quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Apêndice II

SACRAMENTO E SÍMBOLO

 

1

 

A dificuldade inicial que um Ortodoxo encontra quando fala dos sacramentos repousa na necessidade de escolher os vários “estratos” de sua própria tradição teológica. Se ele optar pelos mais recentes e oficiais “manuais de teologia” desenvolvidos pelas escolas teológicas ortodoxas desde o século XVI, essa apresentação será similar, em conteúdo e terminologia, a qualquer De Sacramentis Latino. A partir de uma definição dos sacramentos como “os meios visíveis da graça invisível”, ele passará para a distinção entre “forma” e “matéria”, sua instituição por Cristo, sua enumeração e classificação e, finalmente, sua administração apropriada como condição de sua validade e eficácia. É um fato, porém, reconhecido por um crescente número de teólogos ortodoxos, que essa visão dos sacramentos, embora aceita por séculos, tem pouco a ver com a tradição genuína da Igreja do Oriente. Ela é vista mais como mais um dos infelizes resultados e expressões da “pseudomorfose” sofrida pela teologia ortodoxa depois do fim da era patrística, quando condições trágicas da vida eclesiástica forçaram os “intelectuais” ortodoxos a uma adoção não-crítica das categorias teológicas e das formas de pensamento Ocidentais. O resultado foi uma teologia profundamente “ocidentalizada”, cuja tradição foi mantida (e, em algum grau, ainda é mantida) por escolas teológicas. Na Rússia, por exemplo, a teologia foi expressa em Latim até a década de 40 do século XIX! O “cativeiro Ocidental” da teologia ortodoxa foi vigorosamente denunciado pelos melhores teólogos dos últimos cem anos e hoje existe um movimento significativo dedicado à recuperação de nossa teologia a partir de sua perspectiva genuína e de seu próprio método. O retorno aos Padres, às tradições litúrgicas e espirituais, que foram virtualmente ignoradas pela “teologia de manuais”, está começando a dar frutos. É claro, o processo ainda está em seus estágios iniciais, e na medida em que pouco se obteve em termos de teologia sacramental, qualquer esforço de “recuperação” e de “reconstrução” é necessariamente ainda uma tentativa preliminar. A tarefa urgente é precisamente a de recuperar uma perspectiva, levantar questões que as antiquadas estruturas dos “manuais” não apenas são incapazes de responder, como sequer permitiam que fossem formuladas.

 

 

2

 

O que é um “sacramento”? Ao responder essa questão, a teologia Oriental pós-Patrística e “ocidentalizada” se colocou dentro de uma contexto mental profunda e radicalmente diferente daquele da Igreja primitiva. Digo mental e não intelectual, porque a diferença aqui está num nível muito mais profundo do que aqueles das pressuposições intelectuais e da terminologia teológica. A teologia Patrística certamente não era menos “intelectual” do que a Escolástica, mas quanto à terminologia ela apresentava uma continuidade intacta, e foi o uso das mesmas palavras, eventualmente alteradas em seu sentido, que pode ter levado muitos historiadores da teologia a considerar uma descontinuidade entre os dois tipos de teologia sacramental.

 

