“Contemplai, pois fiz novas todas as coisas.”
Apocalipse 21: 5
I. Escatologia
A escatologia foi por muito tempo um terreno negligenciado na moderna
teologia. A arrogante frase de Ernst Troeltsch – “O departamento de escatologia
está quase inteiramente encerrado” – foi uma característica distintiva de toda
a tradição liberal, desde o Iluminismo. Mas esse desprezo pelos assuntos
escatológicos não foi completamente superado no pensamento contemporâneo. Em
algumas frentes a escatologia continua sendo vista como uma relíquia obsoleta
de um passado a ser esquecido. O próprio tema é evitado, ou sumariamente rejeitado
como algo irreal e irrelevante. O homem moderno não está preocupado com os
últimos acontecimentos. Essa atitude de negligência foi recentemente reforçada
pelo surgimento do Existencialismo teológico. Porém o mesmo Existencialismo
proclama ser, ele próprio, uma doutrina escatológica. Mas trata-se de um abuso
dos termos. A escatologia é radicalmente interiorizada na sua reinterpretação
existencialista. Na verdade, ela é engolida pelo imediatismo das decisões
pessoais. Num certo sentido, o Existencialismo moderno na teologia não passa de
uma variação recente do velho tema Pietista. Em última instância, ele remonta
ao desmonte histórico radical[1]
da fé Cristã. Os acontecimentos históricos apresentam-se eclipsados pelos
eventos da vida interior. A própria Bíblia é usada como um livro de parábolas e
regras. A história não passa de um arcabouço ultrapassado. A eternidade pode
ser encontrada e experimentada a qualquer momento. A história deixou de ser um
problema teológico.
Por outro lado, precisamente nas últimas décadas, a historicidade
básica da fé Cristã voltou a ser contemplada e reafirmada em diversas linhas da
teologia contemporânea. Foi uma oportuna mudança no pensamento teológico. De
fato, constituiu um retorno à fé Bíblica. É claro, não se pode encontrar na
Bíblia nenhuma “filosofia da história”. Mas nela existe uma ampla visão da
história, uma perspectiva de um tempo que se desdobra, que vai de um “começo”
até um “fim”, e que é guiado pela vontade soberana de Deus em direção ao
cumprimento de seu propósito último. A fé Cristã é, em primeiro lugar, um
testemunho obediente dos poderosos feitos de Deus na história, que culminaram
“nos últimos dias”, no Advento de Cristo e em Sua vitória redentora. De acordo
com isso, a teologia Cristã deve ser construída como uma “Teologia da
História”. A fé Cristã está alicerçada em acontecimentos, não em ideias. O
próprio Credo é um testemunho histórico, um testemunho dos acontecimentos
salvíficos ou redentores, que são apreendidos pela fé como os feitos poderosos
de Deus.
Essa recuperação da dimensão histórica da fé Cristã trouxe outra vez a
questão escatológica para o foco da meditação teológica. A Bíblia e o Credo,
ambos apontam para o futuro. Sugeriu-se recentemente que a filosofia Grega
estava inescapavelmente “presa ao passado”. A categoria “futuro” era quase
irrelevante para a versão Grega da história. A história era concebida como uma
rotação, com um retorno inevitável à posição inicial, a partir da qual uma nova
repetição de eventos se iniciaria mais uma vez. Ao contrário, a visão Bíblica
descortina o futuro, no qual as coisas novas serão reveladas e realizadas. E a
realização última do propósito divino está antecipada no futuro, além do qual
não existe movimento temporal – vale dizer, num estado de consumação.
Na espirituosa frase de Hans Urs von Balthasar, “a escatologia está no
‘olho do furacão’ na teologia de nosso tempo”. De fato, trata-se de um “nó
sutil” no qual todas as linhas do pensamento teológico estão interconectadas e
inextricavelmente tecidas. A escatologia não pode ser discutida como se fosse
um tópico específico, como um artigo de fé em separado. Ela só pode ser
entendida a partir de uma perspectiva total da fé Cristã. O que é
característico do pensamento teológico contemporâneo é precisamente a redescoberta
da dimensão escatológica da fé Crista. Não existe um consenso na teologia
contemporânea a respeito das “Últimas coisas”. O que acontece é mais um
conflito de visões e de opiniões. Mas também existe uma nova abertura de
perspectiva.
A contribuição de Emil Brunner para a discussão atual foi tanto
provocativa quanto construtiva. Sua teologia é uma teologia de esperança e
expectativa, como convém a alguém que pertence à tradição Reformada. Sua
teologia é intimamente orientada para os “Últimos acontecimentos”. Ainda assim,
em muitos pontos, sua visão é limitada por seus pressupostos teológicos gerais.
De fato, sua teologia reflete sua experiência pessoal da fé, aquilo que ele
próprio chama de “sua existência devota”.
II.
O mistério das Últimas Coisas
O mistério das Últimas Coisas
está baseado no paradoxo básico da Criação. De acordo com Brunner, o termo
Criação, em seu uso Bíblico, não denota o modo como o termo é empregado
atualmente – vir à existência – mas implica apenas a soberana Senhoria de Deus.
No ato da Criação Deus estabelecer algo que é inteiramente outro em relação a
Ele, “adjacente” a Ele. De acordo com isso, o mundo das criaturas possui seu
próprio modo de existência – derivado e subordinado, dependente, mas, mesmo
assim, real à sua própria maneira. Brunner é quase formal a respeito: “Um mundo
que não é Deus passa a existir paralelamente a Ele”. Assim, a própria
existência do mundo implica uma certa dose de “limitação” auto imposta do lado
de Deus, Sua kenosis, que alcança seu máximo na cruz de Cristo. Deus
abre espaço para a existência de algo diferente. O mundo foi “chamado à
existência” com um propósito, para que possa manifestar a glória de Deus. O
Verbo é o princípio e o objetivo último da Criação.
