sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - XII. As Últimas Coisas e os Últimos Acontecimentos




“Contemplai, pois fiz novas todas as coisas.”
Apocalipse 21: 5


I.                    Escatologia

A escatologia foi por muito tempo um terreno negligenciado na moderna teologia. A arrogante frase de Ernst Troeltsch – “O departamento de escatologia está quase inteiramente encerrado” – foi uma característica distintiva de toda a tradição liberal, desde o Iluminismo. Mas esse desprezo pelos assuntos escatológicos não foi completamente superado no pensamento contemporâneo. Em algumas frentes a escatologia continua sendo vista como uma relíquia obsoleta de um passado a ser esquecido. O próprio tema é evitado, ou sumariamente rejeitado como algo irreal e irrelevante. O homem moderno não está preocupado com os últimos acontecimentos. Essa atitude de negligência foi recentemente reforçada pelo surgimento do Existencialismo teológico. Porém o mesmo Existencialismo proclama ser, ele próprio, uma doutrina escatológica. Mas trata-se de um abuso dos termos. A escatologia é radicalmente interiorizada na sua reinterpretação existencialista. Na verdade, ela é engolida pelo imediatismo das decisões pessoais. Num certo sentido, o Existencialismo moderno na teologia não passa de uma variação recente do velho tema Pietista. Em última instância, ele remonta ao desmonte histórico radical[1] da fé Cristã. Os acontecimentos históricos apresentam-se eclipsados pelos eventos da vida interior. A própria Bíblia é usada como um livro de parábolas e regras. A história não passa de um arcabouço ultrapassado. A eternidade pode ser encontrada e experimentada a qualquer momento. A história deixou de ser um problema teológico.

Por outro lado, precisamente nas últimas décadas, a historicidade básica da fé Cristã voltou a ser contemplada e reafirmada em diversas linhas da teologia contemporânea. Foi uma oportuna mudança no pensamento teológico. De fato, constituiu um retorno à fé Bíblica. É claro, não se pode encontrar na Bíblia nenhuma “filosofia da história”. Mas nela existe uma ampla visão da história, uma perspectiva de um tempo que se desdobra, que vai de um “começo” até um “fim”, e que é guiado pela vontade soberana de Deus em direção ao cumprimento de seu propósito último. A fé Cristã é, em primeiro lugar, um testemunho obediente dos poderosos feitos de Deus na história, que culminaram “nos últimos dias”, no Advento de Cristo e em Sua vitória redentora. De acordo com isso, a teologia Cristã deve ser construída como uma “Teologia da História”. A fé Cristã está alicerçada em acontecimentos, não em ideias. O próprio Credo é um testemunho histórico, um testemunho dos acontecimentos salvíficos ou redentores, que são apreendidos pela fé como os feitos poderosos de Deus.

Essa recuperação da dimensão histórica da fé Cristã trouxe outra vez a questão escatológica para o foco da meditação teológica. A Bíblia e o Credo, ambos apontam para o futuro. Sugeriu-se recentemente que a filosofia Grega estava inescapavelmente “presa ao passado”. A categoria “futuro” era quase irrelevante para a versão Grega da história. A história era concebida como uma rotação, com um retorno inevitável à posição inicial, a partir da qual uma nova repetição de eventos se iniciaria mais uma vez. Ao contrário, a visão Bíblica descortina o futuro, no qual as coisas novas serão reveladas e realizadas. E a realização última do propósito divino está antecipada no futuro, além do qual não existe movimento temporal – vale dizer, num estado de consumação.

Na espirituosa frase de Hans Urs von Balthasar, “a escatologia está no ‘olho do furacão’ na teologia de nosso tempo”. De fato, trata-se de um “nó sutil” no qual todas as linhas do pensamento teológico estão interconectadas e inextricavelmente tecidas. A escatologia não pode ser discutida como se fosse um tópico específico, como um artigo de fé em separado. Ela só pode ser entendida a partir de uma perspectiva total da fé Cristã. O que é característico do pensamento teológico contemporâneo é precisamente a redescoberta da dimensão escatológica da fé Crista. Não existe um consenso na teologia contemporânea a respeito das “Últimas coisas”. O que acontece é mais um conflito de visões e de opiniões. Mas também existe uma nova abertura de perspectiva.

A contribuição de Emil Brunner para a discussão atual foi tanto provocativa quanto construtiva. Sua teologia é uma teologia de esperança e expectativa, como convém a alguém que pertence à tradição Reformada. Sua teologia é intimamente orientada para os “Últimos acontecimentos”. Ainda assim, em muitos pontos, sua visão é limitada por seus pressupostos teológicos gerais. De fato, sua teologia reflete sua experiência pessoal da fé, aquilo que ele próprio chama de “sua existência devota”.


II.                  O mistério das Últimas Coisas

 O mistério das Últimas Coisas está baseado no paradoxo básico da Criação. De acordo com Brunner, o termo Criação, em seu uso Bíblico, não denota o modo como o termo é empregado atualmente – vir à existência – mas implica apenas a soberana Senhoria de Deus. No ato da Criação Deus estabelecer algo que é inteiramente outro em relação a Ele, “adjacente” a Ele. De acordo com isso, o mundo das criaturas possui seu próprio modo de existência – derivado e subordinado, dependente, mas, mesmo assim, real à sua própria maneira. Brunner é quase formal a respeito: “Um mundo que não é Deus passa a existir paralelamente a Ele”. Assim, a própria existência do mundo implica uma certa dose de “limitação” auto imposta do lado de Deus, Sua kenosis, que alcança seu máximo na cruz de Cristo. Deus abre espaço para a existência de algo diferente. O mundo foi “chamado à existência” com um propósito, para que possa manifestar a glória de Deus. O Verbo é o princípio e o objetivo último da Criação.

Com efeito, o simples fato da Criação constitui o paradoxo básico da fé Cristã, em relação ao qual podem ser deduzidos todos os demais mistérios de Deus – ou antes, em relação ao qual eles estão implicados. Brunner, entretanto, não distingue claramente, a esse respeito, entre o próprio “ser” de Deus e Sua “vontade”. De fato, o “ser” de Deus simplesmente não pode ser “limitado”, em nenhum sentido. Se existe uma “limitação”, ela só pode se referir à Sua “vontade”, na medida em que foi “chamada à existência” outra vontade, que poderia não ter nunca existido. Essa “contingência” básica da Criação testemunha a absoluta soberania de Deus. Por outro lado, o clímax definitivo da kenosis criadora só poderá ser encontrado nos “Últimos Eventos”. O ferrão do paradoxo, dessa kenosis, não reside na existência do mundo, mas na possibilidade do Inferno. De fato, o mundo ode ser obediente a Deus, assim como pode desobedecê-lo, e em sua obediência ele serve a Deus e manifesta Sua glória. Não se trata de uma “limitação”, mas de uma expansão da majestade de Deus. Ao contrário, o Inferno significa resistência e distanciamento, pura e simplesmente. Entretanto, mesmo num estado de revolta e rebelião, o mundo continua pertencendo a Deus. Ele jamais poderá escapar ao Seu Juízo.

Deus é eterno. Essa não é uma definição negativa. Ela simplesmente significa que a noção de tempo não pode ser aplicada à Sua existência. Com efeito, o “tempo” não passa de um modo da existência criada. O tempo foi dado por Deus. Não se trata de um modo de existência imperfeito ou deficiente. Não existe nada de ilusório a respeito do tempo. A temporalidade é real. O tempo realmente se move, de forma irreversível. Mas não se trata de um fluxo, nem de uma rotação. Ele não é uma série de “átomos de tempo” indiferentes que possam ser concebidos ou postulados como infinitos, sem fim ou limite. Trata-se antes de um processo teleológico, organizado internamente com vistas a um determinado objetivo final. Existe um telos implicado em todo desígnio da Criação. De acordo com isso, o que acontece no tempo é significativo – significativo e real para o próprio Deus. A História não é uma sombra. Definitivamente, a história possui um objetivo “meta-histórico”. Brunner não utiliza esse termo, mas ele enfatiza a “finitude” inerente à história. Uma história infinita, que se desenvolvesse indefinidamente, sem destino ou fim, seria uma história vazia e desprovida de significado. A história deve ter um fim, uma conclusão, uma katharsis, uma solução. A trama deve ser revelada. A história precisa ter um termo, no qual ela será “realizada”, “preenchida”, “consumada”. Ela foi originalmente desenhada para ser “realizada”. No final, já não haverá história de espécie alguma. O tempo se realizará na eternidade, como coloca Brunner. Naturalmente, nessa conexão a eternidade significa simplesmente Deus. O tempo só tem significado contra um fundo de eternidade, ou seja, somente no contexto do desígnio divino.

De fato, a história não é apenas o desdobramento desse desígnio primordial e soberano. O tema da história real, da única história que de fato conhecemos, é dado pela existência do pecado. Brunner dispensa a querela sobre a origem do pecado. Ele apenas enfatiza sua “universalidade”. O pecado, no sentido Bíblico do termo, não é primitivamente uma categoria ética. De acordo com Brunner, ele apenas denota a necessidade de redenção. Os dois termos são intrinsecamente correlativos. Agora, o pecado não é um fenômeno primário, mas uma quebra, um desvio, uma rejeição do princípio. Sua essência é a apostasia e a rebelião. É esse aspecto do pecado que é ressaltado na história Bíblica da Queda. Brunner recusa ver a Queda como um evento real. Ele insiste apenas que sem o conceito de Queda a mensagem básica do Novo Testamento, vale dizer, a mensagem da salvação, seria absolutamente incompreensível. Efetivamente, não devemos nos perguntar a respeito do “quando” e do “como” da Queda. A essência do pecado só pode ser discernida à luz de Cristo, ou seja, à luz da redenção. O homem, tal como o observamos na história, sempre aparece como pecador, incapaz de não pecar. O homem histórico é sempre um “homem revoltado”. Brunner está perfeitamente ciente da força do pecado – tanto no mundo, quanto na história humana. Ele adota a noção Kantiana do pecado radical. O que ele diz sobre o pecado Satânico, como sendo diferente do pecado humano, sobre o poder Satânico supra pessoal, é impressionante e altamente relevante para o questionamento teológico, tanto quanto tudo o que inevitavelmente ofende e perturba a mente do homem moderno. Mas a questão principal permanece ainda sem resposta. Teve a Queda o caráter de um evento? A lógica do argumento de Brunner parece nos compelir a vê-la como um evento, um elo na cadeia dos acontecimentos. De outro modo, ela não passaria de um símbolo, de uma hipótese de trabalho, indispensável para finalidades interpretativas, mas irreal. Realmente, o fim da história deve ser visto, de acordo com Brunner, como “um evento”, por mais misterioso que deva ser esse evento. Também “o começo” tem um caráter de “evento”, como o primeiro elo da cadeia. Mais do que isso, a redenção é obviamente um “evento” que pode ser datado com exatidão – de fato, o evento crucial, determinativo de todos os demais. Dessa perspectiva parece imperativo ver a Queda como um evento, qualquer que seja a maneira como ela é visualizada ou interpretada.  Em qualquer caso, a redenção e a Queda estão intrinsecamente relacionadas entre si, na interpretação de Brunner.

Brunner distingue claramente as criaturas enquanto tais do pecado. As criaturas provêm de Deus. O pecado provém de uma fonte oposta. O pecado se revela em eventos, em atos e ações pecaminosos. De fato, trata-se de um abuso de poder, de uma perversão dessa liberdade responsável que foi concedida ao homem no mesmo momento em que ele foi chamado à existência. Com efeito, antes de que o abuso se tornasse um hábito, ele precisou ser exercido pela primeira vez. A revolta precisou começar um dia. Essa asserção está alinhada com o restante da exposição de Brunner. De outra forma pode-se cair numa espécie de dualismo metafísico que o próprio Brunner denuncia vigorosamente. De qualquer modo, a existência das criaturas e a pecaminosidade não podem ser igualadas ou identificadas.

De fato, Brunner está certo ao sugerir que devemos iniciar a partir do centro, ou seja, com a boa nova da redenção em Cristo. Mas em Cristo nós contemplamos não apenas nossa desesperada “situação existencial” enquanto pecadores miseráveis, mas, acima de tudo, o envolvimento histórico do homem com o pecado. Nós nos movemos num mundo de eventos. Somente por essa razão estamos justificados em olhar para frente, para os “Últimos Acontecimentos”.

O curso da história foi radicalmente desafiado por Deus – e num ponto crucial. De acordo com Brunner, desde a vinda de Cristo, o próprio tempo se carregou, para os fiéis, com uma qualidade totalmente nova, com uma “diversa e desconhecida qualidade de decisão”. Desde então, os fiéis são confrontados com uma alternativa definitiva, confrontados agora, nesse “tempo histórico”. A escolha é radical, entre os céus e o inferno, qualquer momento da história pode se tornar decisivo – para aqueles que estão encarregados de tomar decisões, através do desafio e da revelação de Cristo. Nesse sentido, de acordo com Brunner, “o tempo terrestre, para a fé, está carregado com uma tensão de eternidade”. O homem agora está inescapavelmente chamado a tomar decisões, desde que Deus manifestou Sua própria decisão, em Cristo, e em Sua Cruz e Sua Ressurreição. Significa isso que “decisões eternas” – vale dizer, decisões “para a eternidade” – devam ser tomadas nesse “tempo histórico”? Pela fé em Jesus Cristo, o Mediador, podemos, desde já, “participar” da eternidade. Desde Cristo, os fiéis já habitam como que em diferentes dimensões, tanto dentro quanto fora do tempo “ordinário[2]”. É como se o tempo tivesse sido “polarizado” pelo Advento de Cristo. Assim, ao que parece, o tempo agora está relacionado com a eternidade, ou seja, com Deus, de uma maneira dupla. Por um lado, o tempo está sempre relacionado intrinsecamente com o Deus eterno, seu Criador: Deus concede o tempo. Por outro lado, o tempo, nesses últimos dias, foi radicalmente contestado pela intervenção direta e imediata de Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Como o próprio Brunner diz, “a temporalidade, a existência no tempo, ganha um novo caráter através de sua relação com esse evento, Jesus Cristo, o eph hápax[3]da história, a qualidade “de uma vez por todas” de Sua Cruz e Ressurreição, e ela é remodelada de uma maneira paradoxal que é ininteligível, se guiada apenas pela razão”.

