A guerra
A guerra é um elemento básico em nossa era. Trata-se de um fato não
apenas da vida social e histórica do homem, como também da vida cósmica.
Heráclito disse que a guerra possui um caráter universal e que tudo acaba por
ser destruído como resultado da dissensão. O caráter cósmico da guerra, na
minha opinião, é resultado do fato de que o mundo é movimento e está cercado
pelo fogo. Hobbes sustentava que o estado primitivo era um estado de guerra. A guerra
existe, não só sobre a terra, como também nos céus; os anjos e os demônios
vivem em guerra. A história do mundo consistiu, numa vasta medida, em guerras:
ela é uma história das guerras. Curtos períodos de paz, como o último quarto do
século XIX, podem dar a impressão de que seria a paz, e não a guerra, a condição
normal da história. A esse respeito, a visão dos humanistas do século XIX era
radicalmente falsa.
A guerra acontece entre povos, entre famílias, entre classes e
estados. Existem guerras dentro de grupos sociais e partidos políticos, entre
nações e estados. Finalmente, existe entre os homens uma inclinação de mesma
monta para a guerra religiosa e para a guerra ideológica. De fato, jamais
existiu uma ordem estável; sempre houve guerra, um estado interno de guerra. A
guerra é a expressão final para a realização dos fins por meio da força. E todo
homem que está imbuído de uma ideia integral que ele deseja realizar a todo
custo – como, por exemplo, para assegurar uma posição dominante para Igreja
Cristã, ou para criar um grande império, para promover uma grande revolução,
para vencer uma guerra – pode, de fato, mostrar heroísmo; mas ele pode, da
mesma maneira, transformar-se não apenas num homem violento, como numa
verdadeira fera. A guerra acontece porque existe “esse” e “outro”, porque toda
via de ação encontra alguma oposição, porque a contradição é a essência da vida
no mundo. Os seres humanos não podem viver em harmonia entre si; eles não podem
viver em harmonia dentro de nenhum grupo, seja a família, ou qualquer
associação, econômica, política, social, religiosa ou ideológica. Para quaisquer
duas pessoas, dois amigos, dois enamorados, para pais e filhos, para duas
pessoas que partilham do mesmo pensamento ou das mesmas crenças, a transição
para um estado de guerra é fácil. Egoísmo, autoafirmação, inveja, ciúme, amor
próprio, interesses e fanatismo, facilmente conduzem à guerra.
Existe uma dialética existencial da união e da divisão. As pessoas
pregam a fraternidade entre os homens, mas não pode haver união fraterna entre
os que sustentam a fraternidade entre os homens e os povos, e os que se opõem a
isso; e os que advogam a fraternidade acabam por recorrer à guerra contra os
que se opõem à fraternidade. As pessoas pregam a liberdade, mas diante de
oponentes perigosos da liberdade são obrigadas a recorrer à força para negar a
liberdade a elas. As pessoas se esforçam contra o mal em nome do bem, mas
começam a produzir o mal em suas atitudes perante os representantes do mal. As pessoas
e as nações podem estar imbuídas de ideias pacíficas de abolição da guerra, mas
em nome dessa ideia são levadas a declarar a guerra contra os que sustentam
guerras. O resultado é um círculo vicioso. A psicologia do fanatismo, da
aderência fanática e exclusiva a alguma ideia, seja religiosa, nacional,
política, social, conduz inevitavelmente à guerra. Agir implica ir de encontro
a alguma ação contrária, altercar e, em última instância, guerrear. Existe no
homem uma necessidade arraigada de disputar; existem instintos bélicos que não
podem ser desenraizados. Os Indianos, um povo pacífico, justificaram a guerra e
o assassinato no poema religioso Bhagavad-gita. A guerra cria seus próprios
tipos de sociedade, e cada estado adota seu próprio simbolismo guerreiro. Nas
guerras, o sangue humano corre abundantemente. Mas o derramamento de sangue
possui um significado peculiar e misterioso. O derramamento de sangue envenena
povos inteiros e produz mais e mais sangueira. Embora o assassinato seja
reconhecido como um pecado e um crime, as pessoas encontram sempre certas
formas idealizadas de assassinato – o duelo, a guerra, a pena capital, o
assassinato disfarçado de perseguição política; e o sangue sempre produz mais
sangue. Aqueles que tomam a espada, perecem pela espada. O derramamento de
sangue sempre causa alarme e consternação. Nos cultos orgíacos antigos o sangue
se associava ao sexo; e essa misteriosa ligação persiste até hoje. O derramamento
de sangue regeneraria os seres humanos.