Com efeito, o simples fato da Criação constitui o paradoxo básico da
fé Cristã, em relação ao qual podem ser deduzidos todos os demais mistérios de
Deus – ou antes, em relação ao qual eles estão implicados. Brunner, entretanto,
não distingue claramente, a esse respeito, entre o próprio “ser” de Deus e Sua
“vontade”. De fato, o “ser” de Deus simplesmente não pode ser “limitado”, em
nenhum sentido. Se existe uma “limitação”, ela só pode se referir à Sua
“vontade”, na medida em que foi “chamada à existência” outra vontade, que
poderia não ter nunca existido. Essa “contingência” básica da Criação
testemunha a absoluta soberania de Deus. Por outro lado, o clímax definitivo da
kenosis criadora só poderá ser encontrado nos “Últimos Eventos”. O
ferrão do paradoxo, dessa kenosis, não reside na existência do mundo,
mas na possibilidade do Inferno. De fato, o mundo ode ser obediente a Deus,
assim como pode desobedecê-lo, e em sua obediência ele serve a Deus e manifesta
Sua glória. Não se trata de uma “limitação”, mas de uma expansão da majestade
de Deus. Ao contrário, o Inferno significa resistência e distanciamento, pura e
simplesmente. Entretanto, mesmo num estado de revolta e rebelião, o mundo
continua pertencendo a Deus. Ele jamais poderá escapar ao Seu Juízo.
Deus é eterno. Essa não é uma definição negativa. Ela simplesmente
significa que a noção de tempo não pode ser aplicada à Sua existência. Com
efeito, o “tempo” não passa de um modo da existência criada. O tempo foi dado
por Deus. Não se trata de um modo de existência imperfeito ou deficiente. Não
existe nada de ilusório a respeito do tempo. A temporalidade é real. O tempo
realmente se move, de forma irreversível. Mas não se trata de um fluxo, nem de
uma rotação. Ele não é uma série de “átomos de tempo” indiferentes que possam
ser concebidos ou postulados como infinitos, sem fim ou limite. Trata-se antes
de um processo teleológico, organizado internamente com vistas a um determinado
objetivo final. Existe um telos implicado em todo desígnio da Criação.
De acordo com isso, o que acontece no tempo é significativo – significativo e
real para o próprio Deus. A História não é uma sombra. Definitivamente, a
história possui um objetivo “meta-histórico”. Brunner não utiliza esse termo,
mas ele enfatiza a “finitude” inerente à história. Uma história infinita, que se
desenvolvesse indefinidamente, sem destino ou fim, seria uma história vazia e
desprovida de significado. A história deve ter um fim, uma conclusão, uma katharsis,
uma solução. A trama deve ser revelada. A história precisa ter um termo, no
qual ela será “realizada”, “preenchida”, “consumada”. Ela foi originalmente
desenhada para ser “realizada”. No final, já não haverá história de espécie
alguma. O tempo se realizará na eternidade, como coloca Brunner. Naturalmente,
nessa conexão a eternidade significa simplesmente Deus. O tempo só tem
significado contra um fundo de eternidade, ou seja, somente no contexto do
desígnio divino.
De fato, a história não é apenas o desdobramento desse desígnio
primordial e soberano. O tema da história real, da única história que de fato
conhecemos, é dado pela existência do pecado. Brunner dispensa a querela sobre
a origem do pecado. Ele apenas enfatiza sua “universalidade”. O pecado, no
sentido Bíblico do termo, não é primitivamente uma categoria ética. De acordo
com Brunner, ele apenas denota a necessidade de redenção. Os dois termos são
intrinsecamente correlativos. Agora, o pecado não é um fenômeno primário, mas
uma quebra, um desvio, uma rejeição do princípio. Sua essência é a apostasia e
a rebelião. É esse aspecto do pecado que é ressaltado na história Bíblica da
Queda. Brunner recusa ver a Queda como um evento real. Ele insiste apenas que
sem o conceito de Queda a mensagem básica do Novo Testamento, vale dizer, a
mensagem da salvação, seria absolutamente incompreensível. Efetivamente, não
devemos nos perguntar a respeito do “quando” e do “como” da Queda. A essência
do pecado só pode ser discernida à luz de Cristo, ou seja, à luz da redenção. O
homem, tal como o observamos na história, sempre aparece como pecador, incapaz
de não pecar. O homem histórico é sempre um “homem revoltado”. Brunner está
perfeitamente ciente da força do pecado – tanto no mundo, quanto na história humana.
Ele adota a noção Kantiana do pecado radical. O que ele diz sobre o pecado
Satânico, como sendo diferente do pecado humano, sobre o poder Satânico supra
pessoal, é impressionante e altamente relevante para o questionamento
teológico, tanto quanto tudo o que inevitavelmente ofende e perturba a mente do
homem moderno. Mas a questão principal permanece ainda sem resposta. Teve a
Queda o caráter de um evento? A lógica do argumento de Brunner parece nos
compelir a vê-la como um evento, um elo na cadeia dos acontecimentos. De outro
modo, ela não passaria de um símbolo, de uma hipótese de trabalho, indispensável
para finalidades interpretativas, mas irreal. Realmente, o fim da história deve
ser visto, de acordo com Brunner, como “um evento”, por mais misterioso que
deva ser esse evento. Também “o começo” tem um caráter de “evento”, como o
primeiro elo da cadeia. Mais do que isso, a redenção é obviamente um “evento”
que pode ser datado com exatidão – de fato, o evento crucial, determinativo de
todos os demais. Dessa perspectiva parece imperativo ver a Queda como um
evento, qualquer que seja a maneira como ela é visualizada ou
interpretada. Em qualquer caso, a
redenção e a Queda estão intrinsecamente relacionadas entre si, na
interpretação de Brunner.
Brunner distingue claramente as criaturas enquanto tais do pecado. As
criaturas provêm de Deus. O pecado provém de uma fonte oposta. O pecado se
revela em eventos, em atos e ações pecaminosos. De fato, trata-se de um abuso
de poder, de uma perversão dessa liberdade responsável que foi concedida ao
homem no mesmo momento em que ele foi chamado à existência. Com efeito, antes
de que o abuso se tornasse um hábito, ele precisou ser exercido pela primeira
vez. A revolta precisou começar um dia. Essa asserção está alinhada com o
restante da exposição de Brunner. De outra forma pode-se cair numa espécie de
dualismo metafísico que o próprio Brunner denuncia vigorosamente. De qualquer
modo, a existência das criaturas e a pecaminosidade não podem ser igualadas ou
identificadas.