Externamente ou formalmente essa mudança consistiu, em primeiro lugar, numa nova perspectiva, pela teologia sacramental, do próprio objeto de seu estudo. Na Igreja primitiva, nos escritos dos Padres, os sacramentos, na medida em que recebiam alguma interpretação sistemática, eram sempre explicadas num contexto de sua verdadeira celebração litúrgica, sendo a explicação, de fato, uma exegese da própria liturgia em toda sua complexidade e concretude ritual. O De Sacramentis medieval tendia, porém, desde o começo, a isolar o “sacramento” de seu contexto litúrgico, a encontrar e definir sua essência em termos tão precisos quanto possível, isso é, naquilo que o distinguia do “não-sacramento”. O sacramento começou a se tornar oposto à liturgia. Claro, ele possuía sua expressão ritual, seu “signum”, que pertencia à sua essência, mas esse signo era agora visto como ontologicamente diferente de todos os demais signos, símbolos e ritos da Igreja. E, devido a essa diferença, o signo precisamente sacramental isolado foi considerado, à exclusão de toda “liturgia”, coo sendo o objeto próprio da atenção teológica. Podemos, por exemplo, ler e reler o elaborado tratamento dado na Summa de São Tomás aos sacramentos sem nunca chegar a saber muito a respeito de sua celebração litúrgica. Podemos perscrutar virtualmente todos os tratados Católicos e Ortodoxos das Santas Ordens, sem que seja mencionada uma vez sequer a conexão tradicional e orgânica entre a ordenação e a Eucaristia. Para os historiadores da teologia essa mudança se deve ao que eles descrevem como sendo o progresso da “teologia científica” e ao crescimento de um método teológico “mais preciso”. Na realidade, porém, essa mudança, longe de ser meramente “exterior”, tem suas raízes numa profunda transformação da visão teológica, na realidade, de toda a “visão de mundo” teológica.  E é a natureza dessa transformação que devemos primeiro tentar entender se quisermos buscar o significado inicial do sacramento.

 

 

3

 

Para simplificar nossa tarefa podemos tomar como ponto de partida o longo e conhecido debate que desde o início dominou o desenvolvimento da teologia sacramental, e mais especificamente eucarística, no Ocidente. Trata-se do debate a respeito da presença real. Em nenhum outro lugar se revela melhor a linha que divide as duas perspectivas sobre o sacramento, bem coo as razões que levaram à transformação de uma na outra. No contexto desse debate, o termo “real” implica claramente a possibilidade de outro tipo de presença que não seria real. No idioma intelectual e teológico do Ocidente, o termo que define essa outra presença é, como sabemos, “simbólica”. não é preciso entrarmos aqui na complexa e de muitos modos confusa história desse termo no pensamento Ocidental. É bem claro que na linguagem teológica comum, conforme essa tomou forma na renascença Carolíngia e na Reforma, e apesar das controvérsias entre escolas teológicas rivais, a “incompatibilidade entre símbolo e realidade”, entre “figura et veritas”, sempre foi consistentemente afirmada e aceita. “Ao ‘mystice, non vere’, corresponde não menos exclusivamente o ‘vere, non mystice[1]”. Os Padres e toda a tradição primitiva, porém (e aqui chegamos ao coração da matéria), não apenas desconheciam essa distinção e essa oposição, como para eles o simbolismo constituía uma dimensão essencial do sacramento, a própria chave para seu entendimento. São Máximo o Confessor, o teólogo sacramental por excelência da era Patrística, chama o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia de símbolos (symbola), imagens (apeikonismata) e mistérios (mysteria). O “simbólico” aqui não apenas não se opõe ao “real”, como o incorpora como sua própria expressão e modo de manifestação. Os historiadores da teologia, em seu ardente desejo de manter o mito da continuidade teológica e da ordenada “evolução”, mais uma vez encontram sua explicação na “imprecisão” da terminologia patrística. Eles parecem não se dar conta de que o uso que os Padres fazem de “symbolon” (e de termos relacionados) não é “vago” nem “impreciso”, mas simplesmente diferente dos teólogos posteriores, que que a subsequente transformação desses termos constitui na verdade a fonte de uma das maiores tragédias teológicas.

 

 

