quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Apêndice II

SACRAMENTO E SÍMBOLO

 

1

 

A dificuldade inicial que um Ortodoxo encontra quando fala dos sacramentos repousa na necessidade de escolher os vários “estratos” de sua própria tradição teológica. Se ele optar pelos mais recentes e oficiais “manuais de teologia” desenvolvidos pelas escolas teológicas ortodoxas desde o século XVI, essa apresentação será similar, em conteúdo e terminologia, a qualquer De Sacramentis Latino. A partir de uma definição dos sacramentos como “os meios visíveis da graça invisível”, ele passará para a distinção entre “forma” e “matéria”, sua instituição por Cristo, sua enumeração e classificação e, finalmente, sua administração apropriada como condição de sua validade e eficácia. É um fato, porém, reconhecido por um crescente número de teólogos ortodoxos, que essa visão dos sacramentos, embora aceita por séculos, tem pouco a ver com a tradição genuína da Igreja do Oriente. Ela é vista mais como mais um dos infelizes resultados e expressões da “pseudomorfose” sofrida pela teologia ortodoxa depois do fim da era patrística, quando condições trágicas da vida eclesiástica forçaram os “intelectuais” ortodoxos a uma adoção não-crítica das categorias teológicas e das formas de pensamento Ocidentais. O resultado foi uma teologia profundamente “ocidentalizada”, cuja tradição foi mantida (e, em algum grau, ainda é mantida) por escolas teológicas. Na Rússia, por exemplo, a teologia foi expressa em Latim até a década de 40 do século XIX! O “cativeiro Ocidental” da teologia ortodoxa foi vigorosamente denunciado pelos melhores teólogos dos últimos cem anos e hoje existe um movimento significativo dedicado à recuperação de nossa teologia a partir de sua perspectiva genuína e de seu próprio método. O retorno aos Padres, às tradições litúrgicas e espirituais, que foram virtualmente ignoradas pela “teologia de manuais”, está começando a dar frutos. É claro, o processo ainda está em seus estágios iniciais, e na medida em que pouco se obteve em termos de teologia sacramental, qualquer esforço de “recuperação” e de “reconstrução” é necessariamente ainda uma tentativa preliminar. A tarefa urgente é precisamente a de recuperar uma perspectiva, levantar questões que as antiquadas estruturas dos “manuais” não apenas são incapazes de responder, como sequer permitiam que fossem formuladas.

 

 

2

 

O que é um “sacramento”? Ao responder essa questão, a teologia Oriental pós-Patrística e “ocidentalizada” se colocou dentro de uma contexto mental profunda e radicalmente diferente daquele da Igreja primitiva. Digo mental e não intelectual, porque a diferença aqui está num nível muito mais profundo do que aqueles das pressuposições intelectuais e da terminologia teológica. A teologia Patrística certamente não era menos “intelectual” do que a Escolástica, mas quanto à terminologia ela apresentava uma continuidade intacta, e foi o uso das mesmas palavras, eventualmente alteradas em seu sentido, que pode ter levado muitos historiadores da teologia a considerar uma descontinuidade entre os dois tipos de teologia sacramental.

 

Externamente ou formalmente essa mudança consistiu, em primeiro lugar, numa nova perspectiva, pela teologia sacramental, do próprio objeto de seu estudo. Na Igreja primitiva, nos escritos dos Padres, os sacramentos, na medida em que recebiam alguma interpretação sistemática, eram sempre explicadas num contexto de sua verdadeira celebração litúrgica, sendo a explicação, de fato, uma exegese da própria liturgia em toda sua complexidade e concretude ritual. O De Sacramentis medieval tendia, porém, desde o começo, a isolar o “sacramento” de seu contexto litúrgico, a encontrar e definir sua essência em termos tão precisos quanto possível, isso é, naquilo que o distinguia do “não-sacramento”. O sacramento começou a se tornar oposto à liturgia. Claro, ele possuía sua expressão ritual, seu “signum”, que pertencia à sua essência, mas esse signo era agora visto como ontologicamente diferente de todos os demais signos, símbolos e ritos da Igreja. E, devido a essa diferença, o signo precisamente sacramental isolado foi considerado, à exclusão de toda “liturgia”, coo sendo o objeto próprio da atenção teológica. Podemos, por exemplo, ler e reler o elaborado tratamento dado na Summa de São Tomás aos sacramentos sem nunca chegar a saber muito a respeito de sua celebração litúrgica. Podemos perscrutar virtualmente todos os tratados Católicos e Ortodoxos das Santas Ordens, sem que seja mencionada uma vez sequer a conexão tradicional e orgânica entre a ordenação e a Eucaristia. Para os historiadores da teologia essa mudança se deve ao que eles descrevem como sendo o progresso da “teologia científica” e ao crescimento de um método teológico “mais preciso”. Na realidade, porém, essa mudança, longe de ser meramente “exterior”, tem suas raízes numa profunda transformação da visão teológica, na realidade, de toda a “visão de mundo” teológica.  E é a natureza dessa transformação que devemos primeiro tentar entender se quisermos buscar o significado inicial do sacramento.

 

 

3

 

Para simplificar nossa tarefa podemos tomar como ponto de partida o longo e conhecido debate que desde o início dominou o desenvolvimento da teologia sacramental, e mais especificamente eucarística, no Ocidente. Trata-se do debate a respeito da presença real. Em nenhum outro lugar se revela melhor a linha que divide as duas perspectivas sobre o sacramento, bem coo as razões que levaram à transformação de uma na outra. No contexto desse debate, o termo “real” implica claramente a possibilidade de outro tipo de presença que não seria real. No idioma intelectual e teológico do Ocidente, o termo que define essa outra presença é, como sabemos, “simbólica”. não é preciso entrarmos aqui na complexa e de muitos modos confusa história desse termo no pensamento Ocidental. É bem claro que na linguagem teológica comum, conforme essa tomou forma na renascença Carolíngia e na Reforma, e apesar das controvérsias entre escolas teológicas rivais, a “incompatibilidade entre símbolo e realidade”, entre “figura et veritas”, sempre foi consistentemente afirmada e aceita. “Ao ‘mystice, non vere’, corresponde não menos exclusivamente o ‘vere, non mystice[1]”. Os Padres e toda a tradição primitiva, porém (e aqui chegamos ao coração da matéria), não apenas desconheciam essa distinção e essa oposição, como para eles o simbolismo constituía uma dimensão essencial do sacramento, a própria chave para seu entendimento. São Máximo o Confessor, o teólogo sacramental por excelência da era Patrística, chama o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia de símbolos (symbola), imagens (apeikonismata) e mistérios (mysteria). O “simbólico” aqui não apenas não se opõe ao “real”, como o incorpora como sua própria expressão e modo de manifestação. Os historiadores da teologia, em seu ardente desejo de manter o mito da continuidade teológica e da ordenada “evolução”, mais uma vez encontram sua explicação na “imprecisão” da terminologia patrística. Eles parecem não se dar conta de que o uso que os Padres fazem de “symbolon” (e de termos relacionados) não é “vago” nem “impreciso”, mas simplesmente diferente dos teólogos posteriores, que que a subsequente transformação desses termos constitui na verdade a fonte de uma das maiores tragédias teológicas.

 

 

4

 

A diferença aqui é basicamente uma diferença na apreensão da realidade em si, ou, como já dissemos, uma diferença de “visão de mundo”. Se, para os Padres, o símbolo é a chave para o sacramento, isso é porque o sacramento está em continuidade com a estrutura simbólica do mundo no qual “omnes creaturae sensibiles sunt signa rerum sacrum[2]”. E o mundo é simbólico – signum rei sacrae – pelo fato de ter sido criado por Deus; ser simbólico, portanto, refere-se à sua ontologia, por ser o símbolo não apenas o caminho para perceber e entender a realidade, um meio de cognição, como ainda um meio de participação. É assim o simbolismo “natural” do mundo – podemos dizer mesmo sua “sacramentalidade” – que torna o sacramento possível e que constitui a chave para sua compreensão e apreensão. Se o sacramento cristão é único, não é no sentido de ser uma exceção milagrosa dentro da ordem natural das coisas criadas por Deus, e que “proclamam a Sua glória”. Sua novidade absoluta não está em sua ontologia enquanto sacramento mas na “res” específica que ele “simboliza”, isso é, que ele revela, manifesta e comunica – e que é Cristo e Seu Reino. Mas mesmo essa novidade absoluta deve ser entendida não em termos de total descontinuidade, mas como plenitude. O “mysterion” de Cristo revela e preenche o significado último e o destino do mundo em si. Assim, a instituição dos sacramentos por Cristo (um tema que virou obsessão na teologia recente) não constitui na criação ex nihilo da “sacramentalidade” em si, do sacramento como meio de cognição e de participação. Nas palavras de Cristo, “fazei isso em memória de mim”, esse isso (alimento, ação de graças, partir o pão) já é “sacramental”. A instituição significa que, ao ser mencionado por Cristo, “preenchido” por Cristo, o símbolo se torna pleno e se torna sacramento.