De fato, Brunner está certo ao sugerir que devemos iniciar a partir do
centro, ou seja, com a boa nova da redenção em Cristo. Mas em Cristo nós
contemplamos não apenas nossa desesperada “situação existencial” enquanto
pecadores miseráveis, mas, acima de tudo, o envolvimento histórico do homem com
o pecado. Nós nos movemos num mundo de eventos. Somente por essa razão estamos
justificados em olhar para frente, para os “Últimos Acontecimentos”.
O curso da história foi radicalmente desafiado por Deus – e num ponto
crucial. De acordo com Brunner, desde a vinda de Cristo, o próprio tempo se
carregou, para os fiéis, com uma qualidade totalmente nova, com uma “diversa e
desconhecida qualidade de decisão”. Desde então, os fiéis são confrontados com
uma alternativa definitiva, confrontados agora, nesse “tempo histórico”. A
escolha é radical, entre os céus e o inferno, qualquer momento da história pode
se tornar decisivo – para aqueles que estão encarregados de tomar decisões,
através do desafio e da revelação de Cristo. Nesse sentido, de acordo com
Brunner, “o tempo terrestre, para a fé, está carregado com uma tensão de
eternidade”. O homem agora está inescapavelmente chamado a tomar decisões,
desde que Deus manifestou Sua própria decisão, em Cristo, e em Sua Cruz e Sua
Ressurreição. Significa isso que “decisões eternas” – vale dizer, decisões
“para a eternidade” – devam ser tomadas nesse “tempo histórico”? Pela fé em
Jesus Cristo, o Mediador, podemos, desde já, “participar” da eternidade. Desde
Cristo, os fiéis já habitam como que em diferentes dimensões, tanto dentro
quanto fora do tempo “ordinário[2]”.
É como se o tempo tivesse sido “polarizado” pelo Advento de Cristo. Assim, ao
que parece, o tempo agora está relacionado com a eternidade, ou seja, com Deus,
de uma maneira dupla. Por um lado, o tempo está sempre relacionado
intrinsecamente com o Deus eterno, seu Criador: Deus concede o tempo. Por outro
lado, o tempo, nesses últimos dias, foi radicalmente contestado pela
intervenção direta e imediata de Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Como o
próprio Brunner diz, “a temporalidade, a existência no tempo, ganha um novo caráter
através de sua relação com esse evento, Jesus Cristo, o eph hápax[3]da
história, a qualidade “de uma vez por todas” de Sua Cruz e Ressurreição, e ela
é remodelada de uma maneira paradoxal que é ininteligível, se guiada apenas
pela razão”.
Buscamos expor o ponto crucial da exposição de Brunner. Sua
interpretação do destino humano e estritamente Cristológica e Cristocêntrica.
Somente a fé em Cristo dá sentido à existência humana. Esse é seu ponto forte.
Mas existe um cunho docético[4]
ambíguo nessa Cristologia, e isso afeta gravemente seu entendimento da
história. Estranhamente, o próprio Brunner dirige o mesmo ataque à Cristologia
tradicional da Igreja, afirmando que ela jamais deu suficiente atenção ao Jesus
histórico. Trata-se de um ataque sumário que não podemos analisar e “refutar”
nesse momento. O que é relevante para nosso propósito atual é que a Cristologia
de Brunner é obviamente mais docética do que a da tradição Católica. A atenção
de Brunner ao Jesus histórico é fortemente ambígua. Segundo ele, Cristo é uma
personalidade histórica apenas enquanto homem. Quando Ele “Se revela” – ou
seja, quando Ele revela Sua Divindade àqueles que possuíam os olhos da fé – Ele
deixa por completo de ser uma personalidade histórica. De fato, a humanidade de
Cristo, segundo Brunner, não passa de um “disfarce”. O verdadeiro “self”
de Cristo é divino. Para a fé, Cristo descarta Seu disfarce, Seu “incógnito”,
para usarmos a expressão de Brunner. “Quando ele Se revela, a história
desaparece, e inicia-se o Reino de Deus. E quando Ele Se revela, Ele já não é
uma personalidade histórica, mas o Filho de Deus, de eternidade a eternidade”. É
de fato uma linguagem surpreendente.
Na verdade, a humanidade de Cristo é apenas uma maneira de entrar na
história, ou melhor, de aparecer na história. A relação de Deus com a história,
e com a realidade humana, é como se fosse apenas tangencial, mesmo no mistério
crucial da Encarnação. De fato, a humanidade de Cristo interessa a Brunner
apenas como meio da revelação, da auto-revelação divina. Com efeito, para
Brunner, em Cristo Deus encontrou uma base firme na humanidade. Mas isso não
significa nada além de que Deus agora desafiou o homem em seu próprio elemento
humano, em seu próprio terreno e grau humano. Para encontrar o home, Deus teve
que descer ao próprio nível humano. Isso pode ser entendido de uma maneira
estritamente ortodoxa. De fato, esse era o pensamento favorito dos antigos
Padres. Mas Brunner nega qualquer interpenetração real dos aspectos divino e
humano na pessoa de Cristo. De fato, eles não passam de “aspectos”. Dois
elementos se encontram, mas não numa unidade real. O Cristo da fé é apenas
divino, ainda que num disfarce humano. Sua humanidade é apenas um meio de
entrar na história, ou antes, de aparecer na história. Será a história não mais
do que uma tela na qual a divina “eternidade” é projetada? Deus teve que
assumir as vestes de um mendigo, pois de outro modo ele seria incapaz de
encontrar o homem. Nunca houve uma verdadeira “assunção” da realidade humana na
experiência pessoal do Encarnado. O papel da humanidade de Cristo teria sido
unicamente instrumental, um disfarce. Basicamente, trata-se de um completo
docetismo, ainda que se possa dar muita atenção ao “Jesus histórico”. Antes de
tudo, o “Jesus histórico” não pertence, nessa interpretação, ao domínio da fé.
As verdadeiras decisões não são tomadas no plano da história, diz
Brunner. “Pois essa é a esfera na qual o homem veste sua máscara. Por causa de
nossa “mascarada”, vale dizer, por causa de nossa pecaminosa falsidade, também
Cristo, se é que posso me expressar assim, teve que vestir uma máscara; nisso
consistiu Seu Incógnito”. Agora, sob a ação da fé, o homem retira sua máscara.
