quarta-feira, 1 de abril de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo VII





A guerra


A guerra é um elemento básico em nossa era. Trata-se de um fato não apenas da vida social e histórica do homem, como também da vida cósmica. Heráclito disse que a guerra possui um caráter universal e que tudo acaba por ser destruído como resultado da dissensão. O caráter cósmico da guerra, na minha opinião, é resultado do fato de que o mundo é movimento e está cercado pelo fogo. Hobbes sustentava que o estado primitivo era um estado de guerra. A guerra existe, não só sobre a terra, como também nos céus; os anjos e os demônios vivem em guerra. A história do mundo consistiu, numa vasta medida, em guerras: ela é uma história das guerras. Curtos períodos de paz, como o último quarto do século XIX, podem dar a impressão de que seria a paz, e não a guerra, a condição normal da história. A esse respeito, a visão dos humanistas do século XIX era radicalmente falsa.

A guerra acontece entre povos, entre famílias, entre classes e estados. Existem guerras dentro de grupos sociais e partidos políticos, entre nações e estados. Finalmente, existe entre os homens uma inclinação de mesma monta para a guerra religiosa e para a guerra ideológica. De fato, jamais existiu uma ordem estável; sempre houve guerra, um estado interno de guerra. A guerra é a expressão final para a realização dos fins por meio da força. E todo homem que está imbuído de uma ideia integral que ele deseja realizar a todo custo – como, por exemplo, para assegurar uma posição dominante para Igreja Cristã, ou para criar um grande império, para promover uma grande revolução, para vencer uma guerra – pode, de fato, mostrar heroísmo; mas ele pode, da mesma maneira, transformar-se não apenas num homem violento, como numa verdadeira fera. A guerra acontece porque existe “esse” e “outro”, porque toda via de ação encontra alguma oposição, porque a contradição é a essência da vida no mundo. Os seres humanos não podem viver em harmonia entre si; eles não podem viver em harmonia dentro de nenhum grupo, seja a família, ou qualquer associação, econômica, política, social, religiosa ou ideológica. Para quaisquer duas pessoas, dois amigos, dois enamorados, para pais e filhos, para duas pessoas que partilham do mesmo pensamento ou das mesmas crenças, a transição para um estado de guerra é fácil. Egoísmo, autoafirmação, inveja, ciúme, amor próprio, interesses e fanatismo, facilmente conduzem à guerra.

Existe uma dialética existencial da união e da divisão. As pessoas pregam a fraternidade entre os homens, mas não pode haver união fraterna entre os que sustentam a fraternidade entre os homens e os povos, e os que se opõem a isso; e os que advogam a fraternidade acabam por recorrer à guerra contra os que se opõem à fraternidade. As pessoas pregam a liberdade, mas diante de oponentes perigosos da liberdade são obrigadas a recorrer à força para negar a liberdade a elas. As pessoas se esforçam contra o mal em nome do bem, mas começam a produzir o mal em suas atitudes perante os representantes do mal. As pessoas e as nações podem estar imbuídas de ideias pacíficas de abolição da guerra, mas em nome dessa ideia são levadas a declarar a guerra contra os que sustentam guerras. O resultado é um círculo vicioso. A psicologia do fanatismo, da aderência fanática e exclusiva a alguma ideia, seja religiosa, nacional, política, social, conduz inevitavelmente à guerra. Agir implica ir de encontro a alguma ação contrária, altercar e, em última instância, guerrear. Existe no homem uma necessidade arraigada de disputar; existem instintos bélicos que não podem ser desenraizados. Os Indianos, um povo pacífico, justificaram a guerra e o assassinato no poema religioso Bhagavad-gita. A guerra cria seus próprios tipos de sociedade, e cada estado adota seu próprio simbolismo guerreiro. Nas guerras, o sangue humano corre abundantemente. Mas o derramamento de sangue possui um significado peculiar e misterioso. O derramamento de sangue envenena povos inteiros e produz mais e mais sangueira. Embora o assassinato seja reconhecido como um pecado e um crime, as pessoas encontram sempre certas formas idealizadas de assassinato – o duelo, a guerra, a pena capital, o assassinato disfarçado de perseguição política; e o sangue sempre produz mais sangue. Aqueles que tomam a espada, perecem pela espada. O derramamento de sangue sempre causa alarme e consternação. Nos cultos orgíacos antigos o sangue se associava ao sexo; e essa misteriosa ligação persiste até hoje. O derramamento de sangue regeneraria os seres humanos.

