridade, também nossa ação será vazia de caridade. Se uma e outra são a expressão de um estado único, que é nossa caridade e nossa capacidade de amar a Deus e ao nosso próximo, então as duas coincidem necessariamente, porque a vida é feita de angústia, do sentido trágico e do maravilhamento da Presença de Deus.

Mas agora se coloca a questão da primazia da ação. Uma profunda intencionalidade é bastante a si mesma? Ela pode bastar ou não. Mas, qualquer que seja a resposta que dermos – e logo mais diremos alguma coisa a respeito – qualquer que seja a realidade da coisa, não deixa de ser verdadeiro que todos temos uma necessidade de retorno à fonte. Não podemos simplesmente, por termos feito um ato de fé ou uma experiência de Deus uma vez na vida, viver o resto de nossos dias numa ação separada de Deus, sem retornar a ele incessantemente e sem renovar nossa consciência, nossa sede, nossa fé e nosso amor a Deus. Para que possamos falar de prece, é necessário que ela constitua uma consciência ativa, sem a qual podemos cair numa dimensão social sem Deus em nome do próprio Deus, em ações que são neutras em si, porque dividir o pão é um ato em si neutro, que não implica uma caridade sobrenatural nem uma relação com Deus, e todas as obras sociais que podemos realizar se encontram no mesmo plano: elas contêm a Deus, não pelo fato de que sejam realizadas, mas pelo fato de que nós estamos em Deus, ou fora de Deus: que Deus obtenha de nós uma espécie de cidadania em nossa ação, ou que ele seja simplesmente supérfluo, sempre terá partido dele o impulso que a originou.

Obstáculos à prece

Para terminar, gostaria de citar algumas coisas que, acredito, impedem de rezar. Não se trata do trabalho, nem do tumulto, nem da tentação: trata-se da superficialidade de nossas vidas. Só é possível orar com profundidade, quando estamos abertos a este elemento de profundidade. Se nossa vida transcorre à flor da pele, à flor da terra, não será possível que nela caiba a oração. Não existe prece na facilidade: quando a vida está muito fácil e não apresenta nenhum problema, não há nada a que nos possamos agarrar. A prece tenta se prender às asperezas da vida, mas elas não existem; não há sobre quê formular uma prece de petição; não há ninguém para interceder; não há sequer o que agradecer a Deus, e não resta nenhum ponto de contato com ele.

Existe ainda o fato de que atualmente a maioria das pessoas, incluindo-se aí os cristãos, vive num mundo que se parece a um mundo de coisas. Mesmo nosso próximo pode ser uma coisa, até que encontremos nele a profundidade de um destino e o significado real de sua presença. Se vivemos num mundo de coisas, iremos buscar a Deus nas coisas... e não o encontraremos lá. Deus não está situado no meio dos objetos que nos cercam; tampouco está situado em nosso próximo do modo como seu pensamento e suas ideias coincidem com sua presença no espaço: ele está situado numa profundidade que é metafísica e espiritual. É isto que eu chamo de ausência de uma dimensão trágica, do sentido do destino.

Enfim, existem duas qualidades que são absolutamente necessárias, e sem as quais, creio, nenhuma relação com Deus é possível, e que em muitos casos são destruídas pelo empalidecimento e a secularização de duas noções: a do amor e a da beleza. Estas duas noções foram profanadas, arrancadas do mundo divino, quando deveriam permanecer nos umbrais deste mundo e de sua descoberta. Creio que uma pessoa que não aprendeu a reconhecer a beleza nem a saber o que é o amor – não a caridade desencarnada que atribuímos aos santos, sem saber o que ele são em realidade – mas o amor vivo, o amor cheio de ternura e de realidade humana, quem não aprendeu essas coisas não tem esperanças de alcançar o amor sobrenatural. Devemos primeiro ser homens, para só então crescermos até a medida do divino.

Uma questão se coloca concretamente: como cada um de nós poderá retornar à fonte? O que fazer? Quando temos um aparelho aquecedor por acumulação, sabemos exatamente como ele funciona: ele armazena eletricidade durante o dia para que forneça calor à noite. E nós, como o faremos?



PRECE E VIDA


É uma alegria poder testemunhar aquilo que me toca, aquilo que vai direto ao meu coração, aquilo que, de modo às vezes fulgurante, por um instante e para sempre, nos impressiona no contexto e das situações vividas. Este testemunho daquilo que nossos olhos viram, do que nossas mãos tocaram, do que nossos ouvidos escutaram, o testemunho destas coisas que iluminaram nosso entendimento, aprofundou nosso coração, deu uma direção à nossa vontade e chegaram até o nosso corpo, tornando-o mais obediente à graça.

É da prece e da ação que pretendo falar, mas é sobretudo a respeito da prece que desejo conversar; ou melhor, é dessa situação complexa que é a um tempo prece e ação, que se manifesta constantemente numa reflexão eficaz, numa vida sustentada por um pensamento tão profundo quanto possível e numa compreensão tão lúcida quanto possível das situações nas quais vivemos.

A ligação entre a prece e a vida

Em primeiro lugar, quero dizer algumas palavras sobre a relação que existe, não em termos gerais, mas de modo preciso, entre a vida e a prece, de um ponto de vista que não foi abordado até o presente. Frequentemente, a vida que levamos se coloca em testemunho contrário à prece que fazemos, e é somente se conseguirmos harmonizar os termos de nossa prece com nosso modo de vida que nossa prece adquirirá a força, o brilho e a eficácia que esperamos dela.

É muito comum nos dirigirmos ao Senhor esperando que ele faça aquilo que deveríamos nós fazer em seu nome e a seu serviço. Muitas vezes nossas preces são discursos polidos, bem preparados, empregados por séculos, que oferecemos dia após dia ao Senhor, como se bastasse repetir, ano após ano, com um coração frio, uma inteligência preguiçosa, sem que nossa vontade esteja comprometida, as palavras de fogo que nasceram nos desertos e nas solidões, em meio aos maiores sofrimentos humanos, nas situações mais intensas que a humanidade jamais conheceu.

Repetimos as preces que trazem os nomes dos grandes heróis da espiritualidade, e acreditamos que Deus as escura, que ele leva em conta seu valor, enquanto que a única coisa que importa ao Senhor é o coração daquele que fala, é a vontade dirigida ao cumprimento de Sua vontade.

Dizemos: “Não nos deixes cair em tentação”, e em seguida, num passo rápido, ávidos, cheios de esperança, corremos para onde nos chama a tentação. Ou clamamos: “Senhor, meu coração está pronto!”. Sim, mas para quê? Se o Senhor nos perguntasse isso ao anoitecer, quando, antes de nos deitarmos, pronunciamos estas palavras, não deveríamos talvez lhe responder: “...para terminar o capítulo recém começado deste romance policial...”? Pois naquele momento esta é a única coisa para a qual nosso coração está pronto. E existem tantas ocasiões em que nossas preces são letras mortas, e, mais do que isso, são palavras que matam, porque cada vez que permitimos que nossa prece seja morta, cada vez que impedimos que ela nos torne vivos, cada vez que recusamos que ela nos mostre a intensidade intrínseca que ela possui, nos tornamos menos e menos sensíveis á sua “mordida”, ao seu impacto, e vamos nos tornando progressivamente mais incapazes de viver a prece que pronunciamos.

