SACRAMENTO E SÍMBOLO
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A dificuldade inicial que um Ortodoxo encontra
quando fala dos sacramentos repousa na necessidade de escolher os vários
“estratos” de sua própria tradição teológica. Se ele optar pelos mais recentes
e oficiais “manuais de teologia” desenvolvidos pelas escolas teológicas
ortodoxas desde o século XVI, essa apresentação será similar, em conteúdo e
terminologia, a qualquer De Sacramentis Latino. A partir de uma
definição dos sacramentos como “os meios visíveis da graça invisível”, ele
passará para a distinção entre “forma” e “matéria”, sua instituição por Cristo,
sua enumeração e classificação e, finalmente, sua administração apropriada como
condição de sua validade e eficácia. É um fato, porém, reconhecido por um
crescente número de teólogos ortodoxos, que essa visão dos sacramentos, embora
aceita por séculos, tem pouco a ver com a tradição genuína da Igreja do
Oriente. Ela é vista mais como mais um dos infelizes resultados e expressões da
“pseudomorfose” sofrida pela teologia ortodoxa depois do fim da era patrística,
quando condições trágicas da vida eclesiástica forçaram os “intelectuais”
ortodoxos a uma adoção não-crítica das categorias teológicas e das formas de
pensamento Ocidentais. O resultado foi uma teologia profundamente “ocidentalizada”,
cuja tradição foi mantida (e, em algum grau, ainda é mantida) por escolas teológicas.
Na Rússia, por exemplo, a teologia foi expressa em Latim até a década de 40 do
século XIX! O “cativeiro Ocidental” da teologia ortodoxa foi vigorosamente
denunciado pelos melhores teólogos dos últimos cem anos e hoje existe um
movimento significativo dedicado à recuperação de nossa teologia a partir de
sua perspectiva genuína e de seu próprio método. O retorno aos Padres, às
tradições litúrgicas e espirituais, que foram virtualmente ignoradas pela
“teologia de manuais”, está começando a dar frutos. É claro, o processo ainda
está em seus estágios iniciais, e na medida em que pouco se obteve em termos de
teologia sacramental, qualquer esforço de “recuperação” e de “reconstrução” é
necessariamente ainda uma tentativa preliminar. A tarefa urgente é precisamente
a de recuperar uma perspectiva, levantar questões que as antiquadas estruturas
dos “manuais” não apenas são incapazes de responder, como sequer permitiam que
fossem formuladas.
2
O que é um “sacramento”? Ao responder essa questão,
a teologia Oriental pós-Patrística e “ocidentalizada” se colocou dentro de uma
contexto mental profunda e radicalmente diferente daquele da Igreja primitiva.
Digo mental e não intelectual, porque a diferença aqui está num nível
muito mais profundo do que aqueles das pressuposições intelectuais e da
terminologia teológica. A teologia Patrística certamente não era menos
“intelectual” do que a Escolástica, mas quanto à terminologia ela apresentava
uma continuidade intacta, e foi o uso das mesmas palavras, eventualmente
alteradas em seu sentido, que pode ter levado muitos historiadores da teologia
a considerar uma descontinuidade entre os dois tipos de teologia sacramental.
Externamente ou formalmente essa mudança consistiu,
em primeiro lugar, numa nova perspectiva, pela teologia sacramental, do próprio
objeto de seu estudo. Na Igreja primitiva, nos escritos dos Padres, os
sacramentos, na medida em que recebiam alguma interpretação sistemática, eram
sempre explicadas num contexto de sua verdadeira celebração litúrgica,
sendo a explicação, de fato, uma exegese da própria liturgia em toda sua
complexidade e concretude ritual. O De Sacramentis medieval tendia,
porém, desde o começo, a isolar o “sacramento” de seu contexto litúrgico, a
encontrar e definir sua essência em termos tão precisos quanto possível,
isso é, naquilo que o distinguia do “não-sacramento”. O sacramento começou a se
tornar oposto à liturgia. Claro, ele possuía sua expressão ritual, seu “signum”,
que pertencia à sua essência, mas esse signo era agora visto como
ontologicamente diferente de todos os demais signos, símbolos e ritos da
Igreja. E, devido a essa diferença, o signo precisamente sacramental isolado
foi considerado, à exclusão de toda “liturgia”, coo sendo o objeto próprio da atenção
teológica. Podemos, por exemplo, ler e reler o elaborado tratamento dado na Summa
de São Tomás aos sacramentos sem nunca chegar a saber muito a respeito de sua
celebração litúrgica. Podemos perscrutar virtualmente todos os tratados
Católicos e Ortodoxos das Santas Ordens, sem que seja mencionada uma vez sequer
a conexão tradicional e orgânica entre a ordenação e a Eucaristia. Para os
historiadores da teologia essa mudança se deve ao que eles descrevem como sendo
o progresso da “teologia científica” e ao crescimento de um método teológico
“mais preciso”. Na realidade, porém, essa mudança, longe de ser meramente “exterior”,
tem suas raízes numa profunda transformação da visão teológica, na realidade,
de toda a “visão de mundo” teológica. E
é a natureza dessa transformação que devemos primeiro tentar entender se
quisermos buscar o significado inicial do sacramento.
