“E
daí que alguns não acreditam?
A incredulidade deles torna sem efeito a fé em
Deus?”
(Romanos
3: 3)
Mensagem
e testemunho
O que é a
Bíblia? Será ela um livro como qualquer outro, voltado para o leitor casual, do
qual se espera captar de imediato seu sentido próprio? Não: antes, ela é um
livro sagrado, dirigido primariamente àqueles que creem. É claro, um livro sagrado
por ser lido por qualquer um, apenas como “literatura”. Mas isso é irrelevante
para nosso propósito imediato. Estamos aqui preocupados, não com a letra, mas
com a mensagem. Santo Hilário coloca isso enfaticamente: “A Escritura não é o
que se lê, mas o que se entende[1]”.
Existe alguma mensagem definida na Bíblia, tomada como um todo, como um só
livro? Novamente: a quem essa mensagem está endereçada se é que o está? A
indivíduos, dos quais se espera sejam capazes de entender o livro e expor sua
mensagem? Ou a uma comunidade, e a indivíduos apenas na medida em que forem
membros dessa comunidade?
Qualquer que
tenha sido a origem desse ou daquele documento incluído no livro, é óbvio que o
livro como um todo foi criação de uma comunidade, tanto na velha aliança como a
Igreja Cristã. De modo algum a Bíblia é uma coleção completa de escritos
históricos, legislativos e devocionais disponíveis, mas uma seleção de alguns
textos, autorizados e autenticados pelo uso (em primeiro lugar, litúrgico) da
comunidade e, finalmente, pela autoridade formal da Igreja. E havia propósitos
perfeitamente definidos a guiar e checar essa “seleção”. “E muitos outros
sinais fez Cristo na presença de seus discípulos, que não estão escritos nesse
livro. Esses foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus; e para que, crendo, tenhais a vida por intermédio de Seu Nome[2]”.
O mesmo se aplica, mais ou menos, a toda a Bíblia. Alguns textos foram
selecionados, editados e compilados, foram colocados juntos e entregues aos
crentes, ao povo, como uma versão autorizada da mensagem divina. A mensagem é
divina: ela proveio de Deus, é a Palavra de Deus. Mas é a comunidade que
reconhece a Palavra transmitida, e que testifica sua verdade. O caráter sagrado
da Bíblia é certificado pela fé. A Bíblia, enquanto livro, foi composto pela
comunidade e se destinava antes de tudo à sua edificação. O livro e a Igreja
não podem ser separados. O livro e a Promessa têm uma origem comum, e a
Promessa implica o povo. Palavra de Deus foi confiada na antiga Aliança[3]
ao Povo da Promessa e é a Igreja do Verbo Encarnado que mantém a mensagem do
Reino. A Bíblia é de fato a Palavra de Deus, mas o livro permanece pelo testemunho
da Igreja. O cânone da Bíblia foi obviamente estabelecido e autorizado pela
Igreja.
Não devemos
ignorar o cenário missionário do Novo Testamento. A “pregação apostólica”, que
foi incluída e reportada nele tem um propósito duplo: a edificação dos fiéis e
a conversão do mundo. Dessa forma, o Novo Testamento não é um livro comunitário
no mesmo e exclusivo sentido em que o era o Velho Testamento. Ele é também um
livro missionário. Mas nem por isso ele deixa de ser vedado aos estranhos. A
atitude de Tertuliano diante das Escrituras é típica. Ele não estava preparado
para discutir os tópicos controversos da fé com heréticos sobre o terreno das
Escrituras. As Escrituras pertencem à Igreja. O apelo herético a elas era
ilegal. Eles não tinham direito à propriedade de outrem. Esse foi seu principal
argumento no famoso tratado De praescriptione haereticorum. Um descrente
não pode ter acesso à mensagem, simplesmente pelo fato de não a ter “recebido”.
Para ele, não há “mensagem” na Bíblia.
Não foi por
acidente que tão diversa antologia de textos, compostos em diferentes datas e
por vários escritores, chegou a ser vista como um único livro. Ta bíblia
é evidentemente plural, mas a Bíblia é enfaticamente singular. As
escrituras são, de fato, uma única Santa Escritura, um único livro sagrado.
Existe um tema principal e uma mensagem principal que perpassa toda a história.
Pois existe uma história. Ou, mais ainda, a própria Bíblia é essa história, a
história dos assuntos de Deus com seu povo escolhido. A Bíblia reporta em
primeiro lugar as ações e os poderosos feitos de Deus. O processo foi iniciado
por Deus. Existe um começo e um fim, bem como um propósito. Existe um ponto de
partida: o fiat original e divino – “no princípio[4]”.
E haverá ainda um fim: “Vem, Senhor![5]”.
Existe uma única história, composta do Gênesis ao Apocalipse. E essa história é
história. Existe um processo que se intercala entre esses dois pontos extremos.
E esse processo possui uma direção definida. Existe uma meta final, uma consumação
última que é esperada. Cada momento em particular está relacionado aos dois
extremos e possui, assim, seu lugar próprio e único dentro do todo. Assim é que
nenhum momento pode ser entendido, senão no contexto e na perspectiva totais.
Deus falou “em
tempos diversos e de diversas maneiras[6]”.
