terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Vladimir Lossky - Redenção e Deificação




1.      “Deus se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus”. Estas poderosas palavras, que encontramos pela primeira vez em Santo Irineu, foram retomadas pelos santos Atanásio, Gregório de Nazianze e Gregório de Nissa. Os Padres e os teólogos ortodoxos as repetiram de século em século, com a mesma insistência, querendo exprimir com essa frase lapidar a própria essência do cristianismo: uma descida inefável de Deus até os últimos limites de nossa decadência humana, até a morte – descida de Deus que abriu para os homens uma via de ascensão, que abriu os horizontes ilimitados da união dos seres criados com a Divindade. A via descendente (katabasis) da Pessoa divina de Cristo tornou possível às pessoas humanas uma via ascendente, nossa anabasis, no Espírito Santo. Foi preciso que tivesse lugar a humilhação voluntária, a kenosis redentora do Filho de Deus, para que os homens decaídos pudessem realizar sua vocação, a da deificação (theosis) do ser criado pela graça incriada. Assim a obra redentora de Cristo – ou antes, de um modo mais geral, a Encarnação do Verbo – parece estar aqui em relação direta com o objetivo último proposto às criaturas, a saber, a união com Deus. Se esta união se realiza na Pessoa Divina do Filho, Deus feito homem, é preciso que ela se realize em cada pessoa humana, é preciso que cada um de nós, por sua vez, se torne deus pela graça ou pela participação na natureza divina, segundo a expressão de São Pedro[1].

Uma vez que a Encarnação do Verbo está tão estreitamente ligada à nossa deificação final no pensamento dos Padres, poderíamos nos perguntar se ela teria existido caso Adão não tivesse pecado. Esta questão, que se faz às vezes, nos parece ociosa e irreal. Com efeito, nós não conhecemos outra condição humana senão aquela que se seguiu ao pecado original, condição na qual nossa deificação – o cumprimento do plano divino – se torna impossível sem a Encarnação do Filho que se reveste necessariamente de um caráter de redenção. O Filho de Deus desceu dos céus para realizar a obra da nossa salvação, para nos libertar do cativeiro do demônio, para destruir a dominação do pecado em nossa natureza, para arrasar a morte, tributo do pecado. A Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo, por meio das quais se realizou nossa obra redentora, ocupam assim um lugar central na economia divina em relação ao mundo decaído. Em virtude disso, é perfeitamente compreensível que o dogma da redenção receba uma importância capital no pensamento teológico da Igreja.

E no entanto, quando tentamos tratar à parte o dogma da redenção isolando-o do conjunto do ensinamento cristão, corremos o risco de limitar a tradição interpretando-o exclusivamente em função da obra do Redentor. O pensamento teológico evolui a partir daí em três termos: o pecado original, sua reparação pela cruz e a apropriação do efeito salutar da obra de Cristo para os cristãos. Dentro dessas perspectivas estreitas de uma teologia dominada pela ideia de redenção, a sentença patrística – “Deus se fez homem, para que o homem possa se tornar deus” – parece estranha e insólita. Esquece-se a união com Deus ao se preocupar unicamente com a própria salvação, ou antes, a união com Deus só é vista sob seu aspecto negativo, que levou à nossa miséria atual.

2.      Foi Santo Anselmo de Canterbury, no século XI, com seu tratado Cur Deus homo (“Porque Deus [se fez] homem”), quem primeiro tentou, sem dúvida, desenvolver à parte o dogma da redenção separando-o de todo o resto. Os horizontes cristãos se achavam limitados pelo drama que se desenrolava entre Deus, infinitamente ofendido pelo pecado, e o homem, incapaz de satisfazer às exigências da justiça vindicativa. Este drama se resolvia com a morte de Cristo, Filho de Deus tornado homem para nos substituir e pagar nossa dívida com a justiça divina. O que resultava da economia do Espírito Santo? Seu papel se reduzia ao de um auxiliar da redenção, permitindo-nos usufruir do mérito expiatório de Cristo. A perspectiva final de nossa união com Deus se achava excluída, ou ao menos oculta aos nossos olhos pelas abóbodas austeras de um pensamento teológico construído a partir das noções de nossa falta original e de sua reparação. Com o preço de nossa redenção pago com a morte de Cristo, a ressurreição e a ascensão não representavam mais do que um fim glorioso de sua obra, uma espécie de apoteose, sem nenhuma relação direta com nosso destino. Essa teologia redencionista, que coloca toda a ênfase sobre a Paixão, parece se desinteressar do triunfo de Cristo sobre a morte. a própria obra do Cristo Redentor, sobre a qual ela se pretende confirmada, aparece truncada, empobrecida, reduzida a uma mudança de atitude divina em relação aos homens decaídos, sem nenhuma relação com a própria natureza da humanidade.