Existe assim um problema que deve ser resolvido na vida de cada um: devemos fazer de cada termo de nossa prece uma regra de vida. Se dissermos ao Senhor que lhe pedimos socorro para escaparmos das tentações, devemos, com toda a energia de nossa alma, com toda a força que nos foi dada, evitar toda ocasião de tentação. Se dissermos ao Senhor que nosso coração se parte diante do pensamento da fome, da sede ou da solidão de tal ou tal pessoa, devemos escutar a voz do Senhor que nos responde: “A quem poderei enviar?”, e nos levantar diante dele, dizendo: “Eis-me aqui, Senhor!”, colocando-nos em movimento imediatamente. É preciso jamais dar tempo para nos permitirmos um pensamento supérfluo se encaixar entre a nossa boa intenção, entre a injunção de Deus e o ato que propusemos, porque o pensamento que se coloca neste interim, qual uma serpente, nos dirá de imediato: “Mais tarde”, ou “Será mesmo necessário?”, ou “Deus não terá alguém com mais tempo livre para realizar sua vontade?”. E, enquanto tergiversamos, a energia que nos havia sido comunicada pela prece e a resposta divina diminuirão e acabarão por morrer em nós.

Existe assim algo de essencial, uma ligação que devemos estabelecer entre a vida e a prece por um ato de vontade, um ato que nós mesmos nos propomos, que não se coloca sozinho, mas que pode transformar nossa vida de uma maneira profunda. Leiam as preces que lhes são dadas nos ofícios da manhã e da tarde. Escolham uma prece qualquer e façam dela um programa de vida, e vocês verão que esta prece jamais se tornará fatigante, que ela não se esgotará jamais, porque a cada dia ela estará sendo afiada, limada pela própria vida. Quando você pedir a Deus que o proteja ao longo de todo o dia contra tal ou tal necessidade, tal tentação, tal problema, tendo você cumprido seu dever de lutar na medida de suas possibilidades humanas, de sua fraqueza humana, com todo o seu ser cheio como uma vela do sopro e do poder divino, ao anoitecer, apresentando-se diante de Deus, você terá muita coisa a lhe dizer. Você agradecerá a ajuda recebida ou se arrependerá do modo como a utilizou, você poderá cantar de alegria porque ele lhe permitiu fazer, com sua mãos fracas e trêmulas, sua pobres mãos humanas, Sua vontade, você agradecerá por ter sido Seu olho que viu, Seu ouvido que escutou, Seu passo, Sua caridade, Sua compaixão encarnada, viva e criadora. E isto ninguém pode fazer por nós senão nós mesmos, e, sem o fazer, a prece e a vida se dissociam. Por um tempo a vida seguirá seu cainho e a prece continuará seu ronronar cada vez menos claro, cada vez menos inquietante para nossa consciência, e sua insistência se enfraquecerá. E como a vida tem tantas exigências, enquanto que a prece vem de Deus, de um Deus tímido, um Deus amoroso, que nos chama, mas que jamais de impõe por uma violência brutal, é a p0rece quem morre. Então dizemos, para nos consolarmos, que agora encarnamos nossa prece na ação, e que é a obra de nossas mãos que representa nossa adoração.

Não é essa a atitude que temos em relação aos nossos amigos, nossos parentes, em relação às pessoas que amamos. É certo que às vezes, talvez sempre, fazemos tudo o que devemos fazer por eles; mas não implica isso que jamais os esqueçamos de coração, que jamais nosso pensamento se desvie deles? Com certeza não! Será que só Deus tem o privilégio de ser servido sem que jamais olhemos para ele, sem que jamais nosso coração se aqueça e se sinta amoroso ao ouvir seu Nome? Somente Deus pode ser servido com indiferença? Existe aí alguma coisa a aprender, e também alguma coisa a fazer.

A integração da prece com a vida

Existe ainda outro aspecto dessa prece ligada à vida: é a integração da prece com a própria vida. A cada instante existem situações que nos ultrapassam. Se aplicássemos a prece a estas situações, teríamos a cada dia e a cada hora mais ocasiões do que suspeitamos para que a nossa prece se torne contínua. Será que nos lembramos suficientemente de que nossa vocação humana ultrapassa todas as possibilidades humanas? Não somos nós chamados a ser os membros vivos do Corpo de Cristo, a sermos de certo modo todos juntos, mas também cada qual pessoalmente, uma extensão da presença encarnada de Cristo no tempo em que vivemos? Não somos nós chamados a sermos os templos do Espírito Santo? Não está nossa vocação no Filho único, em sermos o Cristo total, mas também filhos de Deus? Não somos nós chamados a nos tornarmos partícipes da natureza divina?

Essa é a nossa vocação humana, expressa do modo mais central, e além disso nossa vocação se estende tão longe quanto a vontade e a ação de Deus. Somos chamados a estar na presença do Deus vivo no mundo inteiro que ele criou. Podemos nós fazer qualquer coisa neste sentido sem que Deus a faça em nós e por nós? Com certeza não. Como poderíamos nos tornar membros vivos do Corpo de Cristo? Como poderíamos, sem ser destruídos pelo fogo divino, receber o Espírito Santo como um templo no qual ele possa habitar? Como poderíamos nos tornar verdadeiramente partícipes dessa natureza divina? E como poderíamos nós, pecadores que somos, fazer a obra da caridade, a obra do amor divino para a qual somos chamados? Aí não existe somente uma razão permanente de prece, não existe apenas uma progressão ou uma exigência de acentuar cada prece, mas é preciso sermos enxertados à vinha vivificante. Senão, que vida possuímos, que frutos podemos dar, que poderemos fazer?

Uma coisa nos toca em primeiro lugar: se quisermos que nossa prece e nossa vida não se dissociem, que nossa prece não se dissolva pouco a pouco, destruída pelas exigências de uma vida dura, cruel, por causa dos esforços do Príncipe deste mundo, é preciso integrarmos nossa prece a tudo o que faz nossa vida, que a atiremos como uma medida de fermento nesta massa que é no9ssa vida em sua totalidade. Se pela manhã nos levantamos e nos apresentamos ao Senhor, dizendo: “Senhor, abençoe-me e abençoe este dia que está começando”, e se nos damos conta de que estamos entrando num novo dia da criação, um dia que jamais existiu antes de nós, um dia que se levanta como uma possibilidade inexplorada e infinitamente profunda! Se nos damos conta com as bênçãos de Deus de que entramos neste dia para trabalharmos como cristãos com a força e a glória implicadas na palavra “cristão”, com que respeito, com que seriedade, com que alegria contida e com que esperança e ternura não nos sentiremos durante o desenvolvimento progressivo deste dia? A cada hora o receberemos como um dom de Deus: toda circunstância que se apresentar a nós, nós a receberemos como vinda da mão do Senhor; nenhum encontro será fortuito, cada pessoa que cruzar nosso caminho, cada interpelação que nos for feita será um chamado a ser respondido, não do modo como antes o fazíamos, sobre um plano puramente humano, mas com toda a profundidade de nossa fé, com toda a profundidade desse coração profundo de homem, no fundo do qual se encontra o reino de Deus e o próprio Deus.

E ao longo desta jornada caminharemos com o sentido do sagrado, com a sensação de fazer o caminho com o Senhor, e a cada instante nos encontraremos cara a cara com novas situações. Quando demandarem sabedoria, pediremos por ela; se demandarem força, pediremos ao Senhor que no-la dê; e existem as que demandam o perdão de Deus por termos nós agido mal; e as que exigem de nós um impulso de reconhecimento, porque, malgrado nossa indignidade, nossa cegueira, nossa frieza, nos foi concedido fazer de alguma maneira coisas que não poderíamos fazer com nossas próprias forças. Poderíamos multiplicar os exemplos, mas o sentido do problema é claro. E assim nos damos conta de que a vida jamais nos impedirá de rezar, jamais, porque a própria vida é a substância viva na qual mergulhamos esta medida vivificante de fermento que é nossa prece, que é nossa presença, na medida em que nós mesmos estamos em Deus e Deus está em nós, ou, ao menos, na medida em que nos voltamos para ele enquanto ele se inclina para nós.