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Para simplificar nossa tarefa podemos tomar como
ponto de partida o longo e conhecido debate que desde o início dominou o
desenvolvimento da teologia sacramental, e mais especificamente eucarística, no
Ocidente. Trata-se do debate a respeito da presença real. Em nenhum
outro lugar se revela melhor a linha que divide as duas perspectivas sobre o
sacramento, bem coo as razões que levaram à transformação de uma na outra. No
contexto desse debate, o termo “real” implica claramente a possibilidade de
outro tipo de presença que não seria real. No idioma intelectual e
teológico do Ocidente, o termo que define essa outra presença é, como sabemos,
“simbólica”. não é preciso entrarmos aqui na complexa e de muitos modos confusa
história desse termo no pensamento Ocidental. É bem claro que na linguagem
teológica comum, conforme essa tomou forma na renascença Carolíngia e na Reforma,
e apesar das controvérsias entre escolas teológicas rivais, a “incompatibilidade
entre símbolo e realidade”, entre “figura et veritas”, sempre foi
consistentemente afirmada e aceita. “Ao ‘mystice, non vere’, corresponde
não menos exclusivamente o ‘vere, non mystice’[1]”.
Os Padres e toda a tradição primitiva, porém (e aqui chegamos ao coração da matéria),
não apenas desconheciam essa distinção e essa oposição, como para eles o
simbolismo constituía uma dimensão essencial do sacramento, a própria chave para
seu entendimento. São Máximo o Confessor, o teólogo sacramental por excelência
da era Patrística, chama o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia de símbolos
(symbola), imagens (apeikonismata) e mistérios (mysteria).
O “simbólico” aqui não apenas não se opõe ao “real”, como o incorpora como sua
própria expressão e modo de manifestação. Os historiadores da teologia, em seu
ardente desejo de manter o mito da continuidade teológica e da ordenada
“evolução”, mais uma vez encontram sua explicação na “imprecisão” da
terminologia patrística. Eles parecem não se dar conta de que o uso que os Padres
fazem de “symbolon” (e de termos relacionados) não é “vago” nem
“impreciso”, mas simplesmente diferente dos teólogos posteriores, que que a
subsequente transformação desses termos constitui na verdade a fonte de uma das
maiores tragédias teológicas.
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A diferença aqui é basicamente uma diferença na
apreensão da realidade em si, ou, como já dissemos, uma diferença de “visão de
mundo”. Se, para os Padres, o símbolo é a chave para o sacramento, isso é
porque o sacramento está em continuidade com a estrutura simbólica do mundo no
qual “omnes creaturae sensibiles sunt signa rerum sacrum[2]”.