A dificuldade em resolver o problema da guerra está na sua natureza dupla. Por um lado, a guerra ocupa um estágio zoológico no desenvolvimento da humanidade: ela é um pecado e um mal. Por outro lado, a guerra fornece uma via de escape contra a humilhante mediocridade de todo dia; ela eleva o homem acima da pequenez da vida. A guerra possibilita ao homem realizar feitos heroicos; ela exige coragem, força, sacrifício, lealdade e a recusa da segurança pessoal. Mas a guerra também desencadeia os mais baixos instintos do homem – a crueldade, a sede de sangue, a violência, a rapina e o desejo pelo poder. O próprio heroísmo tanto pode ser positivo, como negativo. O fascínio sedutor da glória militar possui um caráter anti-Cristão. A exigência de deificação dos Césares, dos generais, dos líderes, dos anti-Cristos, está sempre ligada à guerra. Devemos distinguir isso da reverência que prestamos aos gênios e aos santos. Existem dois destinos esperando pelo homem: de um lado a guerra, a violência, o sangue e o heroísmo que se fundem na sedutora mentira da grandeza majestática, de outro a pequenez, a complacência, a fruição da vida e o poder do dinheiro. Os homens e os povos oscilam entre essas duas condições, e é com grande dificuldade que chegam a atingir um estado terceiro e mais elevado.

A guerra – falo da verdadeira guerra, tal como a conhecemos – é uma forma extrema de dominação da sociedade sobre as pessoas. Podemos expressar isso de outra maneira, dizendo que se trata de uma manifestação do poder hipnótico do coletivo sobre a personalidade. O homem pode travar uma guerra sob condições tais que sua consciência pessoal se enfraquece e a consciência grupal, a consciência coletiva, se fortalece. Tanto o desenvolvimento como o aperfeiçoamento dos modos da guerra são sempre maiores do que sua objetificação. O processo de aperfeiçoamento técnico da guerra leva a isso, a que ela se afasta cada vez mais da guerra da cavalaria, na qual o princípio do valor individual e pessoal era alto. Foi o uso de armas de fogo que liquidaram a guerra dos cavaleiros. As guerras antigas, que envolviam exércitos profissionais, eram localizadas e não envolviam outros povos e países. Mas o aperfeiçoamento e a objetificação da guerra a tornaram totalitária; já não existe abrigo em parte alguma. Mas por complexa que seja a arte da guerra, ela não passa da arte de matar pessoas. A guerra é o grande mal, ou antes, ela é a manifestação exterior de um mal que se enraíza nas profundidades do mundo exterior. Mas uma guerra total se tornou também um mal total.

A exposição ao enorme mal e ao pecado da guerra não deve em hipótese alguma conduzir a um pacifismo abstrato. Considerando o estado de mal de nosso mundo, a guerra pode ser vista como um mal menor. Se a guerra agressiva e escravizante constitui um mal absoluto, a guerra defensiva, ou a guerra pela libertação pode ser não só justificada, como considerada santa. O mesmo pode ser dito da revolução, que é uma forma de guerra. A revolução é sempre cruel, mas ela pode ser também bendita. A paciência é uma virtude, mas ela pode se tornar um vício, e ser conivente com o mal. O bem opera no ambiente concreto do mundo, que é complexo e obscuro, e a ação do bem não pode se dar segundo uma linha reta. Muitas vezes, o bem é obrigado a escolher o mal menor. A descontinuidade final da guerra deve ser obtida por meio de uma mudança na condição espiritual das sociedades humanas e da ordem social. A ordem capitalista conduz inevitavelmente à guerra. Superar a guerra implica superar a soberania do Estado e do nacionalismo; mas superar as revoluções requer uma reforma radical das sociedades humanas.