 

 

5

 

É essa continuidade entre o sacramento e o símbolo que a teologia pós-patrística começa, em primeiro lugar, a minimizar, e a seguir a rejeitar pura e simplesmente, e ela o fez devido à progressiva “dissolução” do símbolo, condicionada, por sua vez, por um novo conceito de  teologia em sua relação com a fé. A questão última de toda a teologia é o do conhecimento, e, mais precisamente, da possibilidade e da natureza do conhecimento de Deus. Se os Padres agruparam numa síntese viva e verdadeiramente “existencial”, por um lado, a “alteridade” de Deus, a impossibilidade de as criaturas O conhecerem em Sua essência, e, por outro lado, a realidade da comunhão do homem com Deus, o conhecimento de Deus e a “theosis”, essa síntese está enraizada primariamente em sua ideia, ou antes, em sua intuição do “mysterion” e de seu modo de presença e de operação – o símbolo. Pois é a própria natureza do símbolo que ele revela e comunica ao “outro”, precisamente enquanto “outro”, a visibilidade do invisível enquanto invisível, o conhecimento do incognoscível enquanto incognoscível, a presença do futuro enquanto futuro. O símbolo implica o conhecimento daquilo que não pode ser conhecido de outra maneira, pois nele o conhecimento depende da participação – o encontro vivo com a entrada nessa “epifania” da realidade que é o símbolo. Mas então a teologia não apenas se relaciona com o “mysterion”, como tem nele sua fonte, a própria condição de sua possibilidade. A teologia, propriamente falando, e o conhecimento a respeito de Deus, são o resultado do conhecimento de Deus – e, Nele, de toda a realidade. O “pecado original” da teologia pós-patrística consiste, assim, na redução do conceito de conhecimento ao conhecimento racional e discursivo, ou, em outras palavras, na separação entre o conhecimento e o “mysterion”. Essa teologia não rejeita a “visão de mundo simbólica” da tradição antiga: a sentença citada mais acima – “omnes sensibles creaturae sunt digna rerum sacrum” – é de São Thomas[3]. Mas ela altera radicalmente o entendimento desse “signum”. Na tradição primitiva, e isso é de importância capital, o relacionamento entre o signo do símbolo (A) e aquilo que ele “significa” (B) não é nem meramente semântica (A significa B), nem causal (A é causa de B), nem representativa (A representa B). Chamamos essa relação de epifania. “A é B” implica que tudo o que A expressa, comunica e revela, manifesta a “realidade” de B (em bora não necessariamente a totalidade de B), sem que, no entanto, A perca sua própria realidade ontológica, sem que se dissolva numa outra “res”. Mas é exatamente esse relacionamento entre A e B, entre o signo e o significado, que foi alterado. Devido à redução do conhecimento ao conhecimento racional e discursivo, entre A e B surge um hiato. O símbolo pode continuar a ser uma meio de conhecimento, mas, como todo conhecimento, trata-se de um conhecimento a respeito de, e não um conhecimento de. Ele pode ser uma revelação a respeito da “res”, mas não a epifania da “res” em si. A pode significar B, ou representá-lo, ou mesmo, sob certas circunstâncias, ser “causa” de sua presença; mas A já não é visto como o próprio meio de “participação” em B. o conhecimento e a participação são agora duas realidades diferentes, duas ordens diferentes.

 

 

6

 

Para a teologia sacramental essa “dissolução” do símbolo trouxe consequências que foram verdadeiramente desastrosas. Ao alterar a própria noção de sacramento, ela transformou radicalmente também a noção de teologia, provocando finamente uma crise cujo escopo e profundidade estamos começando a perceber apenas hoje. Deve ficar claro agora, esperamos, que o tema da “presença real” mencionada acima, e cujo aparecimento de certo modo inaugurou o período pós-patrístico na teologia sacramental, nasceu da dúvida teológica a respeito da “realidade” do símbolo, isso é, de sua capacidade em conter e comunicar a realidade. Já explanamos brevemente as razões dessa dúvida: a identificação, de um lado, do símbolo com um meio de conhecimento, e, de outro, a redução do conhecimento ao conhecimento racional e discursivo sobre, mais do que da, realidade. E, desde que a tradição era unânime em afirmar o sacramento como verum, isso é, real, a questão ficou pronta para ser levantada: como pode o símbolo ser veículo ou modo de sacramento? Embora o uso patrístico da terminologia simbólica fosse um “datum” óbvio da mesma tradição, a dúvida foi resolvida primeiramente por um mero reforço de uma terminologia – a “simbólica” – por outra – a “realista”. O sacramento é tanto “figura et res, veritas et figura”, como “non solo mystice sed etiam vere”. Mas rapidamente, e em virtude de uma progressiva desvalorização do símbolo que tornou inevitável sua dissolução, os dois termos passaram a ser vistos, não apenas como diferentes, mas como opostos entre si. No caso famoso de Berenger de Tours, o fato notável é a completa identidade no entendimento do símbolo entre o próprio Berenger e aqueles que o condenaram. Se para ele o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia não eram reais, por serem simbólicos, para o Concílio de Latrão de 1059 eles eram reais exatamente porque não eram simbólicos. Tendo a distinção conduzido necessariamente à oposição, essa última permaneceu como a estrutura fundamental de todo o desenvolvimento teológico subsequente.

 

 

7

 

Entretanto, permanece a questão do signum cuja relação com a “res” do sacramento tem que ser definida de outra maneira. Pois, se ela não for um símbolo, o que será? A teologia pós-patrística respondeu a essa questão definindo o signum como causa, e é aqui que a noção – e provavelmente a experiência – do sacramento sofreu sua maior transformação. Na tradição primitiva, a causalidade inerente ao sacramento, a santificação que ele propicia aos que dele participam, é inseparável de seu simbolismo, por estar enraizada nele. Isso de modo algum limita ou contradiz a causa única de todos os sacramentos – sua instituição por Cristo – pois, como já dissemos, a instituição é precisamente a realização de um símbolo por Cristo e, assim, sua transformação num sacramento. Trata-se portanto de um ato, não de descontinuidade, mas de realização e atualização. Essa é a epifania – em Cristo e por Cristo – da “nova criação”, não da criação de algo “novo”. E se aqui se revela a “continuidade” entre a criação e Cristo, é porque existe, em primeiro lugar, uma continuidade entre Cristo e a criação, cujo logos, vida e luz é Ele próprio. É precisamente esse aspecto, tanto da instituição como do sacramento que virtualmente desapareceu da teologia pós-patrística. A causalidade que ligava a instituição ao “signum” e “res” passou a ser vista como extrínseca e formal, não como intrínseca e reveladora.  Mais do que revelar através da realização, ela garante a realidade do efeito do sacramento. Ainda que, como no caso da Eucaristia, o signo esteja completamente identificado com a realidade, ele é experimentado em termos da aniquilação do signo, mais do que de sua realização. Nesse sentido, a doutrina da transubstanciação, na sua forma Tridentina, representa verdadeiramente o colapso, ou melhor, o suicídio da teologia sacramental. E se esse novo entendimento da causalidade – como uma garantia extrínseca e formal – rompe com a continuidade ontológica entre o signo e a “res”, ele também rejeita, de fato, toda continuidade entre a “instituição” e a ordem normal das coisas. É de fato a descontinuidade que passa a ser enfatizada e afirmada. Considerada como a “causa principal” do “signum” como “causa segunda”, a instituição se torna agora um ponto de partida absoluto de um sistema sacramental inteiramente sui generis. E os esforços de alguns teólogos recentes no sentido de trazer de volta para a noção de “signum” a “riqueza do simbolismo tradicional” dizem respeito aos “acidentes”, não à “substância” da doutrina e do entendimento dos sacramentos.