Ele se revelou através das eras, não uma vez, mas constantemente, e novamente,
e novamente. Ele conduzia seu povo de verdade em verdade. Houve estágios em sua
revelação: per incrementa. Essa diversidade e variedade não podem ser
ignoradas ou desprezadas. E sempre foi o mesmo Deus, e sua mensagem suprema e
definitiva foi sempre a mesma. É a identidade dessa mensagem que confere aos
variados textos sua real unidade, apesar da variedade de estilos. Diferentes
versões foram colocadas no livro tal como eram. A Igreja resistiu a todas as
tentativas de substituir os quatro Evangelhos por um único evangelho sintético,
de transformar o Tetraevangelion num Diatessaron (contra o qual
lutou Anto Agostinho). Esses quatro Evangelhos asseguram a unidade da mensagem
suficientemente bem, e talvez de forma mais concreta do que qualquer outra
compilação pudesse realizar.
A Bíblia é um
livro sobre Deus. Mas o Deus da Bíblia não é um Deus absconditus, mas um
Deus revelatus. Deus se manifesta e se revela. Ele intervém na vida
humana. E a Bíblia não constitui meramente um relato humano dessas intervenções
e feitos divinos,. Ela é uma espécie de divina intervenção em si mesma. Os
feitos de Deus constituem por si sós uma mensagem. Assim sendo, não é preciso
sair do tempo ou da história para encontrar com Deus. Pois Deus se encontra com
o homem na história, isso é, no elemento humano, no meio da existência diária
do homem. A história pertence a Deus, e Deus penetra na história. A Bíblia é
intrinsecamente histórica: ela constitui um relato dos atos divinos, não tanto
uma apresentação dos eternos mistérios de Deus, mistérios esses que estão acessíveis
apenas através da mediação histórica. “Nenhum homem viu a Deus, em tempo algum;
somente o Filho Unigênito, que está no seio de Deus, O revelou[7]”.
E O revelou penetrando na história, em sua santa encarnação. Assim é que a
estrutura histórica da revelação não é algo que se possa passar sem. Não há
necessidade de se abstrair a verdade revelada a partir da estrutura dentro da
qual ela aconteceu. Ao contrário, tal abstração teria abolido a própria verdade.
Pois a Verdade não é uma ideia, mas uma pessoa, o Senhor Encarnado.
Na Bíblia
ficamos chocados com a relação íntima entre Deus e o homem, entre o homem e
Deus. É a intimidade da Aliança, uma intimidade de eleição e adoção. E essa
intimidade culmina na Encarnação. “Deus enviou Seu Filho, nascido de uma
mulher, nascido sob a lei[8]”.
Na Bíblia vemos não só a Deus, mas também o homem. Ela é a revelação de Deus,
mas o que é revelado, na verdade, é a preocupação de Deus com o homem. Deus se
revela ao homem, ele “aparece” diante dele, “fala” e conversa com ele de modo a
revelar-lhe o significado oculto de sua própria existência e o propósito último
de sua vida. Nas Escrituras vemos a Deus se revelando ao homem, e vemos o homem
encontrar a Deus, e não apenas ouvindo Sua voz, mas respondendo-Lhe também. Ouvimos
na Bíblia não apenas a voz de Deus, mas também a voz do homem respondendo a Ele
– em palavras de oração, de ação de graças, de adoração, de temor e de amor,
tristeza e contrição, exultação, esperança e desespero. É como se houvesse dois
sócios na Aliança, Deus e o homem, e que os dois vieram juntos, no mistério do
verdadeiro encontro divino-humano, descrito e repostado na história da Aliança.
A resposta humana está integrada ao mistério da Palavra de Deus. Não se trata
de um monólogo divino, mas de um diálogo em que ambos falam, Deus e o homem.
Mas as preces e invocações do salmista em adoração consistem, não obstante, em
“palavra de Deus”. Deus quer, espera e demanda a pergunta e a resposta do
homem. É por isso que Ele se revela ao homem e fala com ele. É como se
esperasse que o homem converse com Ele. Ele estabeleceu Sua Aliança com os
filhos dos homens. Mesmo assim, toda essa intimidade não compromete a divina
soberania e transcendência. Deus habita “na luz inacessível[9]”.
Essa luz, entretanto, “iluminou todos os homens e desceu ao mundo[10]”.
É nisso que consiste o mistério, o “paradoxo” da revelação.
A revelação é a
história da Aliança. A revelação reportada – a Sagrada Escritura – é assim,
acima de tudo, história. A lei e os profetas, os salmos e as profecias, tudo se
inclui aí, como que entretecidos na rede histórica viva. A revelação não é
simplesmente um sistema de oráculos divinos. Ela consiste basicamente num
sistema de feitos divinos; podemos dizer que a revelação é o caminho de Deus na
história. E o clímax foi alcançado quando o próprio Deus penetrou na história,
e de uma vez para sempre: quando o Verbo de Deus se encarnou e “se fez homem”.
Por outro lado, o livro da revelação é também um livro sobre o destino do
homem. Em primeiro lugar, trata-se de um livro que narra a criação, a queda e a
salvação do homem. É a história da salvação, e é assim que o homem pertence
organicamente à história. Ela mostra o homem em sua obediência e em sua
obstinada rebeldia, na sua queda e na sua restauração. E todo o destino do
homem é condensado e exemplificado no destino de Israel, o velho e o novo, o
povo escolhido por Deus, o povo que é propriedade de Deus. O fato da eleição é
aqui de importância fundamental. Um povo foi eleito, colocado à parte das
demais nações, constituído como um oásis sagrado no meio da desordem humana.