Justificar a guerra e até se entusiasmar com ela, ao mesmo tempo em que se nega que a revolução seja justificada e permitida, é mentir conscientemente. Sangue é derramado nas revoluções, mas o é muito mais nas guerras. As revoluções são sempre acompanhadas de horrores, mas podem ser um mal menor ante uma interminável paciência e escravidão. Assim é que pequenas revoluções são às vezes necessárias, dentro de uma família, numa instituição do Estado, ou numa entidade pública ou econômica. A guerra e a revolução consistem em julgamentos sobre povos e nações que vivem em condição de rompimento dos laços divino-humanos, em isolamento em relação não apenas ao que é humano, como em relação a diferentes partes daquilo que é humano. Proudhon acreditava que a guerra seria superada quando se transformasse em revolução. Não obstante, é utópico pensar que a questão da estrutura das sociedades humanas possa ser resolvida independentemente de uma profunda mudança no espírito do homem. A guerra sempre conduz à barbárie; existe um conflito entre uma cultura florescente e o poder militar. Assim, por exemplo, povos muito mais cultos foram derrotados pelos Turcos. No mundo antigo, os Assírios, que eram um dos povos mais bélicos e bárbaros, conquistou todos os outros povos. Não existe espaço para associar otimistamente nesse mundo o poder com o direito, embora algumas guerras travadas para conquistar a liberdade, ou em defesa da verdade, possam ser associadas a um verdadeiro espírito de exaltação e revelarem a força da verdade e do direito.

O único pacifista que foi inteiramente consistente foi Leon Tolstoi. Sua doutrina de não-resistência ao mal pela força, seu repúdio às leis desse mundo em nome da lei de Deus, foi além do que ele próprio supunha; ele foi mal compreendido. Tolstoi confrontou um mundo Cristão que se habituara à sua própria mentira, questionando-o assim: será possível alcançar na terra a felicidade por meios celestiais? Pode o espírito, ainda que em nome do espírito, utilizar-se da força e da violência? Poderá haver um princípio divino no homem que seja mais forte do que a violência perpetrada pelo próprio homem? Será possível governar as massas humanas por meio da verdade divina? Tolstoi foi grande em despertar consciências adormecidas. Ele perguntava se pessoas que a acreditam em Deus poderiam viver e agir da mesma forma como aquelas que não acreditam. O que doía nele era que os Cristãos, um povo que acreditava em Deus, vivia e lidava com seus negócios na terra como se não houvesse Deus, como se nunca tivesse existido o Sermão da Montanha. Cristãos e não Cristãos eram semelhantes em viver segundo as leis do mundo, e não segundo as leis de Deus. Mas a lei desse mundo é a guerra, e a força do homem sobre o homem. Tolstoi acreditava que, se o homem deixasse de se opor ao mal pela força, haveria uma imediata intervenção de Deus, e que o bem então venceria. A resistência humana por meio da força impedia a operação de Deus sobre os homens. Podemos descrever esse ponto de vista como um misticismo quietista aplicado à história e à vida pública. Havia muita crítica verdadeira em Tolstoi, mas a raiz de seu engano estava no fato de que ele não entendera o mistério da divina-humanidade, das duas naturezas, distintas, mas unidas. Ele era um monista, e sua posição estava mais próxima da filosofia religiosa Hindu e do Budismo, do que da filosofia religiosa Cristã. Ele expôs e atacou os males da existência histórica com grande força, mas ele não possuía um sentido do mal metafísico. Ele estava certo em pensar que era impossível superar o mal no homem pela força. Mas o objeto exclusivo de seu interesse era o homem que utilizava a força em sua luta contra o mal e contra os maus; ao mesmo tempo, ele parecia não se interessar pelo destino do homem sobre quem os maus utilizavam sua força, ou a quem se deveria proteger, de modo a manter a expressão exterior do mal dentro de limites. Assim, em sua visão, uma guerra defensiva, ou uma guerra de libertação, não era diferentes de uma guerra contra uma escravidão agressiva. Tolstoi desejava que reinasse a lei de Deus, não a lei do mundo; a lei do amor, e não a lei da força; e nisso ele expressava uma verdade sagrada. Mas, como poderia isso ser alcançado? O triunfo final daquilo que ele chamava a lei do Mantenedor da Vida implicava a transformação do mundo, vale dizer, o fim desse mundo, dessa terra, e o começo de um novo mundo e de uma nova terra. Assim, Tolstoi se tornou um grande conscientizador dos Cristãos.