 

Pois a doutrina e o entendimento se tornam agora muito diferentes do que eram para a Igreja primitiva. Nessa, o sacramento não só se “abria”, como “cimentava” as três dimensões da visão cristã da realidade: a da Igreja, a do mundo e a do Reino. E as “reunindo” ela as tornava conhecidas – no mais profundo sentido patrístico do termo “conhecimento” – tanto como entendimento como também como participação. Essa era a fonte da teologia – conhecimento a respeito de Deus em Sua relação com o mundo, a Igreja e o Reino – porque se tratava do conhecimento de Deus e, Nele, de toda a realidade. Tendo seu começo, conteúdo e fim em Cristo, ela ao mesmo tempo revelava Cristo como o começo, o conteúdo e o fim de tudo o que existe, como seu Criador, Redentor e sua plenitude. A transformação do sacramento na teologia pós-patrística consistiu assim, no seu isolamento dentro de um “organismo” sacramental autossuficiente e independente. Esse isolamento exterior do sacramento em relação à liturgia, que mencionamos antes, foi, de fato, “simbólico” de uma mudança muito mais profunda. “A noção de sacramento – escreveu entusiasticamente um teólogo contemporâneo – é algo inteiramente sui generis, e quanto menos antropomorfismo, ou mesmo “angelismo” aí introduzirmos, melhor para a teologia (...) Os sacramentos têm seu próprio modo de existência, sua própria psicologia, sua própria graça (...) Nos céus e na terra não existe nada comparável aos sacramentos[4]”. É quando eles são exaltados e glorificados como a suprema realidade que começa a sua progressiva alienação em relação à teologia, à eclesiologia e à escatologia, uma alienação que – quer seja entendida ou não – tem sua origem na crise atual, a fonte e o veneno do “secularismo”. Como meio de piedade individual e de santificação ele preservam todo o seu “valor”. Como atos católicos da Igreja que realiza a si mesma, como símbolos “nesse mundo” do “mundo por vir”, da consumação de todas as coisas em Deus – eles foram simplesmente esquecidos.

 

 

8

 

Podemos agora retornar à “perspectiva” Ortodoxa. A precedente análise pretendia provar uma coisa: se essa perspectiva tiver que ser recuperada, isso só poderá acontecer por meio da redescoberta dessas dimensões do sacramento que foram tanto obscurecidas como simplesmente ignoradas durante o longo período de dependência da teologia Ortodoxa em relação ao Ocidente, em especial aos sistemas e modos de pensamento Latinos. Como poderá acontecer essa redescoberta? Ela certamente não poderá ser meramente “intelectual”. Uma simples leitura dos Padres, por mais útil e necessária que seja, não é suficiente. Pois mesmo os textos patrísticos podem ser usados – e o são – como “provas” de sistemas teológicos totalmente alheios à real “mente” dos Padres. O “renascimento patrístico” de nosso tempo perderia por completo seu propósito de fosse apenas o resultado de um “sistema patrístico” rígido, que, na realidade, nunca existiu. O mérito eterno dos Padres foi ter mostrado a natureza dinâmica, não estática, da teologia cristã, sua capacidade de ser “contemporânea” sem se reduzir a “contemporanismos”, sua capacidade de se abrir a todas as aspirações humanas sem ser determinada por nenhuma delas. Se o retorno aos Padres significar uma repetição puramente formal de seus termos e formulações, isso seria tão errado e inútil quanto o descarte dos Padres pela teologia “moderna” por causa de sua suposta visão de mundo “antiquada”.

 

Tudo isso se aplica, em primeiro lugar, ao uso que fazemos do termo “símbolo”. Se ele está deliberadamente estabelecido aqui como o centro da teologia sacramental e como uma chave para a sua “reconstrução”, não é apenas porque o encontramos nos textos patrísticos. Pois nesses textos encontramos igualmente outros termos tão importantes, se não mais, para seu entendimento. E seria fácil, por um lado, provar que, de um ponto de vista puramente terminológico, o termo “símbolo” não é nem o mais frequente, nem o mais essencial, e, por outro lado, que nos textos patrísticos nenhum termo é “absoluto” em si, mas que cada um recebe seu significado, sua “semântica” teológica apenas dentro de um contexto mais amplo, tanto teológico como espiritual. O que prova então que a escolha desse termo, de preferência a todos os demais, é justificada, e que nosso entendimento é correto? Não terá ele já sido interpretado pela teologia escolástica, e num sentido que aqui consideramos errôneo?

 

Para todas essas questões a resposta é que, mesmo que os Padres não tenham utilizado esse termos como tal, ele continua a ser para nós o mais adequado para redescobrir o sentido dessa experiência fundamental da qual dão testemunho seus textos, à qual todos – explícita ou implicitamente – se referem, e que é a única coisa que, em última instância, interessa aos Padres. Pois é essa palavra, ou antes o sentido que ela adquire mais e mais hoje em dia, que constitui a melhor, senão a única ponte entre, de um lado, a experiência e a visão de mundo dos Padres e. de outro, as mais profundas aspirações, dúvidas e confusões de nossa época, seja ela rotulada como “moderna”, “tecnológica” ou “secular”. De fato, é esse termo “símbolo” que emerge hoje como o foco, a preocupação central do pensamento tanto religioso como secular, como a questão primária da qual todas as respostas dependem, como o próprio “símbolo” da confusão e da busca humanas. Se hoje em dia ouvimos tantas vezes a respeito da necessidade de “no vos símbolos”, se símbolo e simbolismo são objetos de estudo e de curiosidade em círculos que de outra forma nada têm em comum, é porque a experiência básica por trás de tudo isso constitui um completo rompimento e uma quebra na “comunicação”, uma trágica falta de “princípio unitivo” que tivesse o poder de reunir e manter unidas as esfaceladas e atomizadas facetas da existência e do conhecimento humanos. E é esse princípio unitivo, cuja ausência é sentida tão fortemente, e cuja busca domina o pensamento moderno, que recebe o nome de símbolo. Suas conotações são tato cognitivas como participatórias, pois sua função é a de reunificar o conhecimento e a existência, unindo-os entre si. Podemos não saber o que é esse símbolo, mas o que esperamos dele está muito mais próximo da ideia e da experiência patrística do que da ideia e da experiência pós-patrística, e é por isso que dizemos que se trata de uma ponte.

 

 

9

 

É evidente, por outro lado, que o cristão, por definição, deseja conhecer. Pois não confessa ele que Cristo é tanto luz como a vida do mundo, a plenitude de todo o conhecimento e o redentor de toda a existência? Nos termos descritos e que são os próprios termos da busca do mundo pelo “símbolo” – não é Ele o Símbolo de todos os símbolos? Não foi dito pelo próprio Cristo que aquele que Nele crê já possui – desde aqui e agora – a vida eterna? Mas então, por que a fé cristã não é nem vista nem aceita pelo mundo como a realização de sua busca pelo símbolo, e por que ela parece “irrelevante” para essa busca? É nesse ponto, nesse “foco” angustiante da situação cristã atual, que a precedente análise adquire, esperamos, seu verdadeiro significado. Pois ela mostra que, se o Cristianismo falhou em preencher sua função simbólica – a de ser o “princípio unitivo” – é porque o “símbolo” foi quebrado, em primeiro lugar, pelos próprios cristãos. Como resultado desse rompimento, o Cristianismo acabou por se mostrar hoje, ao menos ante os olhos do mundo, como uma doutrina meramente intelectual, que por sua vez “desaba” sob a pressão de um contexto intelectual inteiramente diferente – por um lado – ou, por outro lado, como uma simples instituição religiosa que “desaba” também sob o peso de seu próprio institucionalismo. E certamente não é o adjetivo “sagrada” aposto a essa doutrina e a essa instituição que por si só será capaz de superar a “falta de credibilidade” e transformar o Cristianismo no símbolo que ele deixou de ser. Porque a questão é que “sagrado/a” jamais pode ser um mero adjetivo, uma definição suficiente que garanta a autoridade ou a origem divina de seja lá o que for. Se esse termo define alguma coisa é desde dentro, não desde fora. Ele revela e manifesta o “mysterium tremendum” de que fala Rudolf Otto, ou seja, um poder inerente que transcende o intelectualismo de uma doutrina e o institucionalismo de uma instituição. E é esse “sagrado” – o poder da epifania – que hoje tanta falta faz, seja à doutrina, seja à instituição, e que faz falta, não por causa dos pecados e das limitações humanas, mas precisamente devido a uma escolha deliberada: a rejeição e a dissolução do símbolo como a estrutura fundamental da “doutrina” e da “instituição” cristãs.