E o mundo é simbólico – signum rei sacrae – pelo fato de ter sido criado
por Deus; ser simbólico, portanto, refere-se à sua ontologia, por ser o símbolo
não apenas o caminho para perceber e entender a realidade, um meio de cognição,
como ainda um meio de participação. É assim o simbolismo “natural” do
mundo – podemos dizer mesmo sua “sacramentalidade” – que torna o sacramento
possível e que constitui a chave para sua compreensão e apreensão. Se o
sacramento cristão é único, não é no sentido de ser uma exceção milagrosa
dentro da ordem natural das coisas criadas por Deus, e que “proclamam a Sua
glória”. Sua novidade absoluta não está em sua ontologia enquanto sacramento
mas na “res” específica que ele “simboliza”, isso é, que ele revela,
manifesta e comunica – e que é Cristo e Seu Reino. Mas mesmo essa novidade
absoluta deve ser entendida não em termos de total descontinuidade, mas como
plenitude. O “mysterion” de Cristo revela e preenche o significado
último e o destino do mundo em si. Assim, a instituição dos sacramentos por
Cristo (um tema que virou obsessão na teologia recente) não constitui na
criação ex nihilo da “sacramentalidade” em si, do sacramento como meio
de cognição e de participação. Nas palavras de Cristo, “fazei isso em memória
de mim”, esse isso (alimento, ação de graças, partir o pão) já é “sacramental”.
A instituição significa que, ao ser mencionado por Cristo, “preenchido” por
Cristo, o símbolo se torna pleno e se torna sacramento.
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É essa continuidade entre o sacramento e o símbolo
que a teologia pós-patrística começa, em primeiro lugar, a minimizar, e a
seguir a rejeitar pura e simplesmente, e ela o fez devido à progressiva
“dissolução” do símbolo, condicionada, por sua vez, por um novo conceito
de teologia em sua relação com a fé. A
questão última de toda a teologia é o do conhecimento, e, mais
precisamente, da possibilidade e da natureza do conhecimento de Deus. Se os
Padres agruparam numa síntese viva e verdadeiramente “existencial”, por um
lado, a “alteridade” de Deus, a impossibilidade de as criaturas O conhecerem em
Sua essência, e, por outro lado, a realidade da comunhão do homem com Deus, o
conhecimento de Deus e a “theosis”, essa síntese está enraizada
primariamente em sua ideia, ou antes, em sua intuição do “mysterion” e
de seu modo de presença e de operação – o símbolo. Pois é a própria natureza do
símbolo que ele revela e comunica ao “outro”, precisamente enquanto “outro”, a visibilidade
do invisível enquanto invisível, o conhecimento do incognoscível enquanto
incognoscível, a presença do futuro enquanto futuro. O símbolo implica o
conhecimento daquilo que não pode ser conhecido de outra maneira, pois nele o conhecimento
depende da participação – o encontro vivo com a entrada nessa “epifania” da realidade
que é o símbolo. Mas então a teologia não apenas se relaciona com o “mysterion”,
como tem nele sua fonte, a própria condição de sua possibilidade. A teologia,
propriamente falando, e o conhecimento a respeito de Deus, são o
resultado do conhecimento de Deus – e, Nele, de toda a realidade. O
“pecado original” da teologia pós-patrística consiste, assim, na redução do conceito
de conhecimento ao conhecimento racional e discursivo, ou, em outras palavras,
na separação entre o conhecimento e o “mysterion”. Essa teologia não
rejeita a “visão de mundo simbólica” da tradição antiga: a sentença citada mais
acima – “omnes sensibles creaturae sunt digna rerum sacrum” – é de São
Thomas[3].
Mas ela altera radicalmente o entendimento desse “signum”. Na tradição
primitiva, e isso é de importância capital, o relacionamento entre o signo do
símbolo (A) e aquilo que ele “significa” (B) não é nem meramente semântica (A significa
B), nem causal (A é causa de B), nem representativa (A representa
B). Chamamos essa relação de epifania. “A é B” implica que tudo o
que A expressa, comunica e revela, manifesta a “realidade” de B (em bora não
necessariamente a totalidade de B), sem que, no entanto, A perca sua própria
realidade ontológica, sem que se dissolva numa outra “res”. Mas é
exatamente esse relacionamento entre A e B, entre o signo e o significado, que
foi alterado. Devido à redução do conhecimento ao conhecimento racional e
discursivo, entre A e B surge um hiato. O símbolo pode continuar a ser uma
meio de conhecimento, mas, como todo conhecimento, trata-se de um conhecimento a
respeito de, e não um conhecimento de. Ele pode ser uma revelação a respeito
da “res”, mas não a epifania da “res” em si. A pode significar B,
ou representá-lo, ou mesmo, sob certas circunstâncias, ser “causa” de sua
presença; mas A já não é visto como o próprio meio de “participação” em
B. o conhecimento e a participação são agora duas realidades diferentes, duas
ordens diferentes.