Buscamos expor o ponto crucial da exposição de Brunner. Sua interpretação do destino humano e estritamente Cristológica e Cristocêntrica. Somente a fé em Cristo dá sentido à existência humana. Esse é seu ponto forte. Mas existe um cunho docético[4] ambíguo nessa Cristologia, e isso afeta gravemente seu entendimento da história. Estranhamente, o próprio Brunner dirige o mesmo ataque à Cristologia tradicional da Igreja, afirmando que ela jamais deu suficiente atenção ao Jesus histórico. Trata-se de um ataque sumário que não podemos analisar e “refutar” nesse momento. O que é relevante para nosso propósito atual é que a Cristologia de Brunner é obviamente mais docética do que a da tradição Católica. A atenção de Brunner ao Jesus histórico é fortemente ambígua. Segundo ele, Cristo é uma personalidade histórica apenas enquanto homem. Quando Ele “Se revela” – ou seja, quando Ele revela Sua Divindade àqueles que possuíam os olhos da fé – Ele deixa por completo de ser uma personalidade histórica. De fato, a humanidade de Cristo, segundo Brunner, não passa de um “disfarce”. O verdadeiro “self” de Cristo é divino. Para a fé, Cristo descarta Seu disfarce, Seu “incógnito”, para usarmos a expressão de Brunner. “Quando ele Se revela, a história desaparece, e inicia-se o Reino de Deus. E quando Ele Se revela, Ele já não é uma personalidade histórica, mas o Filho de Deus, de eternidade a eternidade”. É de fato uma linguagem surpreendente.

Na verdade, a humanidade de Cristo é apenas uma maneira de entrar na história, ou melhor, de aparecer na história. A relação de Deus com a história, e com a realidade humana, é como se fosse apenas tangencial, mesmo no mistério crucial da Encarnação. De fato, a humanidade de Cristo interessa a Brunner apenas como meio da revelação, da auto-revelação divina. Com efeito, para Brunner, em Cristo Deus encontrou uma base firme na humanidade. Mas isso não significa nada além de que Deus agora desafiou o homem em seu próprio elemento humano, em seu próprio terreno e grau humano. Para encontrar o home, Deus teve que descer ao próprio nível humano. Isso pode ser entendido de uma maneira estritamente ortodoxa. De fato, esse era o pensamento favorito dos antigos Padres. Mas Brunner nega qualquer interpenetração real dos aspectos divino e humano na pessoa de Cristo. De fato, eles não passam de “aspectos”. Dois elementos se encontram, mas não numa unidade real. O Cristo da fé é apenas divino, ainda que num disfarce humano. Sua humanidade é apenas um meio de entrar na história, ou antes, de aparecer na história. Será a história não mais do que uma tela na qual a divina “eternidade” é projetada? Deus teve que assumir as vestes de um mendigo, pois de outro modo ele seria incapaz de encontrar o homem. Nunca houve uma verdadeira “assunção” da realidade humana na experiência pessoal do Encarnado. O papel da humanidade de Cristo teria sido unicamente instrumental, um disfarce. Basicamente, trata-se de um completo docetismo, ainda que se possa dar muita atenção ao “Jesus histórico”. Antes de tudo, o “Jesus histórico” não pertence, nessa interpretação, ao domínio da fé.

As verdadeiras decisões não são tomadas no plano da história, diz Brunner. “Pois essa é a esfera na qual o homem veste sua máscara. Por causa de nossa “mascarada”, vale dizer, por causa de nossa pecaminosa falsidade, também Cristo, se é que posso me expressar assim, teve que vestir uma máscara; nisso consistiu Seu Incógnito”. Agora, sob a ação da fé, o homem retira sua máscara. Então, em resposta, também Cristo tira Sua máscara, Seu disfarce humano, e aparece em Sua glória. A fé, segundo Brunner, destrói a história. A fé constitui, em si, uma espécie de ato “meta-histórico”, que transcende a história, e até mesmo a dispensa. Brunner enfatiza o caráter único da revelação redentora de Deus em Cristo. Para o homem, isso significa que o desafio é radical e definitivo. Ao homem é dada uma única oportunidade, ou ocasião, para tomar sua decisão, para superar sua própria humanidade limitada, até mesmo sua temporalidade intrínseca – por um ato de fé que o leva além da história, ainda que apenas em esperança e promessa, até que o kairos[5] final chegue. Mas será a história humana definitivamente não mais do que uma mascarada? De acordo com a enfática declaração de Brunner, a temporalidade em si não é um pecado. Por que, então, deveria a divina revelação em Cristo descartar a história? Por que haveria a história de ser um obstáculo para a auto-revelação de Deus, um obstáculo a ser radicalmente removido?

Em última instância, a mudança radical na história – a Nova Era, inaugurada com o Advento de Cristo – parece consistir apenas numa oportunidade nova e sem precedentes de tomar um partido. Deus, na realidade, permanece tão oculto na história quanto antes ou, provavelmente, até mais do que antes, uma vez que a incomensurabilidade definitiva da revelação divina, em relação à mascarada humana, se tornou auto evidente e visível. Deus só pode se aproximar do homem se for disfarçado. O verdadeiro curso da história não se alterou, seja pela intervenção de Deus, seja ela opção do homem. Fora da decisão da fé a história é vazia e sempre pecaminosa. A textura íntima da verdadeira existência histórica não foi afetada pela revelação redentora. Não obstante, foi dado um aviso: o Senhor voltará. Então Ele virá como Juiz, não como Redentor, embora o Julgamento deva realmente realizar e estabilizar a redenção.

Pela fé podemos agora discernir uma “tensão escatológica” no próprio curso da história, embora seja inútil e vão entregar-se a qualquer espécie de cálculos apocalípticos. Essa tensão parece existir apenas no nível humano. O intermezzo escatológico é a época das decisões – a serem tomadas pelo homem, pois a decisão de Deus já foi tomada desde sempre.

Como um todo, a história Cristã, de acordo com Brunner, foi um doloroso fracasso, uma história de decadência e desentendimento. Esse é um esquema antigo, firmemente estabelecido pela historiografia Protestante, pelo menos desde Gottfried Arnold.  Primitiva comunidade Cristã, a ecclesia, foi uma genuína comunidade Messiânica, “a portadora da nova vida da eternidade e do poder do mundo divino”, conforme coloca Brunner. Mas essa ecclesia primitiva não sobreviveu, pelo menos não enquanto entidade histórica, como um fator histórico. Brunner reconhece alguns “adventos” parciais e provisórios do Reino de Deus ao longo da história. Mas todos esses “adventos” são esporádicos. Onde está a fé, aí está a ecclesia, ou o Reino. Mas ele se encontra oculto na “mascarada” permanente da história. Finalmente, a marcha da história é uma espécie de campo de testes, onde cada homem é desafiado e suas respostas são tentadas e testadas. Mas será que a “história salvífica” ainda prossegue? Estará Deus ainda ativo na história, depois do Primeiro Advento – ou terá sido a história deixada de lado, depois da grande intervenção de Cristo, relegada ao homem apenas, com essa condição escatológica de que finalmente Cristo voltará?

Agora, obviamente a história não passa de um estágio provisório e passageiro no destino do homem. O homem é chamado à “eternidade”, não à “história”. É por isso que a “história” deve chegar a um termo, a um fim. E, de fato, a história é também um estágio de crescimento – o trigo e o joio crescem juntos, e sua separação definitiva é adiada – até o dia da colheita. O joio cresce, rápida e selvagemente. Mas o trigo também cresce. De outra forma, não haveria oportunidade para nenhuma colheita, exceto a do joio. De fato, a história amadurece não apenas para o julgamento, mas também para a consumação. Mais do que isso, Cristo continua ativo na história. Brunner desconsidera, ou ignora, esse componente da história Cristã. Em sua visão, a história Cristã está como que “atomizada”. Ela se reduz a uma série de atos existenciais, praticados pelo homem, e, estranhamente, apenas os atos negativos, os atos de rebelião e de resistência, são integrados e solidarizados. Mas, de fato, a ecclesia não é simplesmente um agregado de atos esporádicos, mas um “corpo”, o Corpo de Cristo. Cristo está presente na ecclesia não apenas como um objeto de fé e reconhecimento, mas como sua Cabeça. Ele está realmente reinando e governando. Isso assegura a continuidade e a identidade da Igreja através dos séculos. Na concepção de Brunner Cristo parece estar a parte da história, ou acima dela. Estará Ele realmente presente agora, no presente, sem ser por intermédio da memória do passado e da esperança no futuro, e verdadeiramente nos atos “meta-históricos” da fé?

A criação, de acordo com Brunner, tem seu próprio modo de existência. Mas ela não passa de um “meio” da revelação divina. Ela deve ser, digamos, transparente para a luz e a glória divinas. E, estranhamente, isso nos lembra da gnose Platônica de Orígenes e seus seguidores. Toda a história é reduzida à dialética do eterno e do temporal. O termo utilizado por Brunner é “parabólica”.


III.                A noção de “fim”

A noção de “fim” – de um fim definitivo – é uma noção paradoxal. Um “fim” tanto pertence a uma série como a encerra. Ele é tanto “um evento” quanto “o fim de todos os eventos”. Ele pertence à dimensão da história, ao mesmo tempo em que rejeita toda dimensão. A noção de “começo” – primeiro e radical – também é uma noção paradoxal. Como disse São Basílio, “o começo do tempo ainda não é o tempo, mas precisamente o começo deste[6]”. Ambos são “um instante”, e também mais do que isso.

Do futuro, só podemos falar em imagens e parábolas. Essa era a linguagem da Escritura. Essa imageria não pode ser adequadamente decifrada agora, e não deve ser tomada literalmente. Mas de modo algum ela pode ou deve ser “desmistificada”. Brunner é formal a esse respeito. A esperada Parúsia de Cristo deve ser vista como “um evento”. O caráter desse evento é inimaginável. Dificilmente poderemos encontrar símbolos e imagens melhores do que os que são empregados na Bíblia. “Qualquer que seja a forma que tome esse evento, tudo se resume ao fato de que ele acontecerá”. O kerygma[7] Cristão é decisivo a esse respeito: “a síntese redentora definitiva terá o caráter de um evento”. Em outras palavras, a Parúsia pertence à série de “acontecimentos” históricos, que ela deverá concluir e fechar. “Uma fé Cristã sem a expectativa da Parúsia é como uma escada que não leva a lugar algum e que termina no vazio”. Mas num aspecto, de qualquer modo, podemos ir além das imagens: é Cristo que virá. A Parúsia é um “retorno”, assim como é a novidade definitiva. Os “Últimos Eventos” estão centrados na pessoa de Cristo.

O fim virá “subitamente”. Mesmo assim, num certo sentido, ele terá sido preparado dentro da história. Como diz Brunner, “a história do homem revela radicalmente traços apocalípticos”. Nesse ponto ele se entrega a especulações metafísicas. “O balanço do pêndulo se torna cada vez mais rápido”. Essa aceleração do tempo da vida humana pode atingir um ponto além do qual não é possível ir. A história pode simplesmente explodir de repente. Por outro lado, num nível mais profundo, as desarmonias da existência humana estão crescendo firmemente: existe uma “brecha crescente na consciência humana”. É claro que essas sugestões não têm mais do que um valor subsidiário e hipotético. Brunner tenta transferir o conceito paradoxal de fim para o pensamento moderno. Mas isso é também característico de sua própria visão da realidade humana. A história está pronta para explodir, ela está oprimida e desgastada por tensões não resolvidas. Há alguns anos um filósofo religioso Russo, Vladimir Ern, sugeriu que a história humana é uma espécie de “progresso catastrófico”, uma progressão retilínea em direção a um fim. Porém, esse final deverá vir do alto, na Parúsia. Concordantemente, tratar-se-á de algo mais do que apenas uma “catástrofe”, ou um “julgamento” imanente ou interno – uma revelação das contradições e tensões inerentes. Ele deverá ser um julgamento absoluto, o Juízo de Deus.