O problema metafísico da guerra reside na questão da parte desempenhada pela força nas condições desse mundo fenomênico. Quando Tolstoi ensina que Deus não está no poder, mas na verdade e no direito, ele está colocando uma ideia Russa que é a antítese da posição Alemã: ele está se opondo tanto a Hegel como a Nietsche. A verdadeira grandeza de Tolstoi está em sua exposição do erro e da insignificância de toda espécie de grandeza que pertença a esse mundo. Toda forma de grandeza desse mundo é miserável e desprezível; a grandeza do poder real, de um nascimento ilustre, a grandeza militar, da riqueza e do luxo, a grandeza de Júlio César e de Napoleão. Todas se resumem à grandeza de um mundo fenomênico decaído, de onde é impossível extrair qualquer significância noumênica. A grandeza histórica é demasiadamente associada à falsidade, à malícia, à crueldade, à violência e ao sangue. Os “grandes” eventos históricos não passam de espetáculos de circo por trás dos quais se esconde uma realidade completamente diferente. O amor das massas humanas e de seus líderes por cerimônias, por símbolos convencionais, por ordens, por uniformes, pela retórica rebuscada e pelas mentiras convenientes, é uma evidência do estado do mundo e do homem no mundo, e nos ensina o quanto é necessário mentir para governar o mundo. Não somente os tratados religiosos e morais de Tolstoi, como seu Guerra e Paz, estão cheios de exposições sobre a falsidade desse mundo, a falsidade da história e da civilização. Não pode haver evidência mais forte da degradação do homem do que a dificuldade em enfrentar o teste da vitória. O homem descobriu em si uma força heroica para suportar a perseguição, mas não é capaz de suportar a vitória. Depois da vitória, ele desce a um nível inferior, torna-se violento e começa a perseguir os demais. Os Cristãos que eram atletas espirituais no tempo das perseguições tornaram-se perseguidores assim que obtiveram a vitória. Não existe teste maior do que aquele que a vitória traz consigo, e podemos dizer: “Que sofram os vitoriosos desse mundo”. Existe um paradoxo na dialética do poder e da vitória. A vitória pressupõe o poder, mas um poder moral. Mas a vitória facilmente reencarna o poder sob a forma da força coercitiva, e destrói seu caráter moral. Tudo isso conduz ao problema central da relação entre o espírito e a força.

A maioria esmagadora do povo, incluindo os Cristãos, é formada por materialistas; eles não acreditam no poder do espírito; eles só acreditam no poder, militar ou econômico; e é fútil indignarem-se contra os Marxistas. A própria oposição entre espírito e poder é convencional e inexata. O conceito de pode possui muitos significados. As pessoas costumam derivá-lo da experiência do esforço muscular e da capacidade da vontade de realizar algo, e assim por diante. Mas a filosofia do poder é uma metafísica naturalista. A filosofia da vida também é naturalista e conduz à apoteose do poder. A concepção naturalista do poder foi transferida para a vida social, e mesmo para a vida eclesiástica. A Igreja recorre constantemente ao poder do Estado, ou seja, ao poder material. É claro que se pode falar em um poder que não seja material, como o poder espiritual. Esse é um poder de outro tipo. Falamos do poder do amor, do poder do espírito, do poder das grandes aquisições espirituais, ou do sacrifício, o conhecimento, da consciência moral, do impulso criativo. Falamos do poder da verdade, do poder da liberdade, do poder do milagre que derruba o domínio do poder da natureza.