 

A situação não é minimamente mitigada pelos muitos cristãos “modernos”, mesmo teólogos, que se juntam aos demais clamando por “novos símbolos”, e que pensam que o Cristianismo irá recuperar sua “relevância” no mundo apenas se Cristo puder ser mostrado como o “símbolo” disso ou daquilo, como a “ilustração” de uma ideologia, a “imagem” e a “personificação” de uma atitude. Eles permanecem irremediavelmente sem entender que para que Cristo seja o “símbolo” de qualquer coisa no mundo, o próprio mundo tem que ser, em primeiro lugar, conhecido, visto e experimentado como “símbolo” de Deus, como a epifania de Sua santidade, Seu poder e Sua glória – que, em outros termos, não é “Cristo” ou “Deus” que precisa ser explicado em termos desse mundo e de suas necessidades passageiras, de forma a se tornarem seu “símbolo”, mas, ao contrário, é Deus e apenas Deus que fez desse mundo Seu símbolo, que realizou esse símbolo em Cristo e que irá consumá-lo em Seu eterno Reino. Quando esse mundo é desprovido desse símbolo ele se transforma em caos e destruição, ídolo e erro, e está condenado a desaparecer, pois a própria natureza do seu “esquema” (imagem, forma) é a de “passar[5]”. Transformar Cristo no símbolo desse mundo passageiro é o cúmulo da loucura e da cegueira, pois Ele veio para realizar exatamente o contrário disso – ou seja, para salvar o mundo restaurando-o como o “símbolo” de Deus, como fome e sede de realização em Deus, como “signo” de, e passagem para Seu Reino. E Ele o salvou destruindo sua autossuficiência e sua opacidade, revelando “nesse mundo” a Igreja – o símbolo da “nova criação” e o sacramento do “mundo por vir”.

 

E se os cristãos realmente desejam, como declaram e de fato deveriam, servir o mundo, trazer de volta a ele o “símbolo” que tão desesperadamente ele busca, eles só poderão adquiri-lo se eles próprios redescobrirem esse símbolo, e se o redescobrirem aonde ele sempre esteve – pela vontade e a instituição divina – na Igreja. Os Padres, ou a tradição, podem auxiliar nessa redescoberta, podem purificar sua visão, “explicar” o modo como isso deve ser feito; mas eles não podem ser essa redescoberta em si. E, assim, a questão última permanece: onde e como ele pode ser adquirido?

 

 

10

 

A resposta da teologia Ortodoxa, desde que ela superou seu “cativeiro Ocidental”, é: na vida litúrgica intacta da Igreja, na tradição sacramental que, ao menos no Oriente, não foi alterada significativamente pelas buscas de uma teologia alienada. Já apontamos antes que o erro fatal do racionalismo pós-patrístico consistiu no isolamento do sacramento em relação à liturgia como expressão total da vida e fé da Igreja. Ele significou, de fato, o isolamento do sacramento em relação ao símbolo, isso é, dessa conexão e comunicação com a totalidade da realidade que se realiza no sacramento. Ao se tornar um “meio de graça” fechado e contido em si mesmo, uma gota de realidade num mar de símbolos, o sacramento despojou a liturgia de sua função própria – a de conectar o sacramento com a Igreja, o mundo e o Reino, ou, em outras palavras, com os conteúdos e dimensões eclesiológicos, cósmicos e escatológicos. A liturgia foi relegada à “piedade” que a adornou com milhares de explicações e interpretações, agora “simbólicas” segundo o sentido “ilustrativo” e nominal do termo. Às vezes vista “arqueologicamente” – como uma coleção de ritos “antigos e coloridos” – ou “pictoricamente” – como uma espécie de suporte audiovisual para a oração – ou ainda como irrelevante – para a teologia, a missão e, em resumo, para a vida total da Igreja, ela conserva e provavelmente continuará conservando seus fiéis – os cristãos com “mentes litúrgicas”. Mas para a Igreja, no sentido amplo, seja para os “ativistas”, seja para os “gnósticos”, ela já nada pode oferecer.

 

Redescobrir a unidade inicial e orgânica entre a liturgia e o sacramento, a liturgia através do sacramento e o sacramento através da liturgia, como uma realidade dinâmica na qual o símbolo – a liturgia – é sempre realizado no sacramento – essa será a condição para a redescoberta da perspectiva, da única perspectiva que poderá nos conduzir além do beco-sem-saída de nossa situação presente. E, de fato, é a natureza litúrgica do sacramento, assim como a natureza sacramental da liturgia – e, através delas, da própria Igreja – que constituem as fontes vivas da síntese dinâmica da qual os Padres são o testemunho eterno. Mas essa síntese não está só nos livros e no passado. Ela está conosco – aqui e agora – se tivermos olhos para ver e ouvidos para ouvir, se, deixando de lado os falsos problemas acumulados ao longo dos séculos, pudermos alcançar a realidade da Igreja e entender uma vez mais a “lex orandi” como fonte de sua “lex credendi”.

 

É nesse ponto que a tarefa real, implicada no tema desse artigo, deve começar. Pois ela consiste em mostrar, com base num estudo detalhado da “leitourgia”, da tradição litúrgica e da experiência da Igreja, o verdadeiro conteúdo desse Símbolo que é a Igreja e que ela realiza no Sacramento, realizando assim a si mesma. Mostrar e provar isso é obviamente impossível dentro do escopo desse ensaio, que não é mais do que uma introdução geral, uma indicação preliminar de uma perspectiva possível. Concluindo, só podemos dizer que, se essa tarefa for levada a cabo, ela poderá mostrar que a função própria da “leitourgia” sempre foi a de reunir, dentro de um símbolo, os três níveis da vida e da fé cristãs: a Igreja, o mundo e o Reino; que a própria Igreja é assim o sacramento no qual a vida “desse mundo”, esfacelada mas ainda simbólica, é levada, em Cristo e por Cristo, à dimensão do Reino de Deus, tornando-se o sacramento do mundo “por vir”, daquele que Deus, desde a eternidade, preparou para aqueles que O amam, e onde tudo o que é humano pode ser transfigurado pela graça, de tal modo que todas as coisas possam se consumar em Deus; que, finalmente, é aqui, e somente aqui – no “mysterion” da presença e da ação de Deus – que a Igreja sempre se torna aquilo que ela é: o Corpo de Cristo e o Templo do Espírito Santo, o único Símbolo que reúne – conduzindo e unindo a Deus o mundo, pela vida pela qual Ele deu Seu Filho.



[1] H. de Lubac, Corpus Mysticum: L’Eucharistie et l’Église ao Moyen Âge, Paris, Aubier, 1944, pg. 258.

[2] “Todas as criaturas sensíveis são signos das coisas sagradas”.

[3] Summa Theologica, Quest. 60, Art. 2, 1.

[4] Dom Vonier, La Clef de Ia Doctrine Eucharistique, trans. P. Roguet, Paris, Les Editions du Cerf.

[5] I Coríntios 7: 31.


quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Apêndice I

 


 

O CULTO NUMA ERA SECULAR

 

1

 

Colocarmos lado a lado – de modo a relacionar um ao outro – os termos culto e era secular, parece pressupor que existe um claro entendimento do que é um e do que é outro, que sabemos quais realidades cada qual denota, e que podemos trabalhar sobre um terreno sólido e já exaustivamente explorado. Mas será esse o caso? Eu comecei esse ensaio com uma pergunta porque estou convencido de que apesar da moderna preocupação geral com a “semântica”, existe uma grande confusão a respeito do significado exato de muitos termos que são usados em discussões.

 

Não apenas entre os cristãos em geral, mas mesmo entre os próprios Ortodoxos não existe de fato um consenso, nenhuma estrutura de referência aceita comumente em relação aos termos culto e secularismo, e assim também, a fortiori, sobre a questão de sua interrelação. Assim sendo, esse ensaio não constitui tanto uma tentativa de resolver o problema, quanto de esclarecê-lo, tornando isso possível através de uma perspectiva consistentemente Ortodoxa. Em minha opinião, os Ortodoxos, quando discutem os problemas trazidos por nossa presente “situação”, aceitam-nos com muita facilidade em sua formulação Ocidental. Eles parecem não se dar conta de que a tradição Ortodoxa permite acima de tudo uma possibilidade, e portanto uma necessidade, de reformulação desses mesmos problemas, colocando-os num contexto cuja ausência ou deformação na mente religiosa Ocidental pode ter se constituído na raiz de muitos de nossos “impasses” modernos, e, do modo como eu o vejo, em parte alguma essa tarefa é mais urgentemente necessária do que na gama de problemas relacionados ao secularismo e, mais propriamente, à autodenominada era secular.

 

 

2

 

O secularismo foi analisado, descrito e definido de muitas maneiras nos últimos anos, mas até onde eu saiba nenhuma dessas descrições enfatizou uma questão que eu considero essencial e que de fato revela mais do que tudo a verdadeira natureza do secularismo, de modo a poder dar um bom ponto de apoio à nossa discussão.

 

O secularismo, proponho eu, constitui antes de tudo uma negação do culto, da adoração. Eu enfatizo: não da existência de Deus, não de algum tipo de transcendência ou, por conseguinte, de algum tipo de religião. Se em termos teológicos o secularismo é uma heresia, trata-se basicamente de uma heresia a respeito do homem. Ele consiste na negação do homem como um ser que cultua, como homo adorans: como alguém para quem a adoração é um ato que tanto “afirma” sua humanidade, como a realiza. Ele consiste na rejeição, ontológica e epistemologicamente “decisiva” daquelas palavras que “sempre, em qualquer lugar e para todos” constituíram a verdadeira “epifania” da relação do homem para com Deus, para com o mundo e para consigo mesmo: “É justo e salutar que Te cantemos, Te bendigamos, Te adoremos, Te agradeçamos e Te  louvemos em todos os lugares do Teu domínio...”.

