Os ministros
cristãos não devem pregar suas opiniões pessoais, pelo menos não no púlpito.
Eles são encarregados e ordenados na Igreja precisamente para pregar a Palavra
de Deus. A eles são dados alguns termos fixos de referência – em especial, o
evangelho de Jesus Cristo – e se comprometem apenas com essa única e perene
mensagem. Espera-se deles que propaguem e sustentem “a fé que foi entregue aos
santos”. É claro que a Palavra de Deus deve ser pregada “eficazmente”. Vale
dizer que ela sempre deve ser expressa de modo convicto e a fim de conquistar a
lealdade de cada nova geração e grupo específico. Ela pode ser recolocada em
novas categorias, se as circunstâncias assim o exigirem. Mas, acima de tudo, a
identidade da mensagem deve ser preservada.
Cada ministro
deve se assegurar que está pregando o mesmo evangelho que foi entregue e que
não está introduzindo nenhum “novo evangelho” de sua própria autoria. A Palavra
de Deus não pode ser levianamente ajustada ou acomodada aos costumes efêmeros e
às atitudes de alguma época em particular, o que inclui nosso próprio tempo.
Infelizmente, estamos com frequência inclinados a medir a Palavra de Deus pela
nossa própria estatura, ao invés de tentarmos colocar nossas mentes à altura de
Cristo. A “mente moderna” ainda permanece sob o julgamento da Palavra de Deus.
O
homem moderno e a Escritura
Mas é
precisamente nesse ponto que começa a maior dificuldade. Muitos de nós perdemos
a integridade da mente escriturária, ainda que alguns cacos de fraseologia
bíblica tenham sido retidos. O homem moderno se queixa de que a verdade de Deus
é oferecida a ele num “idioma arcaico” – isso é, na linguagem da Bíblia – que
já não é o seu e que não pode ser empregado espontaneamente. Recentemente,
sugeriu-se que deveríamos “demitologizar” radicalmente as Escrituras, o que
implica substituir as antiquadas categorias dos Escritos Sagrados por algo mais
moderno. Não podemos fugir a essa questão: será a linguagem das Escrituras de
fato nada além de uma embalagem acidental e exterior, da qual alguma “ideia
eterna” deve ser destrinchada e desembaraçada, ou será ela um veículo perene da
mensagem divina, que foi entregue de uma vez por todas no tempo?
Corremos o
risco de perdermos a singularidade da Palavra de Deus no processo de sua contínua
“reinterpretação”. Mas como é possível interpretá-la, se perdemos a linguagem
original? Não será mais seguro inclinar nosso pensamento a hábitos mentais da
linguagem bíblica e reaprender o idioma da Bíblia? Nenhum homem pode receber o
evangelho, a menos que se arrependa – que ele “mude sua mente”. Pois na
linguagem do evangelho, “arrependimento” não significa simplesmente o
conhecimento e a contrição pelos pecados, mas precisamente uma “mudança de
mente” – uma mudança profunda nas atitudes mentais e emocionais do homem, uma
renovação do próprio “si” do homem, que começa pela autor renúncia e que se
realiza e é selada pelo Espírito Santo.
Vivemos hoje
numa época de caos e desintegração intelectual. Possivelmente o homem moderno
ainda não conformou sua mente, e a variedade de opiniões está além que qualquer
esperança de conciliação. Provavelmente o único farol que temos para nos guiar através
do nevoeiro mental de nossa época desesperançada seja justamente a “a fé que
foi entregue aos nossos santos”, por obsoleto e arcaico que possa parecer o
idioma da igreja primitiva, julgada a partir de nossas normatizações efêmeras.
Pregar
o Credo
Então, o que
pregaremos nós? O que devemos pregar aos nossos contemporâneos, “em tempos como
os que correm”? Aqui não cabe hesitação: devemos pregar Jesus, o Jesus
crucificado e ressuscitado. Devemos pregar a todos aqueles a quem somos
chamados a dirigir a mensagem de salvação, tal como essa chegou a mim por
intermédio de uma tradição ininterrupta da Igreja Universal. Não devemos nos
isolar em nossa própria época. Em outras palavras, devemos pregar as “doutrinas
do Credo”.