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Para a teologia sacramental essa “dissolução” do
símbolo trouxe consequências que foram verdadeiramente desastrosas. Ao alterar
a própria noção de sacramento, ela transformou radicalmente também a noção de
teologia, provocando finamente uma crise cujo escopo e profundidade estamos
começando a perceber apenas hoje. Deve ficar claro agora, esperamos, que o tema
da “presença real” mencionada acima, e cujo aparecimento de certo modo
inaugurou o período pós-patrístico na teologia sacramental, nasceu da dúvida
teológica a respeito da “realidade” do símbolo, isso é, de sua capacidade em
conter e comunicar a realidade. Já explanamos brevemente as razões dessa
dúvida: a identificação, de um lado, do símbolo com um meio de conhecimento, e,
de outro, a redução do conhecimento ao conhecimento racional e discursivo sobre,
mais do que da, realidade. E, desde que a tradição era unânime em
afirmar o sacramento como verum, isso é, real, a questão ficou pronta
para ser levantada: como pode o símbolo ser veículo ou modo de sacramento? Embora
o uso patrístico da terminologia simbólica fosse um “datum” óbvio da
mesma tradição, a dúvida foi resolvida primeiramente por um mero reforço de uma
terminologia – a “simbólica” – por outra – a “realista”. O sacramento é tanto “figura
et res, veritas et figura”, como “non solo mystice sed etiam vere”.
Mas rapidamente, e em virtude de uma progressiva desvalorização do símbolo que
tornou inevitável sua dissolução, os dois termos passaram a ser vistos, não
apenas como diferentes, mas como opostos entre si. No caso famoso de Berenger
de Tours, o fato notável é a completa identidade no entendimento do símbolo
entre o próprio Berenger e aqueles que o condenaram. Se para ele o Corpo e o
Sangue de Cristo na Eucaristia não eram reais, por serem simbólicos, para o
Concílio de Latrão de 1059 eles eram reais exatamente porque não eram
simbólicos. Tendo a distinção conduzido necessariamente à oposição, essa última
permaneceu como a estrutura fundamental de todo o desenvolvimento teológico
subsequente.
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Entretanto, permanece a questão do signum
cuja relação com a “res” do sacramento tem que ser definida de outra
maneira. Pois, se ela não for um símbolo, o que será? A teologia pós-patrística
respondeu a essa questão definindo o signum como causa, e é aqui
que a noção – e provavelmente a experiência – do sacramento sofreu sua maior
transformação. Na tradição primitiva, a causalidade inerente ao sacramento, a
santificação que ele propicia aos que dele participam, é inseparável de seu
simbolismo, por estar enraizada nele. Isso de modo algum limita ou contradiz a
causa única de todos os sacramentos – sua instituição por Cristo – pois,
como já dissemos, a instituição é precisamente a realização de um símbolo por
Cristo e, assim, sua transformação num sacramento. Trata-se portanto de um ato,
não de descontinuidade, mas de realização e atualização. Essa é a epifania – em
Cristo e por Cristo – da “nova criação”, não da criação de algo “novo”. E se
aqui se revela a “continuidade” entre a criação e Cristo, é porque existe, em
primeiro lugar, uma continuidade entre Cristo e a criação, cujo logos,
vida e luz é Ele próprio. É precisamente esse aspecto, tanto da instituição como
do sacramento que virtualmente desapareceu da teologia pós-patrística. A causalidade
que ligava a instituição ao “signum” e “res” passou a ser vista
como extrínseca e formal, não como intrínseca e reveladora. Mais do que revelar através da realização, ela
garante a realidade do efeito do sacramento. Ainda que, como no caso da
Eucaristia, o signo esteja completamente identificado com a realidade, ele é
experimentado em termos da aniquilação do signo, mais do que de sua realização.
Nesse sentido, a doutrina da transubstanciação, na sua forma Tridentina,
representa verdadeiramente o colapso, ou melhor, o suicídio da teologia
sacramental. E se esse novo entendimento da causalidade – como uma garantia
extrínseca e formal – rompe com a continuidade ontológica entre o signo e a “res”,
ele também rejeita, de fato, toda continuidade entre a “instituição” e a ordem
normal das coisas. É de fato a descontinuidade que passa a ser enfatizada e afirmada.