Então, em resposta, também Cristo tira Sua máscara, Seu disfarce humano, e
aparece em Sua glória. A fé, segundo Brunner, destrói a história. A fé
constitui, em si, uma espécie de ato “meta-histórico”, que transcende a
história, e até mesmo a dispensa. Brunner enfatiza o caráter único da revelação
redentora de Deus em Cristo. Para o homem, isso significa que o desafio é
radical e definitivo. Ao homem é dada uma única oportunidade, ou ocasião, para
tomar sua decisão, para superar sua própria humanidade limitada, até mesmo sua
temporalidade intrínseca – por um ato de fé que o leva além da história, ainda
que apenas em esperança e promessa, até que o kairos[5]
final chegue. Mas será a história humana definitivamente não mais do que uma
mascarada? De acordo com a enfática declaração de Brunner, a temporalidade em
si não é um pecado. Por que, então, deveria a divina revelação em Cristo
descartar a história? Por que haveria a história de ser um obstáculo para a
auto-revelação de Deus, um obstáculo a ser radicalmente removido?
Em última instância, a mudança radical na história – a Nova Era,
inaugurada com o Advento de Cristo – parece consistir apenas numa oportunidade
nova e sem precedentes de tomar um partido. Deus, na realidade, permanece tão
oculto na história quanto antes ou, provavelmente, até mais do que antes, uma
vez que a incomensurabilidade definitiva da revelação divina, em relação à
mascarada humana, se tornou auto evidente e visível. Deus só pode se aproximar
do homem se for disfarçado. O verdadeiro curso da história não se alterou, seja
pela intervenção de Deus, seja ela opção do homem. Fora da decisão da fé a
história é vazia e sempre pecaminosa. A textura íntima da verdadeira existência
histórica não foi afetada pela revelação redentora. Não obstante, foi dado um
aviso: o Senhor voltará. Então Ele virá como Juiz, não como Redentor, embora o
Julgamento deva realmente realizar e estabilizar a redenção.
Pela fé podemos agora discernir uma “tensão escatológica” no próprio
curso da história, embora seja inútil e vão entregar-se a qualquer espécie de
cálculos apocalípticos. Essa tensão parece existir apenas no nível humano. O intermezzo
escatológico é a época das decisões – a serem tomadas pelo homem, pois a
decisão de Deus já foi tomada desde sempre.
Como um todo, a história Cristã, de acordo com Brunner, foi um
doloroso fracasso, uma história de decadência e desentendimento. Esse é um
esquema antigo, firmemente estabelecido pela historiografia Protestante, pelo
menos desde Gottfried Arnold. Primitiva
comunidade Cristã, a ecclesia, foi uma genuína comunidade Messiânica, “a
portadora da nova vida da eternidade e do poder do mundo divino”, conforme
coloca Brunner. Mas essa ecclesia primitiva não sobreviveu, pelo menos
não enquanto entidade histórica, como um fator histórico. Brunner reconhece
alguns “adventos” parciais e provisórios do Reino de Deus ao longo da história.
Mas todos esses “adventos” são esporádicos. Onde está a fé, aí está a
ecclesia, ou o Reino. Mas ele se encontra oculto na “mascarada” permanente
da história. Finalmente, a marcha da história é uma espécie de campo de testes,
onde cada homem é desafiado e suas respostas são tentadas e testadas. Mas será
que a “história salvífica” ainda prossegue? Estará Deus ainda ativo na
história, depois do Primeiro Advento – ou terá sido a história deixada de lado,
depois da grande intervenção de Cristo, relegada ao homem apenas, com essa
condição escatológica de que finalmente Cristo voltará?
Agora, obviamente a história não passa de um estágio provisório e
passageiro no destino do homem. O homem é chamado à “eternidade”, não à
“história”. É por isso que a “história” deve chegar a um termo, a um fim. E, de
fato, a história é também um estágio de crescimento – o trigo e o joio crescem
juntos, e sua separação definitiva é adiada – até o dia da colheita. O joio
cresce, rápida e selvagemente. Mas o trigo também cresce. De outra forma, não
haveria oportunidade para nenhuma colheita, exceto a do joio. De fato, a
história amadurece não apenas para o julgamento, mas também para a consumação.
Mais do que isso, Cristo continua ativo na história. Brunner desconsidera, ou
ignora, esse componente da história Cristã. Em sua visão, a história Cristã
está como que “atomizada”. Ela se reduz a uma série de atos existenciais,
praticados pelo homem, e, estranhamente, apenas os atos negativos, os atos de
rebelião e de resistência, são integrados e solidarizados. Mas, de fato, a ecclesia
não é simplesmente um agregado de atos esporádicos, mas um “corpo”, o Corpo de
Cristo. Cristo está presente na ecclesia não apenas como um objeto de fé
e reconhecimento, mas como sua Cabeça. Ele está realmente reinando e governando.
Isso assegura a continuidade e a identidade da Igreja através dos séculos. Na
concepção de Brunner Cristo parece estar a parte da história, ou acima dela.
Estará Ele realmente presente agora, no presente, sem ser por intermédio da
memória do passado e da esperança no futuro, e verdadeiramente nos atos
“meta-históricos” da fé?
A criação, de acordo com Brunner, tem seu próprio modo de existência.
Mas ela não passa de um “meio” da revelação divina. Ela deve ser, digamos,
transparente para a luz e a glória divinas. E, estranhamente, isso nos lembra
da gnose Platônica de Orígenes e seus seguidores. Toda a história é reduzida à
dialética do eterno e do temporal. O termo utilizado por Brunner é
“parabólica”.
III.
A noção de “fim”
A noção de “fim” – de um fim definitivo – é uma noção paradoxal. Um
“fim” tanto pertence a uma série como a encerra. Ele é tanto “um evento” quanto
“o fim de todos os eventos”. Ele pertence à dimensão da história, ao mesmo
tempo em que rejeita toda dimensão. A noção de “começo” – primeiro e radical –
também é uma noção paradoxal. Como disse São Basílio, “o começo do tempo ainda
não é o tempo, mas precisamente o começo deste[6]”.
Ambos são “um instante”, e também mais do que isso.