 

Essa definição de secularismo certamente demanda uma explicação. Porque ela obviamente não pode ser aceita por aqueles, tão numerosos hoje em dia, que consciente ou inconscientemente reduzem o Cristianismo a categorias meramente intelectuais (“o futuro da crença”) ou sócio-éticas (“cristãos devem servir ao mundo”), e que consequentemente pensam que deve ser ´possível encontrar não apenas algum tipo de acomodação, como ainda uma harmonia mais profunda entre a “era secular” de um lado, e a adoração de outro. Se os que propõem isso, que basicamente não passa da aceitação cristã do secularismo, estiverem certos. Então nosso problema será apenas o de encontrar ou inventar uma culto e uma adoração mais aceitáveis, mais “relevantes” para o ponto de vista secular do homem moderno. E, de fato, essa é a direção que adotam hoje a maior parte dos reformadores litúrgicos. O que eles procuram é um culto cujas formas e conteúdo “reflitam” as necessidades e as aspirações do homem secular, ou, melhor ainda, do próprio secularismo. Pois, repetimos, secularismo não é a mesma coisa que o ateísmo e, por paradoxal que pareça, pode se se mostrar como tendo sempre como que uma nostalgia de uma expressão “litúrgica”. Se minha definição estiver correta, por outro lado, toda essa busca dará em nada, senão num total nonsense. Então a própria formulação de nosso tema – o culto de adoração numa era secular – revelará, em primeiro lugar, uma contradição interna de termos, uma contradição que requer reavaliação radical de todo o problema, e uma drástica reformulação.  

 

 

3

 

Para demonstrar que minha definição de secularismo, como “negação do culto” está correta, devo primeiro provar dois pontos. Um se refere ao culto: é preciso provar que a própria noção de culto implica uma certa ideia de relação do homem, não apenas com Deus, mas também com o mundo. E outro, referente ao secularismo: é preciso provar que é precisamente essa ideia de culto que o secularismo rejeita, explícita ou implicitamente.

 

Primeiramente vamos considerar o culto. É irônico, embora revelador do estado atual de nossa teologia, que a principal “prova” seja fornecida não pelos teólogos, mas pela história e fenomenologia das religiões, cujos estudos a respeito do culto, seja nas suas formas ou nos seus conteúdos, foram virtualmente ignorados pelos teólogos. Mesmo nos seus períodos iniciais, quando a “ciência das religiões” possuía um viés fortemente anticristão, ela parecia conhecer mais a respeito da natureza e do significado do culto do que os teólogos, que continuavam a reduzir os sacramentos a categorias de “forma” e “matéria”, de “causalidade”, de “validade”, e que, de fato, excluíam a tradição litúrgica de suas especulações teológicas.

 

Por outro lado, não cabe dúvida de que, se à luz dessa fenomenologia da religião, hoje madura do ponto de vista metodológico, considerarmos o culto em geral e a leitourgia cristã em particular, seremos obrigados a admitir que o próprio princípio sobre o qual eles estão construídos, e que determinam seu formato e desenvolvimento, é o do caráter sacramental do mundo e do lugar do homem no mundo.

 

O termo “sacramental” significa aqui que a intuição básica e primordial que não apenas se expressa no culto, mas da qual todo o culto constitui de fato o “fenômeno” – a um tempo efeito e experiência – é que o mundo, seja em sua totalidade enquanto cosmo, seja em sua vida que se faz tempo e história, é uma epifania de Deus, um meio de Sua revelação, presença e poder. Em outras palavras, ela não apenas “coloca” a ideia de Deus como uma causa da existência racionalmente aceitável, como realmente “fala” Dele e constitui em si mesma um meio essencial, tanto de conhecimento de Deus como de comunhão com Ele, e é nisso que consiste sua verdadeira natureza e seu destino último. Sendo assim, o culto é verdadeiramente um ato essencial, e o homem é essencialmente um ser que adora, pois é somente no culto que o homem encontra a fonte e a possibilidade desse conhecimento que é comunhão, e dessa comunhão que se realiza como verdadeiro conhecimento: conhecimento de Deus e, por conseguinte, conhecimento do mundo, e comunhão com Deus, e consequentemente comunhão com tudo o que existe. Assim é que a própria noção de culto está baseada numa intuição e experiência do mundo como uma “epifania” de Deus, e é assim que o mundo – no culto – é revelado em sua verdadeira natureza e vocação como “sacramento”.  

 

Assim, de fato, será necessário lembrar que essas realidades, tão humildes, tão “ concedidas a nós” que mal chegam a ser mencionadas em nossas sofisticadas epistemologias teológicas, e que são totalmente ignoradas nas discussões a respeito das “hermenêuticas”, são aquelas das quais, não obstante, depende a própria existência da Igreja enquanto nova criação, como povo de Deus e templo do Espírito Santo? Precisamos de água e azeite, de pão e de vinho para entrarmos em comunhão com Deus e para conhecê-Lo. E inversamente – e é isso que ensina, senão os modernos manuais de teologia, mas a própria liturgia – é essa comunhão com Deus por meio da “matéria” que revela o verdadeiro significado da própria “matéria”, vale dizer, do mundo em si. Só podemos adorar no tempo, e é somente o culto que em última análise não apenas revela o significado do t empo, como realmente “renova” o próprio tempo. Não existe culto sem a participação do corpo, sem palavras e silêncios, luz e obscuridade, movimento e repouso – e é no culto e por intermédio dele que todas esses expressões essenciais do homem em sua relação com o mundo recebem seu “termo de referência” definitivo, revelado em seu mais alto e profundo sentido.

 

Portanto, o termo “sacramental” significa que o fato de que o mundo se torna meio de adoração e sentido da graça não é acidental, mas sim constitui a revelação de seu significado, a restauração de sua essência, a realização de seu destino. É a “sacramentalidade natural” do mundo que encontra sua expressão no culto e o transforma no ergon essencial do homem, o fundamento e a fonte de sua vida e de suas atividades enquanto homem. Sendo a epifania de Deus, o culto é também a epifania do mundo; sendo comunhão com Deus, ele é a única e verdadeira comunhão com o mundo; sendo conhecimento de Deus, ele é a realização e a plenitude última de todo o conhecimento humano.

 

 

4

 

Nesse ponto, e antes de adentrarmos em nosso segundo ponto – o secularismo como negação do culto – uma observação se faz necessária. Se antes eu mencionei a “ciência das religiões”, foi porque essa disciplina estabelece em seu próprio nível e de acordo com sua própria metodologia que essa é de fato a verdadeira natureza e o sentido do culto, não apenas cristão, como do culto em geral, do culto como fenômeno primordial e universal. Um teólogo cristão, porém, é obrigado a conceder – me parece – que isso é especificamente verdadeiro para a leitourgia cristã, cujo caráter único repousa em sua origem na fé na Encarnação, no grande e abrangente mistério do “Verbo feito carne”. De fato, é extremamente importante lembrarmos que essa singularidade, a novidade do culto cristão, não consiste em que ele não tenha continuidade com o culto “em geral” (como alguns apologistas extremamente zelosos tentaram provar quando a ciência das religiões simplesmente reduziu o Cristianismo e seu culto a mistérios e cultos pagãos), mas no fato de que essa continuidade se realiza em Cristo, recebendo seu novo, verdadeiro e definitivo significado a partir do momento em que o culto “natural” nele se encaminha para um fim. Cristo é a plenitude do culto enquanto adoração e prece, ação de graças e sacrifício, comunhão e conhecimento, porque Ele é a “epifania” definitiva do homem enquanto ser que adora, a plenitude da manifestação e da presença de Deus por intermédio do mundo. Ele é o Sacramento, verdadeiro e pleno, porque Ele é a plenitude da “sacramentalidade” essencial do mundo.

 

Se, por outro lado, essa “continuidade” da leitourgia cristã com todos os demais cultos do homem inclui em si um princípio igualmente essencial de descontinuidade, se o culto cristão, sendo a realização e o fim de todos os cultos constitui também seu princípio, um culto radicalmente novo, isso não acontece por causa de alguma impossibilidade ontológica do mundo ser o sacramento de Cristo. Não, é pelo fato de que o mundo rejeitou Cristo e O matou, e ao fazer isso ele rejeitou seu próprio destino e realização. E no entanto, se a base de todo o culto cristão é a Encarnação, seu verdadeiro conteúdo será sempre a Cruz e a Ressurreição. Através desses acontecimentos a nova vida em Cristo, o Senhor Encarnado, está “oculta com Cristo em Deus”, e se torna uma vida “que não é desse mundo”. O mundo que rejeitou Cristo deve morrer no homem se quiser se tornar outra vez meio de comunhão, meio de participação na vida que irradia do sepulcro, no Reino que não é “desse mundo”, e que, em termos desse mundo, ainda está para vir.

