quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Arquimandrita Placide Deseille - A Prece de Jesus na espiritualidade hesiquiasta

Nos últimos trinta anos, um grande número de publicações tem revelado aos Ocidentais um método de vida espiritual familiar aos cristãos do Oriente, e cuja peça mestra consiste na invocação repetida sem cessar: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.

É deliberadamente que falamos de método de vida espiritual: pois a Prece de Jesus não pode ser considerada como uma simples oração jaculatória comparável àquelas que a piedade católica recomenda, ainda que o método ocidental das “aspirações” possa se ligar ao mesmo veio tradicional que remonta aos Padres do deserto. Mas a Prece de Jesus é inseparável de uma doutrina de vida espiritual que os cristãos bizantinos e eslavos consideram de bom grado como o coração da ortodoxia: o Hesiquiasmo. Assim, é indispensável conhecer as grandes linhas desta doutrina, se quisermos captar o significado e o alcance da invocação do Nome de Jesus na espiritualidade ortodoxa.

1.       As origens do método

A via hesiquiasta repousa sobre um duplo fundamento: a doutrina da deificação do homem em Cristo, tal como os Padres da Igreja grega a formularam, e o ensinamento prático dos Padres do deserto sobre a guarda do coração e a prece contínua.

Confrontados com as heresias trinitárias e cristológicas, os grandes bispos e os teólogos do Oriente elaboraram uma doutrina que não era apenas especulativa, mas que carregava em si profundamente uma concepção do destino espiritual do homem. Como eles repetiram incansavelmente diante dos negadores da consubstancialidade do Verbo ou das duas naturezas de Cristo, se o Verbo não é Deus, o homem não pode ser divinizado; se uma natureza humana integral não estiver unida “sem separação nem confusão” à natureza divina em Cristo, o homem tampouco pode ser salvo e divinizado. Essa divinização deve ser concebida de uma maneira extremamente realista, sem dúvida não como uma união hipostática de cada pessoa humana com a essência divina, mas como uma co-penetração vital do agir humano pelo agir incriado de Deus, segundo o modelo e no prolongamento da deificação da natureza humana em Cristo.

As controvérsias cristológicas que levaram os Padres a trazer à luz o papel soteriológico da carne de Cristo, tiveram ainda duas consequências, aliás conexas. De um lado, o pensamento bizantino tomou cada vez mais consciência, no encontro das tendências espiritualistas que o cristianismo alexandrino herdara do helenismo, que o homem é salvo como um todo: a deificação não está reservada apenas à alma, mas se estende ao próprio corpo, como foi manifestado pelo esplendor corporal de Cristo no Tabor. Por outro lado, a importância dos signos sacramentais e litúrgicos, que prolongam até nós a ação deificadora da carne de Cristo, foi percebida mais vivamente. As catequeses batismais dos Padres nos transmitiram os primeiros ecos dessa mística sacramental, que permaneceria como uma das constantes da espiritualidade oriental.


Nos meios monásticos primitivos, a doutrina da deificação do homem estava também presente, mas aparecia sobre uma luz um pouco diversa. A ênfase estava menos nos fundamentos cristológicos e sacramentais do que sobre seu aspecto experimental. O santo monge, o abba do deserto, era um homem deificado, pneumatóforo, através de quem a presença do Espírito na criatura se manifestava visivelmente; no secreto da prece, ele fazia a experiência dessa Presença que transfigurava seu ser. Mas essa experiência deificante requeria previamente longos combates de ascese, a guarda do coração, a assiduidade na prece. A tentação fácil era de confundir a divinização do cristão pela graça, com a experiência mística, e mesmo com as suas contrafações sutis ou grosseiras; era ainda desconhecer o valor insubstituível dos sacramentos, cujos efeitos não são imediatamente perceptíveis, para não reconhecer senão a eficácia do esforço ascético, ou das técnicas de oração que favoreciam uma exaltação mística de má qualidade. A barreira foi rompida nos círculos monásticos tocados pela heresia messaliana, em que a autêntica experiência da doçura de Deus se colocava ao lado das mais perigosas aberrações.