Nós encontramos uma concepção completamente diferente da obra redentora de Cristo no pensamento de um Santo Atanásio, por exemplo. Cristo, diz ele, tendo libertado da morte o templo de seu corpo, ofereceu um sacrifício para todos os homens, a fim de torná-los inocentes e livres da falta original de um lado, e, de outro, a fim de se mostrar vitorioso sobre a morte e fazer da incorruptibilidade de seu próprio corpo as primícias da ressurreição geral. Aqui a imagem jurídica da Redenção é completada por uma outra – uma imagem física, ou melhor, biológica: a do triunfo da vida sobre a morte, da incorruptibilidade triunfante na natureza corrompida pelo pecado.

Em geral, seja entre os Padres, seja nas Escrituras, encontramos muitas imagens para exprimir o mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Assim, no Evangelho, o Bom Pastor é uma imagem “bucólica” da obra de Cristo; o homem forte, vencido por alguém mais forte que lhe rouba as armas e destrói seu domínio, é uma imagem guerreira que retorna com frequência entre os Padres e na liturgia, como o Cristo vitorioso sobre Satanás, destruindo as portas do inferno e fazendo da cruz sua bandeira. Uma imagem médica, a da natureza enferma curada pelo antídoto da salvação; uma imagem que podemos chamar de “diplomática”, a do truque divino que desarma a astúcia do demônio, etc. Enfim, a imagem empregada com mais frequência, trazida por São Paulo do Antigo Testamento, é emprestada ao domínio das relações jurídicas. Tomada em seu sentido particular, a redenção é uma imagem jurídica da obra de Cristo, ao lado de muitas outras imagens possíveis. Ao empregarmos o termo “redenção”, como o fazemos atualmente, no sentido genérico que designa a obra salutar de Cristo em toda a sua extensão, não devemos esquecer que esta expressão jurídica tem um caráter figurado: Cristo é o Redentor do mesmo modo como um guerreiro que vence a morte, um sacrificador perfeito.

O erro de Anselmo não constituiu apenas em desenvolver uma teoria jurídica da Redenção, mas ainda no fato de que ele pretendeu enxergar nas relações jurídicas implicadas no termo “redenção” uma expressão adequada do mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Rejeitando as demais expressões desse mistério como sendo imagens inadequadas – quasi quaedam picturae – ele acreditou ter encontrado na imagem jurídica, a da redenção, o próprio corpo da verdade, sua “solidez racional” – veritatis rationabilis soliditas – uma necessidade que provasse que Deus deveria morrer para nossa salvação.