 

Assim, o pão e o vinho – o alimento, a matéria, o próprio símbolo desse mundo e seu conteúdo em nossa prósfora a Deus, que deve se transformar no Corpo e Sangue de Cristo e se tornar a comunhão com Seu Reino – devem se constituir na anáfora para “ascenderem” e serem levados “desse mundo”. E é apenas quando a Igreja, na Eucaristia, deixa esse mundo e ascende à mesa de Cristo em Seu Reino, é só então que ela vê e proclama os céus e a terra como estando cheios de Sua Glória, e a Deus como tendo “preenchido todas as coisas Consigo mesmo”. Assim, uma vez mais essa “descontinuidade”, essa visão de todas as coisas como novas, só é possível porque desde o começo houve continuidade e não negação, porque o Espírito Santo “tornou novas todas as coisas”, e não porque Ele tenha feito “coisas novas”. É pelo fato de que todo o culto cristão constitui sempre uma recordação de Cristo “na carne”, que ele consiste também numa lembrança, isso é, numa expectativa e antecipação, de Seu Reino. É somente porque a leitourgia da Igreja é sempre cósmica, vale dizer, que ela assume toda a criação em Cristo, e que ela e sempre histórica, isso é, que ela assume todos os tempos em Cisto, que ela pode ser também escatológica, ou seja, que ela nos torna participantes do Reino por vir.

 

Essa é, portanto, a ideia da relação do homem com o mundo implicada na própria noção de culto. O culto é, por definição e ato, uma realidade com dimensões cósmica, histórica e escatológica, uma expressão não só de “piedade”, mas de uma abrangente “visão de mundo”. E os poucos que assumiram o fardo de estudar o culto em geral, e o culto cristão em particular, certamente concordarão que no mínimo no nível da história e da fenomenologia, essa noção de culto é objetivamente verificável. Assim sendo, se o que hoje as pessoas chamam consistem em atividades, projetos e outras coisas que nada têm a ver com essa noção de culto, a responsabilidade por isso repousa na profunda confusão semântica típica de nossos tempos tão confusos.

 

 

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Podemos agora passar para o segundo ponto. O secularismo, como eu disse, é acima de tudo uma negação do culto. E, de fato, se o que dissemos a respeito do culto é verdade, não será igualmente verdadeiro que o secularismo consiste exatamente na rejeição, explícita ou implícita, dessa ideia de homem e mundo que o culto tem por finalidade expressar e comunicar?

 

Essa rejeição, ademais, está na própria base do secularismo e constitui seu critério interno, mas, como eu disse, o secularismo de modo algum é idêntico ao ateísmo. Um secularista moderno muitas vezes aceita a ideia de Deus. O que, naturalmente, ele nega enfaticamente, é exatamente a sacramentalidade do homem e do mundo. Um secularista vê o mundo como algo que contém em si seu próprio sentido e os princípios do conhecimento e da ação. Ele pode deduzir sentido a partir de Deus e atribuir a Deus a origem do mundo e as leis que o governam. Ele pode mesmo admitir sem dificuldade a possibilidade da intervenção de Deus na existência do mundo. Ele pode acreditar na vida após a morte e na imortalidade da alma. Ele pode confessar a Deus suas aspirações mais elevadas, tais como a de uma sociedade mais justa, da liberdade e igualdade entre os homens. Em outras palavras, ele pode “referenciar” seu secularismo a Deus e torná-lo “religioso” – tema de programas eclesiásticos e de programas ecumênicos, de assembleias da Igreja e objeto de matérias de “teologia”. Tudo isso não muda nada na “secularidade” fundamental dessa visão de homem e de mundo, de um mundo que é entendido, experimentado, e que atua a partir de seus próprios termos imanentes e tendo em vista seu próprio interesse imanente. Tudo isso nada muda em sua rejeição fundamental da “epifania”: a intuição primordial de que tudo nesse mundo – e o próprio mundo – não apenas têm sua causa e se princípio em outra parte do que na sua existência, como ainda são eles próprios a manifestação e a presença dessa outra parte, e que nisso consiste de fato a vida de sua vida, de tal forma que, desconectadas daquela “epifania”, só resta a escuridão, o absurdo e a morte.

 

E em parte alguma essa essência do secularismo como negação do culto é melhor revelada do que no modo como o secularista lida com o culto. Por paradoxal que possa parecer, o secularista é, de certo modo, obcecado pelo culto. O “cume” do secularismo religioso no Ocidente – a Maçonaria – é constituído quase que inteiramente de cerimônias altamente elaboradas e saturadas de “simbolismo”. O mais recente profeta da “cidade secular”, Harvey Cox, sentiu a necessidade de dar sequência ao seu primeiro sucesso de vendas[1] com um livro “celebrativo[2]”. A celebração está realmente muito em voga atualmente. As razões para esse fenômeno aparentemente peculiar são na realidade muito simples. Elas não apenas não invalidam, como ao contrário confirmam meu ponto de vista. Pois, de um lado, esse fenômeno prova que, qualquer que seja seu grau de secularismo, ou mesmo de ateísmo, o homem permanece sendo um “ser que adora”, sempre nostálgico por ritos e rituais, não importa o quanto vazia e artificial seja a farsa oferecida a ele. Por outro lado, ao provar a incapacidade do secularismo em criar um culto genuíno, esse fenômeno revela a trágica e definitiva incompatibilidade do secularismo com a visão de mundo essencialmente cristã.

 

Essa incapacidade pode ser vista, em primeiro lugar, na própria perspectiva secular sobre o culto, em sua ingênua convicção de que o culto, como tudo o mais no mundo, pode constituir-se numa construção racional, coo resultado de planejamento, “troca de ideias” e discussões. Típico disso são as discussões da moda sobre novos símbolos (se símbolos são), por assim dizer “fabricados”, trazidos à existência por meio de deliberações de comitês. Mas a questão total aqui é saber se o secularista é constitutivamente incapaz de ver nos símbolos alguma coisa além de “suportes audiovisuais” para comunicação de ideias. No último inverno, um grupo de estudantes e professores de um famoso seminário passaram todo um semestre “trabalhando” numa “liturgia” centrada nos seguintes temas: o Sistema de Transporte Supersônico (SST), a ecologia, as enchentes no Paquistão. Não há dúvida de que eles estavam “bem intencionados”. O que estava errado eram seus pressupostos: que o culto tradicional pode não ter “relevância” para esses temas, e que nada tem a revelar sobre eles, e que, a menos que um “tema” seja de algum modo claramente exposto numa liturgia, ou que seja seu “foco”, ele estará obviamente fora do alcance espiritual da experiência litúrgica. O secularista de hoje é um apaixonado por termos como “simbolismo”, “sacramento”, “transformação”, “celebração” e toda uma panóplia de terminologia cultual. O que ele não se dá conta, é claro, é que o uso que faz deles revela, de fato, a morte dos símbolos e a decomposição do sacramento. E ele não percebe isso porque em sua rejeição da sacramentalidade do homem e do mundo, ele está reduzido a símbolos visuais como meras ilustrações de ideias e conceitos, coisa que eles não são de modo algum. Não pode haver celebração de ideias e conceitos, sejam eles “paz”, “justiça”, ou mesmo “Deus”. A Eucaristia não é um símbolo de amizade, de intimidade ou de qualquer outro estado de atividade de outro modo desejáveis. Uma vigília ou um jejum são, certamente, “simbólicos”: eles sempre expressam, manifestam e enchem a Igreja de expectativa, porque eles são, por si mesmos, expectativa e preparação. Transformá-los em “símbolos” de protesto político ou de afirmação ideológica, utilizá-los como meios para coisas que não são sua finalidade, pensar que os símbolos litúrgicos podem ser usados arbitrariamente – tudo isso implica a morte do culto, independentemente do sucesso óbvio e da popularidade desses “experimentos”.

 

Para qualquer um que tenha tido, ainda que uma única vez, a verdadeira experiência do culto, tudo isso se revela imediatamente como a falsificação que é. Ele sabe que o culto secularista que se quer transcendente é simplesmente incompatível com a real transcendência do culto. E é aqui, nessa miserável falência litúrgica, cujos pálidos resultados apenas começamos a ver, que o secularismo revela seu vazio religioso definitivo e, não podemos hesitar em dizê-lo, sua essência pesadamente anticristã.