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A diferença aqui é basicamente uma diferença na apreensão da realidade em si, ou, como já dissemos, uma diferença de “visão de mundo”. Se, para os Padres, o símbolo é a chave para o sacramento, isso é porque o sacramento está em continuidade com a estrutura simbólica do mundo no qual “omnes creaturae sensibiles sunt signa rerum sacrum[2]”. E o mundo é simbólico – signum rei sacrae – pelo fato de ter sido criado por Deus; ser simbólico, portanto, refere-se à sua ontologia, por ser o símbolo não apenas o caminho para perceber e entender a realidade, um meio de cognição, como ainda um meio de participação. É assim o simbolismo “natural” do mundo – podemos dizer mesmo sua “sacramentalidade” – que torna o sacramento possível e que constitui a chave para sua compreensão e apreensão. Se o sacramento cristão é único, não é no sentido de ser uma exceção milagrosa dentro da ordem natural das coisas criadas por Deus, e que “proclamam a Sua glória”. Sua novidade absoluta não está em sua ontologia enquanto sacramento mas na “res” específica que ele “simboliza”, isso é, que ele revela, manifesta e comunica – e que é Cristo e Seu Reino. Mas mesmo essa novidade absoluta deve ser entendida não em termos de total descontinuidade, mas como plenitude. O “mysterion” de Cristo revela e preenche o significado último e o destino do mundo em si. Assim, a instituição dos sacramentos por Cristo (um tema que virou obsessão na teologia recente) não constitui na criação ex nihilo da “sacramentalidade” em si, do sacramento como meio de cognição e de participação. Nas palavras de Cristo, “fazei isso em memória de mim”, esse isso (alimento, ação de graças, partir o pão) já é “sacramental”. A instituição significa que, ao ser mencionado por Cristo, “preenchido” por Cristo, o símbolo se torna pleno e se torna sacramento.

 

 

5

 

É essa continuidade entre o sacramento e o símbolo que a teologia pós-patrística começa, em primeiro lugar, a minimizar, e a seguir a rejeitar pura e simplesmente, e ela o fez devido à progressiva “dissolução” do símbolo, condicionada, por sua vez, por um novo conceito de  teologia em sua relação com a fé. A questão última de toda a teologia é o do conhecimento, e, mais precisamente, da possibilidade e da natureza do conhecimento de Deus. Se os Padres agruparam numa síntese viva e verdadeiramente “existencial”, por um lado, a “alteridade” de Deus, a impossibilidade de as criaturas O conhecerem em Sua essência, e, por outro lado, a realidade da comunhão do homem com Deus, o conhecimento de Deus e a “theosis”, essa síntese está enraizada primariamente em sua ideia, ou antes, em sua intuição do “mysterion” e de seu modo de presença e de operação – o símbolo. Pois é a própria natureza do símbolo que ele revela e comunica ao “outro”, precisamente enquanto “outro”, a visibilidade do invisível enquanto invisível, o conhecimento do incognoscível enquanto incognoscível, a presença do futuro enquanto futuro. O símbolo implica o conhecimento daquilo que não pode ser conhecido de outra maneira, pois nele o conhecimento depende da participação – o encontro vivo com a entrada nessa “epifania” da realidade que é o símbolo. Mas então a teologia não apenas se relaciona com o “mysterion”, como tem nele sua fonte, a própria condição de sua possibilidade. A teologia, propriamente falando, e o conhecimento a respeito de Deus, são o resultado do conhecimento de Deus – e, Nele, de toda a realidade. O “pecado original” da teologia pós-patrística consiste, assim, na redução do conceito de conhecimento ao conhecimento racional e discursivo, ou, em outras palavras, na separação entre o conhecimento e o “mysterion”. Essa teologia não rejeita a “visão de mundo simbólica” da tradição antiga: a sentença citada mais acima – “omnes sensibles creaturae sunt digna rerum sacrum” – é de São Thomas[3]. Mas ela altera radicalmente o entendimento desse “signum”. Na tradição primitiva, e isso é de importância capital, o relacionamento entre o signo do símbolo (A) e aquilo que ele “significa” (B) não é nem meramente semântica (A significa B), nem causal (A é causa de B), nem representativa (A representa B). Chamamos essa relação de epifania. “A é B” implica que tudo o que A expressa, comunica e revela, manifesta a “realidade” de B (em bora não necessariamente a totalidade de B), sem que, no entanto, A perca sua própria realidade ontológica, sem que se dissolva numa outra “res”. Mas é exatamente esse relacionamento entre A e B, entre o signo e o significado, que foi alterado. Devido à redução do conhecimento ao conhecimento racional e discursivo, entre A e B surge um hiato. O símbolo pode continuar a ser uma meio de conhecimento, mas, como todo conhecimento, trata-se de um conhecimento a respeito de, e não um conhecimento de. Ele pode ser uma revelação a respeito da “res”, mas não a epifania da “res” em si. A pode significar B, ou representá-lo, ou mesmo, sob certas circunstâncias, ser “causa” de sua presença; mas A já não é visto como o próprio meio de “participação” em B. o conhecimento e a participação são agora duas realidades diferentes, duas ordens diferentes.

