A dialética entre o Divino e o Humano no pensamento
Alemão
O significado de Nietsche
A dialética da Doutrina da Trindade
O tema do Deus-humanidade é um tema fundamental para o Cristianismo.
Eu preferia não dizer Deus-humanidade, uma expressão favorita de Vladimir
Soloviev, mas Deus-homem. O Cristianismo é antropocêntrico; ele proclama a
libertação do homem do poder das forças cósmicas e dos espíritos. Ele pressupõe
a crença não apenas em Deus, mas também no homem, e isso o distingue do
monoteísmo abstrato do Judaísmo e do Islamismo, e também do Brahmanismo. Devemos
dizer enfaticamente que o Cristianismo não é uma religião monística nem
monárquica; ele é uma religião do Deus-homem, e é trinitário. Mas a dialética
vital entre o divino e o humano se mostrou tão complexa que o humano foi
frequentemente reduzido na história do Cristianismo. No destino do Deus-homem
na história, houve um tempo em que o divino engoliu o humano; em outro tempo, o
humano engolfou o divino. O próprio dogma da humanidade divina de Jesus Cristo
expressa o mistério do Deus-homem, da união entre as duas naturezas, sem
confusão ou identidade. Trata-se de uma expressão simbólica do mistério. Mas a
tendência monárquica e monística sempre existiu no Cristianismo, e houve
ocasiões em que ela predominou.
Em meu livro anterior, The Meaning of Creativity, eu disse que,
para corresponder ao dogma Cristológico, deverão haver uma nova antropologia,
uma Cristologia do homem. Mas isso só poderá ser revelado completamente no
futuro. Ainda não existe uma verdadeira antropologia Cristã. Dentro da
Patrística, São Gregório de NIssa chegou perto disso. Ele foi o maior filósofo
dentre os Doutores da Igreja, e se esforçou por elevar a dignidade do homem.
Mas ele teve poucos seguidores. Somente o Cristianismo ensina que Deus se
tornou homem. O abismo entre Deus e o homem foi superado. A humanidade de Deus
se revelou, não apenas o divino no homem, como também o humano em Deus. Se a
humildade de Cristo for entendida até o fim, é preciso reconhecer que a Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade é o Homem desde toda a eternidade, e que esse
mistério de modo algum indica um reconhecimento da identidade do homem para com
Deus, coisa que equivaleria a uma negação drasticamente racional do mistério.
Durante os primeiros séculos do Cristianismo, quando surgiram as
controvérsias dogmáticas e foram elaboradas as fórmulas dogmáticas, nas quais
os homens se puseram a expressar em símbolos os eventos do mundo espiritual,
desenvolveu-se também uma complexa dialética das relações entre o divino e o
humano. Tanto o surgimento quanto a condenação das heresias estão conectadas com
essa questão. Arianismo, monofisismo, monotelismo, nestorianismo – todas essas
foram heresias relacionadas ao tema do Deus-homem. As controvérsias foram
conduzidas em conexão com o problema Cristológico, ou seja, com o problema das
relações entre das duas naturezas em Cristo. Mas o problema real é mais extenso
e profundo: ela levanta a questão da relação entre o divino e o humano em
geral. Vamos conceder em que o problema Cristológico foi resolvido nos primeiros
séculos, e que uma fórmula que expressava a relação entre o divino e o humano
em Cristo foi encontrada, e colocada além do monismo e do dualismo. Mas em
nossa época – falo da época do Espírito – a questão se apresenta de outra
maneira. Pois o problema do homem está colocado com aguda urgência, desconhecida
até então. Trata-se de um problema que o período patrístico não conheceu nessa
forma, e as ideias a respeito do próprio Deus estão mudando, como um efeito da
mudança de nossas ideias sobre o homem.
A nova alma tem uma consciência da liberdade, da busca pela liberdade,
e, como as seduções e a escravidão já não se encontram nela, com uma agudeza e
numa profundidade que a alma Cristã jamais conhecera antes. A alma do homem não
se aperfeiçoou, mas se desenvolveu e se tornou muito mais complexa, e um novo
modo de pensar corresponde a essa nova realidade.
O homem se tornou menos integrado, com uma mente mais dividida, e
chegou a encarar face a face algumas questões inquietantes. O catecismo não
responde a essas questões. O homem de tipo profético apareceu na cultura do
mundo, na literatura e na filosofia, homens como Dostoievsky, Kierkegaard,
Nietsche, Vladimir Soloviev, Leon Bloy e outros. Os padres e os doutores da
Igreja, os teólogos escolásticos, não tinham respostas aos temas que foram
trazidos por esses homens. O fogo profético sempre constituiu uma força
regeneradora na vida espiritual entorpecida e enfraquecida; e outra força
regeneradora foi o misticismo.
O misticismo apresenta uma relação próxima com o tema da relação entre
o divino e o humano. Certos tipos de místicos têm uma tendência ao monismo, ao
reconhecimento de apenas uma natureza, à extinção da natureza humana na natureza
divina. Todas as formas de quietismo pertencem a esse tipo. O Jansenismo[1]
possui interesse na dialética do Deus-homem. Encontramos o padrão clássico do
monismo místico na filosofia religiosa da Índia. Tal é a filosofia de Shankara,
que considera nossa alma, Brahma, o Um, Sat, como a antítese de toda espécie de
acontecimento ou porvir. O mais notável dentre os filósofos modernos da Índia,
Aurobindo, ensina que devemos rejeitar a ideia de sermos os autores de nossas ações
– é o universal que age por intermédio de nossa personalidade. A impessoalidade
é a qualificação essencial para a união com o divino. É preciso alcançar a
impessoalidade e a apatia. A alma é uma partícula do divino.
O misticismo costuma ser acusado de uma inclinação para o panteísmo, e
por causa disso ele é frequentemente mal interpretado. Isso se deve a uma falha
no entendimento da linguagem dos místicos. Mas devemos dizer que, mesmo quando
se apresenta o panteísmo, não se trata tanto de uma heresia contra Deus, mas em
relação ao homem, uma diminuição do significado do homem, uma diminuição do
papel da liberdade e da criatividade humanas. A evolução do humanismo Europeu,
seu drama interior, estabelece uma questão religiosa inteiramente nova; e essa
questão é também uma questão do Deus-homem.
A evolução do misticismo e da filosofia Alemã é de enorme importância
na dialética do humano e do divino. No pensamento Alemão a categoria do destino
(Schicksal) desempenha um grande papel. Essa palavra é muito utilizada
nas obras Alemãs sobre filosofia. Nada semelhante pode ser encontrado nos
livros Franceses ou Ingleses; e isso não é por acaso. O povo Alemão é um povo
de destino trágico. Isso está ligado a qualidades espirituais inerentes a esse
povo metafísico e que possui uma espécie de doença espiritual. A noção de que o
pensamento e o misticismo Alemães estão sempre inclinados ao panteísmo, e que
as propriedades do espírito Alemão são desse tipo, se tornou muito disseminada.