A dificuldade em resolver o problema da guerra está na sua natureza
dupla. Por um lado, a guerra ocupa um estágio zoológico no desenvolvimento da
humanidade: ela é um pecado e um mal. Por outro lado, a guerra fornece uma via
de escape contra a humilhante mediocridade de todo dia; ela eleva o homem acima
da pequenez da vida. A guerra possibilita ao homem realizar feitos heroicos;
ela exige coragem, força, sacrifício, lealdade e a recusa da segurança pessoal.
Mas a guerra também desencadeia os mais baixos instintos do homem – a crueldade,
a sede de sangue, a violência, a rapina e o desejo pelo poder. O próprio
heroísmo tanto pode ser positivo, como negativo. O fascínio sedutor da glória
militar possui um caráter anti-Cristão. A exigência de deificação dos Césares,
dos generais, dos líderes, dos anti-Cristos, está sempre ligada à guerra. Devemos
distinguir isso da reverência que prestamos aos gênios e aos santos. Existem dois
destinos esperando pelo homem: de um lado a guerra, a violência, o sangue e o
heroísmo que se fundem na sedutora mentira da grandeza majestática, de outro a
pequenez, a complacência, a fruição da vida e o poder do dinheiro. Os homens e
os povos oscilam entre essas duas condições, e é com grande dificuldade que
chegam a atingir um estado terceiro e mais elevado.
A guerra – falo da verdadeira guerra, tal como a conhecemos – é uma
forma extrema de dominação da sociedade sobre as pessoas. Podemos expressar
isso de outra maneira, dizendo que se trata de uma manifestação do poder
hipnótico do coletivo sobre a personalidade. O homem pode travar uma guerra sob
condições tais que sua consciência pessoal se enfraquece e a consciência
grupal, a consciência coletiva, se fortalece. Tanto o desenvolvimento como o
aperfeiçoamento dos modos da guerra são sempre maiores do que sua
objetificação. O processo de aperfeiçoamento técnico da guerra leva a isso, a
que ela se afasta cada vez mais da guerra da cavalaria, na qual o princípio do
valor individual e pessoal era alto. Foi o uso de armas de fogo que liquidaram
a guerra dos cavaleiros. As guerras antigas, que envolviam exércitos
profissionais, eram localizadas e não envolviam outros povos e países. Mas o
aperfeiçoamento e a objetificação da guerra a tornaram totalitária; já não
existe abrigo em parte alguma. Mas por complexa que seja a arte da guerra, ela
não passa da arte de matar pessoas. A guerra é o grande mal, ou antes, ela é a
manifestação exterior de um mal que se enraíza nas profundidades do mundo
exterior. Mas uma guerra total se tornou também um mal total.
A exposição ao enorme mal e ao pecado da guerra não deve em hipótese
alguma conduzir a um pacifismo abstrato. Considerando o estado de mal de nosso
mundo, a guerra pode ser vista como um mal menor. Se a guerra agressiva e escravizante
constitui um mal absoluto, a guerra defensiva, ou a guerra pela libertação pode
ser não só justificada, como considerada santa. O mesmo pode ser dito da revolução,
que é uma forma de guerra. A revolução é sempre cruel, mas ela pode ser também
bendita. A paciência é uma virtude, mas ela pode se tornar um vício, e ser
conivente com o mal. O bem opera no ambiente concreto do mundo, que é complexo
e obscuro, e a ação do bem não pode se dar segundo uma linha reta. Muitas vezes,
o bem é obrigado a escolher o mal menor. A descontinuidade final da guerra deve
ser obtida por meio de uma mudança na condição espiritual das sociedades
humanas e da ordem social. A ordem capitalista conduz inevitavelmente à guerra.
Superar a guerra implica superar a soberania do Estado e do nacionalismo; mas
superar as revoluções requer uma reforma radical das sociedades humanas.