A verdadeira antítese que existe é entre o poder e a força coercitiva. Mas também aqui a antítese é mais complexa do que se pensa normalmente. Além da óbvia força física que salta à vista, existe também uma força psicológica mais difícil de notar, à qual as pessoas estão expostas constantemente. Esse tipo de força coercitiva pode mesmo ser mais terrível do que a violência física. Existe em relação a isso uma complexa escala de graus de violência. A educação, o medo religioso, os costumes familiares, a propaganda, a sugestão diária dos jornais, a dominação dos partidos políticos, o poder do dinheiro, tudo são formas de força coercitiva, e existem muitas mais. O homem está exposto à violência não apenas através de ações corporais, como também por meio de ações que atingem sua mente e o mantêm sob o guante do medo. Um regime baseado no terror não consiste simplesmente numa questão de ações sobre a esfera material, como prisões, torturas e execuções, mas ele age acima de tudo sobre a mente humana e sobre o espírito; ele procura inspirar o medo e manter as pessoas num estado de medo. É assim que uma força desse tipo foi exercida sobre as pessoas na Idade Média, através do medo dos tormentos do inferno. Existe sempre esse tipo de força coercitiva na qual a liberdade interior não participa da influência que está sendo exercida. O poder, no mau sentido, está sempre associado com a negação a liberdade do outro. O homem violento gosta da liberdade para si, mas a nega para os demais. Aqueles que mantêm regimes despóticos sempre reservam a liberdade para si mesmos; eles concedem a si mesmos uma enorme liberdade de movimentos; mas seria melhor estabelecer limites para isso.

O poder em si não é um valor, ele não é um bem. Os mais altos valores nesse mundo são mais fracos do que os valores mais baixos; os valores espirituais não são tão fortes como os materiais. O profeta, o filósofo ou o poeta são menos fortes do que o policial ou o soldado. O maior poder de todos, nesse mundo empírico decaído, é o poder do dinheiro e das armas poderosas. Os maiores valores espirituais podem ser destruídos por armas. Os soldados Romanos eram mais fortes do que o Filho de Deus. Assim sendo, o uso da força pela força é ímpio e inumano. O culto ao poder é o culto dos mais baixos poderes materiais; ele mostra a descrença no poder do espírito e no poder da liberdade. Mas obviamente a antítese do falso culto não consiste na defesa da fraqueza e da impotência, mas no espírito, na liberdade, na vida social, no direito e na justiça. A lei desse mundo natural fenomênico é a luta entre indivíduos, famílias, classes, tribos, nações, estados e impérios pela existência e a dominação. Essa é a lei da guerra. O demônio da vontade do poder atormenta os homens e os povos. Mas nesse mundo terrível o princípio do espírito, da liberdade, da humanidade e da misericórdia pode forçar seu caminho. Cristo se colocou contra aqueles que eram os “primeiros”, ou seja, os fortes. Na verdade, o Cristianismo é radicalmente contrário ao culto ao poder. Ele é contra a “seleção” natural. O culto ao poder não é um culto Russo.

A guerra coloca a questão ainda mais aguda da relação entre a pessoa e seu inimigo. A dialética da guerra conduz a isso, a deixar de considerar o inimigo como um ser humano, de maneira a tornar permitido tudo contra ele. a cavalaria requeria um comportamento de cavalheirismo mesmo contra o inimigo, e essa atitude se manteve por muito tempo. O inimigo era enterrado com honras militares. Mas a guerra deixou de ser cavalheiresca, e por isso mesmo, se tornou total. A crueldade se tornou permitida e encorajada em relação ao inimigo. Se a crueldade for praticada contra os amigos e vizinhos de alguém, eles se tornarão seus inimigos. A dialética da guerra, que a transformou por completo e que vem lhe infundido um caráter cada vez menos humano, se deve ao extraordinário desenvolvimento dos aspectos técnicos da guerra. A destruição e o assassinato, que alcançaram uma escala gigantesca e se se voltam contra povos inteiros, acabam, em última instância, por levar á autonegação da guerra. Como resultado das novas armas, dos gases venenosos e da bomba atômica, a guerra vem se transformando numa coisa nova, para a qual ainda não existe nome. As armas de destruição são tão terríveis quando caem nas mãos dos homens maus que têm o poder de usá-las, que a questão do estado espiritual das sociedades humanas adquire agora uma forma particularmente aguda. A idealização romântica da guerra está ligada ao culto do heroísmo e dos heróis. Isso corresponde a algo que está profundamente arraigado na natureza humana. Mas o culto aos heróis era um antigo costume Greco-Romano. Ele renasceu no mundo Cristão com a cavalaria. Na civilização burguesa a cavalaria desapareceu, mas continuou a existir a associação entre a guerra e uma certa grandeza majestática. A última Guerra Mundial revelou extraordinário heroísmo de parte a parte, e também uma extraordinária brutalidade, e assim os limites que haviam sido fixados pelo espírito cavalheiresco em relação ao comportamento perante o inimigo foram violados. O heroísmo Cristão transfigurado não teve chance alguma de se mostrar.