Não obstante a extensão indevida com que essa opinião se espalhou, existe um elemento
de verdade aí, que devemos nos esforçar por esclarecer. Devo dizer que o
destino do pensamento Alemão constitui um drama em três atos e que todo esse
drama se desenrola fora da questão da relação mútua entre o divino e o humano.
Richard Kroner, que escreveu uma notável história da filosofia idealista Alemã
diz com entusiasmo que o renascimento metafísico Alemão no início do século XIX
foi de caráter profético, messiânico e escatológico, e isso e absolutamente
verdadeiro. Essa exaltação espiritual não é encontrada na filosofia Francesa ou
Inglesa. As ideias proféticas e messiânicas na França estão associadas principalmente
ao pensamento social. O colapso espiritual do pensamento Alemão se deve à sua
extraordinária dificuldade em reconhecer o mistério do Deus-homem, o mistério
do dois-em-um, no qual a união de duas naturezas acontece sem nenhuma confusão
entre elas. Mas isso indica uma dificuldade em reconhecer o mistério da
personalidade. O antipersonalismo é típico de todas as metafísicas idealistas
Alemãs, com a exceção de Kant, que ocupa uma posição peculiar. Mas somos
obrigados a reconhecer que no pensamento e na espiritualidade Alemã existiu uma
dialética de gênios que teve enorme importância para os destinos do pensamento
Europeu. Como podemos descrever os Atos desse grande drama, que não é apenas
intelectual, mas também espiritual?
Ato I: O misticismo Alemão e Lutero.
O misticismo Alemão significa, acima de tudo, Mestre Eckhardt. Ele é
mais complexo do que antes se pensava. Ele foi não apenas místico, como também
teólogo, embora tenha sido maior como místico do que como teólogo. Como teólogo
ele chegou mesmo a se aproximar de Tomás de Aquino. Mas aqui ele me interessa
apenas enquanto místico; ele me interessa quando fala a linguagem do misticismo
e não a linguagem da teologia. É nisso que reside seu gênio e sua importância. E
o místico Eckhardt mostra indubitavelmente uma tendência para o misticismo monista.
Já se sugeriu que seu ensinamento deveria ser chamado, não de panteísmo, mas de
neopanteísmo, mas isso faz pouca diferença. Eckhardt permanece na linha que
descende do misticismo neoplatônico; ele mostra afinidade não apenas com
Platão, mas também com a filosofia religiosa da Índia. Isso em nada afeta o Cristianismo
de Eckhardt. Eu estou certo de que a filosofia religiosa de Tomás de Aquino era
mais Cristã do que a de Eckhardt, o qual jamais desceu até as profundidades da
espiritualidade introspectiva.
A coisa mais profunda e original em Eckhardt é a ideia de Gottheit,
Deidade, que abre para profundidades maiores do que a ideia de um Deus Criador
do mundo, e que se coloca fora da antítese entre sujeito e objeto. Deus aí é
secundário, não primário. A Deidade só pode ser pensada apofaticamente. A falha
crucial de Eckhardt não reside no fato de ter ele afirmado um completo monismo em
relação à Deidade, mas no fato de ter afirmado o monismo na relação entre o homem
e Deus, vale dizer: ele era monofisita. Para ele, a Criação era nada, algo que não
possuía realidade nem valor essenciais. Qualquer coisa criada não passava de
nada. A própria existência do homem era uma espécie de pecado. Aqui surge a
contradição do pensamento Alemão. A grande liberdade do homem em seu movimento
interior, na direção de Deus e da espiritualidade, é afirmada, mas ao mesmo
tempo a independência da natureza humana, a liberdade do homem, é negada. Afirma-se
um determinismo místico. Rudolf Otto, que comparou os misticismos de Shankara e
Eckhardt, diz que ambos buscam a salvação e o Ser, e que para eles o
conhecimento é um caminho de salvação. Na opinião de Otto, o misticismo de
Eckhardt não pertence ao tipo de misticismo gnóstico e teosófico, como é o caso
do misticismo de Jacob Boehme. Essa distinção é bem captada, mas há nela um
exagero, porque em Eckhardt encontrasse um poderoso elemento metafísico que o
distingue do misticismo Cristão, que se ocupa exclusivamente com a descrição do
caminho espiritual da alma para Deus. O misticismo Alemão é sempre metafísico e
cosmológico.
Lutero é muito importante para a dialética existencial entre o divino
e o humano. Ele possuía ligações com o misticismo Alemão, embora ele próprio
não pudesse ser chamado de místico. Seu livro De servo arbitrio, contra
Erasmo, é de especial interesse, e é um livro muito incisivo. Existe um
paradoxo no fato de que em sua luta pela liberdade dos Cristãos contra o poder
da autoridade sobre a consciência, Lutero negou de forma absoluta a liberdade
do homem e afirmou a ação exclusiva de Deus e da divina graça na vida
religiosa. A punica coisa que cabia ao homem era a fé; somente a fé salvava, e mesmo
a fé provinha da graça; e, aos olhos de Lutero, nisso consista a emancipação em
relação ao poder da autoridade. O homem não possuía nenhuma posição independente
em relação a Deus. Diante de Deus não poderia haver senão a fé. Mas nessa
condição, o homem ainda poderia ser realmente ativo em relação ao mundo. A tradicional
doutrina católica do livre arbítrio, por outro lado, e das boas obras, que dela
provêm e que são necessárias para a salvação, pareciam a Lutero quase que como
uma piada blasfema, uma transgressão da onipotência e da majestade de Deus. Ele
não apenas negava o livre arbítrio, como ainda considerava a razão humana
maligna. Ele acusava o Cristianismo de Pelagianismo. O ensinamento de Lutero
sobre a escravidão da vontade foi muitas vezes cruelmente interpretado, e
jamais se observou até que ponto uma profunda e complexa dialética metafísica
poderia ser extraída dele. Era difícil prever o quanto a metafísica Alemã do
começo do século XIX viria a herdar desse ensinamento a longo prazo. O divino
engoliu o humano. Esse era um processo interior ao qual o humano não estava
submetido pela força, mas no qual o mistério do Deus-humanidade desaparecia,
assim como desaparecera para Eckhardt.