A impossibilidade de expressar racionalmente a necessidade da obra redentora explorando o conteúdo jurídico do termo “redenção” foi demonstrada por São Gregório de Nazianze numa magistral redução ao absurdo: “É preciso que examinemos um problema e um dogma que muitas vezes foram deixados de lado, mas que para mim nem por isso deixam de exigir um estudo aprofundado. O sangue derramado por nós, sangue preciosíssimo e glorioso de Deus, este sangue do Sacrificador e do Sacrifício, por que foi ele derramando e a quem foi ele oferecido? Estávamos sob o domínio do demônio, vendidos ao pecado, depois de havermos adquirido a corrupção com nossa concupiscência. Se o preço de nosso resgate foi pago àquele que nos mantinha sob seu poder, eu me pergunto: a quem, e por que motivo foi oferecido tal preço? Se ele foi oferecido ao demônio, é ultrajante! O assaltante recebe o preço da redenção! E não apenas ele o recebe de Deus, como ele recebe o próprio Deus. Por sua violência, ele exigiu um preço tão desmesurado que teria sido mais justo comutar nossa pena. Mas se esse preço foi oferecido ao Pai, podemos nos perguntar acima de tudo, por que razão? Não foi o Pai que nos manteve cativos. Assim, por que seria o sangue do Filho Único agradável ao Pai, que não quis aceitar Isaac oferecido em holocausto por Abrahão, substituindo o sacrifício humano pelo de um carneiro? Não é evidente que o Pai aceitou o sacrifício, não por tê-lo exigido, nem por necessitar dele, mas apenas pela economia? Era preciso que o homem fosse santificado pela humanidade de Deus, era preciso que ele próprio nos liberasse triunfando sobre o tirano por sua própria força, que ele nos chamasse para ele por intermédio de seu Filho que é o Mediador, o qual a tudo realizou em honra do Pai, a quem ele obedeceu em tudo... Que o demais seja venerado pelo silêncio...[2]”.

O que ressalta de mais evidente no texto citado acima, é que para São Gregório de Nazianze a noção fundamental da redenção, longe de implicar a ideia de uma necessidade imposta pela justiça vindicativa, se apresenta como a expressão da economia cujo mistério não pode ser explicitado de modo adequado por uma série de conceitos racionais. “Foi preciso, diz ele pouco adiante, que Deus se encarnasse e morresse para que nós pudéssemos viver”; e: “Nada pode igualar o milagre de minha salvação: algumas gotas de sangue reconstituíram a totalidade do universo”.

Depois dos horizontes estreitos de uma teologia exclusivamente jurídica, nós encontramos entre os Padres uma noção extremamente rica da redenção que inclui a vitória sobre a morte, as primícias da ressurreição geral, a libertação da natureza cativa do demônio, e não apenas a justificação, mas também a restauração da criação em Cristo. Aqui a Paixão não pode ser separada da Ressurreição – o corpo glorioso de Cristo sentado à direita do Pai – e ambas da vida dos cristãos aqui na terra. E no entanto, se a redenção aparece como o momento central da Encarnação, ou seja, da economia do Filho em relação ao mundo decaído, ela nem por isso deixa de ser um momento de uma economia mais ampla da Santíssima Trindade em relação ao mundo criado ex nihilo e chamado a realizar livremente a deificação, a união com Deus, “a fim de que Deus se torne tudo em todas as coisas[3]”. O pensamento dos Padres jamais fecha essa perspectiva final. Tendo a redenção como objetivo imediato nossa salvação, esta se apresentará, em sua realização última, no século futuro, como nossa união com Deus, como a deificação dos seres criados resgatados por Cristo. Mas essa realização última supõe a economia de outra Pessoa divina, enviada ao mundo depois do Filho.

A obra do Espírito Santo é inseparável da do Filho. Para podermos dizer com os Padres que “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar deus”, não basta suprir as falhas e insuficiências da teoria de Anselmo remetendo a uma noção mais rica da redenção, própria dos Padres. É preciso acima de tudo reencontrar o verdadeiro lugar da economia do Espírito Santo, distinta mas não separada da do Verbo encarnado. Se o pensamento de Anselmo pode se deter sobre a obra redentora de Cristo, isolando-a do resto do ensinamento cristão e estreitando os horizontes da tradição, é justamente porque nessa época o Ocidente já havia perdido a verdadeira noção da Pessoa do Espírito Santo, relegando-o ao segundo plano e fazendo dele uma espécie de auxiliar ou vigário do Filho. Deixaremos de lado essa questão, porque já analisamos o dogma da “processão ab utroque” e suas consequências para toda a teologia ocidental. Vamos nos limitar a uma tarefa positiva, a de mostrar porque a noção de nossa deificação final não pode ser expressa unicamente a partir de uma base cristológica, e porque ela necessita de um desenvolvimento pneumatológico.