Justificar a guerra e até se entusiasmar com ela, ao mesmo tempo em
que se nega que a revolução seja justificada e permitida, é mentir
conscientemente. Sangue é derramado nas revoluções, mas o é muito mais nas
guerras. As revoluções são sempre acompanhadas de horrores, mas podem ser um
mal menor ante uma interminável paciência e escravidão. Assim é que pequenas revoluções
são às vezes necessárias, dentro de uma família, numa instituição do Estado, ou
numa entidade pública ou econômica. A guerra e a revolução consistem em
julgamentos sobre povos e nações que vivem em condição de rompimento dos laços
divino-humanos, em isolamento em relação não apenas ao que é humano, como em
relação a diferentes partes daquilo que é humano. Proudhon acreditava que a
guerra seria superada quando se transformasse em revolução. Não obstante, é
utópico pensar que a questão da estrutura das sociedades humanas possa ser resolvida
independentemente de uma profunda mudança no espírito do homem. A guerra sempre
conduz à barbárie; existe um conflito entre uma cultura florescente e o poder
militar. Assim, por exemplo, povos muito mais cultos foram derrotados pelos
Turcos. No mundo antigo, os Assírios, que eram um dos povos mais bélicos e
bárbaros, conquistou todos os outros povos. Não existe espaço para associar
otimistamente nesse mundo o poder com o direito, embora algumas guerras
travadas para conquistar a liberdade, ou em defesa da verdade, possam ser
associadas a um verdadeiro espírito de exaltação e revelarem a força da verdade
e do direito.
O único pacifista que foi inteiramente consistente foi Leon Tolstoi. Sua
doutrina de não-resistência ao mal pela força, seu repúdio às leis desse mundo
em nome da lei de Deus, foi além do que ele próprio supunha; ele foi mal
compreendido. Tolstoi confrontou um mundo Cristão que se habituara à sua
própria mentira, questionando-o assim: será possível alcançar na terra a
felicidade por meios celestiais? Pode o espírito, ainda que em nome do
espírito, utilizar-se da força e da violência? Poderá haver um princípio divino
no homem que seja mais forte do que a violência perpetrada pelo próprio homem? Será
possível governar as massas humanas por meio da verdade divina? Tolstoi foi
grande em despertar consciências adormecidas. Ele perguntava se pessoas que a
acreditam em Deus poderiam viver e agir da mesma forma como aquelas que não
acreditam. O que doía nele era que os Cristãos, um povo que acreditava em Deus,
vivia e lidava com seus negócios na terra como se não houvesse Deus, como se
nunca tivesse existido o Sermão da Montanha. Cristãos e não Cristãos eram semelhantes
em viver segundo as leis do mundo, e não segundo as leis de Deus. Mas a lei
desse mundo é a guerra, e a força do homem sobre o homem. Tolstoi acreditava que,
se o homem deixasse de se opor ao mal pela força, haveria uma imediata intervenção
de Deus, e que o bem então venceria. A resistência humana por meio da força impedia
a operação de Deus sobre os homens. Podemos descrever esse ponto de vista como
um misticismo quietista aplicado à história e à vida pública. Havia muita
crítica verdadeira em Tolstoi, mas a raiz de seu engano estava no fato de que
ele não entendera o mistério da divina-humanidade, das duas naturezas,
distintas, mas unidas. Ele era um monista, e sua posição estava mais próxima da
filosofia religiosa Hindu e do Budismo, do que da filosofia religiosa Cristã. Ele
expôs e atacou os males da existência histórica com grande força, mas ele não possuía
um sentido do mal metafísico. Ele estava certo em pensar que era impossível
superar o mal no homem pela força. Mas o objeto exclusivo de seu interesse era
o homem que utilizava a força em sua luta contra o mal e contra os maus; ao
mesmo tempo, ele parecia não se interessar pelo destino do homem sobre quem os
maus utilizavam sua força, ou a quem se deveria proteger, de modo a manter a
expressão exterior do mal dentro de limites. Assim, em sua visão, uma guerra
defensiva, ou uma guerra de libertação, não era diferentes de uma guerra contra
uma escravidão agressiva. Tolstoi desejava que reinasse a lei de Deus, não a
lei do mundo; a lei do amor, e não a lei da força; e nisso ele expressava uma
verdade sagrada. Mas, como poderia isso ser alcançado? O triunfo final daquilo
que ele chamava a lei do Mantenedor da Vida implicava a transformação do mundo,
vale dizer, o fim desse mundo, dessa terra, e o começo de um novo mundo e de
uma nova terra. Assim, Tolstoi se tornou um grande conscientizador dos Cristãos.