A última e mais interessante manifestação do Protestantismo na Europa,
a teologia dialética de Karl Barth – e dos que partilham de sua opinião –
seguem a mesma tendência de negar o Deus-homem. Para Barth, Deus é tudo,
enquanto o homem não é nada. E aqui encontramos um paradoxo no qual tudo se
torna o seu oposto. Ele é um dualista, não um monista. Ele afirma a existência
de um hiato entre Deus e o homem, um abismo que separa o homem de Deus. Mas, se
o homem é nada e Deus é tudo, a única realidade, existe outra forma de monismo –
e até de panteísmo – que se esconde aí. Se é preciso evitar o monismo e o
panteísmo, é preciso que o homem não seja nada, que nele exista dignidade e
valor, e que haja liberdade nele. Assim é que também Calvino foi um inimigo
radical do panteísmo, mas, paradoxalmente, dele podemos dizer que era um
panteísta, na medida em que ele degradou o homem e diminuiu sua realidade, e na
medida em que, para ele o único ser real era Deus, e Deus era tudo. A dialética
do divino e do humano é tão complexa e complicada, quanto difícil é encontrar
lugar para o mistério do Deus-homem. Isso se revelou na filosofia Alemã do
século XIX. O único pensador Alemão que se aproximou da ideia do Deus-homem e
do divino-humano, e que assim se aproximou da filosofia religiosa Russa, foi Franz
Baader. Mas ele permaneceu à parte da via principal sobre a qual a dialética do
divino e do humano havia sido revelada.
Ato II: A filosofia idealista Alemã.
O segundo ato do drama é a filosofia idealista Alemã, o fenômeno mais
notável da filosofia Europeia. Qual é a ligação entre esse ato e o primeiro? A conexão
com Eckhardt é fácil de compreender, mas a ligação com Lutero não se consegue
captar de primeira. A maior influência sobre a metafísica Alemã foi
indiscutivelmente a de Jacob Boehme, mas isso está ligado a outra questão, não
com aquela que nos interessa nesse momento. Toda a originalidade da metafísica
Alemã, a diferença entre ela e as metafisicas Grega e Medieval, o diferente
entendimento da relação entre o racional e o irracional, se devem a Boehme. Mas
no problema das relações entre o divino e o humano na questão divino-humana,
Boehme se mostrou muito mais Cristão do que Hegel ou Fichte, e menos monista. Costuma-se
dizer que Lutero foi o pai do idealismo filosófico e que a filosofia Alemã
floresceu no solo do Protestantismo.
À primeira vista, nada poderia ser mais contraditório do que Lutero e
Hegel. O primeiro condena a razão como um mal; o segundo a transforma em um deus.
Para o primeiro, tudo se deve à graça, e isso certamente não favorece o conhecimento
metafísico. Mas, se analisarmos a questão de um ponto de vista mais profundo, é
possível entender o porquê desse repudio à razão ter se transformado numa ousada
afirmação da razão. Lutero não era um filósofo; sua natureza era profética, e
ele não poderia refletir filosoficamente a respeito de sua maldição à razão, e
nem ele pretendia isso. Mas a razão, para Lutero, é inteiramente diferente
daquela de Hegel. Enquanto que para Lutero a razão é humana, para Hegel ela é
divina, como o é a razão de Fichte e de todos os idealistas do começo do século
XIX. A razão de Hegel, que para nós possui mais interesse aqui, não é a razão
de Lutero, mas a graça de Lutero. Para Hegel, não é a razão humana que
apreende, mas a razão divina, e nele tudo provém da graça. O ato de conhecer,
um ato religioso, é realizado, não pelo indivíduo, mas pelo espírito universal.
Do mesmo modo, o ego em Fichte não é individual nem humano, mas divino, o ego
universal. Na metafísica Alemã do início do século XIX tudo está no fio da
navalha, e pode cair tanto para um lado quanto para o seu oposto. A filosofia
de Hegel, que foi sua principal manifestação, pode ser interpretada tanto como
o engolimento final do divino pelo humano, como uma expressão do orgulho do
homem, ou do humano pelo divino, como uma negação da personalidade humana. Ambas
as interpretações de Hegel são possíveis. A revolta de Dostoievsky e de Kierkegaard
a favor da individualidade humana foi uma revolta contra Hegel, contra seu
espírito universal, contra a dominação tirânica do universal sobre o
individual. A expressão de que die Religion als Selbstbewusstsein Gottes[2]
pertence a Hegel.
Karl Robert Eduard von Hartmann, que se insoirou tanto em Schopenhauer
como em Hegel, construiu sua religião do Espírito a partir dessa interpretação
Hegeliana da religião e da relação que existe entre o divino e o humano. A metafísica
Alemã criou o verdadeiro mito, que pode servir tanto ao otimismo quanto ao
pessimismo. Hartmann o interpreta de modo pessimista. Um Deus inconsciente, num
repente louco de vontade, criou a dor da existência. Mas no homem o Deus primordial
inconsciente chega à consciência, e a possibilidade de libertação do sofrimento
da existência é revelada. Mas, no otimismo de Hegel, também Deus alcança a
consciência no homem, e essa consciência atinge seu ápice na filosofia do
próprio Hegel. Assim se completou a deformação do problema enunciado pelo maior
gênio místico de tipo gnóstico, Jacob Boehme. De acordo com este, que estava
embebido no Cristianismo e na Bíblia, é fora do Ungrund,[3]
que precedeu a existência do mundo, na eternidade e não no tempo, que se dá o
nascimento de Deus e se revela a Santa Trindade, e a Santa trindade cria o
mundo. Na metafísica Alemã, que estava cheia de questões do antigo misticismo,
a sicessão ideal foi alterada. Fora do Ungrund, fora da profundidade da
inconsciência obscura, o mundo é criado, e é nesse mundo que Deus se forma.
Fichte, Hegel e Schelling (em parte) ensinam o começo de Deus. O processo do
mundo é o começo de Deus; e é no homem que Deus, finalmente, se torna consciente.
Aí têm lugar tanto a deificação do homem quanto o repúdio ao homem. Não há nada
que seja puramente humano, distinto do divino e que permaneça diante de Deus nesse
drama que se desenrola. O resultado disso se tornará claro no Terceiro Ato. A
principal deficiência da metafísica Alemã, essa exibição do pensamento humano
marcado com o selo do gênio, foi seu anti-personalismo.
A filosofia de Hegel, que se esforçou pelo concreto, mas que não o
alcançou, e que destruiu a individualidade humana, evocou a reação do homem
contra o Espírito universal. O divino foi interpretado como uma expressão da
escravização do homem.
Ato III: A partir de Feuerbach
É com Ludwig Andreas Feuerbach, um notável pensador, que se inicia o
Terceiro Ato do drama. De acordo com Feuerbach o homem criou um Deus para si mesmo,
à sua própria imagem e semelhança, e transferindo para a esfera transcendente
sua própria natureza mais elevada. A natureza alienada do homem precisaria ser
restaurada nele. A crença em Deus é um produto dessa fraqueza e dessa pobreza
do homem. Quando o homem é forte e rico, ele não precisa de Deus. O segredo da
religião é antropológico. A ideia de Deus é substituída pela ideia de homem: a
teologia passa para a antropologia. De acordo com Hegel, Deus chega à autoconsciência
no homem. Conforme Feuerbach a autoconsciência do homem basta. A autoconsciência
de Deus no homem não passa da autoconsciência do homem sobre si próprio, sobre
sua própria natureza humana. Num caso, como no outro, não existe senão uma
única natureza. O divino absoluto é substituído pelo absolutamente humano.