3.      No Ocidente, o pensamento teológico de nossos dias faz um grande esforço de retorno às nossas fontes patrísticas dos primeiros séculos – em especial aos Padres gregos – que se tenta reintegrar numa síntese católica. Não apenas a teologia pós tridentina, mas também a escolástica medieval, malgrado sua riqueza filosófica, aparecem sempre hoje em dia como teologicamente insuficientes. Há um esforço para retomar o valor da noção da Igreja como corpo de Cristo, como criatura nova recapitulada por Cristo, como uma natureza ou um corpo tendo Cristo crucificado como Chefe.

Como o primeiro Adão falhou em sua vocação – a de alcançar livremente a união com Deus – foi o segundo Adão, o Verbo divino, que realizou essa união das duas naturezas em sua Pessoa ao se encarnar. Integrando-se à realidade do mundo decaído, ele esgotou o poder do pecado em nossa natureza e, com sua morte, que marcou o grau extremo dessa integração à nossa decadência, ele triunfou sobre a morte e a corrupção. No batismo, nós morremos com Cristo, simbolicamente, para ressuscitar realmente nele na vida nova de seu corpo vitorioso, para nos tornarmos membros deste corpo único, que existiu concreta e historicamente sobre a terra, mas que tem sua Cabeça nos céus, na eternidade, no seio da Santíssima Trindade. Sacrificador e Sacrifício ao mesmo tempo, Cristo oferece sobre o altar celeste este sacrifício único que se realiza aqui em baixo, sobre os inúmeros altares terrestres, no mistério eucarístico. Desta forma não existe ruptura entre o invisível e o visível, entre o céu e a terra, entre o Chefe que se senta à direita do Pai e a Igreja, seu corpo, no qual corre sem cessar seu sangue precioso.

São Leão o Grande disse: “Aquilo que era visível em nosso Redentor passou agora para os sacramentos”. Esta concepção da unidade dos cristãos formando o corpo único de Cristo renasce um pouco neste momento por todo o Ocidente. É um pensamento sobretudo litúrgico e sacramental que coloca em relevo o caráter orgânico da Igreja, sob o aspecto de nossa unidade no Cristo total. É inútil sublinhar toda a importância dessa teologia do corpo de Cristo que recupera, sobre um novo plano, as riquezas da tradição patrística. O que importa para o presente é o fato de que desta perspectiva a doutrina da redenção se abre de novo a uma Cristologia e uma eclesiologia mais amplas, nas quais a questão de nossa deificação, de nossa união com Deus, pode outra vez ter seu lugar.

4.      Mais uma vez podemos dizer com os Padres: “Deus se tornou homem, para que o homem possa se tornar deus”. Mas quando tentamos interpretar estas palavras permanecendo sobre uma base unicamente cristológica e sacramental, na qual o papel do Espírito Santo é o de um agente de ligação entre o Chefe celeste da Igreja e seus membros, caímos em graves dificuldades e em questões insolúveis.

Nessa concepção de Igreja como Corpo de Cristo, o Cristo total, contendo em si os seres humanos, membros da Igreja (concepção que, de resto, aceitamos plenamente), nesse totalitarismo cristão, podemos nós salvaguardar a noção das pessoas humanas, distintas entre si e, sobretudo, distintas da Pessoa única de Cristo que parece se identificar aqui com a pessoa da Igreja? Não estamos nos arriscando a perder a liberdade pessoal e, depois de termos sido salvos do determinismo do pecado, a cair numa espécie de determinismo sacramental, no qual um processo orgânico de salvação que se realiza na coletividade da Igreja tende a suprimir o encontro pessoal com Deus? Em que sentido somos nós todos um só corpo em Cristo, e em que outro sentido não o somos nem podemos sê-lo, sem cessar de existir como pessoas ou hipóstases humanas, das quais cada uma é chamada a realizar em si a união com Deus? Pois, ao que parece, existem tantas uniões com Deus quantas pessoas humanas, supondo cada qual uma relação absolutamente única com a Divindade; existem tantas santidades possíveis nos céus quanto destinos pessoais sobre a terra.

Quando queremos falar de pessoas humanas em relação com a questão do corpo de Cristo do qual somos membros, é preciso renunciar resolutamente ao sentido da palavra “pessoa” –própria da sociologia e da maior parte dos filósofos – para buscar a regra, o “cânon” de nosso pensamento mais elevado, na noção de pessoa ou hipóstase, tal como ela se apresenta na teologia trinitária. Este dogma que coloca nosso espírito diante da antinomia entre a identidade absoluta e a diversidade não menos absoluta, se exprime por uma distinção entre a “natureza” e as “pessoas” ou “hipóstases”.