Somente com um povo sobre a terra poderia Deus estabelecer Sua Aliança e
conceder Sua própria lei sagrada. Aqui foi criado um sacerdócio único, embora
provisório. Somente nessa nação surgiram verdadeiros profetas, que falaram
palavras inspiradas pelo Espírito de Deus. Isso constituiu-se num centro
sagrado, embora oculto, do mundo inteiro, um oásis concedido pela misericórdia
de Deus, em meio a um mundo decaído, pecaminoso, perdido e sem remissão. Tudo
isso não constitui a letra, mas o próprio coração da mensagem bíblica. E tudo
isso veio de Deus, sem nenhum mérito ou conquista por parte do homem. E tudo
isso veio para a salvação do homem, “por nós homens e para nossa salvação”.
Todos esses privilégios concedidos ao velho Israel estavam subordinados ao
propósito último, o da salvação universal. “Pois a salvação vem dos judeus”. O
propósito de salvação é realmente universal, mas se realiza sempre por meio da
separação, da seleção ou da exclusão. No meio da queda e ruína do homem foi
erigido um oásis por Deus. A Igreja é também um oásis, separado, embora não
tirado fora do mundo. Pois, mais uma vez, esse oásis não consiste apenas num
refúgio ou num abrigo, mas antes numa cidadela, na vanguarda de Deus.
Existe um
centro na história bíblica, um ponto crucial na linha dos acontecimentos
temporais. Existe um novo começo dentro do processo, o qual, no entanto, não o
corta ou divide em duas partes, mas que, ao contrário, lhe fornece sua coesão e
unidade últimas. A própria distinção entre os dois Testamentos pertence à
unidade da revelação bíblica. Os dois Testamentos devem ser cuidadosamente
distinguidos, jamais confundidos. Ainda assim eles estão ligados um ao outro,
não apenas como dois sistemas, mas, basicamente, na pessoa de Cristo. Jesus
Cristo pertence a ambos. Ele é a plenitude da velha Aliança e, ao mesmo tempo
em que a realiza, “a Lei e os Profetas”, Ele inaugura o novo, e assim se torna
a plenitude de ambos, vale dizer, do todo. Ele é o centro absoluto da Bíblia,
exatamente por ser o princípio e o fim. E, de modo inesperado, essa misteriosa
identidade do início, do meio e do fim, ao invés de destruir a realidade existencial
do tempo, confere ao processo do tempo sua realidade legítima e seu pleno
significado. Não existem acontecimentos passados, mas eventos e conquistas, e
novas coisas vêm à existência, coisas que nunca aconteceram antes. “Contemplai,
pois Eu tornei novas todas as coisas[11]”.
Em última
instância, o Velho Testamento deve ser considerado como “o livro da genealogia
de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão[12]”.
Esse foi o período de promessas e expectativas, o tempo das alianças e das
profecias. E não apenas o profetas profetizaram, como também os acontecimentos
eram profecias. Toda a história era profética ou “típica”, um sinal profético
sugerindo um movimento em direção a uma consumação. Agora, termina o tempo da espera.
A promessa se realizou. O Senhor veio. E Ele veio habitar em meio ao seu povo
para sempre. A história da carne e do sangue se encerra. Abre-se a história do
Espírito: “A graça e a verdade vieram através de Jesus Cristo[13]”.
Mas tratava-se de um cumprimento, não da destruição do velho: Vetus
Testamentum in Novo patet, “o Velho Testamento se estende ao Novo”. E patet
significa precisamente: se revela, se abre, se realiza. Assim, os livros
dos Hebreus permanecem sagrados, mesmo para o novo Israel de Cristo – eles não
devem ser postos de lado ou ignorados.
Eles ainda nos contam a história da salvação, Magnalia Dei. Eles
ainda prestam testemunho de Cristo. Eles devem ser lidos na Igreja como livros
de história sagrada, não transformados numa coleção de textos de prova ou de
instâncias teológicas (loci theologici), nem em um livro de parábolas.
As profecias se cumpriram e a lei foi superada pela graça. Mas nada foi
ultrapassado. Na história sagrada o “passado” não significa simplesmente algo
que “passou”, ou que “foi”, mas basicamente algo que se realizou e se
plenificou. “Plenitude” é a categoria básica da revelação. Aquilo que se tornou
sagrado permanece consagrado e santo para sempre. Ele possui o selo do
Espírito. E o Espírito sopra ainda nas palavras que um dia foram inspiradas por
Ele. Talvez seja verdade que para a Igreja e para nós, hoje o Antigo Testamento
não passe de um livro, apenas porque a Lei e os Profetas foram superados pelo
Evangelho. O Novo Testamento é obviamente mais do que um livro. Nós mesmo
pertencemos ao Novo Testamento, somos o povo da Nova Aliança. Por essa razão é
precisamente no Velho Testamento que aprendemos a revelação primariamente como
Verbo: somos testemunhas de que o Espírito “falou pelos Profetas”. Pois no Novo
testamento Deus falou através de Seu Filho, e somos chamados não apenas a
ouvir, como também a ver. “Isso que vimos e ouvimos vos anunciamos[14]”.
E, mais do que isso, somos chamados a estar “em Cristo”.
A plenitude da
revelação é Cristo Jesus. E o Novo Testamento é tão histórico como o Antigo: a
história do Evangelho do Verbo Encarnado e o começo da história da Igreja,
assim como a profecia apocalíptica. O Evangelho é história. Eventos históricos
são a fonte e a base de toda fé e esperança Cristã. A base do Novo Testamento
está em fatos, acontecimentos, feitos – não só em ensinamentos, mandamentos ou
palavras. Desde o começo, desde o próprio dia do Pentecostes, quando São Pedro,
como testemunha ocular (“...somos todos testemunhas disso”, em Atos 2: 32 – martyres),
testemunhou a plenitude da salvação do Senhor Ressuscitado, que a pregação
apostólica adquiriu um caráter enfaticamente histórico. É sobre o testemunho histórico
que a Igreja se mantém. Também o Credo possui uma estrutura histórica e se
refere a acontecimentos. Uma vez mais, trata-se de história sagrada. O mistério
de Cristo está precisamente em que “nele habita de forma corporal a plenitude
da Divindade[15]”.