Feuerbach proclama a religião da humanidade. O livro que Feuerbach, o materialista,
escreveu sobre a natureza do Cristianismo foi escrito no estilo dos livros sobre
misticismo. A natureza própria de Feuerbach permanece religiosa. Mas nele a
deificação do humano é a deificação da raça, da sociedade, não do indivíduo
humano, nem da personalidade. Nesse sentido, sua filosofia, não menos do que a
Hegel, permanece como uma filosofia do geral, do racial, do universal. Ele não
era um personalista. Essa foi a transição de Hegel e Feuerbach para Karl Marx.
Feuerbach marca um importante momento dialético na relação entre o divino e o
humano no pensamento Alemão; esse pensamento permanece sendo monista em sua
tendência: nele não existe um Deus-homem. Hegel atribui a Deus o que cabe ao
homem, enquanto que Feuerbach atribui ao homem o que cabe a Deus. Ambos misturaram
o divino e o humano, e a transição de um para outro não foi difícil. Khomyakov
sempre predisse que Hegel iria gerar o materialismo. Feuerbach foi cria de
Hegel, como mais tarde Marx viria a ser. Assim o destino derrubou a dialética
do gênio.
O último passo foi dado por Max Stirner, depois Marx, numa direção, e
por Nietsche em outra. Max Stirner tentou ser mais consistente do que Feuerbach.
Ele negou a realidade do homem, da sociedade e de outras formas de comunidade. Para
ele, a única coisa real era o próprio ego da pessoa, e todo o mundo seria
propriedade sua. Seu livro, The Unique and its Property, às vezes lembra
algum dos antigos livros sobre o misticismo Alemão, da mesma maneira como o faz
o livro de Feuerbach, The Nature of Christianity. Mas essa é a coisa espantosa. Deveria ser de
se esperar que Max Stirner fosse um individualista extremo, e que para ele o
mais alto valor fosse a singularidade individual. Mas não é o que acontece. Na verdade,
ele é do mesmo tipo de anti-personalista que Hegel. Fica absolutamente claro
que o Único de Max Stirner não é o homem em si, não é a pessoa humana, mas um
pseudônimo do divino. Max Stirner, assim como Feuerbach, dá a impressão de ser
um materialista. Mas numa investigação mais profunda o Único possui um caráter
místico, e no livro sobre o Único podemos perceber os tons do velho misticismo Alemão
sobre o qual todo processo dialético do pensamento foi concebido. O Único é o
universal, não um microcosmo, mas o macrocosmo. Existe um certo elemento de
verdade no desejo de que o homem seja o mestre de todo o mundo, mas a filosofia
de Stirner é impotente para estabelecer isso.
Em Karl Marx o divino-universal e o geral aparecem sob outra forma,
como um coletivo social, como a sociedade perfeita do futuro, na qual também a
personalidade humana pode estar fundamentada, como ela está no espírito
absoluto de Hegel e no Único de Stirner. Ele faz seu ataque contra o
capitalismo porque é nele que acontece a alienação da natureza humana, é nele
que acontece a desumanização e que o trabalhador é transformado em coisa (Verdinglichung);
e ele pretende restaurar ao trabalhador sua natureza, que foi alienada dele. Essa
foi uma ideia notável, e uma extensão, na esfera social, do pensamento de Hegel
e Feuerbach a respeito da alienação. É o que eu chamo de objetificação. Mas em
Marx se revela um dos limites do humanismo dialético, no qual ele passa ao
anti-humanismo. Esse processo possui uma profunda base metafísica. Na medida em
que o humano é afirmado como sendo o único e o mais elevado, e que o divino é
negado, o humano, por sua vez, passa a ser negado e a ser submetido ao comum,
seja ele o Único de Stirner ou o coletivo social de Marx. O anti-personalismo
sempre triunfa. Isso se revela de outro modo, mas com a agudeza e o gênio de
Nietsche, e em seu destino trágico. Nietsche requer especial atenção. Mas antes
de passarmos a Nietsche, devo notar que Kierkegaard, embora não sendo Alemão,
estava associado ao pensamento e ao romantismo Alemão, teve a mesma dificuldade
em afirmar o Deus-homem, vale dizer, as duas naturezas, ele parecia negar a
natureza humana de Cristo.
A vida de Nietsche foi a vida de um frágil e doente professor
particular, em retiro entre as montanhas da Suíça; uma vida solitária, sem
outra preocupação do que a de escrever livros. E ao mesmo tempo toda a história
do mundo palpitava nele, e o destino do homem se realizou nele maios do que nos
homens de ação. Nietsche escreveu sobre as últimas coisas e sobre os destinos
finais. Podemos definir o tema fundamental da vida e do trabalho criativo de
Nietsche da seguinte forma: como é possível experimentar o divino, quando não
há Deus? Como pode o êxtase ser experimentado, quando o mundo e o homem são tão
basais? Como é possível alcançar o cume das montanhas, quando o mundo é tão
plano? Nietsche estava atormentado por um problema que possuía um caráter
religioso e metafísico. A questão para Nietsche era acima de tudo de natureza
musical, e nisso ele era um Alemão típico. Mas havia uma espantosa falta de correspondência
entre sua filosofia (uma Lebensphilosophie[4],
mais do que uma Existensphilosophie[5]),
e isso se ligava ao Darwinismo e o evolucionismo. A ideia escatológica do super-homem
estava baseada na seleção biológica. Na Rússia, Nietsche sempre foi entendido
de forma diferente do que no Ocidente, sendo considerado acima de tudo como um filósofo
da cultura.
Toda a obra criativa de Nietsche se ocupou com três problemas: a relação
entre o humano e o divino, que para ele era o super-homem; o poder criativo do
homem, que devia criar novos valores; e o sofrimento, o heroico poder de enfrentar
o sofrimento. A aspiração de Nietsche às alturas divinas se expressava na
vontade de se erguer acima do homem. Ele pregava o super-homem, que para ele
era um pseudônimo do divino. aqui a dialética entre o divino e o humano é
levada ao seu limite. Nietsche foi um filho do humanismo Europeu, carne de sua
carne, ossos dos seus ossos. Mas ele chegou a repudiar o homem. Nietsche traiu
o homem. Para ele o homem era uma vergonha e um desastre, uma mera transição
para a nova raça do super-homem.