Foi a obra de mestres espirituais do século V – notadamente Marcos o Eremita e Diádoco de Foticéia – que separou o trigo do joio e formulou uma doutrina na qual a experiência mística autêntica, livre de suas contrafações imaginativas, seria reconhecida como o desenvolvimento normal da graça batismal, mas onde a vida sacramental e litúrgica estivesse colocada na base de toda a obra de salvação.

Marcos o Eremita escreveu: “Aqueles que foram batizados em Cristo receberam misticamente a graça, mas esta opera neles na medida em que eles cumprem os mandamentos (...) Todos os que foram batizados na fé ortodoxa receberam misticamente a graça. Mas a certeza só pode ser obtida mais tarde, exercendo os mandamentos”.

A “certeza” (plerophoria), a “operação” da graça, designam aqui o aspecto experimental da divinização, o saborear a Deus, o saborear as coisas de Deus; a “prática dos mandamentos” é desde Evagro o Pôntico o termo técnico para designar o conjunto do esforço ascético do homem, a cooperação de sua liberdade com a obra da graça. Diádoco de Foticéia, utilizando a distinção frequente que os Padres faziam entre a “imagem” e a “semelhança” de Deus no homem, descreve assim os dois tempos da divinização: “Pelo batismo da regeneração, a santa graça nos confere dois bens, dos quais um ultrapassa infinitamente o outro. Ela nos outorga imediatamente o primeiro, ou seja, a imagem de Deus, apagando de nós todo traço de pecado. Quanto ao outro, ela espera nosso concurso para produzi-lo, e este é a semelhança. Então, quando o intelecto começa a experimentar, num sentimento profundo, a bondade do Espírito Santo, devemos saber que a graça começa, por assim dizer, a pintar a semelhança por sobre a imagem (...) assim, dia após dia, nosso homem interior se renova ao provar da caridade, e na perfeição desta ele encontra a sua plenitude”.

É no contexto dessa doutrina que a Prece de Jesus tomará lugar: ela se tornará, para toda a tradição hesiquiasta, o meio privilegiado para tomar consciência da presença de Cristo que habita em nossos corações desde o batismo; é por meio dela que se realizará a “prática dos mandamentos”.

Entre os Padres do deserto, o método preconizado para “realizar sua salvação”, vale dizer, para atingir o pleno desenvolvimento da vida espiritual, comportava dois elementos: de um lado, os “trabalhos corporais” – jejuns, vigílias, austeridades de todos os tipos, trabalho manual – e de outro a guarda do coração, que implicava simultaneamente um combate espiritual incessante contra os “pensamentos” – ou seja, as más sugestões semeadas no coração pelos demônios – e uma incansável assiduidade à prece. Consultado a respeito da importância relativa desses dois elementos, o Abade Agatão declarou: “O homem é semelhante a uma árvore: o labor corporal representa as folhas, enquanto que a guarda do interior é o fruto. Ora, a Escritura diz: “Toda árvore que não produz bons frutos será cortada e atirada ao fogo”. Fica assim manifesto que todo o nosso esforço deve se voltar para o fruto, a guarda do Espírito; mas também temos necessidade da cobertura e da vestimenta das folhas: é o trabalho corporal”.

Este será o ensinamento dos mestres do Hesiquiasmo: eles não cessarão de recomendar antes de tudo que estejamos atentos a nós mesmos, que penetremos em nosso coração; ou, segundo a expressão de São João Clímaco, devemos “circunscrever o incorporal (o espírito) no corpo”, ao invés de deixá-lo se dispersar no exterior.