Cada Pessoa existe aqui, não pela exclusão das outras, não pela oposição àquilo que não é “eu”, mas (para falarmos numa linguagem psicológica que é bastante inapropriada quando se trata da Trindade) por uma recusa em possuir a natureza para si; vale dizer que a existência pessoal coloca uma relação com o outro, uma Pessoa existe para a outra: O Logos em pros ton theon[4], diz o Prólogo de São João. Em poucas palavras, diremos que a Pessoa não pode ser plenamente Pessoa senão na medida em que não haja nada que ela queira possuir para si só à exclusão das outras Pessoas, ou seja, apenas na medida em que ela possui uma natureza comum com as outras Pessoas. Somente então intervém em toda sua pureza a distinção entre as Pessoas e a natureza: de outro modo estaremos em presença de indivíduos partilhando entre si a natureza. Mas não existe nenhuma partilha, nenhuma divisão da natureza Una entre as três Pessoas da Trindade: as Hipóstases não são três partes de um todos, da natureza Una, mas cada uma compreende em si a natureza por inteiro, cada uma é o todo, porque nenhuma possui nada por si: mesmo a vontade é comum às Três.

Se agora nos voltarmos para os seres humanos, criados à imagem de Deus, poderemos encontrar, a partir do dogma trinitário, uma natureza comum existindo em muitas hipóstases criadas. Porém, na realidade do mundo decaído, os seres humanos tendem a existir por exclusão mútua, cada qual se afirmando por oposição aos demais, ou seja, dividindo, despedaçando a unidade da natureza, cada um possuindo para si uma parte da natureza que sua vontade opõe a tudo o que não é “ele”. Sob este aspecto, o que costumamos chamar de natureza humana não constitui verdadeiramente uma pessoa, mas um indivíduo, ou seja, uma parte da natureza comum, mais ou menos semelhante às outras partes ou indivíduos de que se compõe a humanidade. Mas, enquanto pessoa no sentido verdadeiro, no sentido teológico da palavra, um ser humano não é limitado por sua natureza individual; ele não é apenas uma parte do todo, mas cada qual contém virtualmente o todo, o conjunto do cosmo terrestre, do qual ele é a hipóstase; assim, cada um constitui o aspecto único, absolutamente original, da natureza comum a todos. O mistério de uma pessoa humana, o que a torna absolutamente única, insubstituível, não pode ser captado por um conceito racional, definido em palavras. Todas as nossas definições se refeririam inevitavelmente a um indivíduo, mais ou menos semelhante aos demais, e a última palavra para designar a pessoa em sua diversidade absoluta sempre faltará. As pessoas enquanto tais não são partes da natureza; mesmo estando ligadas a individuações da natureza na realidade criada, elas contêm em si virtualmente, cada qual à sua maneira, o todo, o conjunto da natureza. Em nossa experiência habitual, não conhecemos nem a verdadeira diversidade pessoal, nem a verdadeira unidade de natureza: o que vemos são indivíduos humanos de um lado e coletividades humanas de outro, em perpétuo conflito.

Encontramos na Igreja a unidade da natureza realizando-se perpetuamente, pois a Igreja é algo mais do que uma coletividade: São Paulo a chama de “corpo”. É a natureza humana cuja unidade não é mais representada pelo velho Adão, chefe do gênero humano em sua extensão como indivíduos; essa natureza resgatada, renovada, é reunida e recapitulada na Hipóstase, na Pessoa divina do Filho de Deus tornado homem. Se, nesta nova realidade, nossa naturezas individualizadas se libertam de suas limitações – “helenos ou citas, libertos ou escravos...[5]” –, se o indivíduo que existe por oposição àquilo que não é “eu” é chamado a desaparecer para se tornar membro de um corpo único, isso não quer dizer que as pessoas ou hipóstases humanas sejam suprimidas. Bem ao contrário: é somente então que elas podem realizar sua verdadeira diversidade. Não sendo partes da natureza comum como o é o indivíduo, as pessoas não se confundem entre si devido à unidade natural que se realiza, em devir, na Igreja. Elas não se tornam, tampouco, parcelas da Pessoa de Cristo, não se veem contidas nela como numa “super-pessoa”, pois isto seria contrário à própria noção de pessoa. Assim é que nos tornamos um em Cristo pela nossa natureza, na medida em que ele é o Chefe de nossa natureza, que forma nele um só Corpo.