 

 

6

 

Para a teologia sacramental essa “dissolução” do símbolo trouxe consequências que foram verdadeiramente desastrosas. Ao alterar a própria noção de sacramento, ela transformou radicalmente também a noção de teologia, provocando finamente uma crise cujo escopo e profundidade estamos começando a perceber apenas hoje. Deve ficar claro agora, esperamos, que o tema da “presença real” mencionada acima, e cujo aparecimento de certo modo inaugurou o período pós-patrístico na teologia sacramental, nasceu da dúvida teológica a respeito da “realidade” do símbolo, isso é, de sua capacidade em conter e comunicar a realidade. Já explanamos brevemente as razões dessa dúvida: a identificação, de um lado, do símbolo com um meio de conhecimento, e, de outro, a redução do conhecimento ao conhecimento racional e discursivo sobre, mais do que da, realidade. E, desde que a tradição era unânime em afirmar o sacramento como verum, isso é, real, a questão ficou pronta para ser levantada: como pode o símbolo ser veículo ou modo de sacramento? Embora o uso patrístico da terminologia simbólica fosse um “datum” óbvio da mesma tradição, a dúvida foi resolvida primeiramente por um mero reforço de uma terminologia – a “simbólica” – por outra – a “realista”. O sacramento é tanto “figura et res, veritas et figura”, como “non solo mystice sed etiam vere”. Mas rapidamente, e em virtude de uma progressiva desvalorização do símbolo que tornou inevitável sua dissolução, os dois termos passaram a ser vistos, não apenas como diferentes, mas como opostos entre si. No caso famoso de Berenger de Tours, o fato notável é a completa identidade no entendimento do símbolo entre o próprio Berenger e aqueles que o condenaram. Se para ele o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia não eram reais, por serem simbólicos, para o Concílio de Latrão de 1059 eles eram reais exatamente porque não eram simbólicos. Tendo a distinção conduzido necessariamente à oposição, essa última permaneceu como a estrutura fundamental de todo o desenvolvimento teológico subsequente.

 

 

7

 

Entretanto, permanece a questão do signum cuja relação com a “res” do sacramento tem que ser definida de outra maneira. Pois, se ela não for um símbolo, o que será? A teologia pós-patrística respondeu a essa questão definindo o signum como causa, e é aqui que a noção – e provavelmente a experiência – do sacramento sofreu sua maior transformação. Na tradição primitiva, a causalidade inerente ao sacramento, a santificação que ele propicia aos que dele participam, é inseparável de seu simbolismo, por estar enraizada nele. Isso de modo algum limita ou contradiz a causa única de todos os sacramentos – sua instituição por Cristo – pois, como já dissemos, a instituição é precisamente a realização de um símbolo por Cristo e, assim, sua transformação num sacramento. Trata-se portanto de um ato, não de descontinuidade, mas de realização e atualização. Essa é a epifania – em Cristo e por Cristo – da “nova criação”, não da criação de algo “novo”. E se aqui se revela a “continuidade” entre a criação e Cristo, é porque existe, em primeiro lugar, uma continuidade entre Cristo e a criação, cujo logos, vida e luz é Ele próprio. É precisamente esse aspecto, tanto da instituição como do sacramento que virtualmente desapareceu da teologia pós-patrística. A causalidade que ligava a instituição ao “signum” e “res” passou a ser vista como extrínseca e formal, não como intrínseca e reveladora.  Mais do que revelar através da realização, ela garante a realidade do efeito do sacramento. Ainda que, como no caso da Eucaristia, o signo esteja completamente identificado com a realidade, ele é experimentado em termos da aniquilação do signo, mais do que de sua realização. Nesse sentido, a doutrina da transubstanciação, na sua forma Tridentina, representa verdadeiramente o colapso, ou melhor, o suicídio da teologia sacramental. E se esse novo entendimento da causalidade – como uma garantia extrínseca e formal – rompe com a continuidade ontológica entre o signo e a “res”, ele também rejeita, de fato, toda continuidade entre a “instituição” e a ordem normal das coisas. É de fato a descontinuidade que passa a ser enfatizada e afirmada. Considerada como a “causa principal” do “signum” como “causa segunda”, a instituição se torna agora um ponto de partida absoluto de um sistema sacramental inteiramente sui generis. E os esforços de alguns teólogos recentes no sentido de trazer de volta para a noção de “signum” a “riqueza do simbolismo tradicional” dizem respeito aos “acidentes”, não à “substância” da doutrina e do entendimento dos sacramentos.