Considerada como a “causa principal” do “signum” como “causa segunda”, a
instituição se torna agora um ponto de partida absoluto de um sistema
sacramental inteiramente sui generis. E os esforços de alguns teólogos
recentes no sentido de trazer de volta para a noção de “signum” a
“riqueza do simbolismo tradicional” dizem respeito aos “acidentes”, não à “substância”
da doutrina e do entendimento dos sacramentos.
Pois a doutrina e o entendimento se tornam agora
muito diferentes do que eram para a Igreja primitiva. Nessa, o sacramento não
só se “abria”, como “cimentava” as três dimensões da visão cristã da realidade:
a da Igreja, a do mundo e a do Reino. E as “reunindo” ela as tornava conhecidas
– no mais profundo sentido patrístico do termo “conhecimento” – tanto como
entendimento como também como participação. Essa era a fonte da teologia –
conhecimento a respeito de Deus em Sua relação com o mundo, a Igreja e o
Reino – porque se tratava do conhecimento de Deus e, Nele, de toda
a realidade. Tendo seu começo, conteúdo e fim em Cristo, ela ao mesmo tempo
revelava Cristo como o começo, o conteúdo e o fim de tudo o que existe, como
seu Criador, Redentor e sua plenitude. A transformação do sacramento na
teologia pós-patrística consistiu assim, no seu isolamento dentro de um
“organismo” sacramental autossuficiente e independente. Esse isolamento
exterior do sacramento em relação à liturgia, que mencionamos antes, foi, de
fato, “simbólico” de uma mudança muito mais profunda. “A noção de sacramento –
escreveu entusiasticamente um teólogo contemporâneo – é algo inteiramente sui
generis, e quanto menos antropomorfismo, ou mesmo “angelismo” aí introduzirmos,
melhor para a teologia (...) Os sacramentos têm seu próprio modo de existência,
sua própria psicologia, sua própria graça (...) Nos céus e na terra não existe
nada comparável aos sacramentos[4]”.
É quando eles são exaltados e glorificados como a suprema realidade que começa
a sua progressiva alienação em relação à teologia, à eclesiologia e à escatologia,
uma alienação que – quer seja entendida ou não – tem sua origem na crise atual,
a fonte e o veneno do “secularismo”. Como meio de piedade individual e de
santificação ele preservam todo o seu “valor”. Como atos católicos da Igreja
que realiza a si mesma, como símbolos “nesse mundo” do “mundo por vir”, da
consumação de todas as coisas em Deus – eles foram simplesmente esquecidos.
8
Podemos agora retornar à “perspectiva” Ortodoxa. A
precedente análise pretendia provar uma coisa: se essa perspectiva tiver que
ser recuperada, isso só poderá acontecer por meio da redescoberta dessas
dimensões do sacramento que foram tanto obscurecidas como simplesmente
ignoradas durante o longo período de dependência da teologia Ortodoxa em
relação ao Ocidente, em especial aos sistemas e modos de pensamento Latinos. Como
poderá acontecer essa redescoberta? Ela certamente não poderá ser meramente
“intelectual”. Uma simples leitura dos Padres, por mais útil e necessária que
seja, não é suficiente. Pois mesmo os textos patrísticos podem ser usados – e o
são – como “provas” de sistemas teológicos totalmente alheios à real “mente”
dos Padres. O “renascimento patrístico” de nosso tempo perderia por completo
seu propósito de fosse apenas o resultado de um “sistema patrístico” rígido,
que, na realidade, nunca existiu. O mérito eterno dos Padres foi ter mostrado a
natureza dinâmica, não estática, da teologia cristã, sua capacidade de ser
“contemporânea” sem se reduzir a “contemporanismos”, sua capacidade de se abrir
a todas as aspirações humanas sem ser determinada por nenhuma delas. Se o
retorno aos Padres significar uma repetição puramente formal de seus termos e
formulações, isso seria tão errado e inútil quanto o descarte dos Padres pela
teologia “moderna” por causa de sua suposta visão de mundo “antiquada”.