O problema metafísico da guerra reside na questão da parte
desempenhada pela força nas condições desse mundo fenomênico. Quando Tolstoi
ensina que Deus não está no poder, mas na verdade e no direito, ele está
colocando uma ideia Russa que é a antítese da posição Alemã: ele está se opondo
tanto a Hegel como a Nietsche. A verdadeira grandeza de Tolstoi está em sua exposição
do erro e da insignificância de toda espécie de grandeza que pertença a esse
mundo. Toda forma de grandeza desse mundo é miserável e desprezível; a grandeza
do poder real, de um nascimento ilustre, a grandeza militar, da riqueza e do
luxo, a grandeza de Júlio César e de Napoleão. Todas se resumem à grandeza de
um mundo fenomênico decaído, de onde é impossível extrair qualquer significância
noumênica. A grandeza histórica é demasiadamente associada à falsidade, à
malícia, à crueldade, à violência e ao sangue. Os “grandes” eventos históricos
não passam de espetáculos de circo por trás dos quais se esconde uma realidade
completamente diferente. O amor das massas humanas e de seus líderes por cerimônias,
por símbolos convencionais, por ordens, por uniformes, pela retórica rebuscada
e pelas mentiras convenientes, é uma evidência do estado do mundo e do homem no
mundo, e nos ensina o quanto é necessário mentir para governar o mundo. Não
somente os tratados religiosos e morais de Tolstoi, como seu Guerra e Paz,
estão cheios de exposições sobre a falsidade desse mundo, a falsidade da
história e da civilização. Não pode haver evidência mais forte da degradação do
homem do que a dificuldade em enfrentar o teste da vitória. O homem descobriu
em si uma força heroica para suportar a perseguição, mas não é capaz de
suportar a vitória. Depois da vitória, ele desce a um nível inferior, torna-se
violento e começa a perseguir os demais. Os Cristãos que eram atletas
espirituais no tempo das perseguições tornaram-se perseguidores assim que
obtiveram a vitória. Não existe teste maior do que aquele que a vitória traz consigo,
e podemos dizer: “Que sofram os vitoriosos desse mundo”. Existe um paradoxo na
dialética do poder e da vitória. A vitória pressupõe o poder, mas um poder moral.
Mas a vitória facilmente reencarna o poder sob a forma da força coercitiva, e destrói
seu caráter moral. Tudo isso conduz ao problema central da relação entre o
espírito e a força.
A maioria esmagadora do povo, incluindo os Cristãos, é formada por
materialistas; eles não acreditam no poder do espírito; eles só acreditam no
poder, militar ou econômico; e é fútil indignarem-se contra os Marxistas. A própria
oposição entre espírito e poder é convencional e inexata. O conceito de pode
possui muitos significados. As pessoas costumam derivá-lo da experiência do
esforço muscular e da capacidade da vontade de realizar algo, e assim por
diante. Mas a filosofia do poder é uma metafísica naturalista. A filosofia da vida
também é naturalista e conduz à apoteose do poder. A concepção naturalista do
poder foi transferida para a vida social, e mesmo para a vida eclesiástica. A Igreja
recorre constantemente ao poder do Estado, ou seja, ao poder material. É claro
que se pode falar em um poder que não seja material, como o poder espiritual. Esse
é um poder de outro tipo. Falamos do poder do amor, do poder do espírito, do
poder das grandes aquisições espirituais, ou do sacrifício, o conhecimento, da consciência
moral, do impulso criativo. Falamos do poder da verdade, do poder da liberdade,
do poder do milagre que derruba o domínio do poder da natureza.
A verdadeira antítese que existe é entre o poder e a força coercitiva.