Do futuro, só podemos falar em imagens e parábolas. Essa era a
linguagem da Escritura. Essa imageria não pode ser adequadamente decifrada
agora, e não deve ser tomada literalmente. Mas de modo algum ela pode ou deve
ser “desmistificada”. Brunner é formal a esse respeito. A esperada Parúsia de
Cristo deve ser vista como “um evento”. O caráter desse evento é inimaginável.
Dificilmente poderemos encontrar símbolos e imagens melhores do que os que são
empregados na Bíblia. “Qualquer que seja a forma que tome esse evento, tudo se
resume ao fato de que ele acontecerá”. O kerygma[7]
Cristão é decisivo a esse respeito: “a síntese redentora definitiva terá o
caráter de um evento”. Em outras palavras, a Parúsia pertence à série de
“acontecimentos” históricos, que ela deverá concluir e fechar. “Uma fé Cristã
sem a expectativa da Parúsia é como uma escada que não leva a lugar algum e que
termina no vazio”. Mas num aspecto, de qualquer modo, podemos ir além das
imagens: é Cristo que virá. A Parúsia é um “retorno”, assim como é a novidade
definitiva. Os “Últimos Eventos” estão centrados na pessoa de Cristo.
O fim virá “subitamente”. Mesmo assim, num certo sentido, ele terá
sido preparado dentro da história. Como diz Brunner, “a história do homem
revela radicalmente traços apocalípticos”. Nesse ponto ele se entrega a
especulações metafísicas. “O balanço do pêndulo se torna cada vez mais rápido”.
Essa aceleração do tempo da vida humana pode atingir um ponto além do qual não
é possível ir. A história pode simplesmente explodir de repente. Por outro lado,
num nível mais profundo, as desarmonias da existência humana estão crescendo
firmemente: existe uma “brecha crescente na consciência humana”. É claro que
essas sugestões não têm mais do que um valor subsidiário e hipotético. Brunner
tenta transferir o conceito paradoxal de fim para o pensamento moderno. Mas
isso é também característico de sua própria visão da realidade humana. A
história está pronta para explodir, ela está oprimida e desgastada por tensões
não resolvidas. Há alguns anos um filósofo religioso Russo, Vladimir Ern,
sugeriu que a história humana é uma espécie de “progresso catastrófico”, uma
progressão retilínea em direção a um fim. Porém, esse final deverá vir do alto,
na Parúsia. Concordantemente, tratar-se-á de algo mais do que apenas uma
“catástrofe”, ou um “julgamento” imanente ou interno – uma revelação das
contradições e tensões inerentes. Ele deverá ser um julgamento absoluto, o
Juízo de Deus.
Mas o que é um Julgamento? Ele não é menos um “evento” do que a
Parúsia. Trata-se de um encontro definitivo entre a humanidade pecadora e o
Deus Santo. Em primeiro lugar, será uma revelação ou uma manifestação do
verdadeiro estado de cada homem e da humanidade como um todo. Nada ficará
escondido. Assim o Julgamento encerrará esse estado de confusão e de
ambiguidade, de inconclusão (como coloca Brunner), que caracterizou todo o
estágio histórico do destino humano. Isso implica uma “discriminação”
derradeira e final – à luz de Cristo. Será um desafio final e definitivo. A
vontade de Deus finalmente será cumprida. A vontade de Deus será
definitivamente imposta. De outra forma, na frase de Brunner, “todo discurso
sobre responsabilidade não passa de conversa vã”. De fato, ao homem foi
concedida a liberdade, mas não se trata de uma liberdade de indiferença. A
liberdade humana é essencialmente uma liberdade de resposta – a liberdade de
aceitar a vontade de Deus. A “liberdade pura” só pode ser professada por ateus.
“Ao homem foi confiado, do homem se espera, meramente um eco, um cumprimento
subsequente de uma decisão que Deus previamente tomou por ele e para ele”. Não
existe senão uma opção justa para o homem – obedecer; não existe um dilema
real. O propósito e a finalidade do homem foram fixados por Deus.
Tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Mas, precisamente nesse ponto,
surge uma questão acabrunhadora. Irão todos os homens aceitar, no Juízo Final,
a vontade de Deus? Existirá espaço para alguma forma de resistência radical e
irreversível? Poderá a revolta do homem estender-se para além do Julgamento? Poderá
algum ser criado, dotado de liberdade, persistir num distanciamento de Deus,
persistentemente praticado desde antes, ou seja: poderá ele persistir em sua
própria vontade? Poderá esse ser ainda “existir” – num estado de revolta e
oposição, contra a vontade salvífica de Deus, fora do propósito salvífico de
Deus? Será possível ao homem perseverar numa rebelião, apesar do chamado e do
desafio de Deus? Será a imagem Escriturária da separação – entre ovelhas e
bodes – a última palavra sobre o destino derradeiro do homem? Qual será o
status definitivo da “liberdade” criada? O que significa que a vontade de Deus
deverá prevalecer finalmente? Essas questões são embaraçosas e intrigantes. Mas
elas não podem ser evitadas. Elas não são ditadas apenas por uma curiosidade
especulativa. Trata-se de questões “existenciais”. De fato, o Juízo Final é um
mistério terrível, que não pode nem deve ser racionalizado, que está além do
conhecimento e do entendimento. Trata-se de um mistério de nossa própria
existência, do qual não podemos escapar, ainda que não possamos compreendê-lo
ou entendê-lo intelectualmente.
Brunner rejeita enfaticamente o “terrível teologúmeno[8]”
da dupla predestinação como sendo incompatível com o pensamento da Bíblia. Não
existe uma discriminação eterna no desígnio criador de Deus. Deus chama todos
os homens à salvação, e foi com esse propósito que Ele lhes deu existência. A
salvação é o único proposito de Deus. Mas o paradoxo crucial permanece sem
solução. O problema crucial é estabelecer em que medida esse propósito único de
Deus será realmente realizado, em toda sua plenitude e extensão, tal como é
admitido e postulado na teoria da salvação universal, para a qual se pode
alegar a evidência Escriturária. Brunner rejeita a doutrina da Apokatastasis
como sendo uma “perigosa heresia”. Ela estaria errada enquanto doutrina. Ela
implica uma segurança errônea para o homem – todos os caminhos levam, em
definitivo, ao mesmo fim, e assim não existe uma tensão real, um perigo real.