Tantas vezes poderíamos tê-lo feito, mas duas coisas nos retêm: a primeira é que não estamos habituados ao esforço da prece. Se não fazemos este esforço de modo contínuo, se não nos preparamos pouco a pouco para fazer esforços mais e mais estáveis, mais e mais constantes, mais e mais prolongados, ao cabo de alguns dias nossa energia espiritual, nossa energia mental, nossa capacidade de atenção, nossa capacidade de respondermos com o coração aos eventos que surgem e às pessoas que se apresentam, tudo isso morre em nós. É preciso saber fazer uso, nesse aprendizado da prece constante e sustentada pela vida, da sobriedade que os Padres recomendam: caminhar passo a passo, lembrar-se que existe uma ascese no repouso tanto quanto uma ascese no esforço, que existe uma sabedoria que se aplica ao corpo, ao intelecto e à vontade, e que não podemos manter uma tensão incessante com todas as forças voltadas para um objetivo.

Talvez vocês se lembrem desta passagem da vida de São João Evangelista. Conta-se que um caçador, tendo ouvido dizer que o discípulo bem-amado de Cristo habitava numa das montanhas próximas a Éfeso, se pôs a caminho para encontrá-lo. Ele chegou a uma clareira e viu um ancião de quatro sobre a grama verde, brincando com uma galinha. Ele se aproximou e lhe perguntou se já ouvira falar de João, e se sabia como encontrá-lo. João lhe respondeu: “Sou eu”. O caçador riu na sua cara: “João, você? Como é possível? Ele, que escreveu essas epístolas maravilhosas, apresentando-se sob o aspecto de um velho que brinca com uma galinha?”. E o ancião lhe respondeu: “Vejo pelo seu uniforme que você é caçador. Quando você está na floresta, você permanece todo o tempo com o arco retesado e a flecha pronta para disparar caso veja surgir algum animal?”. O caçador riu novamente e disse: “Eu bem vi que você é louco. Quem caminharia assim pela floresta? Se eu retesasse o arco sem cessar, no instante em que precisasse dele, a corda iria se partir”. “O mesmo acontece comigo, lhe respondeu João, pois se eu tensionar sem descanso todas as forças de minha alma e de meu corpo, no instante em que Deus se aproximar, eles se quebrariam num esforço que seriam incapazes de sustentar”.

É preciso saber, com sobriedade, com sabedoria, tomar um necessário repouso com vistas a agir com toda intensidade, com toda a força que não é apenas nossa , mas que nos é dada pela graça divina. Pois a graça nos é dada na fragilidade de nossos corpos, na fragilidade de nossas inteligências, de nossas vontades, de nossos corações.

O obstáculo: a falta de fé

Existem algumas dificuldades que se apresentam: uma delas é a falta de fé. Qualquer que seja a vestimenta que usamos, a profissão que exercemos, sempre existirá em nós um instante de hesitação, uma falta de fé profunda. Muitas vezes nos dizemos: “A prece de intercessão, a prece de pedido é uma forma inferior de prece. A prece do monge, a prece do cristão que atingiu uma certa maturidade, é a ação de graças e o louvor”. Está certo, no final de contas é lá que chegaremos. Ao final de uma longa vida de ascese espiritual e corporal, quando estivermos completamente desligados de tudo, quando estivermos prontos para tudo receber da mão de Deus como um dom precioso, não nos restará senão agradecer e louvar. Mas estamos nós lá? Não é mais fácil agradecer ao Senhor pelo que ele nos faz e louvá-lo pelo que ele é, em particular nos momentos em que nosso coração se abrasa sob o toque da graça? Não é mais fácil agradecê-lo e louvá-lo do q eu lhe pedir com fé a realização de tal ou tal demanda?

É frequente que pessoas que estão em perfeito estado de louvar a agradecer ao Senhor não sejam capazes de fazer um ato de fé completo, com um coração indiviso, com uma inteligência que não vacila, com uma vontade inteiramente voltada para ele, porque se apresenta uma dúvida: “E se por acaso ele não responder?”. Não é mais simples dizer: “Faça-se a sua vontade”? Ora, tudo será para melhor, porque a vontade de Deus será feita de qualquer maneira, e é melhor estar no interior desta vontade divina. Mas muitas vezes, tantas vezes, a exigência é diferente. Ela o é justamente em relação à vida ativa entendida do modo como usamos esta palavra no Ocidente, ou seja, em relação a uma vida voltada para situações que nos são exteriores.  Basta que uma doença atinja alguém que nos é caro, que a fome atinja o país. Desejaríamos pedir o socorro de Deus, mas com frequência o fazemos com tal negligência que, seja o que for que aconteça, nossa prece pode se adequar à situação dada. Encontrando os termos, encontramos os polos: a vontade de Deus será feita ao final de contas, e nós estaremos satisfeitos: mas fizemos nós um ato de fé? Existe aí um problema para todos os que estão engajados na vida ativa e que acreditam na ação eficaz da prece e da passividade eficaz.

Se quisermos agir junto com Deus, não basta deixar o campo livre e dizer: “Senhor, de qualquer modo você fará o que quer; faça-o então, sem que eu o atrapalhe”. É preciso aprender a discernir a vontade de Deus, é preciso penetrar no desígnio de Deus, mas também é preciso saber que às vezes os desígnios de Deus se ocultam.

Lembrem-se da mulher Cananeia[1]. A evidência, que saltava aos olhos e atingia o ouvido, consistia numa recusa, e, no entanto, a intensidade de sua fé e a sutileza de seu ouvido espiritual perceberam algo diferente e ela soube insistir contra a aparente vontade de Deus em favor da vontade real do Senhor. É preciso saber ver, é preciso saber se colocar à procura da pegada invisível do Senhor. O Senhor é como uma tecelã que tece uma tapeçaria; mas, como já foi dito, nós só conseguimos ver o reverso, pois o lado direito está voltado para Deus. E o problema da vida, desta visão que fará com que nossa prece será feita não em oposição, mas em conformidade com a vontade de Deus e em harmonia com ela, consiste em observar longamente o reverso as tapeçaria até conseguir perceber o lado direito, até observar como Deus constrói a história, como ele dirige a vida, como aprofunda uma situação, como cria um sistema de relações, e assim agir não contra ele, não independentemente, mas com ele, deixando-o agir, permitindo-lhe agir conosco e em nós. E neste caso haverá uma continuidade entre a atenção e a contemplação, a menos que aceitemos uma ação dessacralizada, uma ação da qual Deus está ausente, uma ação que seja puramente humana e sustentada por energias humanas, nossas próprias energias. Mas isto não será nem uma ação crista, nem uma prece cristã. No cerne da situação do homem ativo que deseja que sua ação se constitua na continuidade da obra de Deus, que deseja que a ação da Igreja e que sua própria ação, enquanto membro vivo deste Cristo total que é a Igreja, seja um ato de Cristo, ato do Deus vivo, palavra do Deus vivo, está o aprendizado de uma forma de contemplação, de uma maneira de ser contemplativo que nos revele qual é verdadeiramente a vontade de Deus. Fora disto, toda ação será um ato lançado ao acaso.