 

 

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Quererão essas coisas significar uma simples desistência de nosso próprio tema: “o culto numa era secular”? Será que isso significa que não haja nada que nós, Ortodoxos, possamos fazer nessa era secular, senão realizar aos Domingos nossos “velhas e coloridas” rituais, e viver de segunda-feira até sábado uma vida perfeitamente “secularizada”, partilhando de uma visão de mundo que nada tem a ver com nossos ritos?

 

Eu respondo a essa questão com um enfático “não!”. Estou convencido de que aceitar essa “coexistência[3]”, como hoje advogam muitos cristãos aparentemente bem intencionados, representaria não apenas uma traição à nossa fé, como ainda, cedo ou tarde (e provavelmente mais cedo do que tarde), levaria à desintegração exatamente daquilo que tentamos preservar e perpetuar. Estou convencido, ademais, que essa desintegração já começou e que ela se oculta atrás de muros à prova de graças de nossos “estabelecimentos” eclesiásticos (ocupados que estão em defender seus antigos direitos, privilégios e primazias, e condenando-se mutuamente como “não-canônicos”), retóricas de paz, e auto justificado pietismo. Voltaremos a esse último mais tarde.

 

O que é preciso entender aqui, antes de tudo, é que o problema que está em discussão é complicado ainda mais por algo que nossos bem intencionados “conservadores” não entendem, apesar de toda sua denúncia e condenação ao secularismo. Esse algo consiste na conexão bem real que existe entre o secularismo – em sua origem e desenvolvimento – e o Cristianismo. O secularismo – devemos sempre enfatizar – é um “filho postiço” do Cristianismo, como o são, em última análise, todas as ideologias seculares que hoje dominam o mundo – não, como clamam os apóstolos Ocidentais de uma aceitação cristã do secularismo, um filho legítimo, mas uma heresia. A heresia, contudo, consiste sempre numa distorção, num exagero e, por conseguinte, na mutilação de algo verdadeiro, na afirmação de uma “escolha” (aizesis significa escolha, em grego), um elemento às custas dos demais, o rompimento da catolicidade da Verdade. Mas uma heresia é sempre uma questão dirigida à Igreja, e que requer, para ser respondida, um esforço por parte do pensamento e da consciência cristã. Condenar a heresia é relativamente fácil, o que é mais difícil é detectar a questão implicada nela, e responder adequadamente a essa questão. E no entanto essa foi sempre a maneira da Igreja de lidar com as heresias – elas sempre provocaram um esforço de criatividade dentro da Igreja, de modo que a condenação se transformava num alargamento e num aprofundamento da própria fé cristã. Para combater o Arianismo, Santo Atanásio propôs o termo consubstancial, que antes, e num contexto teológico diverso, havia sido condenado como herético. Por causa disso ele recebeu uma violenta oposição, não apenas do Ariamos, como também dos “conservadores”, que viram nele um inovador e um “modernista”. Ao final, entretanto, ficou claro que foi ele quem salvou a Ortodoxia, e que os “conservadores” cegos, consciente ou inconscientemente, ajudaram os Arianos. Assim, se o secularismo é, como estou convencido que seja, a grande heresia de nosso tempo, ele requer da Igreja não meros anátemas, e com certeza tampouco compromissos, mas, acima de tudo, um esforço de entendimento de tal maneira a que seja definitivamente suplantado pela verdade.

 

O caráter próprio do secularismo, sua diferença em relação às grandes heresias da era patrística, está em que aquelas foram provocadas pelo encontro do Cristianismo com o Helenismo, enquanto que o primeiro é o resultado de uma “ruptura” interna ao próprio Cristianismo, de sua profunda metamorfose. A falta de tempo me impede de detalhar esse ponto. Devo me limitar assim a uma exemplo “simbólico” diretamente relacionado com nosso tema. No final do século XII um teólogo Latino, Berengário de Tours, foi condenado por seu ensinamento a respeito da Eucaristia. Ele sustentava que, por ser a presença de Cristo nos elementos eucarísticos “mística” ou “simbólica”, ela não era real. O Concílio de Latrão que o condenou – e, para mim, aqui está o ponto crucial da questão – simplesmente inverteu a fórmula. Proclamou-se que, uma vez que a presença de Cristo na Eucaristia é real, ela não pode ser “mística”. O que é verdadeiramente decisivo aqui é a desconexão e a oposição entre os dois termos verum e mystice, a aceitação, de ambos os lados, de que eles são mutuamente exclusivos. A teologia Ocidental declarou assim que o que é “místico” ou “simbólico” não é real, enquanto que o que é “real” não pode ser simbólico. Isso representou o colapso do mysterion cristão fundamental, a “junção” antinômica do símbolo e do simbolismo com a realidade. Representou o colapso do entendimento cristão fundamental da cristão em termos de sua sacramentalidade ontológica. E desde então, o pensamento cristão, na Escolástica e além dela, não cessou mais de opor esses termos, e de rejeitar, implícita ou explicitamente, o “realismo simbólico” e o “simbolismo realista” da visão cristã de mundo. “Como se Deus não existisse” – essa fórmula se originou, não com Bonhoeffer ou algum apóstolo moderno do “Cristianismo irreligioso”. De fato, ela já está implicada no Tomismo, com a distinção epistemológica básica entre a causa prima e a causa secunda. Aqui reside a verdadeira causa do secularismo, que afinal não passa da afirmação da autonomia do mundo, de sua autossuficiência em termos de razão, conhecimento e ação. A decadência do simbolismo cristão levou à dicotomia entre o “natural” e o “sobrenatural” como sendo a única estrutura do pensamento e da experiência cristã. E ainda que o natural” e o “sobrenatural” estejam de alguma forma relacionados por analogia entis, como diz a teologia Latina, ou quer essa analogia seja rejeitada, como quer Karl Barth, em última instância isso não faz diferença. Em ambas as visões o mundo deixa de ser o sacramento “natural” de Deus, e o sacramento sobrenatural deixa de ter qualquer “continuidade” com o mundo.

 

Mas não nos deixamos enganar, essa estrutura teológica Ocidental foi de fato aceita também pelo Oriente Ortodoxo e, desde o fim da era patrística nossa teologia se pareceu mais com o Ocidente do que com o Oriente. Se o secularismo pode ser apropriadamente chamado de uma heresia Ocidental, o próprio fruto do “desvio” Ocidental básico, nossa própria teologia escolástica também foi permeada por esse desvio ao longo de séculos, e isso apesar das violentas denúncias contra Roma e o papismo. E é de fato irônico, mas jamais acidental, que psicologicamente, os mais “Ocidentais” dentre os Ortodoxos de hoje sejam precisamente os ultra-conservadores “super Ortodoxos”, cujo formato mental é legalista e silogístico de um lado, e, de outro, é erigido sobre essas “dicotomias” cuja introdução no pensamento cristão constitui o “pecado original” do Ocidente. Uma vez que essas dicotomias são aceitas, já não importa, teologicamente falando, se “aceitamos” o mundo, como o entusiasmo Ocidental por um “Cristianismo secular”, ou se o “rejeitamos”, como no caso dos “super Ortodoxos”, profetas da condenação apocalíptica. O otimismo positivista de uns e o negativismo pessimista de outros são, de fato, suas faces da mesma moeda. Ambos, ao negar ao mundo sua “sacramentalidade” natural, e opor radicalmente o “natural” ao “sobrenatural”, tornam o mundo à prova de graça e, em última análise, o conduzem ao secularismo. E é aqui, dentro desse contexto psicológico e

 Espiritual, que o problema do culto em relação ao moderno secularismo adquire seu significado real.

 

 

7

 

Pois está claro que essa teologia profundamente “Ocidentalizada” teve um sério impacto sobre o culto, ou antes, sobre a experiência e a compreensão do culto, sobre aquilo que eu defini em outro estudo[4] como a piedade litúrgica. E ela teve esse impacto porque ela satisfaz um profundo desejo do homem por uma religião legalista que preencha sua necessidade, tanto do “sagrado” – uma sanção e garantia divinas – como do “profano”, isso é, de uma vida secular natural e protegida, como se fosse possível, dos constantes desafios e das demandas absolutas de Deus. Foi uma recaída nessa religião que garantiu, por intermédio de ordenadas transações com o “sagrado”, a segurança e a consciência limpa dessa vida, assim como os direitos racionais sobre o “outro mundo”, religião que Cristo denunciou em cada palavra de Seu ensinamento, e que ao final O levou à crucificação. De fato, é muito mais fácil viver e respirar dentro de distinções claras entre o sagrado e o profano, entre o natural e o sobrenatural, entre o puro e o impuro, é mais fácil entender a religião em termos de “tabus” sagrados, prescrições e obrigações legais, de retidão ritual e de “validade” canônica. É muito mais difícil perceber que essa religião não apenas não constitui ameaça alguma ao secularismo, como é, paradoxalmente, sua aliada.