Uma conclusão se impõe: se nossas naturezas individuais se incorporam na humanidade gloriosa de Cristo, entrando na unidade de seu Corpo pelo batismo, conformando-se com a sua morte e ressurreição, nossas pessoas, para que cada um possa realizar livremente sua união com a Divindade, devem ser confirmadas em sua dignidade pessoal pelo Espírito Santo: assim sendo, o sacramento do batismo, aquele da unidade em Cristo, deve ser completado pelo sacramento do Crisma, o da diversidade no Espírito Santo.

5.      O mistério de nossa redenção desemboca naquilo que os Padres chamam de recapitulação de nossa natureza por Cristo e em Cristo. Este é o fundamento cristológico da Igreja, exprimindo-se por excelência na vida sacramental, com seu caráter de objetividade absoluto. Mas se quisermos salvaguardar outro aspecto da Igreja, com um caráter de subjetividade não menos absoluto, será preciso fundamentá-lo sobre a economia de outra Pessoa divina, independente em sua origem da do Filho encarnado. Senão corremos o risco de despersonalizar a Igreja, submetendo a liberdade de suas hipóstases humanas a uma espécie de determinismo sacramental. Ao contrário, se quisermos insistir sobre o lado subjetivo, perderemos, com a noção de Corpo de Cristo, o terreno “lógico” da Verdade e cairemos nas divagações da fé “individual”.

Queremos com isso dizer que a Encarnação e a obra redentora de Cristo, tomadas à parte da economia do Espírito Santo, não podem justificar a multiplicidade pessoal da Igreja, tão necessária quanto sua unidade natural em Cristo. O mistério do Pentecostes é tão importante quanto o da Redenção. A obra redentora de Cristo é uma condição indispensável da obra deificadora do Espírito Santo. É o que o próprio Senhor afirma ao dizer: “Eu vim lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso![6]”.Mas, por outro lado, podemos dizer que a obra do Espírito Santo está, por sua vez, submetida à do Filho, pois é recebendo o Espírito que as pessoas humanas podem em plena consciência dar testemunho da divindade de Cristo. O Filho se tornou semelhante a nós pela Encarnação: nós nos tornamos semelhantes a ele pela deificação, participando da divindade no Espírito Santo, que a comunica a cada pessoa humana em particular. A obra redentora do Filho se refere à nossa natureza; a obra deificadora do Espírito Santo se dirige às nossas pessoas. Mas as duas são inseparáveis e não podem ser pensadas uma sem a outra, pois elas se condicionam mutuamente, estão presentes uma na outra – e, ao final, não são senão uma só economia da Santíssima Trindade, realizada pelas duas Pessoas divinas enviadas pelo Pai ao mundo. Esta dupla economia do Verbo e do Paráclito tem como objetivo a união dos seres criados com Deus.

Considerado do ponto de vista de nossa decadência, este objetivo da economia divina se chama salvação ou redenção. É o aspecto negativo do fim último considerado em relação ao nosso pecado. Considerado do ponto de vista da vocação última dos seres criados, ela se chama deificação. É a definição positiva do mesmo mistério que deve se realizar em cada pessoa humana na Igreja e se revelar plenamente no século futuro, quando, depois de haver reunido a tudo em Cristo, Deus se tornará tudo em todas as coisas[7].


Extraído de:
Vladimir Lossky, A imagem e a semelhança,
Aubier Montaigne 1967.




[1] II Pedro 1: 4.
[2] Gregório de Nazianze – Discurso XLV.
[3] I Coríntios 15: 28.
[4] João 1:1.
[5] I Coríntios 12: 13.
[6] Lucas 12: 49.
[7] Cf. I Coríntios 15: 28.

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