O papel da contemplação

Procura da visão das coisas tais como Deus as vê

Mas então, no que consiste essa contemplação? Ela é a função, a situação contínua, incessante, do cristão em qualquer posição em que se encontre, quer esteja numa ordem contemplativa ou em qualquer outra ordem, seja ele simplesmente um leigo duplamente engajado, engajado em relação a Deus e, por isso mesmo, engajado totalmente em relação ao resto do mundo criado, homens e coisas. Existe um primeiro fato: essa contemplação é um olhar colocado, um olhar atento, com uma inteligência lúcida, que se aplica às coisas, às pessoas e aos acontecimentos, às suas realidades estáticas e ao seu dinamismo. É um olhar que se prende inteiramente ao objeto sobre o qual se coloca, junto com um ouvido voltado inteiramente para o que escuta, para aquilo que lhe vem de fora.

Para que isso aconteça existe toda uma ascese indispensável, pois é preciso saber se desligar de si para ver e ouvir. Na medida em que estamos centrados em nós mesmos, não vemos mais do que um reflexo de nós próprios em tudo o que nos rodeia, ou um reflexo daquilo que nos rodeia nas águas confusas e agitadas de nossa consciência. É preciso saber se calar para ouvir, é preciso saber olhar longamente antes de acreditar que se viu. É preciso estar ao mesmo tempo livre de si e abandonado a Deus e ao objeto de suas contemplações. Somente assim poderemos ver as coisas em sua realidade objetiva, somente então poderemos nos colocar a questão essencial: o que Deus pretende com esta realidade que se apresenta a nós?

Pois este mundo no qual evoluímos sem cessar, nós o criamos pela imaginação, por preguiça intelectual, por egoísmo, porque não cremos no centro das coisas uma vez que nos tornamos totalmente periféricos. Neste mundo irreal Deus nada pode, simplesmente porque este mundo não existe. Não há um mundo de irrealidades onde Deus possa agir, mas no mundo da realidade ele é o mestre. E a realidade mais pesada, mais odiosa, mais infame, a mais distante e estranha ao Reino, pode se tornar o Reino, com a condição de que lhe outorguemos sua qualidade de realidade. Uma miragem não pode se transfigurar, mas um pecador pode se tornar santo.

Creio que é essencial buscarmos esse tipo de contemplação, que possui um significado universal, que não se liga a nenhum papel que tenhamos assumido na vida, e que se constitui  simplesmente numa busca atenta por meio da reflexão, da prece, do silêncio e do aprofundamento da visão das coisas tais como Deus as vê.

Diz-se que a prece começa no momento em que Deus fala. É este o objetivo para o qual devemos nos voltar. Esta contemplação não é exclusiva do cristão, ela é a contemplação universal. Não existe um único espírito humano que não esteja orientado deste modo para as realidades exteriores, a diferença entre nós e o ateu – aquele que não crê senão nas coisas que o cercam e que não vê nelas nenhuma profundidade de eternidade, de imensidão, de relação com Deus – a única diferença, é que o ateu observa os fenômenos, enquanto que nós estamos na escuta da palavra de Deus que nos fornecerá a chave. É pouco, mas é tudo. Porque, se desta maneira pudermos adquirir a inteligência de Cristo, se pudermos ser guiados como os apóstolos (de uma maneira que o tempo não esgotou), se pudermos ser guiados pelo Espírito Santo que nos ordena ir e agir, falar a calar, estaremos na condição de cristãos, nada além disso.

O problema do engajamento das ordens contemplativas

Evidentemente, existe na experiência cristã tal como ela é vivida, o aspecto contemplativo, no sentido técnico do termo (as ordens contemplativas). Existe um grande problema neste sentido. As ordens contemplativas são duramente atacadas, mas serão estes ataques tão injustos quanto elas imaginam? Falam-nos da credibilidade ou da falta de credibilidade da mensagem, tal como nos é trazida pela vida cristã, pelas estruturas e pela situação histórica da Igreja. Houve um tempo em que o sentido da contemplação, o sentido do sagrado, o sentido do Deus vivo – não apenas presente, mas transcendente – era verdadeiramente intenso e a sociedade cristã via alguns de seus membros viverem apenas da contemplação, da prece contemplativa, do silêncio, da presença divina, como uma parte da função total da Igreja.

Mas o mesmo não acontece atualmente. O povo cristão, no seu conjunto, já não se sente sempre solidário com essa busca de contemplação radical, e devemos encarar o problema não apenas educando o povo cristão, mas tomando consciência do problema que nós mesmos criamos, problema que foi agravado especialmente pelo fato de que as ordens contemplativas não podem existir a menos que existam pessoas ativas. De um modo ou de outro os contemplativos vivem da caridade daqueles que não contemplam. E quando a massa das pessoas que trabalham arduamente não reconhece nesse grupo particular uma expressão de sua própria vida, nem enxerga neles uma existência limitada e especializada, essa massa recusa a eles sua simpatia e seu sustento.

Creio que existe aí alguma coisa muito importante, porque o mundo em que estamos parece aceitar com facilidade, por exemplo, a vida contemplativa dos ascetas da Índia. Nosso mundo aceita facilmente a vida socialmente inútil de um artista, aceita de bom grado pessoas que se dissociam e se afastam do grupo essencial, mas com uma condição: que essas pessoas paguem o preço por sua dissociação. O que convence, por exemplo, quando se trata de um asceta da Índia, é que ele vive uma vida tão dura quanto as circunstâncias que o criaram. E o que muitas vezes não convence em nossas ordens contemplativas, é que nós queremos contemplar, mas também queremos ser alimentados e aquecidos, queremos um teto e um jardim, e toda essa espécie de coisas. E essas coisas deveriam nos ser fornecidas por pessoas que estão privadas deste conforto que é a contemplação. Existe aí um verdadeiro problema para a consciência, não dos que não são cristãos, mas dos cristãos. Pensemos nos votos muitas vezes ilusórios que pronunciamos: abandonamos família, pai, mãe, parentes, e recriamos outra família que é bem mais segura, em primeiro lugar porque ela não morre. Pais, mães, irmãos, mesmo filhos podem morrer antes de nós. Mas a ordem em que você está não morrerá antes de você, a menos que você verdadeiramente a destrua. Fazemos voto de pobreza; evidentemente não possuímos recursos pessoais, mas nunca nos falta o essencial: jamais teremos que encarar a insegurança social de um proletário. Pois não é a falta de dinheiro, a falta de vestimentas, que constitui o problema: é a insegurança radical em que se encontra aquele que não sabe o que lhe acontecerá amanhã. Eu poderia citar muitos aspectos dessa vida contemplativa que fazem com que mais pessoas do que imaginamos a procurem. Muitas compreendem a contemplação, muitas vivem da contemplação, oram de modo profundo, escutam a voz do Deus vivo, seguem os mandamentos, vivem não apenas de pão mas de cada palavra de Deus, mas não se pode entender porque esses grupos humanos, esses especialistas, não assumem a responsabilidade por seu engajamento: uns se engajam, e outros pagam para eles.

A verdadeira mensagem da contemplação sobre Deus e sobre os homens

Por fim, quero atrair sua atenção para outro aspecto desse momento contemplativo: quando falamos de contemplação, somos tentados a não pensar senão nos monges ou nos contemplativos que pertencem a religiões não cristãs. Não nos damos conta do grau de contemplação que existe no mundo entre pessoas que, simplesmente, face à situação atual em que se colocam problemas de base, não se contentam apenas em observar o modo como as coisas se desenrolam de modo a enfrentar esses problemas, mas se fazem perguntas.