Mas também aqui a antítese é mais complexa do que se pensa normalmente. Além da
óbvia força física que salta à vista, existe também uma força psicológica mais
difícil de notar, à qual as pessoas estão expostas constantemente. Esse tipo de
força coercitiva pode mesmo ser mais terrível do que a violência física. Existe
em relação a isso uma complexa escala de graus de violência. A educação, o medo
religioso, os costumes familiares, a propaganda, a sugestão diária dos jornais,
a dominação dos partidos políticos, o poder do dinheiro, tudo são formas de
força coercitiva, e existem muitas mais. O homem está exposto à violência não
apenas através de ações corporais, como também por meio de ações que atingem
sua mente e o mantêm sob o guante do medo. Um regime baseado no terror não
consiste simplesmente numa questão de ações sobre a esfera material, como prisões,
torturas e execuções, mas ele age acima de tudo sobre a mente humana e sobre o
espírito; ele procura inspirar o medo e manter as pessoas num estado de medo. É
assim que uma força desse tipo foi exercida sobre as pessoas na Idade Média,
através do medo dos tormentos do inferno. Existe sempre esse tipo de força
coercitiva na qual a liberdade interior não participa da influência que está
sendo exercida. O poder, no mau sentido, está sempre associado com a negação a
liberdade do outro. O homem violento gosta da liberdade para si, mas a nega para
os demais. Aqueles que mantêm regimes despóticos sempre reservam a liberdade
para si mesmos; eles concedem a si mesmos uma enorme liberdade de movimentos;
mas seria melhor estabelecer limites para isso.
O poder em si não é um valor, ele não é um bem. Os mais altos valores
nesse mundo são mais fracos do que os valores mais baixos; os valores
espirituais não são tão fortes como os materiais. O profeta, o filósofo ou o
poeta são menos fortes do que o policial ou o soldado. O maior poder de todos,
nesse mundo empírico decaído, é o poder do dinheiro e das armas poderosas. Os maiores
valores espirituais podem ser destruídos por armas. Os soldados Romanos eram
mais fortes do que o Filho de Deus. Assim sendo, o uso da força pela força é
ímpio e inumano. O culto ao poder é o culto dos mais baixos poderes materiais;
ele mostra a descrença no poder do espírito e no poder da liberdade. Mas obviamente
a antítese do falso culto não consiste na defesa da fraqueza e da impotência,
mas no espírito, na liberdade, na vida social, no direito e na justiça. A lei
desse mundo natural fenomênico é a luta entre indivíduos, famílias, classes,
tribos, nações, estados e impérios pela existência e a dominação. Essa é a lei
da guerra. O demônio da vontade do poder atormenta os homens e os povos. Mas nesse
mundo terrível o princípio do espírito, da liberdade, da humanidade e da
misericórdia pode forçar seu caminho. Cristo se colocou contra aqueles que eram
os “primeiros”, ou seja, os fortes. Na verdade, o Cristianismo é radicalmente
contrário ao culto ao poder. Ele é contra a “seleção” natural. O culto ao poder
não é um culto Russo.
A guerra coloca a questão ainda mais aguda da relação entre a pessoa e
seu inimigo. A dialética da guerra conduz a isso, a deixar de considerar o
inimigo como um ser humano, de maneira a tornar permitido tudo contra ele. a
cavalaria requeria um comportamento de cavalheirismo mesmo contra o inimigo, e
essa atitude se manteve por muito tempo. O inimigo era enterrado com honras
militares. Mas a guerra deixou de ser cavalheiresca, e por isso mesmo, se
tornou total. A crueldade se tornou permitida e encorajada em relação ao
inimigo. Se a crueldade for praticada contra os amigos e vizinhos de alguém, eles
se tornarão seus inimigos. A dialética da guerra, que a transformou por
completo e que vem lhe infundido um caráter cada vez menos humano, se deve ao
extraordinário desenvolvimento dos aspectos técnicos da guerra. A destruição e
o assassinato, que alcançaram uma escala gigantesca e se se voltam contra povos
inteiros, acabam, em última instância, por levar á autonegação da guerra. Como resultado
das novas armas, dos gases venenosos e da bomba atômica, a guerra vem se transformando
numa coisa nova, para a qual ainda não existe nome. As armas de destruição são
tão terríveis quando caem nas mãos dos homens maus que têm o poder de usá-las,
que a questão do estado espiritual das sociedades humanas adquire agora uma
forma particularmente aguda. A idealização romântica da guerra está ligada ao culto
do heroísmo e dos heróis. Isso corresponde a algo que está profundamente arraigado
na natureza humana. Mas o culto aos heróis era um antigo costume Greco-Romano. Ele
renasceu no mundo Cristão com a cavalaria. Na civilização burguesa a cavalaria
desapareceu, mas continuou a existir a associação entre a guerra e uma certa
grandeza majestática. A última Guerra Mundial revelou extraordinário heroísmo
de parte a parte, e também uma extraordinária brutalidade, e assim os limites
que haviam sido fixados pelo espírito cavalheiresco em relação ao comportamento
perante o inimigo foram violados. O heroísmo Cristão transfigurado não teve
chance alguma de se mostrar.