Estou
plenamente consciente de que o Credo pode constituir uma pedra de tropeço para
muita gente de nossa geração. “O Credo é constituído por símbolos veneráveis,
como os vetustos estandartes nacionais que pendem das paredes de nossas igrejas
nacionais; mas nas guerras atuais da Igreja na Ásia, na África, na Europa e na
América, o Credo, quando compreendido, se torna tão útil como um machado de
guerra ou um arcabuz nas mãos de um soldado moderno”. Isso foi escrito há
poucos anos por um proeminente acadêmico Britânico, que é ao mesmo tempo um
ministro devoto. Provavelmente ele não escreveria a mesma coisa hoje. Mas ainda
existem muitos que fariam suas, de todo coração, essas palavras. Lembremo-nos,
entretanto, que o Credo original foi deliberadamente escriturário, e que é
precisamente por sua fraseologia escriturária que ele se torna difícil para o
homem moderno.
Assim é que
encaramos outra vez o mesmo problema: o que podemos oferecer no lugar da
Sagrada Escritura? Eu preferiria a linguagem da Tradição, não por algum
preguiçoso e crédulo “conservadorismo”, ou pela “obediência cega” a alguma
autoridade “exterior”, mas apenas porque não encontro fraseologia melhor. Estou
preparado para me expor ao preço inevitável de ser “antiquado” e
“fundamentalista”. E devo protestar, porque essa acusação é gratuita e errada.
Eu conservo e mantenho as “doutrinas do Credo” conscientemente, e de todo coração,
porque pela fé eu entendi sua perene adequação e relevância em todas as épocas
e em todas as situações, o que incluem os “nossos tempos”. E acredito que são
precisamente as “doutrinas do Credo” que podem capacitar um geração desesperançada
como a nossa a reconquistar a coragem e a visão Cristãs.
A
Tradição vive
“A Igreja não é
nem um museu em que se depositam coisas mortas, nem uma sociedade de pesquisas”.
Esses depósitos estão vivos – depositum juvenescens, para usarmos a frase
de Santo Irineu. O Credo não é uma relíquia do passado, mas a “espada do
Espírito”. A reconversão do mundo ao Cristianismo, é isso que devemos pregar em
nossos dias. Essa é a única maneira de superar o impasse ao qual o mundo foi
conduzido pelos erros dos Cristãos, para que ele possa se tornar Cristão
verdadeiramente. Obviamente, a doutrina Cristã não responde diretamente a
nenhuma questão nos campos da política e da economia. Tampouco o faz o
evangelho de Cristo. E ainda assim seu impacto sobre todo o curso da história
humana foi enorme. O reconhecimento da dignidade humana, da misericórdia e da
justiça tem suas raízes no evangelho. Um novo mundo só pode ser construído por
um novo homem.
O
que significa a Calcedônia
“E se fez
homem”. Qual é o significado último dessa afirmação do Credo? Ou, em outras
palavras, quem foi Jesus, Cristo e Senhor? O que significa, na linguagem do Concílio
da Calcedônia, que o mesmo Jesus é “prefeito homem” e “perfeito Deus”, ainda
que numa só e única personalidade? O “homem moderno” costuma ser muito crítico
em relação a essa definição da Calcedônia. Ele se recusa a atribuir qualquer
sentido a ela. As “imagens” do Credo não são para ele mais do que trechos de
poesia, se tanto. Creio que toda essa perspectiva está errada. A “definição” de
Calcedônia não consiste numa afirmação metafísica, e jamais pretendeu ser
tratada como tal. Tampouco o mistério da Encarnação é apenas um “milagre
metafísico”. A fórmula de Calcedônia é uma afirmação de fé, e assim ela não
pode ser entendida quando retirada da experiência total da Igreja. De fato, ela
é uma “afirmação existencial”.
A fórmula de
Calcedônia é como se fosse um contorno intelectual de um mistério que precisa
ser apreendido pela fé. Nosso Redentor não é um homem, mas é o próprio Deus.