Esse mistério não pode ser compreendido apenas dentro do plano terrestre, pois
há nele outra dimensão também. Mas os limites históricos não são obliterados
nem ofuscados: os elementos históricos podem ser vistos claramente na imagem
sagrada. A pegação apostólica sempre consistiu numa narrativa, numa narrativa
daquilo que realmente aconteceu, hic et nunc. Mas o que aconteceu era
definitivo e novo: “O Verbo se fez carne[16]”.
Naturalmente, a Encarnação, a Ressurreição, a Ascensão são fatos históricos,
não exatamente no mesmo sentido ou no mesmo nível dos acontecimentos de nossa
vida cotidiana. Mas nem por isso eles deixam de ser históricos – eles foram
plenamente realizados. Obviamente eles não podem ser inteiramente constatados,
a não ser pela fé. E eles não devem ser tomados fora de seu contexto histórico.
Somente a fé descobre uma nova dimensão, apreende o datum histórico em
toda sua profundidade, em sua plena e definitiva realidade. Os Evangelistas e
os Apóstolos não eram cronistas. Sua missão não era a de reportar por completo
tudo o que Jesus fez, dia após dia, ano após ano. Eles descreveram Sua vida e
relataram Suas obras, de modo a nos dar Sua imagem: uma imagem histórica, ainda
que divina. Não se tratava de um retrato, mas de um ícone – e, certamente, um
ícone histórico, uma imagem do Senhor Encarnado. A fé não criou um novo valor:
ela apenas descortinou um valor que já era inerente. A fé é, em si, uma espécie
de visão, “a evidência das coisas não vistas[17]”.
O “invisível” não é menos real do que o “visível” – de fato, ele é mais real.
“Pois ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, se não for pelo Espírito Santo[18]”.
Isso significa que o próprio Evangelho só pode ser apreendido em sua plenitude
e profundidade através de uma experiência espiritual. Mas o que se descobre
pela fé é dado em perfeita verdade. Os Evangelhos foram escritos dentro da
Igreja. Nesse sentido, eles são testemunhos da Igreja. Eles são relatos da
experiência e da fé da Igreja. Mas eles não deixam de ser narrativas
históricas, e dão testemunho daquilo que realmente aconteceu, no tempo e no
espaço. Se “pela fé” descobrimos muito mais do que o que detectamos “pelos
sentidos”, isso apenas revela a grande inadequação dos “sentidos” para o
conhecimento de assuntos espirituais. Pois o que realmente aconteceu foi o
feito extraordinário do Deus Redentor, sua intervenção definitiva na corrente
dos eventos históricos. Não se pode separar o “fato” do “sentido” – ambos são dados
como realidade.
Revelação encontra-se preservada na Igreja.
Dessa forma, a Igreja é propriamente e em primeiro lugar a intérprete da
revelação. Ela é protegida e reforçada por palavras; protegida, mas não
esgotada. As palavras humanas não passam de signos. O testemunho do Espírito
Santo reanima das palavras escritas. Não estamos falando aqui da iluminação
ocasional de indivíduos pelo Espírito Santo, mas basicamente sobre a
assistência permanente dada pelo Espírito à Igreja, que é “o pilar e o baluarte
da verdade[19]”.
As Escrituras precisam ser interpretadas. Não no fraseado, mas no núcleo, o
sentido. E a Igreja é a testemunha permanente e divinamente escolhida dessa
verdade e do sentido pleno dessa mensagem, simplesmente porque a própria Igreja
pertence a essa revelação, enquanto Corpo do Senhor Encarnado. A proclamação do
Evangelho, a pregação do Verbo de Deus, obviamente pertencem ao “ser” da
Igreja. A Igreja se mantém pelo seu testemunho. Mas esse testemunho não
constitui apenas uma referência ao passado, uma mera reminiscência, mas se
trata antes de uma redescoberta contínua da mensagem outrora entregue aos
santos e mantida desde sempre pela fé. Mais do que isso, a mensagem é
constantemente re-promulgada na vida da Igreja. O próprio Cristo está sempre
presente na Igreja, como Redentor e cabeça de Seu Corpo, e Ele continua Seu
ofício redentor na Igreja. A salvação não é somente anunciada e proclamada pela
Igreja, mas promulgada. A história sagrada continua. Os poderosos feitos de
Deus ainda se realizam. Eles não estão circunscritos ao passado: estão sempre
presentes e continuam na Igreja e, através da Igreja, no mundo. A Igreja é em
si parte da revelação – a história do “Cristo Total” e do Espírito Santo. O fim
definitivo da revelação, seu telos ou perfeição, ainda não chegou. E
apenas dentro da experiência da Igreja o Novo Testamento está plena e
verdadeiramente vivo. A história da Igreja é em si a história da redenção. A
verdade do livro é revelada e vindicada pelo crescimento desse Corpo.