Ainda assim, Brunner admite que a doutrina da graça remissória, e da
justificação pela fé , conduz logicamente ao conceito da redenção universal;
pode a vontade do Deus onipotente encontrar resistência, ou, por assim dizer, ser
revertida pela obstinação de criaturas frágeis? O paradoxo pode ser resolvido
apenas dialeticamente – na fé. Não podemos conhecer a Deus teoricamente. É
preciso acreditar em Seu amor.
É típico que Brunner discuta todo o problema exclusivamente da
perspectiva da vontade divina. Por essa razão ele perde o verdadeiro ponto do
paradoxo. Ele simplesmente ignora o aspecto humano do problema. De fato, a
“danação eterna” não é infligida por um “Deus raivoso”. Deus não é o autor do
Inferno. A “danação” é um castigo auto infligido, a consequência e a implicação
da oposição rebelde a Deus e à Sua vontade. Brunner admite que existe uma possibilidade
real de danação e de perdição. É perigoso e errôneo ignorar essa possibilidade
real. Mas podemos esperar que ela nunca se realize. Porém, a própria esperança
deve ser realista e sóbria. Estamos diante da alternativa: ou, no Juízo Final,
os infiéis e os pecadores renitentes serão finalmente movidos pelo desafio
divino, e ser converterão “livremente(essa é a hipótese de São Gregório de
Nissa); ou sua obstinação será simplesmente sobrepujada pela Onipotência divina,
e eles serão salvos pelo constrangimento da divina misericórdia e da vontade
divina – sem seu consentimento livre e consciente. A segunda solução implica
contradição, a menos que entendamos a “salvação” de uma maneira formal e
forense. De fato. Criminosos podem ser exonerados numa corte de justiça, ainda
que não se arrependam, e que perseverem em sua perversão. Eles apenas escapam à
punição. Mas não podemos interpretar o Juízo Final dessa maneira. Em qualquer
caso, a “salvação” envolve a conversão, envolve um ato de fé. Ela não pode ser
imposta a ninguém. Será então a primeira
solução mais convincente? Claro, a possibilidade de uma “conversão” tardia – na
“décima primeira hora, e até mais tarde – não pode ser teoricamente descartada,
e o impacto do amor divino é infinito. Mas essa oportunidade, ou possibilidade
de conversão, antes do Tribunal de Cristo, estabelecido em glória, não pode ser
discutido in abstracto, genericamente. Antes de tudo, a questão da
salvação, assim como a decisão da fé, é um problema pessoal, que só pode ser
colocado e encarado no contexto de uma existência concreta e individual. As
pessoas são salvas, ou perecem. E cada caso pessoal deve ser estudado
individualmente. A principal fraqueza do esquema de Brunner está em que ele
sempre fala em termos gerais. Ele fala sempre da condição humana, e nunca de
pessoas vivas.
O problema do homem, para Brunner, é essencialmente o problema da
condição de pecado. Ele teme toda e qualquer categoria “ôntica”. De fato, o homem
é pecador, mas ele é, antes de tudo, homem. É verdade, também, que a verdadeira
estrutura da hominidade só foi exibida em Cristo, que era mais do que homem e
ao mesmo tempo não era homem. Mas em Cristo nos foi concedido não apenas a
remissão, mas ainda o poder de sermos, ou nos tornarmos, filhos de Deus, vale
dizer: nos tornarmos aquilo que deveríamos ser. Claro, Brunner admite que os
fiéis podem estar em comunhão com Deus desde já, na vida presente. Mas um dia
chega a morte. Poderá a fé, ou estar a pessoa – verdadeiramente – em Cristo, fazer
alguma diferença nesse momento? Será a comunhão com Cristo, estabelecida pela
fé (e, de fato, pelos sacramentos), ser rompida pela morte? Será verdadeiro que
a vida humana seja uma “vida para a morte”? a morte física é o limite da vida
física. Mas Brunner fala da morte da pessoa humana, do “Eu”. Ele afirma que se
trata de um mistério, de um mistério impenetrável, do qual o homem racional é
incapaz de saber seja lá o que for. Mas, de fato, o conceito dessa “morte pessoal”
não passa de uma asserção metafísica, derivada de certos pressupostos
filosóficos, e jamais um datum de nenhuma experiência verdadeira ou
possível, incluindo a experiência da fé. A “morte” da pessoa é apenas o
afastamento de Deus, mas, mesmo nesse caso, ela não implica aniquilação. Num sentido,
a morte significa a desintegração da personalidade humana, porque o homem não
foi designado para ser imaterial. A morte corporal reduz a integridade da
pessoa humana. O homem morre, mas ainda assim sobrevive – na expectativa do fim
geral. A antiga doutrina da Comunhão dos Santos aponta para a vitória de
Cristo: Nele, através da fé (e dos sacramentos), mesmo os mortos estão vivos, e
partilham – por antecipação, mas realmente – da vida eterna. A Communio
Sanctorum é um tópico escatológico importante. Brunner simplesmente ignora
tudo isso – certamente, não por acidente, mas de modo consistente. Ele fala da
condição da morte, não de casos pessoais. O conceito de uma alma imortal pode
ser uma adição Platônica, mas a noção de “pessoa indestrutível” é parte
integral do Evangelho. De fato, somente nesse caso existe espaço para um
Julgamento universal ou geral, no qual todas as pessoas históricas, de todas as
eras e todas as nações, deverão aparecer – não como uma massa confusa de frágeis
e inúteis pecadores, mas como uma congregação de pessoas interessadas e
responsáveis, cada qual com seu caráter distinto, congênito e adquirido. A
morte é uma catástrofe. Mas as pessoas sobreviverão, e aqueles em Cristo
já estão vivas – mesmo no estado de morte. Os fiéis não apenas esperam pela
vida que virá, mas estão desde já vivos, embora esperem todos pela
Ressurreição. Brunner, naturalmente, está completamente ciente disso. Em suas
próprias palavras, aqueles que creem “não morrerão para o nada, mas em Cristo”.
Quererá isso dizer que os que não creem “morrerão para o nada”? E o que é o
“nada”: as “trevas exteriores” (que é provavelmente o caso), ou o verdadeiro
“não-ser”?