Tanto o humano como o divino desapareciam no super-homem. O pregador
do super-homem aclamou entusiasticamente Napoleão, baseado em que ele era feito
do não-humano e do super-humano, e que nele nada havia de humano. Ele se
engajaria sob a bandeira do destino (amor fati), e não desejava a
vitória do homem sobre o destino, como queria Marx. Nisso ele encontrava o sentido
trágico da vida; daí sua animosidade contra Sócrates, sua idealização dos
instintos, seu misticismo de sangue, que se assemelha ao de Arthur Gobineau. Ele
foi um defensor do princípio da hereditariedade e da aristocracia. Ele é
considerado um individualista, mas era um anti-personalista. Ele não se deu conta
de que Dionísio era democrático, não aristocrático. Antagônico em relação ao Cristianismo,
que ele conhecia apenas de uma maneira burguês e decadente, desprovida de seu
heroísmo, ele não obstante pretendia saber algo a respeito. Ele entendeu que o
Cristianismo constitui uma revolução contra o princípio aristocrático da antiga
civilização – “os últimos serão os primeiros”. Com Nietsche, assim como todo o
pensamento Alemão antes dele, não existem duas naturezas; não existe encontro;
não existe o mistério do Deus-homem. Existe apenas e tão somente,
definitivamente, uma natureza. Ele é visto como um ateu. Isso é uma super simplificação,
uma falha em compreender que o pensamento e as ideias conscientes não exaurem a
profundidade do homem. Foi com amargura e sofrimento que Nietsche disse que
Deus havia sido morto. Existe uma imensa diferença entre o ateísmo de Feuerbach
e o de Nietsche. Nietsche gostaria que Deus retornasse.
Deus o atormentava, como atormentava os heróis de Dostoyevski. Ele chegou
perto da questão de Kirilov[6].
Sua busca era pelo super-homem; mas o que devemos buscar é um homem que seja
plenamente homem. O homem atual ainda não é um homem pleno; ele é ainda meio
animal, e com frequência pior do que o animal. Existe uma arraigada contradição
na atitude de Nietsche em relação ao homem. Para ele o homem é uma vergonha e
uma desgraça. Ele gostaria de nada ter de humano; ele vê o homem apenas como um
meio. Mas ao mesmo tempo ele dota o homem de uma capacidade de criação, de
criação de valores, de criação de um novo mundo, e de uma capacidade de
resistência heroica ao sofrimento.
O maior serviço prestado por Dostoyevski foi sua colocação do problema
da criatividade. Ele buscava o êxtase, e para ele o êxtase estava conectado à
criatividade. Ele estava convencido d3 que o homem podia criar novos valores. Na
sua visão, a verdade é criada e não revelada. A verdade não é um dado e não
pode ser recebida passivamente pelo homem. Ela é criada num processo vital na
luta pelo poder. E a vida constitui um processo criativo no qual todos os
valores são criados. Em minha própria terminologia podemos dizer que o que pode
ser conhecido como a verdade objetiva é uma ilusão do objetivismo. E Nietsche
estava certo em sua sede por criatividade, em sua crença na criatividade. E, de
fato, a partir desse ponto de vista Cristão – tão estranho a Nietsche – a verdade
é o caminho e a vida, não uma coisa, não uma realidade na esfera das coisas. O homem
é capaz de criar novos valores, ele é capaz de criar uma nova vida. Mas existem
limites para o poder criador do homem. O homem não pode criar seres vivos; ele
apenas pode gerá-los; ele não é capaz de criar sequer uma mosca, e nisso existe
um significado muito profundo. Uma criatura criada pelo homem não possuiria uma
imagem viva: ela seria um mecanismo.
O colapso de Nietsche provém do fato de que ele pretendia que o homem
criasse o super-homem, ele queria que o divino, até então não existente, fosse
criado pelo homem, ele queria que o menor gerasse o maior. Mas, de que fonte de
dentro de si poderia esse mero nada que é o homem – e Nietsche considerava o
homem um mero nada – extrair o poder para criar o super-humanamente divino?
para justificar a criatividade do homem, sua criação de novos valores, seria
necessária uma nova antropologia. Mas a própria filosofia de Nietsche, sobre a
qual ele baseava sua antropologia, era antiquada. Ela não podia encontrar um
poder criador no homem. O homem, o mero nada enquanto criatura, deveria criar a
Deus. A dialética entre o divino e o humano conduziria à negação tanto do
divino quanto do humano, e ao seu desaparecimento no fantasma do titânico
super-homem. A enfermidade da qual ele sofria costuma ser considerada como uma explicação
para a loucura de Nietsche, mas deveríamos também considerá-la, de um ponto de
vista espiritual, como o resultado de um esforço desmesurado e inumano para se
erguer a alturas vertiginosas, onde simultaneamente nenhuma altura havia. Esse foi
um passo na aspiração ao heroico nada que é característico do espírito Alemão.
Tal foi a estupenda visão de Nietsche de um mundo dionisíaco. Duas
ideias o possuíam: a ideia do eterno retorno e a ideia do super-homem. Essas ideias
são mutuamente inconsistentes. A ideia do eterno retorno não passa da antiga
ideia Grega do movimento cíclico. A ideia do super-homem é uma ideia messiânica
e, como todo messianismo, possui fontes Persas, Judaicas e Cristãs. Não foi por
acaso que Nietsche tirou dos Persas o nome da maior produção de seu gênio, que
introduzia a ideia escatológica no pensamento religioso. Eu dou pouca
importância à sombria ideia de um eterno retorno, mas a ideia do super-homem é
imensamente importante. Em Nietsche, a orientação para o futuro e para o
passado se combinavam, Prometeu e Epimeteu. Nele se combinavam tanto elementos
revolucionários, como reacionários, do espírito. Ele foi uma vítima da negação
da criatividade humana pelo Cristianismo histórico.
O outro problema levantado por Nietsche foi o do sofrimento. Ele próprio
sofreu uma situação extrema: uma doença incurável e uma solidão desesperançada.
Ele lutou heroicamente contra o sofrimento. Nenhuma dor evitou seu trabalho
criativo. A capacidade de reagir ao sofrimento era para ele a medida do valor
de um homem. Ele desejava suportar o sofrimento sem consolo algum. Ele se
rebelou contra o Cristianismo porque ele poderia lhe dar um sentido para o
sofrimento e, assim, oferecer consolo. Somente a resistência ao sofrimento, sem
nenhum tipo de consolação, sem nenhuma esperança em outra vida, poderia ser
considerada heroica, e para ele isso estava ligado a um sentimento trágico da
vida. Ele buscava o perigo; ele gostava de andar na beira do abismo; ele recusava
qualquer garantia de vida. Como pode sua atitude perante o Cristianismo ser
entendida em seu sentido mais profundo? Ele era um inimigo do Cristianismo; ele
via a si mesmo como seu mais terrível carrasco. Ele escreveu sobre o Cristianismo
em termos injuriosos e injustos. Ele escreveu o Anticristo, provavelmente
a mais fraca de suas obras. Mas, ao mesmo tempo, Nietsche foi um homem que
sentiu o doloroso toque de Cristo e da problemática Cristã. O anti-eros e o
eros estavam ligados. Ele lutou contra Cristo, mas combateu como um homem que
amava a Cristo no fundo de seu ser. Quando ele já se encontrava num estado de
loucura, ele assinava suas cartas como “o Ferido”. Esse é indubitavelmente um forte
elemento Cristão que ele carregava, embora distorcido.