História
e sistema
Devemos em
primeiro lugar admitir que a Bíblia é um livro difícil, um livro selado com
sete selos. E ela não se torna mais fácil com o passar do tempo. A principal
razão para isso não é pelo fato de o Livro ter sido escrito numa “língua
desconhecida”, ou que ele contenha “palavras secretas que o homem não pode
repetir”. Ao contrário, o entrave da Bíblia está em sua simplicidade radical:
os mistérios de Deus estão moldados na vida diária de homens comuns, e toda a história
parece ser inteiramente humana. Mesmo o Senhor Encarnado parece ser um homem
comum.
As Escrituras
são “inspiradas”, elas são a Palavra de Deus. O que é exatamente a inspiração,
é algo que não pode ser propriamente definido – existe aí um mistério. Trata-se
do mistério do encontro entre o divino e o humano. Não podemos entender
completamente de que maneira os “santos de Deus” escutam a Palavra de seu
Senhor, e de que modo eles conseguem articulá-las nas palavras de seu próprio
dialeto. Mas, mesmo na sua transmissão humana, trata-se da voz de Deus. Aqui
existe o milagre e o mistério da Bíblia, que consiste em que ela é a Palavra de
Deus em idioma humano. E, qualquer que seja o modo como entendamos a
inspiração, existe um fator que não deve ser desprezado. As Escrituras
transmitem e preservam com precisão a Palavra de Deus idioma do homem. De fato,
Deus falou ao homem, e quem estava ali era um homem para atender e perceber. Por
isso, o “antropomorfismo” é inerente ao fato. Não existe acomodação à
fragilidade humana. O ponto em questão está em que a linguagem humana não
precisa perder suas características para se tornar veículo da revelação divina.
Se quisermos que a Palavra de Deus soe claramente, nossa linguagem não deve ser
abandonada, só por ser humana. O humano não é varrido pela inspiração divina,
ele é apenas transfigurado. O “sobrenatural” não destrói o “natural”: hyper
physin não implica para physin. O idioma humano não trai nem rebaixa
o esplendor da revelação, nem tolhe o poder da Palavra de Deus. A Palavra de
Deus pode ser correta e adequadamente expressa em palavras humanas. A palavra
de Deus não se torna turva quando soa na língua dos homens. Pois o homem foi
criado à imagem e semelhança de Deus, e essa ligação “analógica” torna a
comunicação possível. E uma vez que Deus se dignou em falar ao homem, a própria
palavra humana adquiriu uma nova força e uma nova profundidade e se viu
transfigurada. O Espírito divino respira no organismo da fala humana. Por isso
é possível ao homem proferir as palavras de Deus, falar de Deus. A “teologia”
se torna possível – theologia, isso é logos peri theou. Estritamente
falando, a teologia só é possível através da revelação. Ela é a resposta humana
a Deus, que falou primeiro. É o testemunho que o homem dá a Deus que falou com
ele, cuja palavra ele ouviu, cujas palavras ele guardou e agora divulga e
repete. Certamente essa resposta nunca é completa. A teologia está sempre em
processo de formação. Sua base e seu ponto de apoio são sempre os mesmos: a
Palavra de Deus, a revelação. A teologia dá testemunho da revelação. Ela o faz
de diversas maneiras: em credos, dogmas, ritos sagrados e símbolos. Mas num
certo sentido a Escritura é em si a resposta primária, ou antes, a Escritura em
si é tanto a Palavra de Deus quanto a resposta humana. Existe sempre uma
interpretação humana a qualquer apresentação Escriturária da Palavra divina.
Ainda que seja sempre e inapelavelmente “condicionada pelas circunstâncias”. E
desde quando é possível ao homem escapar da condição humana?
A Igreja sintetizou a mensagem Escriturária no
Credo, e de muitas outras maneiras e métodos. A fé Cristã se desenvolveu ou
cresceu dentro de um sistema de crenças e convicções. Num sistema como esse a
estrutura interna da mensagem básica é claramente apresentada, e todos os
artigos específicos da fé são apresentados em sua mútua interdependência.
Obviamente, precisamos de um sistema, assim como precisamos de um mapa quando
viajamos. Mas os mapas se referem a lugares reais. E qualquer sistema doutrinal
deve estar relacionado com a revelação. É de grande importância o fato de que a
Igreja jamais pensou seu sistema dogmático como uma espécie de substituto das
Escrituras. Ambos se mantêm lado a lado: uma apresentação algo abstrata é
genérica da mensagem principal num Credo ou sistema, e documentos específicos referentes
às instâncias concretas da revelação. Podemos dizer que se trata de um sistema
e da própria história em si.
Aqui se levanta
um problema: como e em que medida pode a história ser encaixada num sistema?
Esse é o principal problema da hermenêutica teológica. Qual é o uso teológico
da Bíblia? Como podem os diversos testemunhos concretos, que cobrem milhares de
anos, ser usados para a construção de um único esquema? A Bíblia é de fato uma,
e ainda assim ela é uma coleção de diversos textos. Não podemos ignorar isso. A
solução depende em última instância de nossa concepção de história, de nossa
visão do tempo. A solução mais fácil seria se pudéssemos simplesmente passar
por cima da diversidade dos tempo, da duração do próprio processo. Essa
tentação apresentou-se à Igreja desde os primeiros tempos. Ela estava na raiz
de todas as interpretações alegóricas, desde Philo e o Pseudo-Barnabas até o renascimento
do alegorismo no período pós-Reformista. Essa foi uma tentação permanente para
os místicos. A Bíblia é considerada como um livro de parábolas sacras, escrita
numa linguagem simbólica própria, e o trabalho de exegese consiste em detectar
seu sentido oculto, detectar o Verbo eterno, que foi oculto de diversas
maneiras e sob diferentes véus. Nesse caso, a verdade histórica e a perspectiva
são irrelevantes. A concretude histórica não passa de uma moldura pictórica, de
uma imagem poética. O que se busca são os sentidos eternos. Toda da Bíblia
poderia ser reconstruída como um livro de exemplos edificantes, de símbolos
gloriosos, que apontassem para uma verdade supratemporal. Não é a verdade de
Deus sempre a mesma, idêntica e eterna? Nesse contexto, é perfeitamente natural
buscar no Velho Testamento as evidências de todas as crenças e convicções distintivamente
cristãs. Os dois Testamentos estão como que mesclados em um, supratemporal, e
suas marcas distintivas se esvanecem. Os perigos e atalhos dessa perspectiva
hermenêutica são muito evidentes para merecer uma refutação extensa. Mas o
único remédio contra essa tentação seria a restauração da percepção histórica.