É também verdade que essa integridade total da existência pessoal,
distorcida e reduzida pela morte, será restaurada na Ressurreição geral.
Brunner enfatiza o caráter pessoal da Ressurreição. “A fé do Novo Testamento não
conhece outro tipo de vida eterna, senão a das pessoas individuais”. A carne
não irá renascer, mas alguma forma de corporeidade está implicada na
Ressurreição. Tudo irá renascer, porque Cristo ressuscitou. Mas a Ressurreição
é, em primeiro lugar, uma Ressurreição para a vida em Cristo, e uma
Ressurreição para o Juízo. Brunner discute a Ressurreição geral no contexto da
fé, do perdão e da vida. Mas, e quanto ao status daqueles que não creem, que
não pediram pelo perdão e que jamais conheceram o amor redentor de Cristo, ou
que provavelmente se obstinaram em denunciá-lo e rejeitá-lo como sendo um mito,
ou uma fraude, um engodo, ou como uma ofensa à personalidade autônoma?
Isso nos devolve ao paradoxo do Julgamento. Estranhamente, nesse ponto
Brunner fala mais como filosofo do que como teólogo, precisamente porque ele
tenta evitar a inquirição metafísica, e todos os problemas que foram suprimidos
reaparecem disfarçados. Brunner coloca a questão dessa maneira: como podemos
conciliar a Onipotência divina e a liberdade humana, ou – num nível mais
profundo – a santidade divina (ou justiça) e a misericórdia e o amor divinos? Trata-se
de um problema estritamente metafísico, mesmo que seja discutido numa base
escriturária. Por outro lado, o verdadeiro problema teológico é o seguinte:
qual será o status existencial dos infiéis – na visão de Deus e na perspectiva
do destino humano? O problema real é existencial – o status e o destino das
pessoas individuais. Para Brunner, o problema fica obscurecido por sua escolha
inicial – sua classificação abrangente de todos os homens como pecadores, sem
nenhuma discriminação real, ôntica ou existencial, entre os justos e os ímpios.
De fato, todos estarão sob Julgamento, é óbvio – mas não no mesmo sentido. O próprio
Brunner distingue entre os que caíram em tentação e os que escolheram tentar os
outros e seduzi-los. Ele conhece a perversão deliberada. Mas ele não pergunta
como uma pessoa humana individual pode ser afetada, em sua estrutura interior e
íntima, por uma perversão deliberada e obstinada, pela apostasia ou pelo “amor
ao mal”. Existe uma diferença real entre fraqueza e impiedade, entre fragilidade
e recusa de Deus. Poderão todos os pecados ser perdoados, mesmo os não
confessos e os impenitentes? Não será o perdão recebido apenas com humildade e
fé? Em outras palavras, será a “condenação” apenas um “castigo”, no sentido
forense, ou algum tipo de “recompensa” negativa? Ou será simplesmente uma
manifestação daquilo que é oculto – ou antes, quase exposto e visível – naqueles
que escolheram, por um abuso da “liberdade”, o caminho largo que conduz à
Geena?
Não existe um capítulo sobre o Inferno em nenhum dos livros de
Brunner. Mas o Inferno não é uma mera figura de linguagem “mítica”. Tampouco se
trata de uma perspectiva sombria, a qual – esperamos – pode jamais realizar-se.
Horrible dictu – trata-se de uma realidade, para a muitos seres humanos
estão desde já destinados, por sua própria vontade, ou, no mínimo, por sua
própria escolha e decisão, o que pode significar, em última instância,
escravidão, mas que é normalmente confundida com liberdade. O “Inferno” é um
estado interior, não um “lugar”. É o estado de desintegração pessoal, que é
confundido como uma autoafirmação – não sem razão, porque essa desintegração
está fundamentada no orgulho. É um estado de auto confinamento, de isolamento e
de alienação, de orgulhosa solidão. O estado de pecado é em si “infernal”,
ainda que possa ser, por uma ilusão da imaginação egoísta, confundido com o “Paraíso”.
Por esse motivo os pecadores escolhem o “pecado”, a atitude orgulhosa, a
atitude de Prometeu. É possível fazer do Inferno um “ideal”, e persegui-lo,
deliberada e persistentemente. “Onde quer que eu esteja, aí está minha vontade
livre, e onde está minha livre vontade, o inferno absoluto e eterno está em meu
poder[9]”.
De fato, em definitivo, ele não passa de uma ilusão, uma aberração, uma
violência, um erro. Mas o aguilhão do pecado está precisamente na negação da
realidade divinamente instituída, na tentativa de estabelecer uma outra ordem
ou regime, que consiste, em contraste com a verdadeira ordem divina, numa
desordem radical, mas para a qual é possível dar, numa exaltação egoística, a
preferência definitiva. Mas o pecado foi destruído e ab-rogado – não podemos
dizer que o pecado tenha sido redimido, pois apenas pessoas podem ser
redimidas. Mas não é o bastante reconhecer, pela fé, o fato da divina redenção –
é preciso nascer outra vez. Toda a personalidade deve ser limpa e curada. O perdão
deve ser aceito e alcançado em liberdade. Ele não pode ser imputado – ele só
existe num ato de fé e gratidão, num ato de amor. Paradoxalmente, ninguém pode
ser salvo apenas pelo amor divino, sem que esse seja correspondido por um amor
agradecido da pessoa humana. De fato, existe sempre a possibilidade do “arrependimento”
e da “conversão” no decurso dessa vida terrestre e histórica. Podemos admitir
que essa possibilidade continua depois da morte? Brunner dificilmente aceitaria
a ideia de um “Purgatório”. Mas, mesmo no conceito de Purgatório não está
implicada a chance de uma conversão radical. O Purgatório inclui apenas os fiéis,
aqueles com boas intenções, devotados a Cristo, mas deficientes quanto ao seu
crescimento e aquisições. A personalidade humana é construída e moldada nessa
vida – no mínimo, ela é orientada nessa vida. A dificuldade da salvação
universal não está do lado divino – com efeito, Deus quer que todos os homens “se
salvem”, não tanto, provavelmente, para que Sua vontade se cumpra e para que
Sua Divindade seja assegurada, mas para que a existência humana possa ser
completa e abençoada. Mas, do lado da criatura, dificuldades insuperáveis podem
ser levantadas. Antes de tudo, será a “resistência derradeira” um paradoxo
maior, uma ofensa maior do que qualquer resistência ou revolta que realmente
perverta a ordem total da Criação, que desabilite o ato da redenção? Somente se
nos comprometermos com uma visão Docética da história, e se negarmos a
possibilidade das decisões definitivas na história, nessa vida, sob o pretexto
de que ela é temporal, podemos escapar do paradoxo da resistência última.