Com efeito, o coração do homem, no sentido bíblico do termo, designa essa fonte secreta de onde procede a vida espiritual mais profunda, feita dessas inclinações espontâneas e desse sentido íntimo das coisas, que envolvem todo o seu ser. No batismo, esse coração é recriado pelo Espírito, que nele grava sua lei e que o penetra com sua unção; em outros termos, ele aí inscreve uma atração para o bem capaz de triunfar sobre todas as solicitações do mal, e um sentido de Deus e de seus mistérios em virtude do qual o cristão não deveria mais ter necessidade de qualquer ensinamento exterior, porque essa unção o instruiria a respeito de tudo[1]. Mas de fato, essas energias divinas estão no coração apenas no estado de germes que requerem a cooperação
(sinergia) da graça e de nossa liberdade para desabrochar numa orientação, que se torna espontânea, de todos os movimentos de nosso psiquismo para Deus (apatheia) e numa experiência intuitiva e saborosa da divina Presença (contemplação, theoria). Por outro lado, o batismo deixa subsistir em nós outras atrações, vestígios do pecado, que a graça nos dá o poder de combater, mas que permanecem temíveis. Se o home deixa seu espírito (ou seu intelecto, nous) escapar pelos sentidos do corpo e se dirigir sem controle para os objetos exteriores, ele fornecerá um alimento a essas tendências centrífugas, as despertará e se exporá a lhes dar seu consentimento. A presença dos objetos exteriores não é sequer necessária para tal: basta que, com a ajuda dos demônios, nasça na alma a lembrança de objetos capazes de nos trazer uma satisfação egoísta, e que a vontade ceda à paixão assim suscitada. Então o homem viverá numa espécie de sonho desperto, num mundo irreal onde o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, não serão mais avaliados senão em função de suas próprias tendências afetivas.

2.       A sobriedade espiritual e a invocação do Nome de Jesus

A essa perniciosa embriaguez espiritual, os Padres opõem a “sobriedade” e a vigilância já recomendadas por São Pedro num texto muitas vezes retomado pelos mestres do Hesiquiasmo: “Sejam sóbrios, vigiem. Sua parte contrária, o Diabo, como um leão que ruge, ronda, buscando devorá-los[2]”. A sobriedade espiritual (nepsis) consiste assim na atividade do espírito que vigia e luta para se manter mestre de si mesmo sob o assalto dos pensamentos que se esforçam para fazê-lo perder sua lucidez interior. Ela implica primeiramente uma atenção sem falhas e um discernimento do espírito que só pode ser substituído, entre os iniciantes, pela abertura ao Pai espiritual: “A sobriedade é uma sentinela imóvel e perseverante do espírito à porta do coração, e está ali para distinguir sutilmente aqueles que se apresentam, escutar seus propósitos, espiar as manobras destes inimigos mortais, reconhecer a marca demoníaca que tenta, por intermédio da imaginação, sequestrar nosso espírito. Essa obra bem realizada nos dará, se quisermos, a uma experiência excelente do combate interior”.

Mas a essa vigilância os Padres do deserto aconselham acrescentar a repetição de uma invocação, composta de uma única e breve fórmula – a “prece monológica”. Com esta prática, os pensamentos são destruídos pelo poder vitorioso de Cristo, que se faz presente tão logo é invocado; ao mesmo tempo, ela permite opor à “lembrança do mal” a “lembrança de Deus”, que designa entre nossos autores a tomada de consciência dessa atração divina e desse sentido íntimo das coisas de Deus inscritas na alma no momento do batismo.

Cassiano deu a este método uma formulação quase definitiva, embora não conhecesse ainda a invocação do Nome de Jesus: “Todo monge que visa a lembrança contínua de Deus deve se acostumar a murmurar interiormente e a repassar sem cessar em seu coração a fórmula que vou lhes dar, e com ela expulsar a multidão de outros pensamentos, pois ele não conseguirá se manter em oração sem se liberar de todos os cuidados e solicitações do corpo. Esta é a doutrina na qual fomos iniciados pelos raros sobreviventes dos mais antigos Padres, e que não transmitimos senão a alguns raros privilegiados, que tenham realmente sede de conhecê-la. Para conservar a lembrança de Deus, vocês devem sem cessar guardar presente em seu espírito esta fórmula santa: “Meu Deus, venha em meu auxílio; Senhor, apresse-se em me socorrer[3]”. Não é sem razão que este versículo foi escolhido em meio a toda a Santa Escritura. Ele permite todos os sentimentos que se possa conceber na natureza humana, e convém perfeitamente a todos os estados e a toda as tentações. Nele encontramos a invocação de Deus contra todos os perigos, a humildade de uma humilde e piedosa confissão, a vigilância que procede de uma atenção e de um temor contínuos, a consideração de nossa fragilidade, a confiança de sermos atendidos, a segurança de um socorro sempre presente e pronto a intervir. Pois aquele que invoca sem cessar seu Protetor está certo de tê-lo sempre presente”.