Aqui reside a ênfase existencial da afirmação. Nosso Redentor é aquele que
“desceu” e que, ao “se fazer homem”, se identificou com os homens numa comunhão
de vida e natureza verdadeiramente humanas. Não apenas a iniciativa foi divina,
como o Guia de nossa Salvação era uma Pessoa divina. A plenitude da natureza
humana de Cristo significa simplesmente a concordância e a verdade de sua
identificação redentora. Deus penetrou na história humana e se tornou uma
pessoa histórica.
Isso soa
paradoxal. E, de fato, existe um mistério: “Sem maior controvérsia é o mistério
da divindade: Deus manifestou-se na carne”. Mas esse mistério foi uma
revelação: o verdadeiro caráter de Deus foi revelado na Encarnação. Deus estava
de tal modo e tão intimamente envolvido com o destino humano (e em especial com
os destinos de cada um de seus “pequeninos”), que Ele interveio em pessoa no
caos e na miséria da vida perdida. Assim é que a divina providência não
constitui meramente um governo onipotente do universo a partir da augusta distância
da divina majestade, mas uma kenosis, uma auto humilhação do Deus da
glória. Existe uma relação pessoal entre Deus e o homem.
A
tragédia sob uma Nova Luz
Toda a tragédia
humana aparece agora sob uma nova luz. O mistério da Encarnação foi um mistério
do amor divino, da divina identificação com o homem perdido. E o clímax da
Encarnação foi a cruz. É o ponto de virada do destino humano. Mas o terrível mistério
da cruz só é compreensível a partir de uma perspectiva mais ampla de uma
Cristologia integral, ou seja, ap0enas se crermos que o Crucificado era
verdadeiramente “o Filho do Deus vivo”. A morte de Cristo significou a entrada
no mistério do homem morto (uma vez mais, em pessoa), uma descida ao Hades, e
isso implicou o fim da morte e a inauguração da vida eterna para o homem.
Existe uma
espantosa coerência no corpo da doutrina tradicional. Mas ela só pode ser entendida
e apreendida no contexto vivo da fé, vale dizer, de uma comunhão pessoal com o
Deus pessoal. Somente a fé torna convincentes as fórmulas, somente ela torna
vivas as fórmulas. “Parece paradoxal, embora seja essa a experiência de todos
os que acreditam nas coisas espirituais: ninguém tira pro9veito das Escrituras,
a menos que primeiro ame a Cristo”. Pois Cristo não é um texto, mas uma Pessoa
viva, e Ele habita seu corpo, a Igreja.
Um
novo Nestorianismo
Pode parecer ridículo
sugerir que é preciso pregar a doutrina de Calcedônia “em tempos como esses de
agora”. Mas é precisamente essa doutrina – a realidade da qual essa doutrina dá
testemunho – que pode mudar toda a perspectiva espiritual do homem moderno. Ela
traz a ele uma verdadeira liberdade. O homem não está só nesse mundo, e Deus se
interessa pessoalmente pelos eventos da história humana. Essa é uma implicação
imediata da concepção integral da Encarnação. É uma ilusão pensar que as
disputas Cristológicas do passado sejam irrelevantes para a situação
contemporânea. De fato, elas continuam se repetem nas controvérsias de nossa
época atual. O homem moderno, deliberada ou inconscientemente, é tentado por um
Nestorianismo extremo. Vale dizer, ele não leva a Encarnação a sério. Ele não
ousa acreditar que Cristo seja uma Pessoa divina. Ele quer ter um redentor
humano, apenas assistido por Deus. Ele está mais interessado na psicologia
humana do Redentor do que no mistério do amor divino. Porque, em última
instância, ele acredita otimistamente na dignidade humana.
Um
novo Monofisitismo
No outro extremo,
temos em nossos dias uma revivência das tendências “monofisitas” na teologia e
na religião, na qual o homem é reduzido a uma completa passividade e a ele só é
permitido ouvir e esperar. A tensão presente entre “liberalismo” e “nova
Ortodoxia” é de fato uma re-promulgação da velha luta Cristológica, num novo
patamar existencial e numa nova chave espiritual. O conflito jamais será
colocado ou resolvido no campo da teologia, a menos que se adquira uma visão
mais ampla.