A Bíblia é história, ela não é um sistema de crenças, e não deve ser utilizada
como uma Summa Theologiae. Ao mesmo tempo, não se trata da história de
uma crença humana, mas da história de uma revelação divina. Mas o problema
principal permanece irresolvido: para qual finalidade necessitamos, seja de um
sistema, seja da história? Por que razão e com que propósito o Cristianismo os
manteve sempre juntos? Mais uma vez, a resposta mais fácil a essa questão é a
menos satisfatória: podemos sugerir em primeiro lugar que as Escrituras são o
único relato autêntico da revelação, e que todo o resto não passa de
comentários a respeito. E que os comentários jamais podem ter a mesma
autoridade que o relato original. Existe alguma verdade nessa sugestão, mas a
verdadeira dificuldade que devemos enfrentar está em outra parte. Por que os
primeiros estágios da revelação não foram sobrepostos pelos últimos? Por que
ainda precisamos da lei e dos profetas mesmo na nova Aliança de Cristo, e, em
certa medida, no mesmo nível de autoridade que os Evangelhos e os demais textos
do Novo Testamento? Quero dizer, como capítulos do mesmo livro, como se
fossem. Pois, obviamente, eles estão incluídos no cânone das Escrituras,
não apenas como documentos históricos, não como capítulos dos estágios de uma
história que já passou. Isso se aplica particularmente ao Velho Testamento:
“Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João[20]”.
Por que mantemos ainda tanto a lei como os profetas, e em que sentido? Qual
pode ser o correto uso do Antigo Testamento na Igreja de Cristo?
Em primeiro
lugar, é preciso que o Velho Testamento tenha um uso histórico. E, mais uma
vez, essa história é uma história sagrada – não a história de convicções
humanas e de sua evolução, mas uma história dos formidáveis feitos de Deus. E
esses feitos não são irrupções desconectadas de Deus na vida humana. Existe aí
uma unidade e coesão íntimas. Eles guiam e conduzem o povo escolhido ao
propósito supremo de Deus – para Cristo. Assim sendo, num sentido, os primeiros
feitos de Deus estão refletidos, ou implicados, nos últimos. Existe uma continuidade
da ação divina, bem como uma identidade de objetivo e propósito. Essa
continuidade é a base daquilo que foi chamado de interpretação “tipológica”. A
terminologia patrística foi extremamente fluente a esse respeito. Mas sempre
houve uma clara distinção entre dois métodos e visões. A “alegoria” também foi
um método exegético. Um alegorista lida principalmente com textos, ele busca os
significados ocultos e últimos das passagens Escriturárias, nas sentenças e até
em palavras específicas, por trás e sob “a letra”. Ao contrário, a “tipologia”
não constitui uma exegese dos textos em si, mas uma interpretação dos
acontecimentos. Trata-se de um método histórico, e não meramente psicológico.
Trata-se de detectar a correspondência interna entre os próprios acontecimentos
nos dois Testamentos, estabelecida e antecipada. Um tipologista não procura
“paralelos” ou similaridades. E nem todos os acontecimentos do Velho Testamento
têm “correspondência” no Novo. Mas existem certos eventos básicos da antiga
Promessa que são “figurações” ou “tipos” de eventos básicos do Novo. Sua “correspondência”
é um desígnio divino: é como se fossem estágios de um processo único da
Providência redentora. Dessa maneira, a “tipologia” já era praticada por São
Paulo (sob o nome de “alegoria”: “...sendo essas coisas ditas
alegoricamente...”[21]).
Existe um mesmo propósito por trás de todas as poderosas intervenções de Deus,
que se revela plenamente em Cristo. Santo Agostinho coloca isso em termos
muitos claros: “Devemos buscar o mistério não tanto na palavra, mas no fato em
si”. E “o mistério” do Antigo Testamento era Cristo; não apenas no sentido em
que Moisés e os profetas “falaram” Dele, mas basicamente porque toda a corrente
da história sagrada estava divinamente orientada para Ele. E, nesse sentido,
Ele foi a realização de todas as profecias. Por essa razão, é somente à luz de
Cristo que o Antigo Testamento pode ser entendido e ter seus “mistérios”
revelados – de fato, eles foram revelados pela vinda Daquele “que haveria de
vir”. O verdadeiro sentido profético das profecias só é visto claramente, por
assim dizer, em retrospecto, depois de terem sido plenamente realizados. Uma
profecia que não é cumprida permanece obscura e enigmática (como as profecias
do Apocalipse, que apontam para o que ainda está por vir, para “o fim”). Mas
isso não significa que possamos simples e arbitrariamente atribuir um novo
significado ao antigo texto: o significado estava lá, embora não pudesse ser
visto claramente. Quando, por exemplo, identificamos, na Igreja, o Servo
Sofredor (no livro de Isaías) ao Cristo crucificado, não estamos simplesmente “aplicando”
uma visão do Velho Testamento a um acontecimento do Novo Testamento: o que
fazemos é detectar o significado da visão em si, embora esse significado possa
não ter sido identificado com clareza nos tempos que antecederam a Cristo. Mas
aquilo que antes fora uma visão (isso é, uma “antecipação”) se tornou um fato
histórico.