Os dois elementos fundamentais da Prece de Jesus já se encontram presentes neste texto notável: a humilde confissão de nossa miséria, a única que pode nos abrir para a graça, e na qual os Padres do deserto viam, por isso mesmo, a única via de salvação e a única ligação estreita estabelecida entre a invocação e a presença íntima do Senhor. Apesar disso, foi um progresso apreciável a introdução, na fórmula dessa prece monológica, do próprio Nome do Senhor Jesus.

Diádoco de Foticéia se apresenta como um dos primeiros testemunhos desta “invocação do Senhor Jesus”, que é também uma “meditação de seu santo e glorioso Nome”, dando a este termo de “meditação” seu sentido arcaico de ruminação de uma palavra ou de uma fórmula: “O intelecto exige absolutamente de nós, quando fechamos todas as suas saídas pela lembrança de Deus, uma obra que deve satisfazer sua necessidade de atividade. É preciso então dar-lhe o “Senhor Jesus”, como única ocupação a satisfazer inteiramente seu objetivo. De fato, está escrito que ninguém pode dizer “Senhor Jesus” se não for no Espírito Santo[4]. E que por todo o tempo ele contemple tão exclusivamente estas palavras dentre seus próprios tesouros, que ele não se desvie delas por nenhuma outra imaginação. Com efeito, todos os que meditam sem cessar na profundeza de seu coração este santo e glorioso Nome, verão por fim a luz de seu próprio intelecto. Pois, mantido com um estrito cuidado pelo pensamento, ele consome, num intenso sentimento, toda sujeira ou mancha que recobre a superfície da alma; e com efeito, nosso Deus, foi dito, é um fogo devorador[5]. Daí por diante, o Senhor solicitará da alma um grande amor por sua própria glória. Pois a partir do momento em que ele persiste, por intermédio da memória intelectual, no fervor do coração, este Nome glorioso e tão desejável implanta em nós o hábito de amar sua bondade sem que nada mais possa se opor a isto. Esta é a pérola preciosa que podemos adquirir vendendo todos os nossos bens, para usufruir, com sua descoberta, de uma alegria inefável”.

Diádoco indica aqui que o Nome de Jesus – assim como os versículos da Escritura que os antigos gostavam de ruminar numa meditação incessante – possui uma eficácia excepcional para despertar no coração o amor divino oculto nele, em virtude do batismo, como uma brasa sob as cinzas. Sob o choque da invocação, o gosto por Deus e pelas coisas de Deus se faz sentir e triunfa sobre as falsas doçuras do pecado. O espírito pode então “ver sua própria luz”, expressão de Evagro que designa a contemplação e significa que o espírito, ao tomar uma consciência experimental da inclinação que o empurra para Deus, prova alguma coisa do próprio Deus, porque essa atração é a manifestação da presença divinizante de Cristo e de seu Espírito no homem.

Mais adiante, Diádoco mostra a conexão íntima que deve se estabelecer entre a invocação formulada pelo espírito do homem e a aspiração do Espírito Santo que se deixa pouco a pouco experimentar no fundo do coração: “Então, com efeito, a alma se apropria da própria graça que medita e que clama com ela o ‘Senhor Jesus’, assim como uma mãe ensina a seu filhinho a palavra ‘pai’, repetindo-a com ele até que em lugar dos balbucios infantis a criança se habitue com este nome a ponto de chamar distintivamente por seu pai, mesmo dormindo. É por isso que o Apóstolo disse: “Da mesma forma, o Espírito vem em socorro de nossa fraqueza; pois nós não sabemos orar como se deve, mas o próprio Espírito intercede soberanamente por nós com gemidos inefáveis[6]”.

Este hábito da prece, que prossegue “mesmo dormindo”, é uma coisa bem diferente do que um simples reflexo automático criado pela repetição de um ato. Ele é o fruto de uma plenitude interior, de uma perfeita unificação de todas as energias da alma colocadas a serviço da caridade e animadas por ela. A constante lembrança de Deus, à qual os primeiros exercícios laboriosos da Prece de Jesus conduziram, resulta menos de uma sucessão de atos do que de um estado, de uma orientação do coração para Deus, que se torna espontânea e estável. Trata-se, como diz o Patriarca Calixto num curto tratado que se inclui entre os mais importantes da Filocalia, de “uma água viva que brota em jorro da alma como de uma fonte perpétua”. É ela que frequentava a alma de Inácio o Teóforo e que o fez dizer: “O que eu tenho em mim não é mais o fogo ávido de matéria, mas a água que opera e que fala”.