Na Igreja
primitiva a pregação era enfaticamente teológica. Não se tratava de especulação
vazia. O próprio Novo Testamento é um livro teológico. Negligenciar a teologia
na instrução dada aos leigos nos tempos modernos é responsável tanto pela
decadência da religião pessoal, como pelo sentido de frustração que domina o
mundo moderno. O que precisamos numa Cristandade “em tempos como os de agora” é
precisamente uma teologia existencial de peso. De fato, tanto o clero como os
leigos têm fome de teologia. E, uma vez que nenhuma teologia costuma ser
pregada, eles adotam qualquer “ideologia estranha”, combinando-a com os
fragmentos de crenças tradicionais. Todo o apelo dos “evangelhos rivais” de
nossos dias está em que eles oferecem algum tipo de pseudoteologia, um sistema
de pseudodogmas. Eles são aceitos alegremente por aqueles que não encontram
teologia alguma no Cristianismo reduzido ao estilo “moderno”. Essa alternativa
existencial que muitos veem em nossos dias foi formulada com competência por um
teólogo inglês. “Dogma ou... morte”. A idade de um não-dogmatismo e pragmatismo
está encerrada. E assim os ministros da Igreja têm que voltar a pregar as
doutrinas e os dogmas – a Palavra de Deus.
A
crise moderna
A primeira
tarefa do pregador contemporâneo consiste na “reconstrução da fé”. Não se trata
absolutamente de um esforço intelectual. A fé é como o mapa do verdadeiro mundo
e não deve ser confundida com a realidade. O homem moderno esteve muito ocupado
com suas próprias ideias e convicções, suas próprias atitudes e reações. A
crise moderna precipitada pelo humanismo (um fato inegável) foi provocada pela
redescoberta do mundo real, aquele no qual acreditamos. A redescoberta da
Igreja é o aspecto mais decisivo desse novo realismo espiritual. A realidade já
não é escondida de nós pelo muro das nossas próprias ideias. Ela voltou a ser
acessível. Outra vez se percebe que a Igreja não é apenas uma sociedade de
crentes, mas o “Corpo de Cristo”. Essa é uma redescoberta de uma nova dimensão,
a redescoberta da presença contínua do Redentor divino no meio de seu rebanho
de fiéis. Essa descoberta lançou um jorro de luz na miséria de nossa existência
desintegrada num mundo completamente secularizado. Já muitos reconhecem que a
verdadeira solução dos problemas sociais reside, de alguma maneira, na reconstrução
da Igreja. “Em tempos como os de agora”, é preciso pregar o “Cristo total”.
Cristo e a Igreja – totus Christus, caput et corpus, para usarmos a
frase famosa de Santo Agostinho. Possivelmente esse tipo de pregação seja ainda
pouco comum, mas ela parece ser a única forma de pregar a Palavra de Deus
eficientemente num período de tristeza e desespero como o nosso.
A
relevância dos Padres
Eu costumo ter
uma estranha sensação. Quando eu leio os antigos clássicos da teologia Cristã,
os Padres da Igreja, eu acho que eles são mais relevantes para as preocupações
e problemas do nosso tempo do que os teólogos modernos. Os Padres estavam
lutando contra problemas existenciais, com aquelas revelações das questões eternas
descritas e reportadas nas Sagradas Escrituras. Eu arriscaria a sugestão de que
Santo Atanásio e Santo Agostinho são mais atuais do que mitos de nossos
teólogos contemporâneos. A razão para isso é muito simples: eles estavam
lidando com as coisas e não com os mapas, eles não estavam tão preocupados com
o que o homem pode acreditar, mas com aquilo que Deus fez pelo homem. Temos
que, “em tempos como os nossos”, alargar nossa perspectiva, aceitar os mestres
antigos, e tentar uma síntese da experiência Cristã voltada para nossa época.
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