Vejam os jovens e os adultos de hoje, mesmo aqueles que não estão integrados à Igreja; vejam com que atenção, com que profundidade, às vezes com quanta fulguração da inteligência, com que visão, eles tentam compreender. Eles se colocam a questão de Deus, do homem, do ser material que nos cerca. Algumas vezes eles se voltam para nós na esperança de obter uma resposta que não seja um “slogan”, uma resposta que traga a intensidade de uma vida ao problema diante do qual eles se encontram: eles sabem olhar, escutar, eles sabem desembaraçar situações nas quais somos os elementos constitutivos, mas o que eles não conseguem fazer é enfeixá-los como em um buquê; o que eles não têm condição de fazer é possuir a chave e a cifra, que lhes permitiria ler a “loucura” da economia da salvação, a vontade ativa, profunda, completa do Deus vivo, inteiramente engajada na história do mundo.

Isso até poderíamos fazer, mas é esta a contemplação à qual nos dedicamos? Deus se revela sem cessar no Antigo e no Novo Testamentos , mas também sem cessar novos aspectos dessa revelação podem nos atingir. Conseguiremos nós ver o suficiente? A experiência russa é instrutiva: tantos Russos, antes da Revolução, conheciam o Deus das catedrais e das estruturas da “Igreja estabelecida”! Quando eles se viram desprovidos de tudo e não lhes restou mais do que somente Deus num desnudamento absoluto – quantos não descobriram aquele a quem podemos chamar de o Deus das profundezas, este Deus que aceitou uma solidariedade completa, ilimitada, uma solidariedade total e para sempre, não somente com aqueles que estavam desprovidos de tudo, mas com os que, segundo a visão humana, haviam sido rejeitados do Reino de Deus.

Esse Deus vulnerável, sem defesa, aparentemente vencido e por isso detestável, esse Deus que não tem vergonha de nós porque se fez como um de nós, e de quem não precisamos ter vergonha porque ele é nosso semelhante por um ato de inacreditável solidariedade, teremos nós realmente o descoberto? É certo, falamos dele, pregamo-lo, e, no entanto, sem cessar, tentamos escapar deste Deus para reintegrá-lo na dimensão humana de uma fé estruturada e de uma igreja harmonizada com as noções de grandeza, brilho e beleza terrestres. É verdade que tudo isso tem seu lugar. Mas que pensa deixarmos escapar esse Deus que é compreensível aos milhões de pessoas para as quais nossas catedrais e nossas liturgias permanecem opacas. Quantas pessoas poderiam encontra a Deus se nós não o escondêssemos! E não apenas os desprovidos, os famintos e os humilhados desse mundo, mas também aqueles para os quais, segundo nos parece, Deus sequer se volta.

Não podemos perceber essa inacreditável solidariedade para com alguém que tenha perdido a Deus, com alguém que está desprovido de Deus, como quando Cristo disse na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”? Existirá algum ateu no mundo que jamais tenha podido avaliar a perda de Deus, a ausência de Deus que fere como feriu o Filho do Homem e o Filho de Deus sobre a cruz? Será que nos damos conta, quando dizemos no símbolo dos apóstolos: “Ele desceu aos infernos”, que os infernos não são o lugar de tormentos do folclore cristão, que o inferno do Antigo testamento é o lugar onde Deus não está, e que é para lá que Cristo foi encontrar seus irmãos num ato de solidariedade que deu continuidade à sua solidão sobre a cruz? Não refletimos então, que, se observarmos a Cristo e ao mundo que nos cerca, teremos uma imagem vibrante, uma mensagem brilhante aplicada a Deus e ao homem, e a todo o mundo criado na atual condição da ciência e da tecnologia em que nos encontramos?

Possuímos nós uma teologia da matéria capaz de se opor ao materialismo? Que direito temos nós de não termos uma teologia da matéria, quando dizemos, não apenas que o Filho de Deus se tornou o Filho do Homem, ou seja, que ele entrou no coração da história, mas também que o Verbo se fez carne, que o próprio Deus se uniu à materialidade desse mundo? Não temos na Encarnação essa primeira indicação, e na Transfiguração uma visão daquilo em que a matéria pode se transformar quando ele é penetrada pela presença divina? Não nos diz o Evangelho que o Corpo de Cristo, suas vestes e tudo o que o cercava se tornaram luminosos diante do brilho eterno? Não sabemos nós que na Ascensão o próprio Cristo, revestido de uma carne humana, vale dizer, levando consigo ao coração da divindade a matéria do mundo, transportou nosso mundo criado para as profundezas do divino?

Isso não passa de indicações, e não existe aí com que fazer-se uma teologia da matéria que possa colocar essas questões e tentar respondê-las, que possa interpor exigências sobre os planos da indústria e da tecnologia, e modificar nossa atitude mental e voluntária em relação àquilo que estamos fazendo neste mundo? Não somos chamados a ser simultaneamente mestres e servidores? Devemos dominar o mundo, sim, mas com vistas conduzi-lo a ser plenamente em Deus, e essa contemplação deve prosseguir sem cessar. Esse é o problema do homem, do técnico, o problema das pessoas que exigem respostas de nós e que só recebem de nós platitudes. E é justamente aí que poderíamos unir a ação a essa contemplação, a essa visão aprofundada, iluminada pela fé, cheia de sentido do sagrado. Poderíamos associar a ação e a contemplação em todos os domínios, não apenas na ação privada, pessoal, mas na grande ação que agora sacode a humanidade como um todo. O homem é o ponto de encontro entre o crente e o descente, porque, se Marx tinha razão ao dizer que o proletariado nada tinha para fazer com Deus, por ser o homem seu próprio Deus, também nós dizemos que o Homem é nosso Deus, o Homem Jesus Cristo, com todas as implicações de sua Encarnação e de sua divindade.



[1] Mateus 15: 21-28.



[1] Hebreus 11: 1.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Vladimir Lossky - Redenção e Deificação




1.      “Deus se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus”. Estas poderosas palavras, que encontramos pela primeira vez em Santo Irineu, foram retomadas pelos santos Atanásio, Gregório de Nazianze e Gregório de Nissa. Os Padres e os teólogos ortodoxos as repetiram de século em século, com a mesma insistência, querendo exprimir com essa frase lapidar a própria essência do cristianismo: uma descida inefável de Deus até os últimos limites de nossa decadência humana, até a morte – descida de Deus que abriu para os homens uma via de ascensão, que abriu os horizontes ilimitados da união dos seres criados com a Divindade. A via descendente (katabasis) da Pessoa divina de Cristo tornou possível às pessoas humanas uma via ascendente, nossa anabasis, no Espírito Santo. Foi preciso que tivesse lugar a humilhação voluntária, a kenosis redentora do Filho de Deus, para que os homens decaídos pudessem realizar sua vocação, a da deificação (theosis) do ser criado pela graça incriada. Assim a obra redentora de Cristo – ou antes, de um modo mais geral, a Encarnação do Verbo – parece estar aqui em relação direta com o objetivo último proposto às criaturas, a saber, a união com Deus. Se esta união se realiza na Pessoa Divina do Filho, Deus feito homem, é preciso que ela se realize em cada pessoa humana, é preciso que cada um de nós, por sua vez, se torne deus pela graça ou pela participação na natureza divina, segundo a expressão de São Pedro[1].