Tudo isso se aplica, em primeiro lugar, ao uso que
fazemos do termo “símbolo”. Se ele está deliberadamente estabelecido aqui como
o centro da teologia sacramental e como uma chave para a sua “reconstrução”,
não é apenas porque o encontramos nos textos patrísticos. Pois nesses textos
encontramos igualmente outros termos tão importantes, se não mais, para seu
entendimento. E seria fácil, por um lado, provar que, de um ponto de vista
puramente terminológico, o termo “símbolo” não é nem o mais frequente, nem o
mais essencial, e, por outro lado, que nos textos patrísticos nenhum termo é “absoluto”
em si, mas que cada um recebe seu significado, sua “semântica” teológica apenas
dentro de um contexto mais amplo, tanto teológico como espiritual. O que prova
então que a escolha desse termo, de preferência a todos os demais, é
justificada, e que nosso entendimento é correto? Não terá ele já sido
interpretado pela teologia escolástica, e num sentido que aqui consideramos
errôneo?
Para todas essas questões a resposta é que, mesmo
que os Padres não tenham utilizado esse termos como tal, ele continua a ser
para nós o mais adequado para redescobrir o sentido dessa experiência
fundamental da qual dão testemunho seus textos, à qual todos – explícita ou
implicitamente – se referem, e que é a única coisa que, em última instância,
interessa aos Padres. Pois é essa palavra, ou antes o sentido que ela adquire
mais e mais hoje em dia, que constitui a melhor, senão a única ponte entre, de
um lado, a experiência e a visão de mundo dos Padres e. de outro, as mais
profundas aspirações, dúvidas e confusões de nossa época, seja ela rotulada
como “moderna”, “tecnológica” ou “secular”. De fato, é esse termo “símbolo” que
emerge hoje como o foco, a preocupação central do pensamento tanto religioso
como secular, como a questão primária da qual todas as respostas dependem, como
o próprio “símbolo” da confusão e da busca humanas. Se hoje em dia ouvimos
tantas vezes a respeito da necessidade de “no vos símbolos”, se símbolo e
simbolismo são objetos de estudo e de curiosidade em círculos que de outra
forma nada têm em comum, é porque a experiência básica por trás de tudo isso
constitui um completo rompimento e uma quebra na “comunicação”, uma trágica
falta de “princípio unitivo” que tivesse o poder de reunir e manter unidas as esfaceladas
e atomizadas facetas da existência e do conhecimento humanos. E é esse
princípio unitivo, cuja ausência é sentida tão fortemente, e cuja busca domina
o pensamento moderno, que recebe o nome de símbolo. Suas conotações são
tato cognitivas como participatórias, pois sua função é a de reunificar o
conhecimento e a existência, unindo-os entre si. Podemos não saber o que é
esse símbolo, mas o que esperamos dele está muito mais próximo da ideia
e da experiência patrística do que da ideia e da experiência pós-patrística, e
é por isso que dizemos que se trata de uma ponte.
9
É evidente, por outro lado, que o cristão, por
definição, deseja conhecer. Pois não confessa ele que Cristo é tanto luz
como a vida do mundo, a plenitude de todo o conhecimento e o redentor de
toda a existência? Nos termos descritos e que são os próprios termos da busca
do mundo pelo “símbolo” – não é Ele o Símbolo de todos os símbolos? Não foi
dito pelo próprio Cristo que aquele que Nele crê já possui – desde aqui e agora
– a vida eterna? Mas então, por que a fé cristã não é nem vista nem aceita pelo
mundo como a realização de sua busca pelo símbolo, e por que ela parece
“irrelevante” para essa busca? É nesse ponto, nesse “foco” angustiante da
situação cristã atual, que a precedente análise adquire, esperamos, seu verdadeiro
significado. Pois ela mostra que, se o Cristianismo falhou em preencher sua
função simbólica – a de ser o “princípio unitivo” – é porque o “símbolo” foi
quebrado, em primeiro lugar, pelos próprios cristãos. Como resultado desse
rompimento, o Cristianismo acabou por se mostrar hoje, ao menos ante os olhos
do mundo, como uma doutrina meramente intelectual, que por sua vez “desaba” sob
a pressão de um contexto intelectual inteiramente diferente – por um lado – ou,
por outro lado, como uma simples instituição religiosa que “desaba” também sob
o peso de seu próprio institucionalismo. E certamente não é o adjetivo
“sagrada” aposto a essa doutrina e a essa instituição que por si só será capaz
de superar a “falta de credibilidade” e transformar o Cristianismo no símbolo
que ele deixou de ser. Porque a questão é que “sagrado/a” jamais pode ser um
mero adjetivo, uma definição suficiente que garanta a autoridade ou a origem
divina de seja lá o que for. Se esse termo define alguma coisa é desde dentro,
não desde fora. Ele revela e manifesta o “mysterium tremendum” de que fala
Rudolf Otto, ou seja, um poder inerente que transcende o intelectualismo de uma
doutrina e o institucionalismo de uma instituição. E é esse “sagrado” – o poder
da epifania – que hoje tanta falta faz, seja à doutrina, seja à instituição, e
que faz falta, não por causa dos pecados e das limitações humanas, mas
precisamente devido a uma escolha deliberada: a rejeição e a dissolução do
símbolo como a estrutura fundamental da “doutrina” e da “instituição” cristãs.