 

Pois a doutrina e o entendimento se tornam agora muito diferentes do que eram para a Igreja primitiva. Nessa, o sacramento não só se “abria”, como “cimentava” as três dimensões da visão cristã da realidade: a da Igreja, a do mundo e a do Reino. E as “reunindo” ela as tornava conhecidas – no mais profundo sentido patrístico do termo “conhecimento” – tanto como entendimento como também como participação. Essa era a fonte da teologia – conhecimento a respeito de Deus em Sua relação com o mundo, a Igreja e o Reino – porque se tratava do conhecimento de Deus e, Nele, de toda a realidade. Tendo seu começo, conteúdo e fim em Cristo, ela ao mesmo tempo revelava Cristo como o começo, o conteúdo e o fim de tudo o que existe, como seu Criador, Redentor e sua plenitude. A transformação do sacramento na teologia pós-patrística consistiu assim, no seu isolamento dentro de um “organismo” sacramental autossuficiente e independente. Esse isolamento exterior do sacramento em relação à liturgia, que mencionamos antes, foi, de fato, “simbólico” de uma mudança muito mais profunda. “A noção de sacramento – escreveu entusiasticamente um teólogo contemporâneo – é algo inteiramente sui generis, e quanto menos antropomorfismo, ou mesmo “angelismo” aí introduzirmos, melhor para a teologia (...) Os sacramentos têm seu próprio modo de existência, sua própria psicologia, sua própria graça (...) Nos céus e na terra não existe nada comparável aos sacramentos[4]”. É quando eles são exaltados e glorificados como a suprema realidade que começa a sua progressiva alienação em relação à teologia, à eclesiologia e à escatologia, uma alienação que – quer seja entendida ou não – tem sua origem na crise atual, a fonte e o veneno do “secularismo”. Como meio de piedade individual e de santificação ele preservam todo o seu “valor”. Como atos católicos da Igreja que realiza a si mesma, como símbolos “nesse mundo” do “mundo por vir”, da consumação de todas as coisas em Deus – eles foram simplesmente esquecidos.

 

 

8

 

Podemos agora retornar à “perspectiva” Ortodoxa. A precedente análise pretendia provar uma coisa: se essa perspectiva tiver que ser recuperada, isso só poderá acontecer por meio da redescoberta dessas dimensões do sacramento que foram tanto obscurecidas como simplesmente ignoradas durante o longo período de dependência da teologia Ortodoxa em relação ao Ocidente, em especial aos sistemas e modos de pensamento Latinos. Como poderá acontecer essa redescoberta? Ela certamente não poderá ser meramente “intelectual”. Uma simples leitura dos Padres, por mais útil e necessária que seja, não é suficiente. Pois mesmo os textos patrísticos podem ser usados – e o são – como “provas” de sistemas teológicos totalmente alheios à real “mente” dos Padres. O “renascimento patrístico” de nosso tempo perderia por completo seu propósito de fosse apenas o resultado de um “sistema patrístico” rígido, que, na realidade, nunca existiu. O mérito eterno dos Padres foi ter mostrado a natureza dinâmica, não estática, da teologia cristã, sua capacidade de ser “contemporânea” sem se reduzir a “contemporanismos”, sua capacidade de se abrir a todas as aspirações humanas sem ser determinada por nenhuma delas. Se o retorno aos Padres significar uma repetição puramente formal de seus termos e formulações, isso seria tão errado e inútil quanto o descarte dos Padres pela teologia “moderna” por causa de sua suposta visão de mundo “antiquada”.