Uma vez que a Encarnação do Verbo está tão estreitamente ligada à nossa deificação final no pensamento dos Padres, poderíamos nos perguntar se ela teria existido caso Adão não tivesse pecado. Esta questão, que se faz às vezes, nos parece ociosa e irreal. Com efeito, nós não conhecemos outra condição humana senão aquela que se seguiu ao pecado original, condição na qual nossa deificação – o cumprimento do plano divino – se torna impossível sem a Encarnação do Filho que se reveste necessariamente de um caráter de redenção. O Filho de Deus desceu dos céus para realizar a obra da nossa salvação, para nos libertar do cativeiro do demônio, para destruir a dominação do pecado em nossa natureza, para arrasar a morte, tributo do pecado. A Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo, por meio das quais se realizou nossa obra redentora, ocupam assim um lugar central na economia divina em relação ao mundo decaído. Em virtude disso, é perfeitamente compreensível que o dogma da redenção receba uma importância capital no pensamento teológico da Igreja.

E no entanto, quando tentamos tratar à parte o dogma da redenção isolando-o do conjunto do ensinamento cristão, corremos o risco de limitar a tradição interpretando-o exclusivamente em função da obra do Redentor. O pensamento teológico evolui a partir daí em três termos: o pecado original, sua reparação pela cruz e a apropriação do efeito salutar da obra de Cristo para os cristãos. Dentro dessas perspectivas estreitas de uma teologia dominada pela ideia de redenção, a sentença patrística – “Deus se fez homem, para que o homem possa se tornar deus” – parece estranha e insólita. Esquece-se a união com Deus ao se preocupar unicamente com a própria salvação, ou antes, a união com Deus só é vista sob seu aspecto negativo, que levou à nossa miséria atual.

2.      Foi Santo Anselmo de Canterbury, no século XI, com seu tratado Cur Deus homo (“Porque Deus [se fez] homem”), quem primeiro tentou, sem dúvida, desenvolver à parte o dogma da redenção separando-o de todo o resto. Os horizontes cristãos se achavam limitados pelo drama que se desenrolava entre Deus, infinitamente ofendido pelo pecado, e o homem, incapaz de satisfazer às exigências da justiça vindicativa. Este drama se resolvia com a morte de Cristo, Filho de Deus tornado homem para nos substituir e pagar nossa dívida com a justiça divina. O que resultava da economia do Espírito Santo? Seu papel se reduzia ao de um auxiliar da redenção, permitindo-nos usufruir do mérito expiatório de Cristo. A perspectiva final de nossa união com Deus se achava excluída, ou ao menos oculta aos nossos olhos pelas abóbodas austeras de um pensamento teológico construído a partir das noções de nossa falta original e de sua reparação. Com o preço de nossa redenção pago com a morte de Cristo, a ressurreição e a ascensão não representavam mais do que um fim glorioso de sua obra, uma espécie de apoteose, sem nenhuma relação direta com nosso destino. Essa teologia redencionista, que coloca toda a ênfase sobre a Paixão, parece se desinteressar do triunfo de Cristo sobre a morte. a própria obra do Cristo Redentor, sobre a qual ela se pretende confirmada, aparece truncada, empobrecida, reduzida a uma mudança de atitude divina em relação aos homens decaídos, sem nenhuma relação com a própria natureza da humanidade.

Nós encontramos uma concepção completamente diferente da obra redentora de Cristo no pensamento de um Santo Atanásio, por exemplo. Cristo, diz ele, tendo libertado da morte o templo de seu corpo, ofereceu um sacrifício para todos os homens, a fim de torná-los inocentes e livres da falta original de um lado, e, de outro, a fim de se mostrar vitorioso sobre a morte e fazer da incorruptibilidade de seu próprio corpo as primícias da ressurreição geral. Aqui a imagem jurídica da Redenção é completada por uma outra – uma imagem física, ou melhor, biológica: a do triunfo da vida sobre a morte, da incorruptibilidade triunfante na natureza corrompida pelo pecado.

Em geral, seja entre os Padres, seja nas Escrituras, encontramos muitas imagens para exprimir o mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Assim, no Evangelho, o Bom Pastor é uma imagem “bucólica” da obra de Cristo; o homem forte, vencido por alguém mais forte que lhe rouba as armas e destrói seu domínio, é uma imagem guerreira que retorna com frequência entre os Padres e na liturgia, como o Cristo vitorioso sobre Satanás, destruindo as portas do inferno e fazendo da cruz sua bandeira. Uma imagem médica, a da natureza enferma curada pelo antídoto da salvação; uma imagem que podemos chamar de “diplomática”, a do truque divino que desarma a astúcia do demônio, etc. Enfim, a imagem empregada com mais frequência, trazida por São Paulo do Antigo Testamento, é emprestada ao domínio das relações jurídicas. Tomada em seu sentido particular, a redenção é uma imagem jurídica da obra de Cristo, ao lado de muitas outras imagens possíveis. Ao empregarmos o termo “redenção”, como o fazemos atualmente, no sentido genérico que designa a obra salutar de Cristo em toda a sua extensão, não devemos esquecer que esta expressão jurídica tem um caráter figurado: Cristo é o Redentor do mesmo modo como um guerreiro que vence a morte, um sacrificador perfeito.

O erro de Anselmo não constituiu apenas em desenvolver uma teoria jurídica da Redenção, mas ainda no fato de que ele pretendeu enxergar nas relações jurídicas implicadas no termo “redenção” uma expressão adequada do mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Rejeitando as demais expressões desse mistério como sendo imagens inadequadas – quasi quaedam picturae – ele acreditou ter encontrado na imagem jurídica, a da redenção, o próprio corpo da verdade, sua “solidez racional” – veritatis rationabilis soliditas – uma necessidade que provasse que Deus deveria morrer para nossa salvação.

A impossibilidade de expressar racionalmente a necessidade da obra redentora explorando o conteúdo jurídico do termo “redenção” foi demonstrada por São Gregório de Nazianze numa magistral redução ao absurdo: “É preciso que examinemos um problema e um dogma que muitas vezes foram deixados de lado, mas que para mim nem por isso deixam de exigir um estudo aprofundado. O sangue derramado por nós, sangue preciosíssimo e glorioso de Deus, este sangue do Sacrificador e do Sacrifício, por que foi ele derramando e a quem foi ele oferecido? Estávamos sob o domínio do demônio, vendidos ao pecado, depois de havermos adquirido a corrupção com nossa concupiscência. Se o preço de nosso resgate foi pago àquele que nos mantinha sob seu poder, eu me pergunto: a quem, e por que motivo foi oferecido tal preço? Se ele foi oferecido ao demônio, é ultrajante! O assaltante recebe o preço da redenção! E não apenas ele o recebe de Deus, como ele recebe o próprio Deus. Por sua violência, ele exigiu um preço tão desmesurado que teria sido mais justo comutar nossa pena. Mas se esse preço foi oferecido ao Pai, podemos nos perguntar acima de tudo, por que razão? Não foi o Pai que nos manteve cativos. Assim, por que seria o sangue do Filho Único agradável ao Pai, que não quis aceitar Isaac oferecido em holocausto por Abrahão, substituindo o sacrifício humano pelo de um carneiro? Não é evidente que o Pai aceitou o sacrifício, não por tê-lo exigido, nem por necessitar dele, mas apenas pela economia? Era preciso que o homem fosse santificado pela humanidade de Deus, era preciso que ele próprio nos liberasse triunfando sobre o tirano por sua própria força, que ele nos chamasse para ele por intermédio de seu Filho que é o Mediador, o qual a tudo realizou em honra do Pai, a quem ele obedeceu em tudo... Que o demais seja venerado pelo silêncio...[2]”.

O que ressalta de mais evidente no texto citado acima, é que para São Gregório de Nazianze a noção fundamental da redenção, longe de implicar a ideia de uma necessidade imposta pela justiça vindicativa, se apresenta como a expressão da economia cujo mistério não pode ser explicitado de modo adequado por uma série de conceitos racionais. “Foi preciso, diz ele pouco adiante, que Deus se encarnasse e morresse para que nós pudéssemos viver”; e: “Nada pode igualar o milagre de minha salvação: algumas gotas de sangue reconstituíram a totalidade do universo”.