São Gregório de Nissa antecipou uma espécie de conversão universal das
almas no pós-vida, quando a Verdade de Deus se revelar e se manifestar com
esmagadora evidência. Justamente nesse ponto a limitação do pensamento Helênico
se torna óbvio. A evidência parece ser para ele o motivo decisivo da vontade,
como se o “pecado” fosse meramente uma ignorância. O pensamento Helênico teve
que passar por uma longa e difícil experiência de ascetismo, de autoexame e de
autocontrole ascético, para poder superar sua ingenuidade e ilusão intelectual e
descobrir o abismo escuro da alma decaída. Somente em São Máximo o Confessor,
depois de alguns séculos de preparação ascética, encontramos uma interpretação
nova e mais profunda da Apokatastasis. Com efeito, a ordem da Criação
será inteiramente restaurada nos últimos dias. Mas as almas mortas continuarão
insensíveis à própria revelação da Luz. A Luz Divina brilhará para todos, mas
aqueles que antes escolheram a escuridão continuarão indispostos e incapazes de
desfrutar a bênção eterna. Eles permanecerão apegados à escuridão noturna do
egoísmo. Eles serão incapazes exatamente de desfrutar, eles permanecerão “de
lado” – porque a união com Deus, que é a essência da salvação, pressupõe e
requer a determinação da vontade. A vontade humana é irracional e suas
motivações não podem ser racionalizadas. Mesmo a “evidência” pode falhar em
impressioná-la e movê-la.
A escatologia é o domínio das antinomias. Essas antinomias estão enraizadas
e fundamentadas no mistério básico da Criação. Como pode algo existir para além
de Deus, se Deus e a plenitude do Ser? Somos tentados a resolver o paradoxo, ou
antes a escapar dele, alegando os motivos da Criação, às vezes a tal ponto e de
tal maneira que chegamos a comprometer a absolutividade e a soberania de Deus.
Deus criou com perfeita liberdade, ex mera liberalitate, ou seja, sem
nenhuma “razão suficiente”. A criação é o dom gratuito de um amor insondável. Mais
do que isso, ao homem, na Criação, foi concedida essa autoridade misteriosa e
enigmática da livre decisão, dentro da qual o mais enigmático não é a
possibilidade de falha ou de resistência, mas a própria possibilidade do assentimento.
Não é a vontade de Deus de tal dimensão que ela tem que ser simplesmente
obedecida, sem necessidade de nenhum verdadeiro – vale dizer, livre –
assentimento responsável? Na realidade, o mistério está na liberdade criada. Por
que teria ela sido colocada num mundo criado e governado por Deus, por Sua
infinita sabedoria e amor? Para que seja real, a resposta humana deve ser mais
do que uma mera ressonância. Ela deve constituir um ato pessoal, um compromisso
interior. Em qualquer caso, a forma da vida humana – e agora devemos talvez
acrescentar, a forma e o destino do cosmo – depende da sinergia ou do conflito
entre duas vontades, a divina e a criada. Muitas coisas acontecem que Deus abomina,
no mundo que é obra Sua e objeto Seu. Estranhamente, Deus respeita a liberdade
humana, conforme disse uma vez Santo Irineu, embora, de fato, a manifestação
mais visível dessa liberdade seja a revolta e a desordem. Estamos nós
autorizados a esperar que finalmente a desobediência humana será desconsiderada
e “desrespeitada” por Deus, e que Sua Santa Vontade seja imposta,
indiferentemente de qualquer assentimento? Ou isso tornaria a história humana
uma “mascarada” temível? Qual será o sentido dessa terrível história de pecado,
de perversão, de rebelião, se finalmente tudo for apagado e reconciliado pelo exercício
da Onipotência divina?
Realmente, a existência do Inferno, ou seja, a oposição radical,
implica uma espécie de “insucesso” parcial do desígnio criador. De fato,
tratava-se mais do q eu de um desígnio, de um plano, de um padrão. Foi o
chamado à existência, ao próprio “ser” das pessoas vivas. Falamos às vezes do “risco
divino”. Provavelmente essa é uma palavra melhor do que kenosis. Trata-se,
de fato, de um mistério, que não pode ser racionalizado – é o mistério primordial
da existência criada.
Brunner leva a possibilidade do Inferno muito a sério. Não existe
segurança de uma “salvação universal”, embora essa seja, abstratamente falando,
ainda possível – para o Amor onipotente de Deus. Mas Brunner espera ainda que
não haja Inferno. Mas o problema é que o Inferno existe. Sua existência não
depende de uma decisão divina. Deus jamais enviou alguém para o Inferno. O Inferno
foi criado pelas próprias criaturas. Ele é uma criação humana, de fora, podemos
dizer, da “ordem da criação”.
O Juízo Final permanece um mistério.
[1]
“Radical dehistorization”.
[2]
“Hoc universum tempus, sive saeculum, in quo cedunt morientes sucedunque
nascentes” – “Esse tempo universal, ou século, no qual os que morrem dão
lugar aos que nascem” (Sto. Agostinho, Civ. Dei, XV.I)
[3]
Efésios, 7: 27.
[4]
Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada
herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o
corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas
aparente.
[5]
Palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou
"oportuno"..
[6] Hexaem.
1.6.
[7]
Palavra usada no N. T. com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou
proclamação.
[8]
Proposição teológica que não pode ser considerada imediatamente como doutrina
oficial da Igreja, como proposição dogmática que obriga a fé, sendo que, porém,
é antes de tudo resultado de expressão do esforço por entender a fé buscando
conexões entre as proposições obrigatórias de fé (analogia da fé) e
confrontando doutrinas dogmáticas com a experiência e o saber (profanos) de um
homem (o de um tempo determinado).
[9]
Marcel Jouhandeau, Algèbre des valeurs morales.
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