Mas o que é um Julgamento? Ele não é menos um “evento” do que a Parúsia. Trata-se de um encontro definitivo entre a humanidade pecadora e o Deus Santo. Em primeiro lugar, será uma revelação ou uma manifestação do verdadeiro estado de cada homem e da humanidade como um todo. Nada ficará escondido. Assim o Julgamento encerrará esse estado de confusão e de ambiguidade, de inconclusão (como coloca Brunner), que caracterizou todo o estágio histórico do destino humano. Isso implica uma “discriminação” derradeira e final – à luz de Cristo. Será um desafio final e definitivo. A vontade de Deus finalmente será cumprida. A vontade de Deus será definitivamente imposta. De outra forma, na frase de Brunner, “todo discurso sobre responsabilidade não passa de conversa vã”. De fato, ao homem foi concedida a liberdade, mas não se trata de uma liberdade de indiferença. A liberdade humana é essencialmente uma liberdade de resposta – a liberdade de aceitar a vontade de Deus. A “liberdade pura” só pode ser professada por ateus. “Ao homem foi confiado, do homem se espera, meramente um eco, um cumprimento subsequente de uma decisão que Deus previamente tomou por ele e para ele”. Não existe senão uma opção justa para o homem – obedecer; não existe um dilema real. O propósito e a finalidade do homem foram fixados por Deus.

Tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Mas, precisamente nesse ponto, surge uma questão acabrunhadora. Irão todos os homens aceitar, no Juízo Final, a vontade de Deus? Existirá espaço para alguma forma de resistência radical e irreversível? Poderá a revolta do homem estender-se para além do Julgamento? Poderá algum ser criado, dotado de liberdade, persistir num distanciamento de Deus, persistentemente praticado desde antes, ou seja: poderá ele persistir em sua própria vontade? Poderá esse ser ainda “existir” – num estado de revolta e oposição, contra a vontade salvífica de Deus, fora do propósito salvífico de Deus? Será possível ao homem perseverar numa rebelião, apesar do chamado e do desafio de Deus? Será a imagem Escriturária da separação – entre ovelhas e bodes – a última palavra sobre o destino derradeiro do homem? Qual será o status definitivo da “liberdade” criada? O que significa que a vontade de Deus deverá prevalecer finalmente? Essas questões são embaraçosas e intrigantes. Mas elas não podem ser evitadas. Elas não são ditadas apenas por uma curiosidade especulativa. Trata-se de questões “existenciais”. De fato, o Juízo Final é um mistério terrível, que não pode nem deve ser racionalizado, que está além do conhecimento e do entendimento. Trata-se de um mistério de nossa própria existência, do qual não podemos escapar, ainda que não possamos compreendê-lo ou entendê-lo intelectualmente.

Brunner rejeita enfaticamente o “terrível teologúmeno[8]” da dupla predestinação como sendo incompatível com o pensamento da Bíblia. Não existe uma discriminação eterna no desígnio criador de Deus. Deus chama todos os homens à salvação, e foi com esse propósito que Ele lhes deu existência. A salvação é o único proposito de Deus. Mas o paradoxo crucial permanece sem solução. O problema crucial é estabelecer em que medida esse propósito único de Deus será realmente realizado, em toda sua plenitude e extensão, tal como é admitido e postulado na teoria da salvação universal, para a qual se pode alegar a evidência Escriturária. Brunner rejeita a doutrina da Apokatastasis como sendo uma “perigosa heresia”. Ela estaria errada enquanto doutrina. Ela implica uma segurança errônea para o homem – todos os caminhos levam, em definitivo, ao mesmo fim, e assim não existe uma tensão real, um perigo real. Ainda assim, Brunner admite que a doutrina da graça remissória, e da justificação pela fé , conduz logicamente ao conceito da redenção universal; pode a vontade do Deus onipotente encontrar resistência, ou, por assim dizer, ser revertida pela obstinação de criaturas frágeis? O paradoxo pode ser resolvido apenas dialeticamente – na fé. Não podemos conhecer a Deus teoricamente. É preciso acreditar em Seu amor.

É típico que Brunner discuta todo o problema exclusivamente da perspectiva da vontade divina. Por essa razão ele perde o verdadeiro ponto do paradoxo. Ele simplesmente ignora o aspecto humano do problema. De fato, a “danação eterna” não é infligida por um “Deus raivoso”. Deus não é o autor do Inferno. A “danação” é um castigo auto infligido, a consequência e a implicação da oposição rebelde a Deus e à Sua vontade. Brunner admite que existe uma possibilidade real de danação e de perdição. É perigoso e errôneo ignorar essa possibilidade real. Mas podemos esperar que ela nunca se realize. Porém, a própria esperança deve ser realista e sóbria. Estamos diante da alternativa: ou, no Juízo Final, os infiéis e os pecadores renitentes serão finalmente movidos pelo desafio divino, e ser converterão “livremente(essa é a hipótese de São Gregório de Nissa); ou sua obstinação será simplesmente sobrepujada pela Onipotência divina, e eles serão salvos pelo constrangimento da divina misericórdia e da vontade divina – sem seu consentimento livre e consciente. A segunda solução implica contradição, a menos que entendamos a “salvação” de uma maneira formal e forense. De fato. Criminosos podem ser exonerados numa corte de justiça, ainda que não se arrependam, e que perseverem em sua perversão. Eles apenas escapam à punição. Mas não podemos interpretar o Juízo Final dessa maneira. Em qualquer caso, a “salvação” envolve a conversão, envolve um ato de fé. Ela não pode ser imposta a ninguém.  Será então a primeira solução mais convincente? Claro, a possibilidade de uma “conversão” tardia – na “décima primeira hora, e até mais tarde – não pode ser teoricamente descartada, e o impacto do amor divino é infinito. Mas essa oportunidade, ou possibilidade de conversão, antes do Tribunal de Cristo, estabelecido em glória, não pode ser discutido in abstracto, genericamente. Antes de tudo, a questão da salvação, assim como a decisão da fé, é um problema pessoal, que só pode ser colocado e encarado no contexto de uma existência concreta e individual. As pessoas são salvas, ou perecem. E cada caso pessoal deve ser estudado individualmente. A principal fraqueza do esquema de Brunner está em que ele sempre fala em termos gerais. Ele fala sempre da condição humana, e nunca de pessoas vivas.

O problema do homem, para Brunner, é essencialmente o problema da condição de pecado. Ele teme toda e qualquer categoria “ôntica”. De fato, o homem é pecador, mas ele é, antes de tudo, homem. É verdade, também, que a verdadeira estrutura da hominidade só foi exibida em Cristo, que era mais do que homem e ao mesmo tempo não era homem. Mas em Cristo nos foi concedido não apenas a remissão, mas ainda o poder de sermos, ou nos tornarmos, filhos de Deus, vale dizer: nos tornarmos aquilo que deveríamos ser. Claro, Brunner admite que os fiéis podem estar em comunhão com Deus desde já, na vida presente. Mas um dia chega a morte. Poderá a fé, ou estar a pessoa – verdadeiramente – em Cristo, fazer alguma diferença nesse momento? Será a comunhão com Cristo, estabelecida pela fé (e, de fato, pelos sacramentos), ser rompida pela morte? Será verdadeiro que a vida humana seja uma “vida para a morte”? a morte física é o limite da vida física. Mas Brunner fala da morte da pessoa humana, do “Eu”. Ele afirma que se trata de um mistério, de um mistério impenetrável, do qual o homem racional é incapaz de saber seja lá o que for. Mas, de fato, o conceito dessa “morte pessoal” não passa de uma asserção metafísica, derivada de certos pressupostos filosóficos, e jamais um datum de nenhuma experiência verdadeira ou possível, incluindo a experiência da fé. A “morte” da pessoa é apenas o afastamento de Deus, mas, mesmo nesse caso, ela não implica aniquilação. Num sentido, a morte significa a desintegração da personalidade humana, porque o homem não foi designado para ser imaterial. A morte corporal reduz a integridade da pessoa humana. O homem morre, mas ainda assim sobrevive – na expectativa do fim geral. A antiga doutrina da Comunhão dos Santos aponta para a vitória de Cristo: Nele, através da fé (e dos sacramentos), mesmo os mortos estão vivos, e partilham – por antecipação, mas realmente – da vida eterna. A Communio Sanctorum é um tópico escatológico importante. Brunner simplesmente ignora tudo isso – certamente, não por acidente, mas de modo consistente. Ele fala da condição da morte, não de casos pessoais. O conceito de uma alma imortal pode ser uma adição Platônica, mas a noção de “pessoa indestrutível” é parte integral do Evangelho. De fato, somente nesse caso existe espaço para um Julgamento universal ou geral, no qual todas as pessoas históricas, de todas as eras e todas as nações, deverão aparecer – não como uma massa confusa de frágeis e inúteis pecadores, mas como uma congregação de pessoas interessadas e responsáveis, cada qual com seu caráter distinto, congênito e adquirido. A morte é uma catástrofe. Mas as pessoas sobreviverão, e aqueles em Cristo já estão vivas – mesmo no estado de morte. Os fiéis não apenas esperam pela vida que virá, mas estão desde já vivos, embora esperem todos pela Ressurreição. Brunner, naturalmente, está completamente ciente disso. Em suas próprias palavras, aqueles que creem “não morrerão para o nada, mas em Cristo”. Quererá isso dizer que os que não creem “morrerão para o nada”? E o que é o “nada”: as “trevas exteriores” (que é provavelmente o caso), ou o verdadeiro “não-ser”?

É também verdade que essa integridade total da existência pessoal, distorcida e reduzida pela morte, será restaurada na Ressurreição geral. Brunner enfatiza o caráter pessoal da Ressurreição. “A fé do Novo Testamento não conhece outro tipo de vida eterna, senão a das pessoas individuais”. A carne não irá renascer, mas alguma forma de corporeidade está implicada na Ressurreição. Tudo irá renascer, porque Cristo ressuscitou. Mas a Ressurreição é, em primeiro lugar, uma Ressurreição para a vida em Cristo, e uma Ressurreição para o Juízo. Brunner discute a Ressurreição geral no contexto da fé, do perdão e da vida. Mas, e quanto ao status daqueles que não creem, que não pediram pelo perdão e que jamais conheceram o amor redentor de Cristo, ou que provavelmente se obstinaram em denunciá-lo e rejeitá-lo como sendo um mito, ou uma fraude, um engodo, ou como uma ofensa à personalidade autônoma?

Isso nos devolve ao paradoxo do Julgamento. Estranhamente, nesse ponto Brunner fala mais como filosofo do que como teólogo, precisamente porque ele tenta evitar a inquirição metafísica, e todos os problemas que foram suprimidos reaparecem disfarçados. Brunner coloca a questão dessa maneira: como podemos conciliar a Onipotência divina e a liberdade humana, ou – num nível mais profundo – a santidade divina (ou justiça) e a misericórdia e o amor divinos? Trata-se de um problema estritamente metafísico, mesmo que seja discutido numa base escriturária. Por outro lado, o verdadeiro problema teológico é o seguinte: qual será o status existencial dos infiéis – na visão de Deus e na perspectiva do destino humano? O problema real é existencial – o status e o destino das pessoas individuais. Para Brunner, o problema fica obscurecido por sua escolha inicial – sua classificação abrangente de todos os homens como pecadores, sem nenhuma discriminação real, ôntica ou existencial, entre os justos e os ímpios. De fato, todos estarão sob Julgamento, é óbvio – mas não no mesmo sentido. O próprio Brunner distingue entre os que caíram em tentação e os que escolheram tentar os outros e seduzi-los. Ele conhece a perversão deliberada. Mas ele não pergunta como uma pessoa humana individual pode ser afetada, em sua estrutura interior e íntima, por uma perversão deliberada e obstinada, pela apostasia ou pelo “amor ao mal”. Existe uma diferença real entre fraqueza e impiedade, entre fragilidade e recusa de Deus. Poderão todos os pecados ser perdoados, mesmo os não confessos e os impenitentes? Não será o perdão recebido apenas com humildade e fé? Em outras palavras, será a “condenação” apenas um “castigo”, no sentido forense, ou algum tipo de “recompensa” negativa? Ou será simplesmente uma manifestação daquilo que é oculto – ou antes, quase exposto e visível – naqueles que escolheram, por um abuso da “liberdade”, o caminho largo que conduz à Geena?

Não existe um capítulo sobre o Inferno em nenhum dos livros de Brunner. Mas o Inferno não é uma mera figura de linguagem “mítica”. Tampouco se trata de uma perspectiva sombria, a qual – esperamos – pode jamais realizar-se. Horrible dictu – trata-se de uma realidade, para a muitos seres humanos estão desde já destinados, por sua própria vontade, ou, no mínimo, por sua própria escolha e decisão, o que pode significar, em última instância, escravidão, mas que é normalmente confundida com liberdade. O “Inferno” é um estado interior, não um “lugar”. É o estado de desintegração pessoal, que é confundido como uma autoafirmação – não sem razão, porque essa desintegração está fundamentada no orgulho. É um estado de auto confinamento, de isolamento e de alienação, de orgulhosa solidão. O estado de pecado é em si “infernal”, ainda que possa ser, por uma ilusão da imaginação egoísta, confundido com o “Paraíso”. Por esse motivo os pecadores escolhem o “pecado”, a atitude orgulhosa, a atitude de Prometeu. É possível fazer do Inferno um “ideal”, e persegui-lo, deliberada e persistentemente. “Onde quer que eu esteja, aí está minha vontade livre, e onde está minha livre vontade, o inferno absoluto e eterno está em meu poder[9]”. De fato, em definitivo, ele não passa de uma ilusão, uma aberração, uma violência, um erro. Mas o aguilhão do pecado está precisamente na negação da realidade divinamente instituída, na tentativa de estabelecer uma outra ordem ou regime, que consiste, em contraste com a verdadeira ordem divina, numa desordem radical, mas para a qual é possível dar, numa exaltação egoística, a preferência definitiva. Mas o pecado foi destruído e ab-rogado – não podemos dizer que o pecado tenha sido redimido, pois apenas pessoas podem ser redimidas. Mas não é o bastante reconhecer, pela fé, o fato da divina redenção – é preciso nascer outra vez. Toda a personalidade deve ser limpa e curada. O perdão deve ser aceito e alcançado em liberdade. Ele não pode ser imputado – ele só existe num ato de fé e gratidão, num ato de amor. Paradoxalmente, ninguém pode ser salvo apenas pelo amor divino, sem que esse seja correspondido por um amor agradecido da pessoa humana. De fato, existe sempre a possibilidade do “arrependimento” e da “conversão” no decurso dessa vida terrestre e histórica. Podemos admitir que essa possibilidade continua depois da morte? Brunner dificilmente aceitaria a ideia de um “Purgatório”. Mas, mesmo no conceito de Purgatório não está implicada a chance de uma conversão radical. O Purgatório inclui apenas os fiéis, aqueles com boas intenções, devotados a Cristo, mas deficientes quanto ao seu crescimento e aquisições. A personalidade humana é construída e moldada nessa vida – no mínimo, ela é orientada nessa vida. A dificuldade da salvação universal não está do lado divino – com efeito, Deus quer que todos os homens “se salvem”, não tanto, provavelmente, para que Sua vontade se cumpra e para que Sua Divindade seja assegurada, mas para que a existência humana possa ser completa e abençoada. Mas, do lado da criatura, dificuldades insuperáveis podem ser levantadas. Antes de tudo, será a “resistência derradeira” um paradoxo maior, uma ofensa maior do que qualquer resistência ou revolta que realmente perverta a ordem total da Criação, que desabilite o ato da redenção? Somente se nos comprometermos com uma visão Docética da história, e se negarmos a possibilidade das decisões definitivas na história, nessa vida, sob o pretexto de que ela é temporal, podemos escapar do paradoxo da resistência última.