 

Tudo isso se aplica, em primeiro lugar, ao uso que fazemos do termo “símbolo”. Se ele está deliberadamente estabelecido aqui como o centro da teologia sacramental e como uma chave para a sua “reconstrução”, não é apenas porque o encontramos nos textos patrísticos. Pois nesses textos encontramos igualmente outros termos tão importantes, se não mais, para seu entendimento. E seria fácil, por um lado, provar que, de um ponto de vista puramente terminológico, o termo “símbolo” não é nem o mais frequente, nem o mais essencial, e, por outro lado, que nos textos patrísticos nenhum termo é “absoluto” em si, mas que cada um recebe seu significado, sua “semântica” teológica apenas dentro de um contexto mais amplo, tanto teológico como espiritual. O que prova então que a escolha desse termo, de preferência a todos os demais, é justificada, e que nosso entendimento é correto? Não terá ele já sido interpretado pela teologia escolástica, e num sentido que aqui consideramos errôneo?

 

Para todas essas questões a resposta é que, mesmo que os Padres não tenham utilizado esse termos como tal, ele continua a ser para nós o mais adequado para redescobrir o sentido dessa experiência fundamental da qual dão testemunho seus textos, à qual todos – explícita ou implicitamente – se referem, e que é a única coisa que, em última instância, interessa aos Padres. Pois é essa palavra, ou antes o sentido que ela adquire mais e mais hoje em dia, que constitui a melhor, senão a única ponte entre, de um lado, a experiência e a visão de mundo dos Padres e. de outro, as mais profundas aspirações, dúvidas e confusões de nossa época, seja ela rotulada como “moderna”, “tecnológica” ou “secular”. De fato, é esse termo “símbolo” que emerge hoje como o foco, a preocupação central do pensamento tanto religioso como secular, como a questão primária da qual todas as respostas dependem, como o próprio “símbolo” da confusão e da busca humanas. Se hoje em dia ouvimos tantas vezes a respeito da necessidade de “no vos símbolos”, se símbolo e simbolismo são objetos de estudo e de curiosidade em círculos que de outra forma nada têm em comum, é porque a experiência básica por trás de tudo isso constitui um completo rompimento e uma quebra na “comunicação”, uma trágica falta de “princípio unitivo” que tivesse o poder de reunir e manter unidas as esfaceladas e atomizadas facetas da existência e do conhecimento humanos. E é esse princípio unitivo, cuja ausência é sentida tão fortemente, e cuja busca domina o pensamento moderno, que recebe o nome de símbolo. Suas conotações são tato cognitivas como participatórias, pois sua função é a de reunificar o conhecimento e a existência, unindo-os entre si. Podemos não saber o que é esse símbolo, mas o que esperamos dele está muito mais próximo da ideia e da experiência patrística do que da ideia e da experiência pós-patrística, e é por isso que dizemos que se trata de uma ponte.

 

 

9

 

É evidente, por outro lado, que o cristão, por definição, deseja conhecer. Pois não confessa ele que Cristo é tanto luz como a vida do mundo, a plenitude de todo o conhecimento e o redentor de toda a existência? Nos termos descritos e que são os próprios termos da busca do mundo pelo “símbolo” – não é Ele o Símbolo de todos os símbolos? Não foi dito pelo próprio Cristo que aquele que Nele crê já possui – desde aqui e agora – a vida eterna? Mas então, por que a fé cristã não é nem vista nem aceita pelo mundo como a realização de sua busca pelo símbolo, e por que ela parece “irrelevante” para essa busca? É nesse ponto, nesse “foco” angustiante da situação cristã atual, que a precedente análise adquire, esperamos, seu verdadeiro significado. Pois ela mostra que, se o Cristianismo falhou em preencher sua função simbólica – a de ser o “princípio unitivo” – é porque o “símbolo” foi quebrado, em primeiro lugar, pelos próprios cristãos. Como resultado desse rompimento, o Cristianismo acabou por se mostrar hoje, ao menos ante os olhos do mundo, como uma doutrina meramente intelectual, que por sua vez “desaba” sob a pressão de um contexto intelectual inteiramente diferente – por um lado – ou, por outro lado, como uma simples instituição religiosa que “desaba” também sob o peso de seu próprio institucionalismo. E certamente não é o adjetivo “sagrada” aposto a essa doutrina e a essa instituição que por si só será capaz de superar a “falta de credibilidade” e transformar o Cristianismo no símbolo que ele deixou de ser. Porque a questão é que “sagrado/a” jamais pode ser um mero adjetivo, uma definição suficiente que garanta a autoridade ou a origem divina de seja lá o que for. Se esse termo define alguma coisa é desde dentro, não desde fora. Ele revela e manifesta o “mysterium tremendum” de que fala Rudolf Otto, ou seja, um poder inerente que transcende o intelectualismo de uma doutrina e o institucionalismo de uma instituição. E é esse “sagrado” – o poder da epifania – que hoje tanta falta faz, seja à doutrina, seja à instituição, e que faz falta, não por causa dos pecados e das limitações humanas, mas precisamente devido a uma escolha deliberada: a rejeição e a dissolução do símbolo como a estrutura fundamental da “doutrina” e da “instituição” cristãs.