 

E, entretanto, é exatamente o que acontece com nossa “piedade litúrgica”, mas não com o culto enquanto tal – com suas formas e estruturas, que são demasiado tradicionais, demasiado à parte da vida da Igreja para serem alteradas em qualquer grau que seja considerado – mas com nossa “compreensão” dessas formas, daquilo que nós esperamos e, portanto, recebemos, do culto. Se o culto, conforme estabelecido pela tradição litúrgica, a lex orandi da Igreja, permanece o mesmo, sua “compreensão” pelo fiel se torna mais e mais determinada pelas mesmas categorias que a tradição litúrgica Ortodoxa rejeita explicita ou implicitamente com todo seu mundo, todo seu “ethos”. E a profunda tragédia aqui é que a imposição dessas categorias é hoje aceita em tanta extensão que qualquer tentativa de denunciá-las, de mostrar sua incompatibilidade com o verdadeiro espírito e sentido da leitourgia, é recebida com acusações de modernismo e de outros pecados mortais. Mas isso não constitui apenas uma discussão verbal superficial, como uma dessas tempestades acadêmicas que em geral não chegam a perturbar a Igreja. Trata-se aqui de uma questão de vida ou morte, porque é aqui e somente aqui que essa assustadora heresia do secularismo pode encontrar seu diagnóstico cristão apropriado, e ser derrotada.

 

O pouco tempo de que disponho me obriga a limitar-me a um único exemplo para mostrar que as “dicotomias” mencionadas acima, que sem dúvida determinaram a profunda metamorfose de nossa piedade litúrgica, não apenas não nos “conectam”, nem nos relacionam mutuamente – Deus, o homem e o mundo -  unindo a todos numa única e consistente visão de mundo, mas, ao contrário, elas anulam todas as “comunicações” e “correspondências” entre eles.

 

Assim, por exemplo, benzer a água, transformando-a em “água benta”, pode ter dois sentidos completamente diferentes. Pode significar, por um lado, a transformação de algo profano, e por conseguinte religiosamente vazio ou neutro, em algo sagrado, caso em que o principal sentido religioso da “água benta” é precisamente o fato de não mais ser “mera” água, sendo realmente oposta a ela, assim como o sagrado é oposto ao profano. Aqui o ato de benzer não nos revela nada a respeito da água, nem a respeito da matéria do mundo, mas, ao contrário, as torna irrelevantes para a nova função da água como “água benta”. O sagrado estabelece o profano como sendo apenas profano, isso é, religiosamente insignificante.

 

Por ouro lado, o mesmo ato de benzer pode significar a revelação da verdadeira “natureza” e do “destino” da água e, dessa forma, do mundo – ele pode representar a epifania e a realização de sua “sacramentalidade”. Ao ser restaurada por meio da bênção à sua função própria, a “água benta” se revela como a verdadeira, plena e adequada água, e a matéria se torna outra vez um meio de comunicação e de conhecimento de Deus.

 

Agora, qualquer um que esteja familiarizado com o conteúdo e o texto da grande prece da bênção da água – no Batismo e na Epifania – sabe sem sombra de dúvida que eles pertencem ao segundo dos dois significados mencionados, que seu termo de referência não é a dicotomia entre o sagrado e o profano, mas o potencial “sacramental” da criação em sua totalidade, bem coo em cada um de seus elementos. E também qualquer um que esteja familiarizado com nossa piedade litúrgica – nesse caso, a “compreensão” pela imensa maioria dos fiéis do significado da “água benta” – sabe igualmente bem que é o primeiro sentido que triunfa aqui diante da virtual exclusão do segundo. E a mesma análise pode ser aplicada, com os mesmos resultados, a praticamente todos os aspectos do culto: aos sacramentos, à liturgia do tempo, ao calendário, etc. A “sacramentalidade” foi substituída em toda parte pela “sacralidade”, a “epifania” por uma quase mágica incrustação no tempo e na matéria (o “natural”), pelo “sobrenatural”.

 

O que é mais perturbador é que essa piedade litúrgica, esse entendimento e essa experiência do culto, não apenas não constituem um desafio ao secularismo, como é uma das suas fontes. Pois eles mantêm o mundo como profano, isso é, secular, no mais profundo sentido do termo: como sendo totalmente incapaz de qualquer comunicação real com o Divino, de qualquer transformação real, de qualquer transfiguração. Por não ter nada a revelar sobre o mundo e a matéria, sobre o tempo e a natureza, essa ideia e essa experiência de culto não “provocam” nada, não questionam nada, não desafiam nada, e, de fato, não se aplicam a nada. Assim sendo, elas podem tranquilamente “coexistir” com qualquer ideologia secular, com qualquer forma de secularismo. E praticamente não existe diferença entre os liturgistas “rigorosos”, ou seja, aqueles que estendem os ofícios ao máximo, que observam todas as rubricas e o Typicon, e os liturgistas “liberais”, sempre prontos e ansiosos para encurtar, adaptar e ajustar. Pois em ambos os casos o que se nega é simplesmente a continuidade entre “religião” e “vida”, a própria função do culto como poder de transformação, julgamento e mudança. Mais uma vez, paradoxal e tragicamente, esse tipo de perspectiva em relação ao culto e esse tipo de experiência litúrgica são, de fato, a fonte e o suporte do secularismo.

 

 

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E tudo isso acontece num momento em que o secularismo começa a “rachar” de dentro para fora! Se estiver correta minha leitura da grande confusão de nosso tempo, essa confusão se deve, em primeiro lugar, à profunda crise do secularismo. E é verdadeiramente irônico, na minha opinião, que tantos cristãos estejam buscando uma acomodação com o secularismo no próprio momento em que ele se mostra como uma posição espiritual insustentável. Mais e mais sinais apontam para um fato de suprema importância: o famoso “homem moderno” continua a olhar para um caminho além do secularismo, está mais uma vez com sede e fome de “algo mais”. Mas muitas vezes essa fome e essa sede são satisfeitas não apenas com alimentos de qualidade duvidosa, mas ainda com substitutivos artificiais de todos os tipos. A confusão espiritual está no seu máximo. Mas não será porque a Igreja, e os próprios cristãos, tenham desistido desse único dom que somente eles – e mais ninguém – podem oferecer para esse mundo espiritualmente faminto e sedento de nossos dias? Não será porque os cristãos, mais do que todos hoje, defendem o secularismo e adaptam a ele sua própria fé? Não será porque, tendo acesso ao verdadeiro mysterion de Cristo, preferimos oferecer ao mundo conselhos vagos e de segunda mão sobre “política” e “sociedade”? o mundo precisa desesperadamente de Sacramento e Epifania, enquanto os cristãos embarcam em utopias mundiais tolas e vazias.

 

Minha conclusão é simples. Nós não precisamos de nenhum novo culto que seja, de algum modo, mais adequado ao nosso mundo secular. O que precisamos é de uma redescoberta do verdadeiro significado e do poder do culto, o que significa de suas dimensões e seu conteúdo cósmico, eclesiológico e escatológico. É certo que isso implica muito trabalho, muita “limpeza”. Implica estudo, educação e esforço. Implica desistir da lenha seca que carregamos conosco, vendo-a como se fosse a própria essência de nossas “tradições” e “costumes”. Mas uma vez que descobrimos a verdadeira lex orandi, o significado genuíno e o poder de nossa leitourgia, quando ela se torna outra vez a fonte dessa visão de mundo abrangente e o poder de atender às suas expectativas – somente então o único antídoto ao “secularismo” pode ser encontrado. E não há nada mais urgente hoje do que essa redescoberta, e do que esse retorno – não ao passado – mas para a luz e a vida, a verdade e a graça que são eternamente realizadas pela Igreja quando ela se tornar – em sua leitourgia – aquilo que ela deve ser.



[1] The Secular City: Secularization and Urbanization in Theological Perspective (1965), Collier Books.

[2] The Feast of Fools: A Theological Essay on Festivity and Fantasy (1969), Harvard University Press.

[3] A melhor ilustração disso é o argumento clássico dos partidários do “velho calendário”: em 25 de Dezembro partilhamos do Natal Ocidental “secularizado”, com sua árvore, sua reunião de família, sua troca de presentes, e então, a 7 de Janeiro temos o “verdadeiro” – porque religioso – Natal. Os que adotam esse ponto de vista não se dão conta, naturalmente, de que, se a Igreja primitiva partilhasse desse entendimento de sua relação com o mundo, ela jamais teria instituído o Natal, cuja proposta era exatamente de “exorcizar” e transformar em cristão  um festival pagão que existia então.

[4] Introduction to Liturgical Theology, Faith Press, 1966.