São Gregório de Nissa antecipou uma espécie de conversão universal das almas no pós-vida, quando a Verdade de Deus se revelar e se manifestar com esmagadora evidência. Justamente nesse ponto a limitação do pensamento Helênico se torna óbvio. A evidência parece ser para ele o motivo decisivo da vontade, como se o “pecado” fosse meramente uma ignorância. O pensamento Helênico teve que passar por uma longa e difícil experiência de ascetismo, de autoexame e de autocontrole ascético, para poder superar sua ingenuidade e ilusão intelectual e descobrir o abismo escuro da alma decaída. Somente em São Máximo o Confessor, depois de alguns séculos de preparação ascética, encontramos uma interpretação nova e mais profunda da Apokatastasis. Com efeito, a ordem da Criação será inteiramente restaurada nos últimos dias. Mas as almas mortas continuarão insensíveis à própria revelação da Luz. A Luz Divina brilhará para todos, mas aqueles que antes escolheram a escuridão continuarão indispostos e incapazes de desfrutar a bênção eterna. Eles permanecerão apegados à escuridão noturna do egoísmo. Eles serão incapazes exatamente de desfrutar, eles permanecerão “de lado” – porque a união com Deus, que é a essência da salvação, pressupõe e requer a determinação da vontade. A vontade humana é irracional e suas motivações não podem ser racionalizadas. Mesmo a “evidência” pode falhar em impressioná-la e movê-la.

A escatologia é o domínio das antinomias. Essas antinomias estão enraizadas e fundamentadas no mistério básico da Criação. Como pode algo existir para além de Deus, se Deus e a plenitude do Ser? Somos tentados a resolver o paradoxo, ou antes a escapar dele, alegando os motivos da Criação, às vezes a tal ponto e de tal maneira que chegamos a comprometer a absolutividade e a soberania de Deus. Deus criou com perfeita liberdade, ex mera liberalitate, ou seja, sem nenhuma “razão suficiente”. A criação é o dom gratuito de um amor insondável. Mais do que isso, ao homem, na Criação, foi concedida essa autoridade misteriosa e enigmática da livre decisão, dentro da qual o mais enigmático não é a possibilidade de falha ou de resistência, mas a própria possibilidade do assentimento. Não é a vontade de Deus de tal dimensão que ela tem que ser simplesmente obedecida, sem necessidade de nenhum verdadeiro – vale dizer, livre – assentimento responsável? Na realidade, o mistério está na liberdade criada. Por que teria ela sido colocada num mundo criado e governado por Deus, por Sua infinita sabedoria e amor? Para que seja real, a resposta humana deve ser mais do que uma mera ressonância. Ela deve constituir um ato pessoal, um compromisso interior. Em qualquer caso, a forma da vida humana – e agora devemos talvez acrescentar, a forma e o destino do cosmo – depende da sinergia ou do conflito entre duas vontades, a divina e a criada. Muitas coisas acontecem que Deus abomina, no mundo que é obra Sua e objeto Seu. Estranhamente, Deus respeita a liberdade humana, conforme disse uma vez Santo Irineu, embora, de fato, a manifestação mais visível dessa liberdade seja a revolta e a desordem. Estamos nós autorizados a esperar que finalmente a desobediência humana será desconsiderada e “desrespeitada” por Deus, e que Sua Santa Vontade seja imposta, indiferentemente de qualquer assentimento? Ou isso tornaria a história humana uma “mascarada” temível? Qual será o sentido dessa terrível história de pecado, de perversão, de rebelião, se finalmente tudo for apagado e reconciliado pelo exercício da Onipotência divina?

Realmente, a existência do Inferno, ou seja, a oposição radical, implica uma espécie de “insucesso” parcial do desígnio criador. De fato, tratava-se mais do q eu de um desígnio, de um plano, de um padrão. Foi o chamado à existência, ao próprio “ser” das pessoas vivas. Falamos às vezes do “risco divino”. Provavelmente essa é uma palavra melhor do que kenosis. Trata-se, de fato, de um mistério, que não pode ser racionalizado – é o mistério primordial da existência criada.

Brunner leva a possibilidade do Inferno muito a sério. Não existe segurança de uma “salvação universal”, embora essa seja, abstratamente falando, ainda possível – para o Amor onipotente de Deus. Mas Brunner espera ainda que não haja Inferno. Mas o problema é que o Inferno existe. Sua existência não depende de uma decisão divina. Deus jamais enviou alguém para o Inferno. O Inferno foi criado pelas próprias criaturas. Ele é uma criação humana, de fora, podemos dizer, da “ordem da criação”.

O Juízo Final permanece um mistério.



[1] “Radical dehistorization”.
[2]Hoc universum tempus, sive saeculum, in quo cedunt morientes sucedunque nascentes” – “Esse tempo universal, ou século, no qual os que morrem dão lugar aos que nascem” (Sto. Agostinho, Civ. Dei, XV.I)
[3] Efésios, 7: 27.
[4] Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente.
[5] Palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou "oportuno"..
[6] Hexaem. 1.6.
[7] Palavra usada no N. T. com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou proclamação.
[8] Proposição teológica que não pode ser considerada imediatamente como doutrina oficial da Igreja, como proposição dogmática que obriga a fé, sendo que, porém, é antes de tudo resultado de expressão do esforço por entender a fé buscando conexões entre as proposições obrigatórias de fé (analogia da fé) e confrontando doutrinas dogmáticas com a experiência e o saber (profanos) de um homem (o de um tempo determinado).
[9] Marcel Jouhandeau, Algèbre des valeurs morales.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - XI. A Imortalidade da Alma






I.                    Preliminares

Estarão os Cristãos, enquanto Cristãos, obrigados a crer na Imortalidade da alma humana? E o que exatamente significa a imortalidade no universo Cristão do discurso? Essas questões, de modo algum, são meramente retóricas. Etienne Gilson, em seu Gifford lectures, sentiu-se compelido a expor o seguinte argumento: “No seu todo, o Cristianismo sem a imortalidade da alma não é completamente inconcebível – a prova está em que isso foi concebido. Ao contrário, o que é absolutamente inconcebível é um Cristianismo sem a Ressurreição do Homem”. Um aspecto impactante da história da doutrina primitiva do Cristianismo sobre o Homem está em que muitos escritores importantes do século II negaram enfaticamente a imortalidade (natural) da alma. E isso parece não ter sido uma opinião excepcional ou extravagante de alguns escritores apenas, mas antes o ensinamento comum daquele tempo. Tampouco foi essa convicção completamente abandonada posteriormente. O Bispo Anders Nygren, em seu famoso livro Den kristna karlakstanken genm tiderna, louva os Apologistas do século II precisamente por sua corajosa posição e vê nela uma expressão do verdadeiro espírito Evangélico. A principal ênfase, que na opinião de Nygren deve se manter ainda e sempre, está mais na “Ressurreição do corpo” do que na “Imortalidade da alma”. Um erudito Anglicano do século XVII, Henry Dodwell (1641-1711), publicou em Londres um curioso livro com o desconcertante título: An Epistolary Discourse, proving, from the Scriptures and the First Fathers, that the Soul is a Principle naturally Mortal; but immortalized actually by the Pleasure of God, to Punishment; or to Reward, by its Union with the Divine Baptismal Spirit. Wherein is proved, that None have the Power of giving this Divine Immortalizing Spirit, since the Apostles, but only the Bishops (1706).

A argumentação de Dodwell é frequentemente confusa e complicada. O maior valor do livro, por sua vez, estava na sua imensa erudição. Dodwell, provavelmente pela primeira vez, coletou um enorme volume de informações das antigas doutrinas Cristãs a respeito do Homem, ainda que nem sempre as tenha utilizado com propriedade. E ele estava quase certo em sua alegação de que o Cristianismo não se referia a uma “imortalidade” natura, mas antes a uma Comunhão sobrenatural da alma para com Deus, “o único que possui a Imortalidade[1]”. Não é de espantar que o livro de Dodwell tenha provocado uma violenta controvérsia. Uma acusação formal de heresia foi levantada contra o autor. Mesmo assim, ele conseguiu alguns aliados fervorosos. E um escritor anônimo, “um Presbítero da Igreja da Inglaterra” publicou dois livros a respeito, apresentando um cuidadoso estudo das evidências Patrísticas de que “o Espírito Santo (era) o Autor da Imortalidade, ou a Imortalidade (era) uma Graça peculiar ao Evangelho (e) não um ingrediente natural da Alma”, e de que “a Imortalidade (era) preternatural em relação às almas humanas, o Dom de Jesus Cristo, instituído pelo Espírito Santo no Batismo”. O que constituiu o principal interesse nessa controvérsia foi que a tese de Dodwell sofreu oposição especialmente dos “liberais” da época, tendo sido seu maior oponente o famoso Samuel Clarke, de Saint James, Westminster, um seguidor de Newton e correspondente de Leibnitz, notório por suas crenças e ideias pouco ortodoxas, um típico homem do Latitudinarianismo[2] e do Iluminismo. Tratava-se de uma situação inusitada: a “imortalidade” contestada por um “Ortodoxo” e defendida por um Latitiduinário. Com efeito, era bem isso que se poderia esperar. A crença numa imortalidade natural era um dos poucos “dogmas” do Deísmo iluminista daquele tempo. Um homem do Iluminismo poderia facilmente desprezar as doutrinas da Revelação, mas não poderia aceitar nenhuma dúvida a respeito da “verdade” da Razão. Gilson sugeria que “o que conhecemos pelo nome da doutrina Moralista do século XVII consistia originalmente num retorno da posição dos Primeiros Padres, e não, como se crê usualmente, numa manifestação de um espírito libertino. Enquanto colocação geral, isso é insustentável. A situação no século XVII era muito mais complexa e confusa do que aparentemente supõe Gilson. Mesmo assim, no caso de Dodwell (e outros), a suposição de Gilson é plenamente justificada. Havia um óbvio “retorno às posturas dos Primeiros Padres”.