Fedorov acreditava na possibilidade de acabar com as guerras,
dirigindo os inextirpáveis instintos bélicos do homem para uma outra esfera da
existência, para aluta contra as forças elementais da natureza. Isso é uma
evidência da elevação moral do pensamento de Fedorov, mas ao mesmo tempo revela
que ele subestimava o poder do mal no homem e no mundo. A guerra, repito, é um
mal, mas nem sempre é o maior dos males; às vezes ela é um mal menor, como, por
exemplo, quando ela leva à libertação de males maiores. A guerra, enquanto fenômeno
mundial, existe porque há uma insuficiência de poder espiritual. Os homens não
acreditam no poder do espírito; eles apenas acreditam no espírito do poder. Ao invés
de ter seu ideal numa vida e numa cultura espirituais, eles o veem no Estado e
no aumento de sua força. Os fins da vida são substituídos pelos seus meios. Essa
substituição dos fins pelos meios, essa transformação dos meios em propósitos
autossuficientes, resulta num dos processos mais sérios e angustiantes da
história. Isso sempre acarretará a depreciação do espírito. Curvar-se diante do
poder constitui um falso otimismo, um falso monismo. O grito do conquistador
que ressoa pelo mundo é quase sempre um sinal de que o mundo jaz no mal. Quando
o poderoso se permite derramar sangue, sem a permissão de Deus, isso indica um
rompimento com Deus. Esse mundo está por demais indiferente ao fato de que a
verdade foi crucificada. O reinado da guerra, o domínio do poder militar no
mundo é uma expressão da descrença no poder da própria verdade, no poder do
espírito e no poder de Deus. Se o espírito é poder, e o maior dos poderes, ele
é poder num sentido diferente daquele que é considerado pelo mundo. Ele é o
poder capaz de remover montanhas. A irrupção do espírito no mundo é possível, e
foi por meio de sua manifestação que o homem foi mantido vivo, e que a história
se move em direção ao seu final supra-histórico, em direção ao Reino de Deus.
Será possível a vitória do humano nas condições de nosso mundo? A verdadeira
humanidade precisa afirmar a si mesma, mesmo nas terríveis circunstâncias da
guerra. Mas sua vitória final é um assunto que está além dos confins desse mundo.
A guerra, em todas as suas manifestações, é uma decorrência do rompimento da
ligação divino-humana, da autonomia sem deus do poder auto afirmativo no mundo
e no homem. A vitória sobre o mal da guerra, a vitória sobre o mal em geral,
pressupõe da mesma forma uma mudança radical na consciência humana, ela assume
a derrota da objetificação como sendo uma falsa orientação da consciência. O inimigo
é alguém que foi transformado no mais alto grau em objeto, vale dizer, ele foi existencialmente
dissociado e isolado de nós ao máximo possível. Só é possível combater o
objeto; combater o sujeito é impossível. Mas vivemos num mundo de
objetificação, num mundo de dissociação, e é por esse motivo que a guerra nos
domina, a nós e ao mundo. O mundo da verdadeira humanidade, da espiritualidade,
da beleza e da imortalidade, é um mundo diferente do mundo do medo e do
sofrimento, do mal e da guerra, no qual temos vivido todo esse tempo.
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