Santo Agostinho
sugeriu que os profetas falaram da Igreja com ainda mais clareza do que do
próprio Cristo, isso é, do Messias. Num certo sentido, isso é natural, pois a
Igreja sempre existiu. Israel, o povo escolhido, o povo da Aliança, era muito
mais uma Igreja do que uma nação como as demais “nações”. Ta ethne, nationes
ou gentes – esses termos familiares eram usados na Bíblia (e posteriormente)
precisamente para descrever os infiéis ou pagãos por contraste com a única
nação ou povo que era também (e fundamentalmente) a Igreja de Deus. A Lei foi
dada a Israel na sua condição de Igreja. Ela abarcava toda a vida do povo,
tanto a “temporal” quanto a “espiritual”, precisamente porque toda a existência
humana tinha que ser regulada por preceitos divinos. E a divisão da vida em
departamentos “temporal” e “espiritual” é, estritamente falando, precária. De
qualquer modo, Israel era uma comunidade de crentes divinamente constituída,
unida pela Lei de Deus, a verdadeira fé, ritos sagrados e hierarquia – e aqui
encontramos todos os elementos da definição tradicional de Igreja. A antiga
Promessa se realizou na nova, a Aliança foi reconstituída, e o antigo Israel
foi rejeitado, por causa de sua infidelidade: ele perdeu o dia de sua retribuição.
A única verdadeira continuação da velha Aliança estava na Igreja de Cristo (lembremo-nos
de que ambos os termos são de origem Hebraica: a Igreja é qahal e Cristo
significa Messiah). Ela é o verdadeiro Israel, kata pneuma. Nesse
sentido já São Justino rejeitava enfaticamente a ideia de que o Antigo
Testamento era uma ligação que unia a Igreja e a Sinagoga. Para ele o oposto
era verdadeiro. Todas as alegações Judaicas devem ser formalmente rejeitadas: o
Velho Testamento já não pertence aos Judeus, porque eles não acreditam em Jesus
Cristo. O Antigo Testamento pertence agora apenas à Igreja. Já ninguém pode reclamar
para si Moisés e os profetas, senão em nome de Jesus Cristo. Pois a Igreja é o
Novo Israel e a herdeira única das antigas promessas. Um novo e importante
princípio hermenêutico estava implicado nos rigorosos discursos dos primeiros
apologistas Cristãos. O Velho Testamento tinha que ser lido e interpretado como
um livro da Igreja. Um livro na Igreja, podemos acrescentar.
A lei foi
superada pela verdade e nela encontrou sua realização, e em seguida foi
ab-rogada. Ela já não precisava ser imposta aos novos convertidos. O Novo
Israel teria sua própria constituição. Essa parte do Velho Testamento tornou-se
antiquada. Ela mostrou ser basicamente “condicionada pelas circunstâncias” –
não tanto no sentido de uma relatividade histórica genérica, mas num sentido
providencial mais profundo. A nova situação redentora fora criada ou inaugurada
pelo Senhor, uma nova situação na perspectiva sagrada da salvação. Tudo o que
pertencera essencialmente ao estágio ou fase anterior agora perdia seu
significado, ou antes, mantinha seu sentido, mas apenas como prefiguração. Talvez
mesmo o Decálogo não escape a essa regra, e tenha sido sobrepujado pelo “novo
mandamento”. Agora o Velho Testamento só deve ser utilizado em relação com a
Igreja. Sob a antiga Aliança a Igreja estava restrita a uma nação. Na nova
Aliança todas as discriminações nacionais são enfaticamente abolidas: já não
existe distinção entre Judeu e Grego – todos são indiscriminadamente o mesmo
Cristo. Em outras palavras, já não se tem o direito de isolar alguns elementos
da velha Aliança, à parte de sua relação imediata com a vida da Igreja, e
colocá-los como com um padrão Escriturário para a vida temporal das nações. O
velho Israel era uma Igreja provisória, mas não um padrão de nação. Podemos
colocar a questão dessa maneira. Obviamente, podemos aprender muito sobre
justiça social na Bíblia – essa era uma parte da mensagem do Reino por vir.