II.                  A Alma enquanto “criatura”

São Justino, em seu Diálogo com Trifão, conta a história de sua conversão. Em sua busca pela verdade, primeiro ele recorreu aos Filósofos, e por algum tempo esteve plenamente satisfeito com os ensinamentos Platônicos. “A percepção das coisas incorpóreas me subjugou, e a teoria Platônica das ideias deu asas à minha mente”. Então ele encontrou um mestre Cristão, um respeitável ancião. Dentre as questões que foram levantadas no decurso de suas conversações, estavam aquelas a respeito da natureza da alma. O Cristão afirmava que não deveríamos considerar a alma como sendo imortal. “Pois, caso o fosse, seríamos obrigados a dizer que ela tampouco teria tido começo[3]”. Essa, naturalmente, era a tese dos Platônicos. Ora, somente Deus é “não-nascido” e imortal, e é por essa mesma razão que Ele é Divino. Por sua vez, o mundo “começou”, e as almas fazem parte dele. “Talvez tenha havido um tempo em que elas não existiam”. Portanto, elas não seriam imortais, “uma vez que o mundo apareceu para nós como tendo um começo”. A alma não é a vida em si, ela apenas “participa” da vida. Somente Deus e vida, a alma não vai além de ter vida. “Pois o poder de viver não é um atributo da alma, mas de Deus”. De resto, Deus concede vida às almas “conforme Seu agrado”. Todas as coisas criadas “possuem a natureza de se deteriorarem, e são feitas de modo a se apagarem e deixarem de existir”. Essas criaturas são “corruptíveis”. As principais demonstrações clássicas da imortalidade, derivadas do Fedon e do Fedro, são recusadas e refutadas, e seus pressupostos básicos abertamente rejeitados. Como notou o Professor A. E. Taylor, “para a mente Grega, aqanasia ou ajqarsia normalmente significavam praticamente a mesma coisa que “divindade”, e incluíam concepções como não-gerado e indestrutível”. Dizer que “a alma é imortal” equivaleria para um Grego a dizer que ela é “incriada”, isso é, eterna e “divina”. Tudo o que possui um começo deve ter um fim. Em outras palavras, para um Grego a “imortalidade” da alma implicaria imediatamente sua “eternidade”, ou seja, sua eterna “pré-existência”. Apenas aquilo que não tem começo pode durar para sempre. Os Cristãos não podiam concordar com essas assertivas “filosóficas”, na medida em que acreditavam na Criação, e desse modo tiveram que negar a “imortalidade” (no sentido Grego do termo). A alma não constitui um ser independente e autogovernado, ela é uma criatura, e sua existência é devida a Deus, o Criador. De acordo com isso, ela não pode ser “imortal” por natureza, isso é, por si mesma, mas apenas “ao agrado de Deus”, isso é, pela graça. O argumento “filosófico” a respeito da “imortalidade” (natural) estava baseado na “necessidade” da existência. Ao contrário, afirmar que o mundo é criado equivale a enfatizar, primeiramente, sua contingência radical, e mais precisamente, uma contingência na ordem da existência. Em outras palavras, um mundo criado é um mundo que poderia perfeitamente nunca ter existido. Isso equivale a dizer que o mundo é, acima de tudo e inteiramente, ab oleo[4], e em nenhum sentido um se? Como coloca Gilson, “existem alguns seres que são radicalmente diferentes de Deus, no mínimo pelo fato de que, ao contrário Dele, poderiam não existir, e porque ainda poderão, a qualquer tempo, deixar de existir”. “Poderão deixar”, entretanto, não significa necessariamente “irão (verdadeiramente) deixar”. São Justino não era um “condicionalista”, e seu nome foi invocado pelos defensores de uma “imortalidade condicional” praticamente em vão. “Eu não disse, de fato, que toda alma morrerá...”. Toda a argumentação era polêmica, e seu objetivo era o de enfatizar a crença na Criação. Encontramos o mesmo raciocínio em outros escritos do século II. São Teófilo de Antioquia insistia no caráter “neutro” do Homem. “Por natureza”, o Homem não seria nem “imortal”, nem “mortal”, mas “capaz de ambas as coisas”, dektikon amjoterwn. “Porque se Deus tivesse feito o Homem imortal desde o início, Ele o teria feito Deus”. Se no começo o Homem tivesse escolhido as coisas imortais, em obediência ao mandamento de Deus, ele teria sido recompensado com a imortalidade e teria assim se tornado Deus, um “Deus adotivo”, deus assumptus, Qeos anadeicqeis[5]. Taciano foi ainda mais longe. “A alma em si não é imortal, ó Gregos, mas mortal. Mas a ela é possível não morrer[6]”. O pensamento dos primeiros Apologistas não estava livre de contradições, e nem sempre foi expresso com precisão. Mas a principal alegação sempre foi clara: o problema da imortalidade humana tinha que ser encarado no contexto da doutrina da Criação. Podemos dizer também: não apenas como um problema metafísico, mas enquanto problema religioso acima de tudo. A “Imortalidade” não é um atributo da alma, mas algo que, em última instância, depende da relação verdadeira que o homem tem com Deus, seu Mestre e Criador. Não somente o destino derradeiro do Homem só pode ser alcançado na Comunhão com Deus, como a própria existência do Homem e sua “sobrevivência”, ou duração, dependem da vontade de Deus. Santo Irineu prossegue dentro dessa tradição. Em sua disputa com os Gnósticos, ele tinha um motivo especial para enfatizar o caráter criado da alma, ela não provinha de um “outro mundo” isento de corrupção; ela pertencia exatamente a este mundo criado. Foi colocado, diz Santo Irineu, que, para que a alma tenha existência ela deve ser “incriada”, pois de outro modo ela teria que morrer com o corpo. Ele rechaça esse argumento. Enquanto criaturas, as almas “duram tanto quanto Deus quer que elas durem” – perseverant autem quoadusque eas Deus et esse, et perseverare voluerit. A palavra perseverantia corresponde aqui obviamente ao Grego diamonh. Santo Irineu utiliza quase que as mesmas frases de São Justino. A alma não é vida em si; ela participa da vida, concedida por Deus. Somente Deus é Vida, e Ele é o único Doador da Vida[7]. Mesmo Clemente de Alexandria, apesar de seu Platonismo, lembrava ocasionalmente que a alma não era imortal “por natureza”. Santo Atanásio pretendeu demonstrar a imortalidade da alma com argumentos que podem ser rastreados até Platão, mas ele insistia fortemente que todo o criado é “por natureza” instável e está exposto a destruição[8]. Mesmo Santo Agostinho estava consciente da necessidade de qualificar a imortalidade da alma: Anima hominis immortalis est secundum quendam modum suum; non enim moni modo sicut Deus[9]. “Conforme a transitoriedade dessa vida, podemos dizer que ela é mortal[10]”. São João Damasceno dizia que mesmo os Anjos não são imortais por natureza, mas apenas pela graça[11], e provava isso mais ou menos do mesmo modo que os Apologistas[12]. Encontramos a mesma colocação enfática na correspondência sinodal de São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (634), que foi lida e recebida favoravelmente no Sexto Concílio Ecumênico (681). Na última parte dessa correspondência, Sofrônio condena os erros dos Origenistas, a pré-existência da alma e a apokatastasis, e estabelece claramente que “os seres intelectuais” (ta nohta), embora não morram (qnhskei de oudamws), tampouco são “imortais por natureza”, mas apenas pela graça de Deus[13]. Podemos acrescentar que ainda no século XVII essa tradição antiga não estava esquecida no Oriente, e temos também uma interessante notícia de uma disputa contemporânea entre dois Bispos Gregos de Creta, exatamente a respeito dessa questão: em que medida a alma é imortal “por natureza”, ou “pela graça”. Podemos concluir: quando discutimos o problema da Imortalidade de um ponto de vista Cristão, devemos ter em mente a natureza criada da alma. A própria existência da alma é contingente, ou seja, é como se ela fosse “condicional”. Ela é condicionada pelo fiat criador de Deus. Vale dizer, ela tem uma existência que lhe foi concedida, isso é, uma existência que não está necessariamente implicada na sua “essência”, mas que não é necessariamente transitória. O fiat criador foi um ato livre, mas definitivo, de Deus. Deus criou o mundo simplesmente para a existência: ektide gar eis to einai panta[14]. Não há previsão de que esse decreto criador seja revogado. A fisgada da antinomia está exatamente nisso: o mundo possui um começo contingente, mas não um fim. Ele permanece pela vontade imutável de Deus.

III.                O Homem é mortal


No pensamento atual, a “imortalidade da alma” costuma ser de tal modo enfatizada que a mais básica “mortalidade do homem” é deixada de lado. Apenas nas filosofias “existencialistas” recentes somos novamente fortemente lembrados de que a existência do homem permanece intrinsecamente sub specie mortis. A morte é uma catástrofe para o homem. Ela é seu “último” (ou melhor, definitivo) inimigo – escatos ecqros[15]. “Imortalidade” é, obviamente, um termo negativo; ele é correlativo do termo “morte”. E aqui encontramos mais uma vez o Cristianismo num conflito aberto e radical com o “Helenismo”, e em primeiro lugar com o Platonismo. W. H. V. Reade, em seu livro recente, The Christian Challenge do Philosophy, confronte habilmente duas colocações: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós[16]”, e “Plotino, o filósofo de nosso tempo, parecei se envergonhar por ser de carne[17]”. Reade prossegue: “Quando a mensagem do Natal e o breve sumário de Porfírio sobre o credo de seu mestre são colocados em comparação direta, parece não restar dúvida de que ambos são totalmente incompatíveis; de que nenhum Cristão pode ser Platônico, e nenhuma Platônico, Cristão; a respeito desse fato elementar os Platônicos estavam perfeitamente conscientes; mas devo acrescentar que, infelizmente, os Cristãos parecem não terem se dado conta desse fato”. Por séculos, até a nossa época, o Platonismo foi a filosofia favorita dos sábios Cristãos. Não é nosso propósito aqui explicar o modo como isso aconteceu. Mas essa infeliz confusão (para não dizermos mais) resultou numa confusão posterior no pensamento moderno a respeito da imortalidade e da morte. Podemos utilizar ainda a antiga definição de morte: trata-se da separação da alma em relação ao corpo – yucis cwrismos apo swmatos[18]. Para um Grego, tratava-se de uma libertação, de um “retorno” à esfera nativa dos espíritos. Para um Cristão era uma catástrofe, a frustração da existência humana. A doutrina Grega da Imortalidade jamais poderia resolver o problema Cristão. A única solução adequada havia sido oferecida pela mensagem da Ressurreição de Cristo e pela promessa de uma Ressurreição Geral dos mortos. Se nos voltarmos novamente para a antiguidade Cristã, encontraremos esse ponto claramente estabelecido desde uma data muito recuada. São Justino foi especialmente enfático a esse respeito: “pessoas que dizem não haver ressurreição dos mortos, e que suas almas, após a morte, são levadas ao céu, não são Cristãos de modo algum[19]”. O autor desconhecido do tratado Sobre a Ressurreição (tradicionalmente atribuído a São Justino) coloca o problema com muita precisão: “Pois o que é o homem senão um animal racional, composto de corpo e alma? Será a alma por si só o homem? Não, ela é a alma do homem. Será o corpo por si só o homem? Não, mas ele é chamado de corpo do homem. Se nenhum desses dois são em si o homem, ao contrário, aquilo que é formado por ambos é chamado de homem, e Deus chamou o homem à vida e à ressurreição. Ele chamou, não uma parte, mas o todo, que é composto de corpo e alma[20]”. Atenágoras de Atenas desenvolve o mesmo argumento sem seu admirável tratado Sobre a ressurreição dos mortos. O homem foi criado por Deus com um propósito definido, para a existência perpétua: “Deus concedeu existência e vida, não à natureza da alma em si, nem à natureza do corpo em separado, mas ao homem, composto de corpo e alma, de maneira que, com as mesmas partes com que ele é composto, tendo nascido e vivido, eles possam alcançar, depois do término de sua vida, seu fim comum; a alma e o corpo, compondo no homem uma entidade viva”. Já não haveria um homem, argumenta Atenágoras, se a completude dessa estrutura fosse rompida, pois nesse caso a identidade do indivíduo seria rompida também. A estabilidade do corpo, sua continuidade dentro de sua natureza própria, deve ter seu correspondente na imortalidade da alma. “A entidade que recebe o intelecto e a razão é um homem, e não apenas uma alma. Por conseguinte, o homem deve permanecer para sempre composto de corpo e alma”. De outro modo não haveria um homem, mas apenas partes de um homem. “E isso é impossível, caso não exista a ressurreição. Pois, se não houver ressurreição, a natureza do homem enquanto homem não poderá continuar”. O pressuposto básico dessa argumentação é de que o corpo pertence intrinsecamente à totalidade da existência humana. Assim sendo, o homem, enquanto homem, cessaria de existir, se a alma tivesse que permanecer para sempre “desincorporada”. Isso é exatamente o oposto do que os Platônicos sustentam. Os Gregos sonhavam mais com uma completa e definitiva desencarnação. Receber um corpo era precisamente a maldição da alma. Para os Cristãos, por outro lado, a morte não constituía um fim normal para a existência humana. A morte do homem é considerada anormal, uma falha. A morte do homem é “o salário do pecado[21]”. Trata-se de uma perda e de uma corrupção. E desde a Queda o mistério da vida foi deslocado pelo mistério da morte. Tão misteriosa quanto a “união” da alma com o corpo de fato é, a consciência imediata do homem testemunha a completude orgânica de sua estrutura psico-física. Anima autem et Spiritus pars hominis esse possunt, homo autem nequaquam, disse Santo Irineu[22]. Um corpo sem uma alma é um cadáver, e uma alma sem um corpo é um fantasma. O homem não é um fantasma sem corpo, e um cadáver não é uma parte do homem. O homem não é um “demônio sem corpo”, simplesmente confinado na prisão do corpo. É por isso que a “separação” da alma e do corpo consiste na morte do homem em si, na descontinuidade de sua existência, de sua existência enquanto homem. Consequentemente, a morte e a corrupção do corpo são uma espécie de desvanecimento da “imagem de Deus” no homem. Um homem morto não é plenamente humano. São João Damasceno, em um de seus gloriosos hinos dos Ofícios memoriais, diz o seguinte: “Eu soluço e me lamento, quando contemplo a morte, e vejo nossa beleza, moldada segundo a imagem de Deus, jazer desfigurada num sepulcro, desonrada e desprovida de forma”. São João fala, não do corpo do homem, mas do próprio homem. “Nossa beleza à imagem de Deus”, não consiste no corpo, mas no homem. Ele é de fato uma “imagem da insondável glória de Deus”, ainda que “marcada pelo pecado”. E, na morte, revela-se que o homem, essa “estátua racional” moldada por Deus – para usarmos a frase de São Metódio[23] – não passa de um cadáver. “O homem não passa de ossos secos, mau odor e comida de vermes”. Podemos falar do homem como sendo “uma hipóstase em duas naturezas”, e não apenas de, mas em duas naturezas. E na morte essa hipóstase humana se rompe, e já não existe homem ali. A partir de então, o homem espera pela “redenção de seu corpo[24]”. Conforme diz São Paulo em outra parte, “porque não queremos ser despojados da nossa veste, mas revestir a outra por cima desta, e assim, aquilo que é mortal seja absorvido pela vida[25]”. O aguilhão da morte está precisamente em que ela é “o salário do pecado”, isso é, a consequência de uma relação distorcida com Deus. Não se trata de uma imperfeição natural, nem de um impasse metafísico. A mortalidade do homem reflete o distanciamento do homem em relação a Deus, que é o único Dispensador da Vida. E, nesse distanciamento de Deus, o homem simplesmente não pode “perdurar” como homem, não pode permanecer inteiramente humano. O status da mortalidade é essencialmente “sub-humano”.  Enfatizar a mortalidade do homem não implica oferecer uma interpretação “naturalística” da tragédia humana, mas, ao contrário, significa traçar a condição humana até sua derradeira raiz religiosa. A ênfase da teologia Patrística estava precisamente em seu interesse na mortalidade humana, e, por conseguinte, na mensagem da Ressurreição. A miséria da existência no pecado não era de modo algum subestimada, mas interpretada, não apenas em categorias éticas e morais, mas em categorias teológicas. O fardo do pecado consistia não só em autoacusações da consciência humana, não apenas na consciência da culpa, mas na extrema desintegração do complexo total da natureza humana. O homem decaído já não era um homem, ele se encontrava existencialmente “degradado”. E o sinal dessa “degradação” estava na mortalidade humana, na morte do homem. Ao se separar de Deus, a natureza humana se torna deslocada, como se estivesse fora do tom. A própria estrutura do homem se torna instável. A “união” entre a alma e o corpo se torna insegura. A alma perde sua força vital, já não é capaz de impulsionar o corpo. O corpo se torna um túmulo e uma prisão para a alma. E a morte física se torna inevitável. O corpo e a alma já não estão, podemos dizer, assegurados e ajustados entre si. A transgressão do mandamento Divino “restabeleceu o homem no estado da natureza”, como coloca Santo Atanásio – eis to kata fusin epestreyen. “Tendo sido feito a partir do nada, em sua própria existência ele sofre, no devido tempo, a corrupção de acordo com a justiça total”. Pois, tendo sido feita a partir do nada, a criatura passa a existir sobre um abismo de nada, sempre prestes a cair nele[26]. “Pois é necessário que ele morra, sendo como água derramada sobre a terra, que não pode ser outra vez ajuntada[27]”. O “estado de natureza” de que fala Santo Atanásio, é o movimento cíclico do Cosmo, no qual o homem decaído está enredado sem esperança, e esse enredamento significa a sua degradação. Ele perdeu sua posição privilegiada na ordem da Criação. Mas essa catástrofe metafísica consiste justamente na manifestação de sua relação rompida com Deus.