Depois dos horizontes estreitos de uma teologia exclusivamente jurídica, nós encontramos entre os Padres uma noção extremamente rica da redenção que inclui a vitória sobre a morte, as primícias da ressurreição geral, a libertação da natureza cativa do demônio, e não apenas a justificação, mas também a restauração da criação em Cristo. Aqui a Paixão não pode ser separada da Ressurreição – o corpo glorioso de Cristo sentado à direita do Pai – e ambas da vida dos cristãos aqui na terra. E no entanto, se a redenção aparece como o momento central da Encarnação, ou seja, da economia do Filho em relação ao mundo decaído, ela nem por isso deixa de ser um momento de uma economia mais ampla da Santíssima Trindade em relação ao mundo criado ex nihilo e chamado a realizar livremente a deificação, a união com Deus, “a fim de que Deus se torne tudo em todas as coisas[3]”. O pensamento dos Padres jamais fecha essa perspectiva final. Tendo a redenção como objetivo imediato nossa salvação, esta se apresentará, em sua realização última, no século futuro, como nossa união com Deus, como a deificação dos seres criados resgatados por Cristo. Mas essa realização última supõe a economia de outra Pessoa divina, enviada ao mundo depois do Filho.

A obra do Espírito Santo é inseparável da do Filho. Para podermos dizer com os Padres que “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar deus”, não basta suprir as falhas e insuficiências da teoria de Anselmo remetendo a uma noção mais rica da redenção, própria dos Padres. É preciso acima de tudo reencontrar o verdadeiro lugar da economia do Espírito Santo, distinta mas não separada da do Verbo encarnado. Se o pensamento de Anselmo pode se deter sobre a obra redentora de Cristo, isolando-a do resto do ensinamento cristão e estreitando os horizontes da tradição, é justamente porque nessa época o Ocidente já havia perdido a verdadeira noção da Pessoa do Espírito Santo, relegando-o ao segundo plano e fazendo dele uma espécie de auxiliar ou vigário do Filho. Deixaremos de lado essa questão, porque já analisamos o dogma da “processão ab utroque” e suas consequências para toda a teologia ocidental. Vamos nos limitar a uma tarefa positiva, a de mostrar porque a noção de nossa deificação final não pode ser expressa unicamente a partir de uma base cristológica, e porque ela necessita de um desenvolvimento pneumatológico.

3.      No Ocidente, o pensamento teológico de nossos dias faz um grande esforço de retorno às nossas fontes patrísticas dos primeiros séculos – em especial aos Padres gregos – que se tenta reintegrar numa síntese católica. Não apenas a teologia pós tridentina, mas também a escolástica medieval, malgrado sua riqueza filosófica, aparecem sempre hoje em dia como teologicamente insuficientes. Há um esforço para retomar o valor da noção da Igreja como corpo de Cristo, como criatura nova recapitulada por Cristo, como uma natureza ou um corpo tendo Cristo crucificado como Chefe.

Como o primeiro Adão falhou em sua vocação – a de alcançar livremente a união com Deus – foi o segundo Adão, o Verbo divino, que realizou essa união das duas naturezas em sua Pessoa ao se encarnar. Integrando-se à realidade do mundo decaído, ele esgotou o poder do pecado em nossa natureza e, com sua morte, que marcou o grau extremo dessa integração à nossa decadência, ele triunfou sobre a morte e a corrupção. No batismo, nós morremos com Cristo, simbolicamente, para ressuscitar realmente nele na vida nova de seu corpo vitorioso, para nos tornarmos membros deste corpo único, que existiu concreta e historicamente sobre a terra, mas que tem sua Cabeça nos céus, na eternidade, no seio da Santíssima Trindade. Sacrificador e Sacrifício ao mesmo tempo, Cristo oferece sobre o altar celeste este sacrifício único que se realiza aqui em baixo, sobre os inúmeros altares terrestres, no mistério eucarístico. Desta forma não existe ruptura entre o invisível e o visível, entre o céu e a terra, entre o Chefe que se senta à direita do Pai e a Igreja, seu corpo, no qual corre sem cessar seu sangue precioso.

São Leão o Grande disse: “Aquilo que era visível em nosso Redentor passou agora para os sacramentos”. Esta concepção da unidade dos cristãos formando o corpo único de Cristo renasce um pouco neste momento por todo o Ocidente. É um pensamento sobretudo litúrgico e sacramental que coloca em relevo o caráter orgânico da Igreja, sob o aspecto de nossa unidade no Cristo total. É inútil sublinhar toda a importância dessa teologia do corpo de Cristo que recupera, sobre um novo plano, as riquezas da tradição patrística. O que importa para o presente é o fato de que desta perspectiva a doutrina da redenção se abre de novo a uma Cristologia e uma eclesiologia mais amplas, nas quais a questão de nossa deificação, de nossa união com Deus, pode outra vez ter seu lugar.

4.      Mais uma vez podemos dizer com os Padres: “Deus se tornou homem, para que o homem possa se tornar deus”. Mas quando tentamos interpretar estas palavras permanecendo sobre uma base unicamente cristológica e sacramental, na qual o papel do Espírito Santo é o de um agente de ligação entre o Chefe celeste da Igreja e seus membros, caímos em graves dificuldades e em questões insolúveis.

Nessa concepção de Igreja como Corpo de Cristo, o Cristo total, contendo em si os seres humanos, membros da Igreja (concepção que, de resto, aceitamos plenamente), nesse totalitarismo cristão, podemos nós salvaguardar a noção das pessoas humanas, distintas entre si e, sobretudo, distintas da Pessoa única de Cristo que parece se identificar aqui com a pessoa da Igreja? Não estamos nos arriscando a perder a liberdade pessoal e, depois de termos sido salvos do determinismo do pecado, a cair numa espécie de determinismo sacramental, no qual um processo orgânico de salvação que se realiza na coletividade da Igreja tende a suprimir o encontro pessoal com Deus? Em que sentido somos nós todos um só corpo em Cristo, e em que outro sentido não o somos nem podemos sê-lo, sem cessar de existir como pessoas ou hipóstases humanas, das quais cada uma é chamada a realizar em si a união com Deus? Pois, ao que parece, existem tantas uniões com Deus quantas pessoas humanas, supondo cada qual uma relação absolutamente única com a Divindade; existem tantas santidades possíveis nos céus quanto destinos pessoais sobre a terra.

Quando queremos falar de pessoas humanas em relação com a questão do corpo de Cristo do qual somos membros, é preciso renunciar resolutamente ao sentido da palavra “pessoa” –própria da sociologia e da maior parte dos filósofos – para buscar a regra, o “cânon” de nosso pensamento mais elevado, na noção de pessoa ou hipóstase, tal como ela se apresenta na teologia trinitária. Este dogma que coloca nosso espírito diante da antinomia entre a identidade absoluta e a diversidade não menos absoluta, se exprime por uma distinção entre a “natureza” e as “pessoas” ou “hipóstases”.