Podemos aprender muito sobre a organização política, social e econômica
específica dos Judeus através das eras. Tudo isso pode ser de grande auxílio em
nossas discussões sociológicas. Ainda assim, será dificilmente permissível
detectar na Bíblia (em especial no Antigo Testamento) qualquer padrão ideal ou
permanente de organização política ou econômica, seja para o presente, seja
para qualquer outro tempo histórico. Podemos aprender muito sobre história
Hebraica. Isso não passará de uma lição de história, nunca de teologia. O fundamentalismo
Bíblico não funciona melhor em sociologia do que em todo o resto. A Bíblia não
constitui uma autoridade em ciência social, assim como não o é em astronomia. A
única lição sociológica que pode ser extraída da Bíblia é precisamente o fato
da Igreja, o Corpo de Cristo. Mas nenhuma referência Bíblica a assuntos
“temporais” pode ser vista como “evidência Escriturária”. Só existem “evidências Escriturárias” em
teologia. Isso não quer dizer que não existam orientações, quaisquer que sejam,
que possam ser encontradas ou buscadas na Bíblia. Em qualquer caso, essa
procura não consistirá num “uso teológico” da Bíblia. E talvez as lições da
antiga história Hebraica estejam no mesmo nível de quaisquer outras lições do
passado. É preciso distinguir cuidadosamente entre o que era permanente e o que
era provisório (ou “condicionado pelas circunstâncias”) na antiga Promessa
(começando por superar suas limitações nacionais). De outro modo, corremos o
risco de ignorar o que a nova Aliança tem de novo. Mesmo no Novo Testamento,
devemos estabelecer uma clara distinção entre os aspectos histórico e
profético. O verdadeiro tema de toda a Bíblia é Cristo e Sua Igreja, não as
nações e sociedades, nem os céus, nem a terra. O velho Israel era o “tipo” do
novo, isso é, da Igreja Universal, não de alguma nação particular ou ocasional.
A estrutura nacional da Igreja provisória foi desmontada pela universalidade da
salvação. Depois de Cristo, existe apenas uma única “nação”, a nação Cristã, genus
Christianum – na antiga expressão, tertium genus – isso é,
precisamente a Igreja, o único povo de Deus, e nenhuma outra descrição nacional
pode reivindicar doravante a aliança Escriturária: as diferenças nacionais
pertencem à ordem da natureza e são irrelevantes na ordem da graça.
A Bíblia é
completa. Mas a história sagrada ainda não está completa. O próprio cânone
Bíblico inclui o profético Livro do Apocalipse. Existe um Reino por vir, a
consumação definitiva, e é assim que existem também profecias no Novo
Testamento. Toda a existência da Igreja é, num certo sentido, profética. Mas o
futuro ganhou um novo significado post Christum natum. A tensão entre
presente e futuro tem na Igreja de Cristo um sentido e um caráter diferentes do
que na antiga Promessa. Pois Cristo já não está apenas no futuro, mas também no
passado e, portanto, no presente. Essa perspectiva escatológica é de
importância fundamental para o correto entendimento das Escrituras. Todos os
“princípios” e “regras” hermenêuticas devem ser repensadas e reexaminadas a
partir dessa perspectiva escatológica. Mas existem dois grandes perigos a
evitar. De um lado, não se pode estabelecer nenhuma analogia estrita entre os
dois Testamentos, pois os contextos das duas Alianças são profundamente
diferentes: elas são relatadas como sendo “a figura” e “a verdade”. É uma ideia
tradicional da exegese patrística que o Verbo de Deus revela a Si próprio continuamente
e de diversas maneiras ao longo de todo o Antigo Testamento. Mas todas essas
teofanias do Antigo não devem ser colocadas no mesmo nível ou na mesma dimensão
da encarnação do Verbo, para que o evento da redenção não se dissolva numa
sombra alegórica. Um “tipo” não passa de uma “sombra” ou imagem. No Novo
Testamento tempos o fato em si. Assim, o Novo Testamento é algo mais do que a mera
“figura” do Reino por vir. Ele constitui essencialmente o domínio da
realização. Por outro lado, é prematuro falar em “escatologia realizada”,
simplesmente porque o próprio es chaton ainda não se realizou: a
história sagrada ainda não se completou. Podemos preferir a expressão: “a
escatologia inaugurada”. Ela traduz ade3quadamente o diagnóstico Bíblico – o
ponto crucial da revelação se encontra desde o passado. O “definitivo” (ou o
“novo”) já penetrou na história, embora o estágio final ainda não tenha sido
alcançado. Já não estamos num mundo só de sinais, mas num mundo de realidades,
e sob o sinal da Cruz. O Reino já foi inaugurado, mas não inteiramente
realizado. O cânone fixo da própria Escritura simboliza uma realização. A
Bíblia se encerra exatamente porque o Verbo de Deus se encarnou. No termo de
referência definitivo já não é um livro, mas uma pessoa viva. Mas a Bíblia
ainda detém a autoridade – não apenas como relato do passado, mas como livro
profético, cheio de alusões que apontam para o futuro, para o final em si.
A história
sagrada da redenção continua. Ela é agora a história da Igreja, que é o Corpo
de Cristo. O Espírito Consolador já habita a Igreja. Nenhum sistema completo de
fé Cristã é possível ainda, porque a Igreja ainda é peregrina. E a Bíblia é
conservada pela Igreja como um livro de história, para lembrar aos fiéis da
natureza dinâmica da revelação divina, “em diferentes épocas e de diversas
maneiras”.
[1] Scrioptura
est non in legendo, sed in intelligendo.
[2] João
20: 30-31.
[3] Romanos
3: 2.
[4]
Gênesis 1: 1.
[5]
Apocalipse 22: 20.
[6]
Hebreus 1: 1.
[7]
João 1: 18.
[8]
Gálatas 4: 4.
[9] I
Timóteo 6: 16.
[10]
João 1: 9.
[11]
Apocalipse 21: 5.
[12]
Mateus 1: 1.
[13]
João 1: 17.
[14] I
João 1: 3.
[15]
Colossenses 2: 9.
[16]
João 1: 14.
[17]
Hebreus 11: 1.
[18] I
Coríntios 12: 3.
[19] I
Timóteo 3: 15.
[20]
Mateus 11: 13.
[21] Gálatas
4: 24. Referindo-se a Sara e Agar: “Sendo essas coisas ditas alegoricamente: as
duas mulheres representam as duas alianças”.
obrigado
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