IV.                “Eu sou a Ressurreição e a Vida”

A Encarnação do Verbo foi uma manifestação absoluta de Deus. E acima de tudo foi uma revelação da Vida. Cristo é o Verbo da Vida – o logos ths zwhs[28]. A Encarnação em si foi, num certo sentido, um reavivamento do homem, como que uma ressurreição da natureza humana. Na Encarnação, a natureza humana não foi simplesmente ungida com um superabundante influxo de Graça, mas foi assumida numa unidade íntima e “hipostática” com a própria Divindade. Nesse reerguimento da natureza humana a uma comunhão perene com a Vida Divina, os Padres da Igreja primitiva viram unanimemente a própria essência da salvação: “É salvo aquilo que está unido a Deus”, disse São Gregório de Nazianze. E o que não estava unido não poderia ser salvo de modo algum[29]. Esse foi o tema central por toda a teologia primitiva – em Santo Irineu, Santo Atanásio, os Capadócios, São Cirilo de Alexandria, São Máximo o Confessor. Entretanto, o clímax da Vida Encarnada foi a Cruz, a morte do Senhor Encarnado. A Vida se revelou plenamente através da morte. Esse é o mistério paradoxal da fé Cristã: a vida por intermédio da morte, a vida desde o sepulcro e a partir dele, o mistério do sepulcro vivificador. E os Cristãos só renascem para a vida real e eterna através de sua morte batismal e de seu sepultamento em Cristo: eles são regenerados com Cristo na fonte batismal[30]. Essa é a lei invariável da verdadeira vida. “Aquilo que você semeia não volta à vida, a não ser que morra[31]”. A salvação se completou no Gólgota, não no Tabor, e a Cruz de Jesus já havia sido mencionada no Tabor[32]. Cristo tinha que morrer, de modo a conceder a vida abundante a toda a humanidade. Não foi pela necessidade do mundo. Foi, podemos dizer, pela necessidade do Amor Divino, uma necessidade de ordem Divina. E nós falhamos em compreender esse mistério. Por que deveria a verdadeira vida ser revelada através da morte do Único que era, Ele próprio, “a Ressurreição e a Vida”? A única resposta é que a Salvação teria que constituir-se numa vitória sobre a morte e a mortalidade do homem. O último inimigo do homem era precisamente a morte. A Redenção não consistia apenas no perdão dos pecados, nem era ela uma reconciliação do homem com Deus. Ela era a libertação do pecado e da morte. “A penitência não liberta do estado da natureza (no qual o home foi mergulhado pelo pecado), ela apenas descontinua o pecado”, diz Santo Atanásio. Pois o homem não apenas pecou, ele “caiu na corrupção”. Porém, a misericórdia de Deus não permitiu que “a criatura, feita racional e participando do Verbo, prosseguisse até a ruína e retornasse à não-existência por causa da corrupção”. Por isso o Verbo de Deus desceu e se tornou homem, assumindo nosso corpo, “para que, tendo o homem se voltado para a corrupção, Ele pudesse reconduzi-lo à incorrupção, e erguê-lo da morte pela apropriação de seu corpo e pela graça da Ressurreição, banindo dele a morte, como quem retira uma palha do fogo[33]. Assim é que, de acordo com Santo Atanásio, o Verbo se tornou carne, a fim de abolir a “corrupção” da natureza humana. Mas a morte foi vencida, não pela aparição da Vida num corpo mortal, mas pela morte voluntária da Vida Encarnada. O Verbo se tornou encarnado com vistas à morte na carne, enfatiza Santo Atanásio. “Foi para aceitar a morte que Ele recebeu um corpo[34]”. Ou, para citarmos Tertuliano, forma moriendi causa nascendi est[35]. A razão definitiva para a morte de Cristo deve ser encontrada na mortalidade do homem. Cristo sofreu a morte, mas passou por ela e superou a mortalidade e a corrupção. Ele reviveu a própria morte. “Ele destruiu a morte com a morte”. A morte de Cristo foi assim, podemos dizer, como que uma extensão de Sua Encarnação. A morte na Cruz foi efetiva, não enquanto morte de um Inocente, mas na medida em que foi a morte do Senhor Encarnado. “Precisávamos de um Deus Encarnado, de um Deus que pudesse ser levado à morte, para que pudéssemos viver”, para usarmos  a  surpreendente   e  ousada  frase  de   São  Gregório  de  Nazianze   edehqhmen Qeou
sarkomenou kai nekroumenou[36]. Não foi um homem que morreu na Cruz. Em Cristo não havia uma hipóstase humana. Sua personalidade era Divina, ainda que encarnada. “Pois Aquele que sofreu não era um homem comum, mas Deus feito homem, combatendo a batalha do sofrimento”, diz São Cirilo de Alexandria[37]. Podemos dizer corretamente que Deus morreu na Cruz, mas em Sua própria humanidade (a qual era, contudo, “consubstancial” à nossa). Essa foi a morte voluntária Daquele que era Ele próprio a Vida Eterna. Uma morte humana, de fato, uma morte “conforme e humanidade”, e ainda assim uma morte dentro da hipóstase do Verbo, do Verbo Encarnado. Portanto, uma morte ressuscitadora. “Eu tenho um batismo com o qual serei batizado[38]”. Foi a morte na Cruz, e o derramamento de sangue – “o batismo do martírio e do sangue, com o qual o próprio Cristo foi batizado”, conforme sugeriu São Gregório de Nazianze[39]. A morte na Cruz foi um batismo de sangue, e ela constitui a verdadeira essência do mistério redentor da Cruz. O batismo é uma purificação. E o Batismo na Cruz é como se tivesse sido a purificação da natureza humana, que seguia o caminho da restauração na Hipóstase do Verbo Encarnado. É como se a natureza humana fosse lavada no sangue sacrificial derramado da Cordeiro Divino, e, em primeiro lugar, uma limpeza do corpo: não apenas uma lavagem dos pecados, mas uma limpeza das enfermidades humanas e da própria mortalidade. Tratava-se da purificação com vistas à ressurreição por vir: uma limpeza de toda a natureza humana, de toda a humanidade, na pessoa de seu novo e místico Primogênito, o “Último Adão”. Tal foi o batismo de sangue de toda a Igreja, e, de fato, de todo o mundo. “Uma purificação, não para uma pequena parcela do mundo humano, não por um curto período de tempo, mas para todo o universo e por toda a eternidade”, para citarmos ainda uma vez São Gregório de Nazianze[40]. O Senhor morreu na Cruz. Foi uma morte verdadeira. Porém, não foi uma morte total, como é a nossa, simplesmente porque foi a morte do Verbo Encarnado, uma morte dentro da indivisível Hipóstase da Verbo feito homem, a morte da humanidade “enipostatizada”. Isso não alterou o caráter ontológico da morte, mas mudou seu significado. A “União Hipostática” não foi rompida nem destruída pela morte, e dessa maneira a alma e o corpo, embora separados um do outro, permaneceram unidos através da Divindade do Verbo, do qual nenhum dos dois se afastou. Essa foi a “morte incorrupta”, e desse modo a “corrupção” e a “mortalidade” foram superadas nela, e com isso começou a ressurreição. A própria morte do Encarnado revelou a ressurreição da natureza humana[41]. “Hoje celebramos a festa, porque nosso Senhor foi pregado na Cruz”, na sentença incisiva de São João Crisóstomo[42]. A morte na Cruz é uma vitória sobre a morte, e não apenas por ter sido seguida da Ressurreição. Ela foi em si uma vitória. A Ressurreição apenas revelou e estabeleceu a vitória conquistada na Cruz. Ela já se realizara com a dormição do Deus-homem. “Tu morreste e me reviveste”. Como coloca São Gregório de Nazianze: “Ele deixou Sua vida, mas tinha o poder de tomá-la de volta; e o véu se rasgou, pois as misteriosas portas dos Céus se abriram; as pedras se romperam, os mortos despertaram (...) Ele morreu, mas deu a vida, e com Sua morte destruiu a morte. Ele foi sepultado, mas voltou a viver. Ele desceu ao Hades, mas de lá trouxe as almas[43]”. Esse mistério da Cruz ressuscitadora é comemorado especialmente no Sábado Santo. Esse é o dia da descida ao Hades. E a descida ao Hades é, desde logo, a Ressurreição dos mortos. Pelo simples fato de Sua morte, Cristo se fez acompanhar pelos que partiram. Essa foi uma nova extensão da Encarnação. O Hades não passa da escuridão e da sombra da morte, mais o lugar de uma angústia mortal do que o lugar de tormentos penais, um “sheol” escuro, um lugar de desencarnação e descorporificação desesperançadas, iluminado fracamente pelos raios oblíquos de um Sol não nascido, pelas esperanças e a expectativas não cumpridas. É como se fosse uma espécie de enfermidade ontológica da alma, a qual, na separação da morte, perdeu a faculdade de ser a verdadeira enteléquia[44] de seu próprio corpo – a desesperança de uma natureza decaída e ferida. Não se trata de um “lugar”, mas de um estado espiritual: “os espíritos aprisionados[45]”. Foi a essa prisão, a esse “Inferno” que Cristo o Salvador desceu. Em meio à escuridão da pálida morte brilhou a luz inesgotável da Vida, da Vida Divina. A “descida ao Inferno” constituiu a manifestação da Vida no meio da desesperança da dissolução mortal, a vitória sobre a morte. “Não foi por causa de qualquer fraqueza natural do Verbo que o habitava, que morreu o corpo, mas para que, por meio dele, pudesse a morte ser derrotada pelo poder do Salvador”, diz Santo Atanásio[46]. O Sábado Santo é mais do que a véspera da Páscoa. Ele é o “Sabbath bendito”, “Sanctum Sabbatum” – requies Sabbati magni, nas palavras de Santo Ambrósio. “Esse é o Sábado bendito, o dia do repouso, quando o Filho Unigênito de Deus descansou de todos os seus feitos[47]”. “Eu sou o primeiro e o último, Eu sou o que Vive, e estava morto; mas vede, Eu estou vivo para todo o sempre. Amém. E eu tenho as chaves da morte e do Hades[48]”. A esperança Cristã na imortalidade está enraizada e assegurada nessa vitória de Cristo, e não em algum tipo de doação “natural”. E isso significa também que essa esperança está baseada num evento histórico, isso é, na auto-revelação histórica de Deus, e não numa disposição estática ou constitutiva da natureza humana.