3.       A técnica corporal

O elemento fundamental do método hesiquiasta é, portanto, a prece monológica: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”. Esta fórmula sem dúvida ainda não estava constituída em sua integralidade nos tempos de Diádoco de Foticéia, e poderia também ser abreviada “conforme as forças e o estado daquele que ora”; para alguns, ela se reduziria apenas ao Nome de Jesus.

Mas é preciso acrescentar à prática da invocação algumas condições mais exteriores. A primeira – a única que é mencionada explicitamente na tradição mais antiga – consiste no retiro para a solidão e o silêncio, longe de toda agitação mundana. E numa época bem mais tardia, muitos espirituais se dedicaram a demonstrar que os próprios leigos poderiam extrair grande benefício da Prece de Jesus. As origens do método não deixam de ser monásticas e contemplativas; ele foi criado por homens dedicados a dar testemunho absoluto de Deus e que viam na solidão o melhor auxiliar da hesíquia interior.

Gregório Palamas descreve assim o clima original da prática da Prece: “Quando o espírito se entrega à sua própria energia que consiste no retorno e na vigilância sobre si mesmo, quando, por meio desta energia, ele transcende a si mesmo, então ele pode se unir a Deus. Eis porque aquele que deseja apaixonadamente viver com Deus foge da vida sujeita à condenação. Este escolhe a vida monástica, estranha ao casamento, ele deseja habitar sem preocupações nem perturbação no santuário da hesíquia, longe de toda relação exterior. Ali ele desliga sua alma, na medida do possível, de todos os laços materiais e une seu espírito à prece ininterrupta a Deus. Por meio dela ele se concentra inteiramente em si mesmo e contra um meio novo e misterioso para subir aos céus; ali está o que podemos chamar da impalpável treva do silêncio iniciador”.

A tradição hesiquiasta acrescentou mais tarde à vida retirada uma determinada postura corporal e um certo controle da respiração. As primeiras descrições escritas sistemáticas que chegaram até nós datam do século XIII, mas diversos indícios permitem pensar que esse método psicofísico existia, ao menos num estado rudimentar, numa época muito mais recuada. A absoluta necessidade do controle de um Pai spiritual experiente justifica o caráter primeiramente oral da tradição a este respeito; as próprias exposições literárias, aliás, nunca pretenderam substituir a iniciação viva, e sempre permaneceram incompletas.

Gregório Palamas, que defendeu o método contra as acusações fáceis de seus adversários, comenta o seguinte a respeito: “Veja, irmão: João Clímaco mostrou que basta examinar o problema de um modo humano, nem ainda espiritual, para ver que é absolutamente necessário recolocar e manter o espírito no interior do corpo, quando decidimos pertencer verdadeiramente a nós mesmos e nos tornamos monges merecedores deste nome, segundo o homem interior. Por outro lado, não é fora de cabimento ensinar, sobretudo aos iniciantes, a olhar para si mesmos e a enviar seu espírito para dentro de si por meio da inspiração. Um homem sensato não proibiria, com efeito, a ninguém, que reunisse em si mesmo, por meio de determinados processos, seu espírito, ainda que este não seja capaz de contemplar a si próprio. Os que começaram a empreender essa luta veem constantemente seu espírito lhes fugir; com dificuldade eles o trazem de volta; eles precisam reconduzi-lo a si próprios continuamente; na sua inexperiência, eles não se dão conta de que nada no mundo é mais difícil de contemplar, nem mais móvel do que o espírito. É por isso que alguns recomendam controlar o vaivém da sopro e retê-lo um pouco, a fim de reter também o espírito, vigiando a respiração até que, com a ajuda de Deus, haja progresso suficiente para proibir o espírito de vagar pelo entorno, e que, com ele purificado, seja possível conduzi-lo verdadeiramente a um recolhimento unificado. Podemos constatar que este é um efeito espontâneo da atenção do espírito, pois o vaivém do sopro se torna apaziguado depois de uma reflexão intensa, sobretudo nos que se encontram em repouso de corpo e espírito”.