Nietsche, o inimigo, estava muito mais próximo do Cristianismo do que
Goethe, o bem disposto, que não se deixou minimamente tocar pela questão Cristã.
Goethe era-lhe indiferente. Talvez tenha sido ele o único homem do período
Cristão a ter passado pelo Cristianismo sem ter sofrido nada dele. Ele dispunha
sua vida interior sem traço algum de Cristianismo. Por esse motivo ele é às
vezes chamado “o grande pagão”. Mas ele também estava inconsciente da trágica
religião Grega de Dionísio. Sabemos que Goethe tinha muito medo do sofrimento e
que lutava por escapar a ele; tampouco era ele um apaixonado pela tragédia.
Heinrich Von Kleist o repeliu e foi muito injusto com ele. Algumas vezes sua
atitude perante o sofrimento transmitia a impressão de covardia, embora ele
fosse um homem forte. Por outro lado, não podemos imaginar Nietsche fora do
período Cristão da história, por mais que ele tivesse sua atenção voltada para
a Grécia antiga. Seu destino foi o destino de um Europeu dentro do mundo
Cristão, um dos caminhos que o homem Cristão segue, o cume de sua dialética
existencial.
O caso de Nietsche está essencialmente conectado com a dialética entre
o divino e o humano. Essa questão já havia sido colocada pelo velho misticismo
Alemão. Em Eckhardt e em Angelus Silesius a própria existência de Deus dependia
do homem. Isso sempre foi muito perturbador para os teólogos, que tentavam
encontrar um sentido intelectual e ontológico para isso, ou seja, um sentido
herético, na medida em que se tratava da expressão de uma experiência
espiritual. Quando os místicos diziam que Deus dependia do homem, essa
colocação podia ser entendida de duas maneiras, tanto reconhecendo-se a
existência de duas naturezas que se encontram no amor e interagem, como
existindo apenas uma natureza, que para uns é divina, para outros humana. O caminho
da metafísica Alemã conduziu em última análise a Nietsche, para o qual o humano
que ele criou implicava a desaparição tanto de Deus quanto do homem. A importância
de Nietsche é imensa. Nele, a dialética interior do humanismo encontra sua
plenitude. Seu aparecimento conduziu à possibilidade e à necessidade de uma
nova revelação referente ao homem e ao humano, para completar a dialética entre
o divino e o humano.
Kierkegaard propôs se deveria começar, não a partir da dúvida, mas da desesperança.
Para ele, a desesperança era a distância entre o subjetivo e o objetivo. Mas a
verdade deveria se revelar na experiência da desesperança. O interior jamais
poderia se expressar por inteiro no exterior. Para mim, isso significa que o
espírito, que está sempre oculto no subjetivo, não pode se expressar pela
objetificação, pois nesta ele aparece distorcido. Kierkegaard é uma das fontes
da filosofia existencial. Isso fica evidente pelo fato de que, segundo ele, o
homem e sua existência não podem ser objeto. A filosofia existencial está
conectada com a agitação religiosa, e no próprio Kierkegaard ela é determinada
pela experiência Cristã. Os homens, em sua visão geral de vida, diferem
radicalmente uns dos outros, conforme reconheçam a existência “de outro mundo”,
ou apenas “deste mundo”. A própria experiência de Kierkegaard era Cristã, mas
era uma experiência de natureza religiosa movida pela divisão, pela ruptura com
o Deus-homem, pelo esquecimento de Deus.
Em Heidegger, o mais vigoroso dos filósofos “existenciais” modernos,
já podemos perceber um estado de coisas diferente. Kierkegaard teve certa influência
sobre seus problemas, mas nele Deus era substituído pelo mundo, e a desesperança
não desembocava em outra coisa diferente. Ele pretendia construir uma
ontologia, e construí-la utilizando o mesmo método e o mesmo modo como um
filósofo acadêmico o faria. Isso é uma contradição radical com a filosofia
existencial, que não admite a possibilidade de uma ontologia, porque esta se
baseia sempre na objetificação e na racionalização. Heidegger passou pela
escola de teologia Católica e isso transparece em seu ensinamento sobre a
Queda, o Geworfenheit[7]
do Dasein. Mas a brecha entre a existência humana (Dasein) e o
divino, alcança aí sua expressão extrema. Dasein é apenas in-der-Welt-sein,
estar no mundo. O nada é a base do Dasein. Trata-se de uma filosofia do nada.
Dasein substitui o sujeito. Aqui, como em Sarte, o fenômeno, aquilo que revela
a si próprio, possui um sentido diferente daquele que encontramos em Kant. “Estar
no mundo” implica ansiedade, “ser” é ansiedade. Daí provém o sentido do tempo. O
pensamento de Heidegger é oprimido pelo mundo da ansiedade. Aqui não existe espírito,
nem liberdade, nem personalidade. Das Man é um estúpido lugar comum, sujeito a
uma existência cotidiana da qual não existe saída real. Sua metafísica esta
enterrada na existência humana, no caos de uma vida cruel.
A filosofia de Heidegger pertence inteiramente a uma época diferente
daquela dos positivistas, materialistas e ateus do século XIX. Nele encontramos
o pecado original, um legado do Cristianismo. Nele, a existência do mundo e do
homem é Verfallen, decaída. Mas quando ocorreu essa Queda? Onde devemos
buscar a culpa disso? Aqui se disfarçam coisas como valores morais. Aqui surge,
como um legado do idealismo, que a verdade não consiste numa correspondência
com o objeto, que é o homem quem comunica a verdade ao mundo conhecido. Mas não
existe uma justificação para a possibilidade do conhecimento. Ao mesmo tempo, Dasein
é a existência histórica. A história revela o universal no um. A criação do
futuro é a projeção da morte. Heidegger fala em Freiheit zum Tode, a “liberdade
na morte”. O objetivo de nossa existência consiste na liberdade de olhar a
morte cara a cara. A arte, a política, a filosofia, lutam com o caos, com a
crueza da existência primordial. Mas onde poderemos encontrar forças para
tanto? A metafísica de Heidegger está ligada à finitude da existência humana. Existe
no homem uma passagem para o infinito; o mundo é um mundo de cuidados, de medo,
de abandono, de coisas tolas e prosaicas – um mundo terrível. É a metafísica do
abandono de Deus levada ao seu extremo limite. Mas o divino não aparece sob
nenhum pseudônimo, como em Feuerbach, Stirner, Nietsche e Marx, e não há
satisfação alguma em que ele seja derivado do mundo. O pessimismo de Heidegger é
mais consistente e mais terrível do que o pessimismo de Schopenhauer, que tinha
consciência de uma certa consolação.