Fedorov acreditava na possibilidade de acabar com as guerras, dirigindo os inextirpáveis instintos bélicos do homem para uma outra esfera da existência, para aluta contra as forças elementais da natureza. Isso é uma evidência da elevação moral do pensamento de Fedorov, mas ao mesmo tempo revela que ele subestimava o poder do mal no homem e no mundo. A guerra, repito, é um mal, mas nem sempre é o maior dos males; às vezes ela é um mal menor, como, por exemplo, quando ela leva à libertação de males maiores. A guerra, enquanto fenômeno mundial, existe porque há uma insuficiência de poder espiritual. Os homens não acreditam no poder do espírito; eles apenas acreditam no espírito do poder. Ao invés de ter seu ideal numa vida e numa cultura espirituais, eles o veem no Estado e no aumento de sua força. Os fins da vida são substituídos pelos seus meios. Essa substituição dos fins pelos meios, essa transformação dos meios em propósitos autossuficientes, resulta num dos processos mais sérios e angustiantes da história. Isso sempre acarretará a depreciação do espírito. Curvar-se diante do poder constitui um falso otimismo, um falso monismo. O grito do conquistador que ressoa pelo mundo é quase sempre um sinal de que o mundo jaz no mal. Quando o poderoso se permite derramar sangue, sem a permissão de Deus, isso indica um rompimento com Deus. Esse mundo está por demais indiferente ao fato de que a verdade foi crucificada. O reinado da guerra, o domínio do poder militar no mundo é uma expressão da descrença no poder da própria verdade, no poder do espírito e no poder de Deus. Se o espírito é poder, e o maior dos poderes, ele é poder num sentido diferente daquele que é considerado pelo mundo. Ele é o poder capaz de remover montanhas. A irrupção do espírito no mundo é possível, e foi por meio de sua manifestação que o homem foi mantido vivo, e que a história se move em direção ao seu final supra-histórico, em direção ao Reino de Deus.

Será possível a vitória do humano nas condições de nosso mundo? A verdadeira humanidade precisa afirmar a si mesma, mesmo nas terríveis circunstâncias da guerra. Mas sua vitória final é um assunto que está além dos confins desse mundo. A guerra, em todas as suas manifestações, é uma decorrência do rompimento da ligação divino-humana, da autonomia sem deus do poder auto afirmativo no mundo e no homem. A vitória sobre o mal da guerra, a vitória sobre o mal em geral, pressupõe da mesma forma uma mudança radical na consciência humana, ela assume a derrota da objetificação como sendo uma falsa orientação da consciência. O inimigo é alguém que foi transformado no mais alto grau em objeto, vale dizer, ele foi existencialmente dissociado e isolado de nós ao máximo possível. Só é possível combater o objeto; combater o sujeito é impossível. Mas vivemos num mundo de objetificação, num mundo de dissociação, e é por esse motivo que a guerra nos domina, a nós e ao mundo. O mundo da verdadeira humanidade, da espiritualidade, da beleza e da imortalidade, é um mundo diferente do mundo do medo e do sofrimento, do mal e da guerra, no qual temos vivido todo esse tempo.

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