Palamas prossegue: “Quem busca fazer seu espírito retornar a si mesmo a fim de empurrá-lo, não num movimento em linha reta – para o exterior – mas num movimento circular e infalível – do retorno sobre si mesmo – ao invés de passear seu olhar por aí, como não tirará esta pessoa o maior proveito em fixar os olhos sobre seu peito ou seu umbigo, como sobre um ponto de apoio? Pois ele não apenas se recolherá exteriormente sobre si mesmo, tanto quanto lhe seja possível, em conformidade com o movimento interior que ele busca para seu espírito, mas ainda, impondo tal postura ao seu corpo, ele enviará para o interior do coração o poder do espírito que de outro modo escoaria pela vista em direção ao exterior”.

Essa disciplina corporal está fundamentada em definitivo sobre a concepção bíblica do composto humano. É todo o ser que deve participar da vida espiritual, porque é todo o ser, corpo e alma, que deve receber a salvação. A mentalidade bíblica, junto com a experiência tradicional, tornou os mestres espirituais do Oriente cristão atentos para não dissociar o espírito do corpo e a simbolizar as atitudes da alma por meio de gestos corporais, a fim de permitir “a integração harmoniosa de todo o nosso ser em sua subida para Deus”. E quaisquer que tenham sido os exageros ou as simplificações perigosas que atingiram o método hesiquiasta em algumas ocasiões, eles sabiam ao menos que seu método não poderia desempenhar mais do que uma função puramente instrumental, diante de uma experiência que sempre permaneceu em sua essência como um dom da graça: “É a graça divina que coroa a invocação monológica dirigida a Jesus Cristo com uma fé viva, com toda pureza, sem distrações, pelo coração. Não é o efeito puro e simples do método natural da respiração praticada num local tranquilo e escuro. Não. Os santos Padres, ao inventar este método, não tinham em vista mais do que um auxílio, se posso dizê-lo, para recolher o espírito, para retirá-lo de sua distração habitual e fazê-lo buscar a atenção. Graças a essas disposições nasce no espírito a prece constante, pura e sem distração. Quanto a você, meu filho, se desejar percorrer seus dias feliz, ‘vivendo incorporeamente em seu corpo’, viva segundo a regra que lhe expus”.

4.       Conclusão

Nossa informação sobre as origens do método hesiquiasta comporta muitas lacunas para que seja possível determinar se existem relações de influência entra as espiritualidades muçulmanas, hindus ou budistas que relacionam igualmente a invocação de um Nome divino a uma técnica respiratória. Uma influência com esta nada que possa desmerecer o método: as leis do psiquismo humano são universais, e a graça, longe de destruir a natureza, assume seu dinamismo profundo e a transfigura. Sobretudo, a técnica é aqui sustentada por uma doutrina que nos parece, junto com seus melhores representantes, autenticamente bíblica e cristã. Sem a fé nos dogmas da criação do universo espiritual e material, da salvação pela graça em Cristo, da ressurreição corporal, da deificação pelos sacramentos, o ensinamento que os santos Padres népticos nos transmitiram sobre a prece do coração seria ininteligível. O fundamento último do método permanece sendo a confissão do corifeu dos Apóstolos diante do Sanedrim: “Pois não existe sob o céu outro Nome dado aos homens pelo qual seja possível a salvação[7]”.

Numa época em que muitos cristãos estão em busca de uma disciplina total de vida, inclusive corporal, que seja favorável ao seu equilíbrio e ao seu desenvolvimento espiritual, não é sem interesse que podemos escutar os velhos monges que souberam colocar a serviço do desenvolvimento da graça de Cristo no homem uma sabedoria humana da qual nosso Ocidente perdeu por completo o segredo.




[1] Cf. I João 2: 27.
[2] I Pedro 5: 8.
[3] Salmo 69: 2.
[4] I Coríntios 12: 3.
[5] Deuteronômio 4: 24.
[6] Romanos 8: 23.
[7] Atos 4: 12.

Nenhum comentário:

Postar um comentário