O ser triuno de Deus não consiste apenas numa fórmula escolástica, mas
trata-se de uma verdade do escolasticismo teológico, e que possui um significado
existencial profundo. Nele encontramos um número sagrado, porque ele indica a completude,
a superação de toda dualidade e divisão. Todo o caráter distintivo do
Cristianismo reside no fato de que ele não é um puro monismo; é precisamente isso
que levantou a oposição e a animosidade do Judaísmo conservador. A tendência
puramente monista da Cristianismo e do Islamismo derivam do Judaísmo. A natureza
triuna de Deus aponta para uma vida espiritual interior Nele e essa vida está em
todo o mundo. A revelação do Deus Triuno é a antítese da concepção de Deus
enquanto ato puro, enquanto um ser abstrato que não apresenta em si mesmo
nenhuma existência concreta. Na Santa Trindade existe o Um e existe o Outro, e
existe uma saída, uma solução, no Terceiro.
Diz-se de Hegel que ele substituiu a Trindade religiosa Cristã por uma
trindade puramente filosófica na qual se perdeu o sentido religioso. Mas seria
mais verdadeiro dizer que a trindade de Hegel foi tirada da experiência
religiosa Cristã, recebendo então uma expressão filosófica. A filosofia depende
da religião. A Humanidade eterna é o divino Outro, a Segunda Pessoa da
Divindade. A comunidade humana e cósmica, livre e amorosa, é a solução para a
divina Trindade, a Terceira Pessoa da Divindade.
Aquilo q eu é exotericamente chamado de criação do mundo consiste na
vida interior de Deus, e isso não deve ser reduzido a uma identificação, ao
monismo ou ao panteísmo. Temos aqui uma antinomia que é racionalmente
insolúvel. O Panteísmo é uma racionalização. Existem duas naturezas, a divina e
a humana, que não são identificáveis. Mas ambas estão na divina Trindade. O divino
Outro é eterno. A divina humanidade e a divina Trindade estão misteriosamente
unidas, o mistério do dois (o Deus-homem) e o mistério do três (a divina Trindade).
O mistério da divina Trindade é a antítese da concepção de Deus como mestre e
dono do poder, como um monarca autocrático. Em Deus não existe apenas unidade,
como também uma pluralidade ideal. Em todos os desvios heréticos dos primeiros
séculos, que discutiram a expressão intelectual dos divinos mistérios, havia
uma verdade parcial. Em especial no Sabelianismo, condenado pelo pensamento da
Igreja, havia alguma verdade, embora incompleta. A Trindade é o modus de
revelação do Deus uno da época da revelação. Mas para o pensamento racional
acostumado a pensar por conceitos, tudo aqui se passa no fio da navalha, e o
que é verdade passa facilmente como erro, e um erro pode se revelar verdade. A distinção
que Eckhardt e o misticismo Alemão estabelecem entre Gottheit e Gott,
entre a Divindade e Deus, e que deriva da teologia apofática, foi de enorme importância.
Existe um mistério Divino que é inexprimível, que está além do Criador e da
criação, e existe um mistério da Trindade que está voltado diretamente para o
mundo. O Deus que revela a Si mesmo ao mundo e ao homem não é o Absoluto. O Absoluto
não pode ter nenhuma relação com o que quer que seja; o Absoluto é um mistério
inexprimível. A Divindade é um mistério inexprimível no qual, acreditamos, tudo
irá se resolver. Mas Deus é um Mistério que tende a revelar a Si mesmo.
Não estamos falando de vários deuses, mas de um e mesmo Deus que se
oculta e se revela em diferentes graus. E a distinção reside aqui não no
objeto, mas no sujeito. Na história do pensamento religioso do homem e das
sociedades humanas surge uma certa objetificação de Deus. A teologia catafática
se refere a um Deus que foi objetificado. A isso corresponde um certo estágio
na socialização do Cristianismo. Mas a teologia apofática, ou mística, supera
os limites da concepção objetificada de Deus, e a libera de um antropomorfismo
distorcido, da interpretação das relações entre Deus e o homem em termos de estado
e de autoridade, de procedimento legal e punição. A ideia de Feuerbach de que o
homem atribui a Deus sua própria natureza superior, não é um argumento a favor
da negação de Deus; ao contrário, é o oposto que acontece. Ela não faz mais do
que apontar que existe uma mensurabilidade entre Deus e o homem, não com o
homem como criatura natural e social, mas enquanto espírito livre. A dialética existencial da divina Trindade,
assim como a dialética do divino e do humano, acontece em qualquer profundidade
da existência.
A dialética da Divina Trindade pressupõe épocas de revelação trinitária,
vale dizer, ela leva à admissão da possibilidade, e mesmo da necessidade, de
uma terceira revelação. Mas isso significa que as duas épocas precedentes sejam
interpretadas à luz da Trindade, ou seja, à luz da revelação do Espírito como
revelação final. Somente no Espírito a revelação da Divindade e do Deus-homem
se completa e é coroada; e essa é uma revelação de liberdade, de amor, de
criatividade, uma revelação daquilo que Deus criou. Aqui aparece a combinação
da teologia mística apofática com a antropologia existencial catafática. As controvérsias
a respeito do transcendente e do imanente que, pela via do idealismo Alemão,
chegaram a muitos movimentos dentro do modernismo Católico e Protestante, estão
ultrapassadas. A doutrina da imanência de Hegel ou de Hartmann, de tipo claramente
monista, permanecem fora da questão que nos interessa no momento, da do
Deus-homem.
A velha doutrina da imanência, assim como o velho evolucionismo, não
compreende o momento catastrófico de interrupção da experiência espiritual, nem
a quebra do caminho espiritual. A esse respeito, a aparição de Kierkegaard foi
de grande importância. A filosofia existencial, se quiser mergulhar fundo na
existência do sujeito e basear-se na experiência espiritual, não pode ser uma
filosofia imanente no sentido do século XIX. Mas aqui encontramos contradições e
antinomias. A revelação do divino no homem e a exaltação do humano ao divino
possui o caráter de uma interrupção, de um ato de transcendência. Existe no homem
uma experiência espiritual do transcendente e da transcendência. É impossível negar
a realidade dessa experiência, sem violência. O homem é uma criatura que
transcende a si mesmo, que vai além de seus próprios limites, e que possui uma
ávida aspiração ao mistério e ao infinito. Mas a experiência do transcendente e
da transcendência é interior e espiritual, e nesse sentido ela pode ser
considerada imanente. E aqui entendemos por imanência, não jazer dentro de seus
próprios limites, mas ir além dessas fronteiras. O transcendente alcança o
homem, não de fora, mas desde dentro, a partir de suas profundezas. Deus está
mais no fundo de mim do que eu próprio. Isso já havia sido dito por Santo Agostinho.
Eu devo transcender por mim mesmo. A profundeza está oculta no homem, e essa
profundeza requer um rompimento, uma transcendência. Através da transcendência o
mistério se torna claro, e isso é a revelação.
A revelação do transcendente não é um processo evolutivo; é um
processo trágico no homem. A revelação é objetificada e socializada, tornando-se
assim imanente no nível do pensamento humano e da sociedade. Profetas,
apóstolos, santos, místicos, passaram além das fronteiras dessa imanência maligna.