V.                  O Último Adão

A realidade da morte não foi propriamente abolida, mas revelou-se sua impotência. “É verdade que ainda morremos – diz São Joao Crisóstomo – mas já não permanecemos na morte, e isso não é morrer (...) o poder e a própria realidade da morte consiste apenas nisso, em quem um homem morto não tem a possibilidade de voltar à vida; mas se, após a morte, ele for reavivado e, mais do que isso, receber uma vida melhor, então ele não terá morrido, mas simplesmente adormecido[49]”. Ora, na frase de Santo Atanásio, “tal como uma semente lançada à terra, não perecemos ao morrer, mas, tendo sido semeados, renascemos[50]”. Isso constitui a cura e a renovação da “natureza” humana, e por isso todos irão renascer, todos serão reavivados e restaurados na plenitude de sua existência natural, agora transformada. Doravante, toda desincorporação será temporária. O escuro vale do Hades foi abolido pelo poder da vivificadora Cruz. A potencialidade inerente da morte pela desobediência foi revelada e efetivada no primeiro Adão. No segundo Adão, a potencialidade da imortalidade, pela pureza e a obediência, foi sublimada e realizada na impossibilidade da morte. Esse paralelo já havia sido estabelecido por Santo Irineu. Sem a esperança na Ressurreição Geral, a crença em Cristo seria vã e sem propósito. “Mas agora Cristo levantou-se da morte e se tornou as primícias de todos os que estão adormecidos[51]”. A Ressurreição de Cristo é um novo começo. Trata-se de uma “nova criação” – h kainh ktiisis. Podemos mesmo dizer que é um começo escatológico, um passo definitivo na história da Salvação. Mas ainda temos que fazer uma clara distinção entre a cura da natureza e a cura da vontade. A “natureza” é curada e restaurada de certo modo compulsoriamente, pelo poder do Deus onipotente e por sua invencível graça. A totalidade dessa cura é como que “forçada” à natureza humana. Pois em Cristo toda a natureza humana (a “semente de Adão”) é plena e completamente curada de sua incompletude e mortalidade. Essa restauração será efetivada e revelada em toda sua extensão no devido tempo, na Ressurreição Geral, na ressurreição de todos, tanto dos justos como dos ímpios. E ninguém, até onde chega a natureza, pode escapar desse mandamento real de Cristo, ou escusar-se ao invencível poder da ressurreição. Mas a vontade do homem não pode ser curada da mesma maneira incoercível. A vontade do homem deve volta-se para Deus por si mesma. Deve haver uma resposta de amor e de adoração, livre e espontânea, uma “conversão livre”. A vontade do homem só pode ser curada no contexto do “mistério da liberdade”. Somente por meio desse esforço livre pode o homem entrar nessa nova e eterna vida que é revelada em Cristo Jesus. Uma regeneração espiritual só pode ser forjada em perfeita liberdade, numa obediência de amor, por uma autoconsagração e uma autodedicação a Deus, em Cristo. Essa distinção foi estabelecida com grande insistência por Nicholas Cabasilas em seu memorável tratado A Vida em Cristo: a Ressurreição é a “retificação da natureza” – h anastasis jusews estin epanorqwsis – e isso é concedido gratuitamente por Deus. Mas o Reino dos Céus, a visão beatífica e a união com Cristo, pressupõem do desejo – trojh estin ths qelhsews – e, dessa forma, só estão disponíveis para aqueles que esperaram, amaram e desejaram essas coisas. A imortalidade será concedida a todos, assim como todos podem desfrutar da Divina providência. Não depende de nossa vontade se vamos ou não renascer após a morte, assim como não dependeu de nós o termos nascido. A morte e a ressurreição de Cristo trouxeram imortalidade e incorrupção para todos igualmente, porque todos possuímos a mesma natureza que o Homem Cristo Jesus. Mas ninguém pode ser obrigado a desejar. Assim, a Ressurreição e um dom comum concedido a todos, mas a beatitude será dada a apenas alguns[52]. Novamente: o caminho da vida é o caminho da renúncia, da mortificação, do auto-sacrifício e da auto-oblação. É preciso morrer para si, para viver em Cristo. Cada um deve, livre e pessoalmente, associar-se a Cristo, o Senhor, o Salvador e o Redentor, na confissão da fé, na escolha do amor, num voto místico de entrega e dedicação. Quem não morre com Cristo não pode com Ele. “A menos que, por nossa livre escolha, aceitemos morrer em Sua paixão, Sua vida não virá a nós[53]”. Não se trata de uma mera regra ascética ou moral, de uma simples disciplina. Essa é a lei ontológica da existência espiritual, é a lei da própria vida. Pois apenas em comunhão com Deus e através da vida em Cristo pode a restauração da totalidade humana ter significado. Para os que vivem na escuridão total, que deliberadamente se confinaram “fora de Deus”, a própria Ressurreição pode parecer mais como desnecessária e sem motivação. Mas ela virá, como “ressurreição do julgamento[54]”. E nela se completará a tragédia da liberdade humana. Aqui ainda estamos no limiar do inconcebível e do incompreensível. A apokatastasis da natureza não abole a vontade livre, e a vontade deve ser movida desde dentro pelo amor. São Gregório de Nissa tinha um claro entendimento a esse respeito. Ele anteviu uma espécie de conversão universal das almas após a morte, quando a Verdade de Deus se revelar e se manifestar com evidência definitiva e convincente, quase obrigatória. É nesse ponto que que as limitações do pensamento Grego ficam óbvias. Para este, a evidência aparecia como a razão decisiva, ou o motivo da vontade, como se o “pecado” não passasse de uma “ignorância”. O pensamento Helenístico teve que passar por sua longa e difícil experiência de ascetismo, de autoexame e autocontrole ascéticos, para poder se libertar desse intelectualismo naïve e ilusório, e descobrir o abismo escuro da alma decaída. Apenas em São Máximo, depois de alguns séculos de preparação ascética, poderemos encontrar uma nova, mais profunda e remodelada interpretação da apokatastasis. São Máximo não acreditava na conversão inevitável das almas obstinadas. Ele supunha uma apokatastasis da natureza, isso é, uma restituição de todos os seres a uma integridade de natureza, uma manifestação universal da Vida Divina, que será evidente para todos. Mas aqueles que deliberadamente desperdiçaram suas vidas na terra em desejos carnais, “contra a natureza”, serão incapazes de desfrutar dessa bênção eterna. O Verbo é a Luz que ilumina as mentes naturais dos fiéis, mas, como o fogo ardente do julgamento, th kausei ths krisews, Ele pune aqueles que, através de suas vidas na carne, penderam para a escuridão noturna dessa vida. A distinção se dá entre epignwsis e meqexsis[55]. “Conhecer” não é o mesmo q eu “participar”. Deus estará realmente em todos, mas estará presente apenas nos Santos, “com graça” (dia thncarin); nos que forem reprovados, Ele estará presente “sem graça” (para thn carin). E os ímpios ficarão separados de Deus por causa de sua falta de uma resoluta opção pelo bem. Estamos aqui diante da mesma dualidade entre natureza e vontade. Na ressurreição toda a criação será restaurada, isso é, será levada à perfeição e à estabilidade definitiva. Mas o pecado e o mal estão enraizados na vontade. O pensamento Helenístico concluiu daí que o mal é instável e que, por causa disso, ele deverá inevitavelmente desaparecer. Pois nada pode ser perpétuo, a menos que esteja enraizado num decreto Divino. A inferência Cristã é exatamente o oposto. Existe uma inércia e uma obstinação da vontade, e essa obstinação permanecera sem cura mesmo na “Restauração universal”. Deus jamais violenta o homem, e a comunhão com Deus não pode ser forçada aos obstinados. Na frase de São Máximo, “o Espírito não produz uma resolução indesejada, mas transforma um propósito escolhido em theosis[56]”. Vivemos num mundo transformado: ele foi transformado pela Ressurreição redentora de Cristo. A vida foi dada, e ela deve prevalecer. O Senhor Encarnado é verdadeiramente o Segundo Adão e Nele toda a nova humanidade será inaugurada. Não apenas está assegurada uma “sobrevivência” definitiva, como também a realização total do propósito criador de Deus. O homem foi criado “imortal”. Ele não pode cometer um “suicídio metafísico” último e lançar a si mesmo para fora da existência. Mesmo a vitória de Cristo não forçou a “Vida Eterna” às existências “fechadas”. Pois, como disse Santo Agostinho, para a criatura, “existir não é o mesmo que viver[57]”.