A situação não é minimamente mitigada pelos muitos
cristãos “modernos”, mesmo teólogos, que se juntam aos demais clamando por
“novos símbolos”, e que pensam que o Cristianismo irá recuperar sua
“relevância” no mundo apenas se Cristo puder ser mostrado como o “símbolo”
disso ou daquilo, como a “ilustração” de uma ideologia, a “imagem” e a
“personificação” de uma atitude. Eles permanecem irremediavelmente sem entender
que para que Cristo seja o “símbolo” de qualquer coisa no mundo, o próprio
mundo tem que ser, em primeiro lugar, conhecido, visto e experimentado como “símbolo”
de Deus, como a epifania de Sua santidade, Seu poder e Sua glória – que, em
outros termos, não é “Cristo” ou “Deus” que precisa ser explicado em termos
desse mundo e de suas necessidades passageiras, de forma a se tornarem seu “símbolo”,
mas, ao contrário, é Deus e apenas Deus que fez desse mundo Seu símbolo, que
realizou esse símbolo em Cristo e que irá consumá-lo em Seu eterno Reino. Quando
esse mundo é desprovido desse símbolo ele se transforma em caos e destruição,
ídolo e erro, e está condenado a desaparecer, pois a própria natureza do seu “esquema”
(imagem, forma) é a de “passar[5]”.
Transformar Cristo no símbolo desse mundo passageiro é o cúmulo da loucura e da
cegueira, pois Ele veio para realizar exatamente o contrário disso – ou seja, para
salvar o mundo restaurando-o como o “símbolo” de Deus, como fome e sede de realização
em Deus, como “signo” de, e passagem para Seu Reino. E Ele o salvou destruindo sua
autossuficiência e sua opacidade, revelando “nesse mundo” a Igreja – o símbolo
da “nova criação” e o sacramento do “mundo por vir”.
E se os cristãos realmente desejam, como declaram e
de fato deveriam, servir o mundo, trazer de volta a ele o “símbolo” que tão
desesperadamente ele busca, eles só poderão adquiri-lo se eles próprios
redescobrirem esse símbolo, e se o redescobrirem aonde ele sempre esteve – pela
vontade e a instituição divina – na Igreja. Os Padres, ou a tradição, podem
auxiliar nessa redescoberta, podem purificar sua visão, “explicar” o modo como
isso deve ser feito; mas eles não podem ser essa redescoberta em si. E, assim,
a questão última permanece: onde e como ele pode ser adquirido?