 

A situação não é minimamente mitigada pelos muitos cristãos “modernos”, mesmo teólogos, que se juntam aos demais clamando por “novos símbolos”, e que pensam que o Cristianismo irá recuperar sua “relevância” no mundo apenas se Cristo puder ser mostrado como o “símbolo” disso ou daquilo, como a “ilustração” de uma ideologia, a “imagem” e a “personificação” de uma atitude. Eles permanecem irremediavelmente sem entender que para que Cristo seja o “símbolo” de qualquer coisa no mundo, o próprio mundo tem que ser, em primeiro lugar, conhecido, visto e experimentado como “símbolo” de Deus, como a epifania de Sua santidade, Seu poder e Sua glória – que, em outros termos, não é “Cristo” ou “Deus” que precisa ser explicado em termos desse mundo e de suas necessidades passageiras, de forma a se tornarem seu “símbolo”, mas, ao contrário, é Deus e apenas Deus que fez desse mundo Seu símbolo, que realizou esse símbolo em Cristo e que irá consumá-lo em Seu eterno Reino. Quando esse mundo é desprovido desse símbolo ele se transforma em caos e destruição, ídolo e erro, e está condenado a desaparecer, pois a própria natureza do seu “esquema” (imagem, forma) é a de “passar[5]”. Transformar Cristo no símbolo desse mundo passageiro é o cúmulo da loucura e da cegueira, pois Ele veio para realizar exatamente o contrário disso – ou seja, para salvar o mundo restaurando-o como o “símbolo” de Deus, como fome e sede de realização em Deus, como “signo” de, e passagem para Seu Reino. E Ele o salvou destruindo sua autossuficiência e sua opacidade, revelando “nesse mundo” a Igreja – o símbolo da “nova criação” e o sacramento do “mundo por vir”.

 

E se os cristãos realmente desejam, como declaram e de fato deveriam, servir o mundo, trazer de volta a ele o “símbolo” que tão desesperadamente ele busca, eles só poderão adquiri-lo se eles próprios redescobrirem esse símbolo, e se o redescobrirem aonde ele sempre esteve – pela vontade e a instituição divina – na Igreja. Os Padres, ou a tradição, podem auxiliar nessa redescoberta, podem purificar sua visão, “explicar” o modo como isso deve ser feito; mas eles não podem ser essa redescoberta em si. E, assim, a questão última permanece: onde e como ele pode ser adquirido?