As pessoas falam do imanentismo do místico, mas esse imanentismo não tem nada
em comum com o imanentismo da experiência medíocre, familiar, cotidiana e social,
com o imanentismo da consciência limitada. A revelação do transcendente no
mundo não é uma evolução, mas pressupõe épocas, graus, tanto em relação ao homem
como em relação à história da humanidade, e aqui nos encontramos no limite entre
uma velha época moribunda e o nascimento de uma nova época de revelação, um
novo éon. Aquilo que acontece nas profundezas do homem, acontece também nas
profundezas de Deus. Quando pensamos em questões que estão além dos limites do
pensamento, que podem tomar várias direções, sempre surgem tentativas de
racionalizar o mistério, nas quais encontramos suporte; é o que acontece com as
traduções para a linguagem de conceitos de coisas que são inexprimíveis em
conceitos. Mas isso não significa que não possamos expressar nada em linguagem
humana. Nela o Logos está presente, embora não completamente, e um movimento em
direção às fronteiras, em direção ao mistério, só é possível através da
linguagem. As ideias finais existem. Mas o processo de pensamento deve ser
impregnado por uma experiência espiritual integral. O agnosticismo consiste
numa limitação errônea das possibilidades humanas. O gnosticismo pode ser
afirmado, mas ele deve ser existencial. O velho gnosticismo dos primeiros
séculos, no qual havia uma distorção da experiência espiritual, lidava com
mitos. Ainda temos que lidar com mitos, e não podemos ser limitados por
conceitos. Mas nossos mitos são de outro tipo, não são os velhos mitos cósmicos
associados ao paganismo. Não, o mito fundamental é o mito do divino-humano e do
Deus-homem, e esse mito é realista.
Não é possível sustentar uma concepção estática de Deus. O Deus Cristão,
em particular, o Deus da religião da Verdade crucificada, só pode ser entendido
dinamicamente. Existe em Deus um processo dinâmico criativo que se realiza na
eternidade. Isso não deve ser entendido como se Deus dependesse do mundo e dos processos
que acontecem no mundo, mas sim que os processos que acontecem no mundo estão interiormente
ligados com o processos que ocorrem em Deus, na eternidade, e não no tempo;
vale dizer, eles estão ligados com o drama divino, e é apenas nessa medida que
as coisas que acontecem no mundo e no homem adquirem um sentido eterno. Um mundo
e um homem que não fossem, de modo algum, necessários a Deus, seriam mero
objeto do acaso, pelo simples fato de que seriam desprovidos de sentido. Aquilo
que realmente não apenas limita a Deus, como degrada o homem, é uma imobilidade
pétrea, insensível e autossuficiente. Em Deus existe um anseio pelo Seu amado e
isso confere o mais alto significado a esse último. Crer em Deus equivale a
crer na mais alta Verdade, na mais alta Justiça, exaltadas acima dos desvios
desse mundo. Mas essa Verdade exige a participação criativa do homem e do
mundo. Ela é divina humana; é nela que opera a humanidade ideal.
Nessa conjunção da Verdade absoluta de Deus com a verdade humana se
esconde todo o mistério da vida religiosa. Várias justificações intelectuais e otimistas
da vida foram estabelecidas pelos homens; eles justificaram a vida tanto por
meio da ideia teológica tradicional da Divina Providência que está presente em
toda parte (Deus é tudo), como por meio de uma ideia panteísta idealista de um
mundo desenvolvido pelo espírito, pela Razão, que é a ideia de Hegel, de
Schelling e de outros grandes idealistas, como ainda por meio da ideia
positivista do progresso do mundo para a perfeição, para uma vida humana mais
racional, livre e justa no futuro. O que
essas formas de justificação de fato fazem é refletir princípios irracionais nesse
mundo fenomênico. Elas não explicam a existência do mal que triunfa no mundo;
elas não conseguem discernir o caráter trágico dos processos do mundo, e não
conseguem criar a possibilidade de construção de uma teodiceia. Para mim, o que
há de mais incompreensível, são as formas de panteísmo histórico, que é mais
disseminado do que compreendido, e que se introduziram mesmo nos mais ortodoxos
ensinamentos teológicos. Não é o panteísmo, mas o dualismo que é válido para o
mundo fenomênico, pois nesse acontece uma luta entre princípios polares
opostos. Mas esse dualismo não é final. Ainda não foi proclamada a última
palavra, e ela pertence a Deus e à Verdade divina, que está além do otimismo ou
do pessimismo humano; e é nisso que reside nossa fé final. Isso ultrapassa a
tragédia nascida da liberdade que constituiu o caminho do homem e do mundo
incluído nele. Para esse mundo além, nenhum dualismo, nenhuma divisão entre
paraíso e inferno, tão ruidosos aqui e agora, poderão ser transferidos.
A queda do homem permitiu, não um processo legal entre Deus e o homem,
do tipo que aparece nas consciências limitadas, mas uma batalha dramática; o
esforço criativo do homem responde ao chamado de Deus. Não é apenas Deus que
age no mundo, nem somente a liberdade do homem, mas também o Destino. Esse Destino
indica uma queda na esfera exterior; ele implica o misterioso abandono de Deus.
Mas trata-se apenas do caminho, para a consciência Cristã, para a religião do
Espírito. O Destino é algo que pode ser superado. Por uma questão de lógica,
seria inconsistente dizer que o processo no tempo enriquece a eternidade,
porque a eternidade abarca o tempo. Mas o que é inconsistente na esfera da lógica
pode ter um significado existencial para nós.
[1]
Jansenismo: conjunto de princípios estabelecidos por Cornélio Jansênio 1585-1638,
bispo de Ipres condenado como herege pela Igreja Católica, que enfatizam a
predestinação, negam o livre-arbítrio e sustentam ser a natureza humana por si
só incapaz do bem.
[2] “A
religião do Deus onisciente”. Selbst (próprio, seu) + Bewusst (conhecimento,
saber).
[3]
Grund foi usado por místicos como Eckhardt para designar a mais profunda
essência da alma, onde está em contato com Deus. Eckhardt fala também em Abgrund
(“abismo”) de Deus e da alma, e místicos posteriores introduziram Ungrund
(“não-fundamento”) e Urgrund (“fundamento original”). Para Boehme, o Ungrund
é o primeiro estágio do processo divino, a unidade fechada em si mesma que
depois gera Grund, o segundo estágio. Schelling também se referiu à “identidade
absoluta”, que precede todos os fundamentos e toda a existência como Urgrund
ou Ungrund. (Michael Inwood – Dicionário Hegel, pg. 153)
[4]
Escola filosófica de pensamento que enfatiza o significado, o valor e o
propósito da vida como o principal foco da filosofia.
[5]
Filosofia da existência.
[6]
Personagem do livro Os Demônios, de Dostoyevski, que alguns consideram
um precursor de Zaratustra, na temática do super-homem nietzschiano.
[7]
Literalmente, “ser atirado para fora” do Ser.
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