Cada Pessoa existe aqui, não pela exclusão das outras, não pela oposição àquilo que não é “eu”, mas (para falarmos numa linguagem psicológica que é bastante inapropriada quando se trata da Trindade) por uma recusa em possuir a natureza para si; vale dizer que a existência pessoal coloca uma relação com o outro, uma Pessoa existe para a outra: O Logos em pros ton theon[4], diz o Prólogo de São João. Em poucas palavras, diremos que a Pessoa não pode ser plenamente Pessoa senão na medida em que não haja nada que ela queira possuir para si só à exclusão das outras Pessoas, ou seja, apenas na medida em que ela possui uma natureza comum com as outras Pessoas. Somente então intervém em toda sua pureza a distinção entre as Pessoas e a natureza: de outro modo estaremos em presença de indivíduos partilhando entre si a natureza. Mas não existe nenhuma partilha, nenhuma divisão da natureza Una entre as três Pessoas da Trindade: as Hipóstases não são três partes de um todos, da natureza Una, mas cada uma compreende em si a natureza por inteiro, cada uma é o todo, porque nenhuma possui nada por si: mesmo a vontade é comum às Três.

Se agora nos voltarmos para os seres humanos, criados à imagem de Deus, poderemos encontrar, a partir do dogma trinitário, uma natureza comum existindo em muitas hipóstases criadas. Porém, na realidade do mundo decaído, os seres humanos tendem a existir por exclusão mútua, cada qual se afirmando por oposição aos demais, ou seja, dividindo, despedaçando a unidade da natureza, cada um possuindo para si uma parte da natureza que sua vontade opõe a tudo o que não é “ele”. Sob este aspecto, o que costumamos chamar de natureza humana não constitui verdadeiramente uma pessoa, mas um indivíduo, ou seja, uma parte da natureza comum, mais ou menos semelhante às outras partes ou indivíduos de que se compõe a humanidade. Mas, enquanto pessoa no sentido verdadeiro, no sentido teológico da palavra, um ser humano não é limitado por sua natureza individual; ele não é apenas uma parte do todo, mas cada qual contém virtualmente o todo, o conjunto do cosmo terrestre, do qual ele é a hipóstase; assim, cada um constitui o aspecto único, absolutamente original, da natureza comum a todos. O mistério de uma pessoa humana, o que a torna absolutamente única, insubstituível, não pode ser captado por um conceito racional, definido em palavras. Todas as nossas definições se refeririam inevitavelmente a um indivíduo, mais ou menos semelhante aos demais, e a última palavra para designar a pessoa em sua diversidade absoluta sempre faltará. As pessoas enquanto tais não são partes da natureza; mesmo estando ligadas a individuações da natureza na realidade criada, elas contêm em si virtualmente, cada qual à sua maneira, o todo, o conjunto da natureza. Em nossa experiência habitual, não conhecemos nem a verdadeira diversidade pessoal, nem a verdadeira unidade de natureza: o que vemos são indivíduos humanos de um lado e coletividades humanas de outro, em perpétuo conflito.

Encontramos na Igreja a unidade da natureza realizando-se perpetuamente, pois a Igreja é algo mais do que uma coletividade: São Paulo a chama de “corpo”. É a natureza humana cuja unidade não é mais representada pelo velho Adão, chefe do gênero humano em sua extensão como indivíduos; essa natureza resgatada, renovada, é reunida e recapitulada na Hipóstase, na Pessoa divina do Filho de Deus tornado homem. Se, nesta nova realidade, nossa naturezas individualizadas se libertam de suas limitações – “helenos ou citas, libertos ou escravos...[5]” –, se o indivíduo que existe por oposição àquilo que não é “eu” é chamado a desaparecer para se tornar membro de um corpo único, isso não quer dizer que as pessoas ou hipóstases humanas sejam suprimidas. Bem ao contrário: é somente então que elas podem realizar sua verdadeira diversidade. Não sendo partes da natureza comum como o é o indivíduo, as pessoas não se confundem entre si devido à unidade natural que se realiza, em devir, na Igreja. Elas não se tornam, tampouco, parcelas da Pessoa de Cristo, não se veem contidas nela como numa “super-pessoa”, pois isto seria contrário à própria noção de pessoa. Assim é que nos tornamos um em Cristo pela nossa natureza, na medida em que ele é o Chefe de nossa natureza, que forma nele um só Corpo.

Uma conclusão se impõe: se nossas naturezas individuais se incorporam na humanidade gloriosa de Cristo, entrando na unidade de seu Corpo pelo batismo, conformando-se com a sua morte e ressurreição, nossas pessoas, para que cada um possa realizar livremente sua união com a Divindade, devem ser confirmadas em sua dignidade pessoal pelo Espírito Santo: assim sendo, o sacramento do batismo, aquele da unidade em Cristo, deve ser completado pelo sacramento do Crisma, o da diversidade no Espírito Santo.

5.      O mistério de nossa redenção desemboca naquilo que os Padres chamam de recapitulação de nossa natureza por Cristo e em Cristo. Este é o fundamento cristológico da Igreja, exprimindo-se por excelência na vida sacramental, com seu caráter de objetividade absoluto. Mas se quisermos salvaguardar outro aspecto da Igreja, com um caráter de subjetividade não menos absoluto, será preciso fundamentá-lo sobre a economia de outra Pessoa divina, independente em sua origem da do Filho encarnado. Senão corremos o risco de despersonalizar a Igreja, submetendo a liberdade de suas hipóstases humanas a uma espécie de determinismo sacramental. Ao contrário, se quisermos insistir sobre o lado subjetivo, perderemos, com a noção de Corpo de Cristo, o terreno “lógico” da Verdade e cairemos nas divagações da fé “individual”.

Queremos com isso dizer que a Encarnação e a obra redentora de Cristo, tomadas à parte da economia do Espírito Santo, não podem justificar a multiplicidade pessoal da Igreja, tão necessária quanto sua unidade natural em Cristo. O mistério do Pentecostes é tão importante quanto o da Redenção. A obra redentora de Cristo é uma condição indispensável da obra deificadora do Espírito Santo. É o que o próprio Senhor afirma ao dizer: “Eu vim lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso![6]”.Mas, por outro lado, podemos dizer que a obra do Espírito Santo está, por sua vez, submetida à do Filho, pois é recebendo o Espírito que as pessoas humanas podem em plena consciência dar testemunho da divindade de Cristo. O Filho se tornou semelhante a nós pela Encarnação: nós nos tornamos semelhantes a ele pela deificação, participando da divindade no Espírito Santo, que a comunica a cada pessoa humana em particular. A obra redentora do Filho se refere à nossa natureza; a obra deificadora do Espírito Santo se dirige às nossas pessoas. Mas as duas são inseparáveis e não podem ser pensadas uma sem a outra, pois elas se condicionam mutuamente, estão presentes uma na outra – e, ao final, não são senão uma só economia da Santíssima Trindade, realizada pelas duas Pessoas divinas enviadas pelo Pai ao mundo. Esta dupla economia do Verbo e do Paráclito tem como objetivo a união dos seres criados com Deus.

Considerado do ponto de vista de nossa decadência, este objetivo da economia divina se chama salvação ou redenção. É o aspecto negativo do fim último considerado em relação ao nosso pecado. Considerado do ponto de vista da vocação última dos seres criados, ela se chama deificação. É a definição positiva do mesmo mistério que deve se realizar em cada pessoa humana na Igreja e se revelar plenamente no século futuro, quando, depois de haver reunido a tudo em Cristo, Deus se tornará tudo em todas as coisas[7].


Extraído de:
Vladimir Lossky, A imagem e a semelhança,
Aubier Montaigne 1967.




[1] II Pedro 1: 4.
[2] Gregório de Nazianze – Discurso XLV.
[3] I Coríntios 15: 28.
[4] João 1:1.
[5] I Coríntios 12: 13.
[6] Lucas 12: 49.
[7] Cf. I Coríntios 15: 28.