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A resposta da teologia Ortodoxa, desde que ela
superou seu “cativeiro Ocidental”, é: na vida litúrgica intacta da Igreja, na
tradição sacramental que, ao menos no Oriente, não foi alterada
significativamente pelas buscas de uma teologia alienada. Já apontamos antes
que o erro fatal do racionalismo pós-patrístico consistiu no isolamento do
sacramento em relação à liturgia como expressão total da vida e fé da Igreja. Ele
significou, de fato, o isolamento do sacramento em relação ao símbolo, isso é,
dessa conexão e comunicação com a totalidade da realidade que se realiza no
sacramento. Ao se tornar um “meio de graça” fechado e contido em si mesmo, uma
gota de realidade num mar de símbolos, o sacramento despojou a liturgia de sua
função própria – a de conectar o sacramento com a Igreja, o mundo e o Reino,
ou, em outras palavras, com os conteúdos e dimensões eclesiológicos, cósmicos e
escatológicos. A liturgia foi relegada à “piedade” que a adornou com milhares
de explicações e interpretações, agora “simbólicas” segundo o sentido “ilustrativo”
e nominal do termo. Às vezes vista “arqueologicamente” – como uma coleção de
ritos “antigos e coloridos” – ou “pictoricamente” – como uma espécie de suporte
audiovisual para a oração – ou ainda como irrelevante – para a teologia, a
missão e, em resumo, para a vida total da Igreja, ela conserva e provavelmente
continuará conservando seus fiéis – os cristãos com “mentes litúrgicas”. Mas para
a Igreja, no sentido amplo, seja para os “ativistas”, seja para os “gnósticos”,
ela já nada pode oferecer.
Redescobrir a unidade inicial e orgânica entre a liturgia
e o sacramento, a liturgia através do sacramento e o sacramento através da liturgia,
como uma realidade dinâmica na qual o símbolo – a liturgia – é sempre
realizado no sacramento – essa será a condição para a redescoberta da
perspectiva, da única perspectiva que poderá nos conduzir além do
beco-sem-saída de nossa situação presente. E, de fato, é a natureza litúrgica
do sacramento, assim como a natureza sacramental da liturgia – e, através
delas, da própria Igreja – que constituem as fontes vivas da síntese dinâmica da
qual os Padres são o testemunho eterno. Mas essa síntese não está só nos livros
e no passado. Ela está conosco – aqui e agora – se tivermos olhos para ver e
ouvidos para ouvir, se, deixando de lado os falsos problemas acumulados ao
longo dos séculos, pudermos alcançar a realidade da Igreja e entender uma vez mais
a “lex orandi” como fonte de sua “lex credendi”.
É nesse ponto que a tarefa real, implicada no tema
desse artigo, deve começar. Pois ela consiste em mostrar, com base num
estudo detalhado da “leitourgia”, da tradição litúrgica e da experiência
da Igreja, o verdadeiro conteúdo desse Símbolo que é a Igreja e que ela
realiza no Sacramento, realizando assim a si mesma. Mostrar e provar
isso é obviamente impossível dentro do escopo desse ensaio, que não é mais do
que uma introdução geral, uma indicação preliminar de uma perspectiva possível.
Concluindo, só podemos dizer que, se essa tarefa for levada a cabo, ela poderá
mostrar que a função própria da “leitourgia” sempre foi a de reunir, dentro
de um símbolo, os três níveis da vida e da fé cristãs: a Igreja, o mundo e o
Reino; que a própria Igreja é assim o sacramento no qual a vida “desse mundo”,
esfacelada mas ainda simbólica, é levada, em Cristo e por Cristo, à dimensão do
Reino de Deus, tornando-se o sacramento do mundo “por vir”, daquele que Deus,
desde a eternidade, preparou para aqueles que O amam, e onde tudo o que é
humano pode ser transfigurado pela graça, de tal modo que todas as coisas
possam se consumar em Deus; que, finalmente, é aqui, e somente aqui – no “mysterion”
da presença e da ação de Deus – que a Igreja sempre se torna aquilo que ela é:
o Corpo de Cristo e o Templo do Espírito Santo, o único Símbolo que
reúne – conduzindo e unindo a Deus o mundo, pela vida pela qual Ele deu Seu
Filho.
[1] H.
de Lubac, Corpus Mysticum: L’Eucharistie et l’Église ao Moyen Âge,
Paris, Aubier, 1944, pg. 258.
[2]
“Todas as criaturas sensíveis são signos das coisas sagradas”.
[3] Summa
Theologica, Quest. 60, Art. 2, 1.
[4]
Dom Vonier, La Clef de Ia Doctrine Eucharistique, trans. P. Roguet,
Paris, Les Editions du Cerf.
[5] I
Coríntios 7: 31.
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