 

 

10

 

A resposta da teologia Ortodoxa, desde que ela superou seu “cativeiro Ocidental”, é: na vida litúrgica intacta da Igreja, na tradição sacramental que, ao menos no Oriente, não foi alterada significativamente pelas buscas de uma teologia alienada. Já apontamos antes que o erro fatal do racionalismo pós-patrístico consistiu no isolamento do sacramento em relação à liturgia como expressão total da vida e fé da Igreja. Ele significou, de fato, o isolamento do sacramento em relação ao símbolo, isso é, dessa conexão e comunicação com a totalidade da realidade que se realiza no sacramento. Ao se tornar um “meio de graça” fechado e contido em si mesmo, uma gota de realidade num mar de símbolos, o sacramento despojou a liturgia de sua função própria – a de conectar o sacramento com a Igreja, o mundo e o Reino, ou, em outras palavras, com os conteúdos e dimensões eclesiológicos, cósmicos e escatológicos. A liturgia foi relegada à “piedade” que a adornou com milhares de explicações e interpretações, agora “simbólicas” segundo o sentido “ilustrativo” e nominal do termo. Às vezes vista “arqueologicamente” – como uma coleção de ritos “antigos e coloridos” – ou “pictoricamente” – como uma espécie de suporte audiovisual para a oração – ou ainda como irrelevante – para a teologia, a missão e, em resumo, para a vida total da Igreja, ela conserva e provavelmente continuará conservando seus fiéis – os cristãos com “mentes litúrgicas”. Mas para a Igreja, no sentido amplo, seja para os “ativistas”, seja para os “gnósticos”, ela já nada pode oferecer.

 

Redescobrir a unidade inicial e orgânica entre a liturgia e o sacramento, a liturgia através do sacramento e o sacramento através da liturgia, como uma realidade dinâmica na qual o símbolo – a liturgia – é sempre realizado no sacramento – essa será a condição para a redescoberta da perspectiva, da única perspectiva que poderá nos conduzir além do beco-sem-saída de nossa situação presente. E, de fato, é a natureza litúrgica do sacramento, assim como a natureza sacramental da liturgia – e, através delas, da própria Igreja – que constituem as fontes vivas da síntese dinâmica da qual os Padres são o testemunho eterno. Mas essa síntese não está só nos livros e no passado. Ela está conosco – aqui e agora – se tivermos olhos para ver e ouvidos para ouvir, se, deixando de lado os falsos problemas acumulados ao longo dos séculos, pudermos alcançar a realidade da Igreja e entender uma vez mais a “lex orandi” como fonte de sua “lex credendi”.

 

É nesse ponto que a tarefa real, implicada no tema desse artigo, deve começar. Pois ela consiste em mostrar, com base num estudo detalhado da “leitourgia”, da tradição litúrgica e da experiência da Igreja, o verdadeiro conteúdo desse Símbolo que é a Igreja e que ela realiza no Sacramento, realizando assim a si mesma. Mostrar e provar isso é obviamente impossível dentro do escopo desse ensaio, que não é mais do que uma introdução geral, uma indicação preliminar de uma perspectiva possível. Concluindo, só podemos dizer que, se essa tarefa for levada a cabo, ela poderá mostrar que a função própria da “leitourgia” sempre foi a de reunir, dentro de um símbolo, os três níveis da vida e da fé cristãs: a Igreja, o mundo e o Reino; que a própria Igreja é assim o sacramento no qual a vida “desse mundo”, esfacelada mas ainda simbólica, é levada, em Cristo e por Cristo, à dimensão do Reino de Deus, tornando-se o sacramento do mundo “por vir”, daquele que Deus, desde a eternidade, preparou para aqueles que O amam, e onde tudo o que é humano pode ser transfigurado pela graça, de tal modo que todas as coisas possam se consumar em Deus; que, finalmente, é aqui, e somente aqui – no “mysterion” da presença e da ação de Deus – que a Igreja sempre se torna aquilo que ela é: o Corpo de Cristo e o Templo do Espírito Santo, o único Símbolo que reúne – conduzindo e unindo a Deus o mundo, pela vida pela qual Ele deu Seu Filho.



[1] H. de Lubac, Corpus Mysticum: L’Eucharistie et l’Église ao Moyen Âge, Paris, Aubier, 1944, pg. 258.

[2] “Todas as criaturas sensíveis são signos das coisas sagradas”.

[3] Summa Theologica, Quest. 60, Art. 2, 1.

[4] Dom Vonier, La Clef de Ia Doctrine Eucharistique, trans. P. Roguet, Paris, Les Editions du Cerf.

[5] I Coríntios 7: 31.


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