VI.                “E Vida Eterna”


Existe uma tensão inevitável entre as concepções Cristãs a respeito do que “é dado” e do que “é esperado”. Os Cristãos esperam “pela Vida no mundo que virá”, mas eles não estão menos conscientes da Vida que já veio: “pois a Vida se manifestou, e nós a vimos, e disso damos testemunho, e lhes mostramos a Vida eterna, que está com o Pai e se manifestou a nós[58]”. Isso não constitui apenas uma tensão no tempo – entre o passado, o presente e o futuro. Trata-se de uma tensão entre destino e decisão. Talvez se possa dizer: a Vida eterna foi oferecida ao homem, mas ele precisa recebê-la. Para o indivíduo, a realização do “destino” depende de uma “decisão da fé”, que não é uma “conscientização” apenas, mas uma “participação” desejada. A vida Cristã se inicia com um novo nascimento, pela água e pelo Espírito. E, em primeiro lugar, é preciso um “arrependimento” – h metanoia - uma mudança interior, íntima e resoluta. O simbolismo do Santo Batismo é complexo e multifacetado. Mas acima de tudo ele é um simbolismo de morte e ressurreição, da morte e ressurreição de Cristo[59]. Trata-se de uma ressureição sacramental com Cristo, pela participação em Sua morte, um reerguimento com Ele e Nele para uma nova e eterna Vida[60]. Os Cristãos ressuscitam junto com Cristo precisamente por meio do sepultamento: “se morremos com Ele, com Ele viveremos[61]”. Cristo é o Segundo Adão, mas os homens devem renascer e serem incorporados a Ele, para poderem participar dessa nova Vida que é Ele. São Paulo fala de uma “semelhança” na morte de Cristo[62] - sumjutoi (...) tw omoiwmati tou qanatou autou. mas essa "semelhança" vai além de uma parecença. Ela é mais do que um simples sinal ou uma lembrança. O sentido dessa semelhança, para o próprio São Paulo, está em que, em cada um de nós, Cristo pode e deve ser “formado[63]”. Cristo é a Cabeça, todos os fiéis são Seus membros, e Sua vida se atualiza neles. Esse é o mistério do Cristo Total – totus Christus, Caput et Corpus. Todos somos chamados, e cada qual é capaz de crer, e de ser reavivado pela fé e o batismo, para viver com Ele. O Batismo é, assim, uma “regeneração”, uma anagennhsis, um nascimento novo, espiritual e carismático. Conforme diz Cabasilas, o Batismo é a causa da vida beatífica em Cristo, não meramente da vida[64]. São Cirilo de Jerusalém explica de maneira lúcida a verdadeira realidade de todo o simbolismo batismal. É verdade, diz ele, que na fonte batismal morremos (e somos sepultados) apenas “por imitação”, apenas, digamos, “simbolicamente” – dia sumbolou – e não renascemos de um sepulcro real. Porém, “se a imitação está numa imagem, a salvação é bem real”. Pois Cristo foi de fato crucificado e sepultado, e realmente levantou-se do túmulo. A palavra Grega é ontws. ela é mais forte do que simplesmente alhqws, “verdadeiramente”. Ela enfatiza o significado último da morte e da ressurreição de Cristo. Ela foi uma nova conquista. A partir dela Ele nos deu a chance, na participação “imitativa” de Sua Paixão – th mimhsei (...) koinwnhsantes – para adquirimos a salvação “realmente”. Não se trata apenas de uma “imitação”, mas de uma “similitude” – to onoiwma. “Cristo foi realmente crucificado e sepultado, mas a você é concedido ser crucificado, sepultado e ressuscitar com Ele em similitude”. Em outras palavras, no batismo o homem desce “sacramentalmente” às trevas da morte, mas ele renasce outra vez com o Senhor renascido e passa da morte para a vida. “E a imagem se completa em você, pois é você a imagem de Cristo”, conclui São Cirilo. Em outras palavras, somos postos juntos por Cristo e em Cristo; daí advém a possibilidade real de uma “semelhança” sacramental[65]. São Gregório de Nissa se ocupa desse mesmo ponto. Existem dois aspectos no batismo. O batismo é um nascimento e uma morte. O nascimento natural é o começo da existência mortal, que começa e termina em corrupção. O outro, o novo nascimento, precisa ser descoberto, e ele irá iniciar para a vida eterna. No batismo “a presença do poder Divino transforma aquilo que nasceu com uma natureza corruptível, num estado de incorrupção[66]”. Ela é transformada ao seguir e imitar; e assim, aquilo que havia sido prefigurado pelo Senhor é agora realizado. Apenas seguindo a Cristo é possível passar através do labirinto da vida e sair dele. “Pois ao inescapável guarda da morte, que mantém prisioneira a humanidade entristecida, eu chamo de labirinto”. Cristo escapou daí após três dias morto. Na fonte batismal, “se cumpre a imitação de tudo o que Ele fez”. A morte é “representada” pelo elemento água. E, assim como Cristo renasceu da morte, também o recém batizado, unido a Ele segundo a natureza corporal, “imita a ressurreição ao terceiro dia”. Trata-se apenas de uma “imitação” – mimhysis – não de uma “identidade”. No batismo o home não renasce verdadeiramente, mas ele se livra do mal natural e da inescapabilidade da morte. Nele é cortada a “continuidade do vício”. Ele não ressuscita, porque não morreu, mas ainda permanece nessa vida. O batismo apenas prefigura a ressurreição; no batismo se antecipa a graça da ressurreição final. O batismo é o início, arch, e a ressurreição é o final e a consumação, peras; e tudo o que acontecerá na grande Ressurreição tem já seu início e causa no batismo. Podemos dizer que o batismo é uma “ressurreição homiomática[67]”. Devemos ressaltar que São Gregório enfatizava especialmente a necessidade de conservar e de se agarrar à graça batismal. Pois no batismo não é apenas a natureza, mas também a vontade, que é transformada e transfigurada, tornando-se livre a longo do processo. E se a alma não foi lavada e purificada pelo livre exercício da vontade, o batismo se mostra infrutífero. A transfiguração não é realizada, a nova vida não se consuma. Isso não subordina a graça batismal à licença humana; a graça de fato desce. Mas ela não pode ser forçada a alguém que é livre e feito à imagem de Deus; ela deve ser correspondida e corroborada pela sinergia entre amor e vontade. A graça não reaviva nem faz brilhar as almas fechadas e obstinadas, aquelas almas “verdadeiramente mortas”. É preciso que haja resposta e cooperação. Isso acontece porque o batismo é a morte sacramental com Cristo, uma participação em Sua morte voluntária, em seu amor sacrificial; e isso só pode se cumprir em liberdade. Assim, no bat8ismo a morte de Cristo na Cruz se reflete como se fosse uma imagem viva e sacramental. O batismo é, em primeiro lugar, uma morte e um nascimento, um sepultamento e um “banho de regeneração”, “um tempo de morte e um tempo de nascimento[68]”, para citarmos São Cirilo de Jerusalém. O mesmo é verdade para todos os sacramentos. Todos os sacramentos foram instituídos para permitir aos fiéis “participarem” da morte redentora de Cristo, para assim ganhar a graça de Sua ressurreição. Nos sacramentos, o caráter único e universal da vitória e do sacrifício de Cristo são apresentados e enfatizados. Essa era a ideia central de Nicolas Cabasilas em seu tratado A Vida em Cristo, no qual se encontra sintetizada admiravelmente toda a doutrina sacramental da Igreja do Oriente. “Somos batizados exatamente para que morramos com Sua morte e renasçamos com Sua ressurreição. Somos ungidos com o crisma para que possamos partilhar de Sua unção real de deificação (theosis). E quando somos alimentados com o santíssimo Pão e quando bebemos do Divino Cálice, partilhamos da mesma carne e do mesmo sangue que o Senhor assumiu, e assim nos unimos a Ele, que se encarnou por nós, morreu e ressuscitou (...) O Batismo é um nascimento, e o Crisma é a causa de atos e movimentos, e o Pão da vida e o Cálice de ação de graças são o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida[69]”. Em toda a vida sacramental da Igreja a Cruz e a Ressurreição são “imitadas” e refletidas em múltiplos símbolos. todo esse simbolismo é realista. Os símbolos não apenas nos lembram algo no passado, algo que aconteceu. O que teve lugar “no passado” foi o começo daquilo que “dura Eternamente”. Sob todos esses “símbolos” sagrados, e neles próprios, a Realidade derradeira está de fato revelada e expressa. Esse simbolismo hierático culmina no augusto Mistério do Santo Altar. A Eucaristia é o coração da Igreja, o Sacramento da Redenção em sentido eminente. É mais do que uma “imitação”, do que uma “comemoração” simplesmente. Trata-se da própria Realidade, até então velada, e que é rebelada no Sacramento, como diz Cabasilas, “e não é possível ir além, nem nada existe que possa ser acrescentado”. Esse é o “limite da vida” – zwhs to peras. “Depois da Eucaristia não existe mais nada a se esperar, mas temos que permanecer aqui e aprender como podemos preservar esse tesouro até o fim[70]”. A Eucaristia é a própria Última Ceia, reapresentada por assim dizer uma e outra vez, embora jamais repetida. Pois cada nova celebração não apenas “reapresenta”, mas em verdade constitui a mesma “Ceia Mística” que foi celebrada pela primeira vez (e para sempre) pelo próprio Divino Altíssimo Sacerdote, como uma antecipação e uma iniciação voluntárias ao Sacrifício sobre a Cruz. E o verdadeiro Celebrante de cada Eucaristia é sempre o próprio Cristo. São João Crisóstomo é bastante enfático a esse respeito: “Acreditem, portanto, que ainda agora é aquela mesma Ceia, na qual Ele próprio estava sentado. Pois esta, sob todos os aspectos, não é diferente daquela[71]”. “Aquele mesmo que operou essas coisas naquela Ceia, é o mesmo que as opera agora. Estamos apenas presentes dentre seus ministros. Aquele que as santifica e transmuta é o Mesmo. Essa mesa é a mesma que aquela, e nada lhe falta. Pois não é que Cristo operou então, e agora opera o homem, mas é Ele quem opera em ambas as ocasiões. Essa é a mesma Câmara Alta aonde estavam todos então[72]”. Tudo isso é de uma importância básica. A Última Ceia foi a oferta do sacrifício, do sacrifício da Cruz. A oferenda continua ainda, cristo ainda age como o Alto Sacerdote nessa Sua Igreja. O Mistério é o mesmo, o Sacerdote é o mesmo, a Mesa é a mesma. Para citarmos Cabasilas mais uma vez: “Ao oferecer e sacrificar a Si mesmo de uma vez por todas, Ele não encerrou Seu Sacerdócio, mas exerceu Seu ministério por nós, no qual Ele é nosso advogado perante Deus eternamente[73]”. E o poder ressuscitador e o significado da morte de Cristo estão plenamente manifestados na Eucaristia. Trata-se da “medicina da imortalidade e de um antídoto, para que possamos não morrer, mas viver para sempre em Jesus Cristo”, para citarmos a famosa frase de Santo Inácio[74]. É o “Pão celestial e o Cálice da vida”. Esse Sacramento tremendo é para o fiel a verdadeira “Núpcia da Vida Eterna”, exatamente porque a morte de Cristo foi em si a Vitória e a Ressurreição. Na Eucaristia o começo e o fim estão amarrados: as memórias do Evangelho e as profecias da Revelação. Trata-se de um sacramentum juturi porque constitui uma anamnese da Cruz. A Eucaristia é uma antecipação sacramental, uma prefiguração da Ressurreição, uma “imagem da Ressurreição” – o tupos ths
amnasyasews, conforme a prece de consagração de São Basílio. Ela ainda não passa de uma “imagem”, não porque seja um mero signo, mas porque a história da Salvação continua, e é preciso olhar para a frente “para ver a vida do século futuro”.


VII.              Conclusão

Os Cristãos, enquanto Cristãos, não estão obrigados a nenhuma doutrina filosófica sobre a imortalidade. Mas eles são compelidos a acreditar na Ressurreição Geral. O homem é uma criatura. Sua própria existência é uma dádiva de Deus. Sua existência é contingente. Ele existe pela graça de Deus. Mas Deus criou o homem para a existência, isso é, para um destino eterno. Esse destino pode ser adquirido e consumado apenas em comunhão com Deus. O rompimento dessa comunhão frustra a existência humana, mas mesmo assim o homem não deixa de existir. A morte e a mortalidade do homem são sinais de uma comunhão rompida, o sinal do isolamento do homem, de seu distanciamento da fonte e da meta de sua existência. Mas, mesmo assim, o fiat criador continua a operar. A comunhão é restaurada na Encarnação. A vida se manifesta outra vez na sombra da morte. O Encarnado é Vida e Ressurreição. O Encarnado é o Conquistador da morte e do Hades. E Ele constitui as primícias da Nova Criação, as primícias para todos os que estão adormecidos. A morte física do homem não é apenas um “fenômeno natural” irrelevante, mas um sinal fatídico da tragédia original. Uma “imortalidade” de “almas” desincorporadas não resolve o problema humano. Uma “imortalidade” num mundo sem Deus, uma “imortalidade” sem Deus ou “fora de Deus”, equivaleria à danação eterna. Os Cristãos, enquanto Cristãos, aspiram a algo maior do que uma imortalidade “natural”. Eles aspiram a uma comunhão eterna com Deus, ou, para usarmos a ousada expressão dos primeiros Padres, a uma theosis. Não existe nada de “naturalista” ou de panteísta a respeito do termo. Theosis significa nada mais do que uma comunhão íntima das pessoas humanas com o Deus vivo. Estar com Deus significa habitar Nele e partilhar de Sua perfeição. “Assim o Filho de Deus se tornou o filho do homem, para que o homem possa se tornar filho de Deus[75]”. Nele, o homem está para sempre unido a Deus. Nele temos a Vida Eterna. “E nós que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é Espírito[76]”. E ao final, para toda a criação, o “Sábado Santo”, o verdadeiro “Dia do descanso”, o misterioso “Sétimo dia da criação” será inaugurado, na Ressurreição Geral e no “Mundo que há de vir”.



[1] I Timóteo 6: 16.
[2] Latitudinarianismo é a doutrina esposada por teólogos, estudiosos e clérigos ingleses da Universidade de Cambridge que também eram anglicanos moderados. Em particular, eles acreditavam que aderir a doutrinas muito específicas, liturgias muito determinadas e formas organizacionais rígidas, como faziam os puritanos era desnecessário e poderia ser até prejudicial: "a sensação de se ter instruções especiais de Deus faz os indivíduos menos acessíveis à moderação e à transigência, ou à própria razão". Assim, os latitudinários apoiavam um protestantismo de amplas bases.
[3] Aqanatos esti kai agennhtos dhladh.
[4] Ab oleo: expressão figurada que indica algo que foi criado a partir de algum trabalho. Ou seja, “o mundo é, acima de tudo e inteiramente, ab oleo (vale dizer, criado), e em nenhum sentido um se (ou seja, ele não existe por si).
[5] Ad Autolycum II, 24, 27.
[6] Oratio ad Graecos, 13.
[7] Adversus haereses II, 34.
[8] Adversus Gentes, 33, 41: fusin reusthn ousan kai dialuomenhn.
[9] Epist. VFF ad Hieronymun.
[10] In Jo. Tr. 23, 9; cf. De Trinitate, I.9.15, e De Civ. Dei, 19.3: mortalis in quantum mutabilis.
[11] De fide Orth., ii, 3: ou yusei allacariti.
[12] Dial. c. Manich., 21.
[13] Mansi, XI, 490-492; Aligne, LXXXVII, 3, 3181.
[14] “Ele criou tudo para a existência...” (Sabedoria 1: 14.
[15] I Coríntios 15: 26.
[16] João 1: 14.
[17] Porfírio, Vida de Plotino, I.
[18] Nemésio, De natura hominis, 2.
[19] Diálogos, 80.
[20] Sobre a Ressurreição, 8.
[21] Romanos 6: 23.
[22] Adv. Haereses, V, 6.1.
[23] De ressurrectione I, 34: 4 – to agalma to logikon.
[24] Romanos 8: 23 – thn apolutrwsin tou swmatos hmwn.
[25] II Coríntios 5: 4.
[26] De incarnatione, 4 e 5.
[27] II Samuel 14: 14.
[28] I João 1: 1.
[29] Epist. 101 ad Cledonium.
[30] Cf. Romanos 6: 3-5.
[31] I Coríntios 15: 36.
[32] Cf. Lucas 9: 31.
[33] De Incarnatione, 6-8.
[34] Ibid., 44.
[35] De carne Christi, 6.
[36] Orat. 45, in S. Pascha, 28.
[37] Catech. 13, 6.
[38] Lucas 12: 50.
[39] Orat. 37, 17.
[40] Orat. 45, 13.
[41] São João Damasceno, De fide Orth., 3: 37; cf. Homil. in Magn. Sabbat., 29.
[42] In crucem et latronem, hom. 1.
[43] Orat. 41.
[44] Enteléquia: realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, com a conclusão de um processo transformativo até então em curso em qualquer um dos seres animados e inanimados do universo.
[45] I Pedro 3: 19.
[46] De inc., 26.
[47] Hino, Vésperas do Domingo de Páscoa, rito Oriental.
[48] Apocalipse 1: 17-18.
[49] In Hebr., hom. 17, 2 – ou qanatos touto estin, ala koihsis.
[50] De Inc., 21.
[51] I Coríntios 15: 20.
[52] De Vita in Christo II, 86-96.
[53] Santo Inácio, Magnes, 5.
[54] João 5: 29 – anastasis ths kpisews.
[55] Conhecimento e participação.
[56] Quaest. Ad Thalass., 6.
[57] De Genest ad litt., I, 5.
[58] I João 1: 2.
[59] Romanos 6: 3-4.
[60] Colossenses 2: 12; Filipenses 3: 10.
[61] II Timóteo 2: 11.
[62] Romanos 6: 5 – “Se permanecermos completamente unidos a Cristo com morte semelhante à dele, também permaneceremos com ressurreição semelhante à dele”.
[63] Gálatas 4: 19.
[64] De vita in Christo II, 95.
[65] Mystag. 2: 4-5, 7; 3: 1.
[66] Orat. Cat., 33.
[67] Orat. Cat., 35.
[68] Mystag. II, 4 – loutron ths paliggenesias.
[69] De vita II, 3, 4, 6, etc.
[70] De vita IV, i, 4, 15.
[71] In Matt., hom, 50, 3.
[72] Ibid., hom. 82, 5.
[73] Expla. Div. Liturg., c. 23.
[74] Jarnakon aqanasias, antidwtos tou mh apoqanein, allaszhn em Ihsou Cristw. Efésios 20: 2.
[75] Santo Irineu, Adv. Haeres., III, 10.2.
[76] II Coríntios 3: 18.