A espiritualidade
A aquisição da espiritualidade constitui um problema central na
existência humana, mas a espiritualidade precisa ser tomada num sentido mais
amplo do que aquele em que costuma ser entendida. A espiritualidade é
necessária, mesmo na luta que no homem sustenta nesse mundo. Sem a
espiritualidade é impossível fazer sacrifícios ou executar feitos heroicos.
Alegra-se com a luz do sol constitui uma alegria espiritual: o sol é
espiritual. A forma do corpo humano e o semblante humano são espirituais. Uma
grande espiritualidade pode existir num homem que, à primeira vista de seus
pensamentos, e, em muitos casos, tendo de si um falso entendimento, se
considere como materialista. Chernishevsky[1]
pode ser tomado como exemplo disso. Se for possível construir uma filosofia da
espiritualidade, ela não teria a forma da matéria abstrata que recebeu essa
denominação nas escolas, e que se parece com uma metafísica naturalista. O espírito
não é uma substância. Ele não só constitui uma realidade diferente daquela do
mundo natural, como ainda é uma “realidade” num sentido totalmente diferente. O
espírito é liberdade e energia livre, que irrompe no mundo natural e histórico.
É essencial afirma a relativa verdade do dualismo, sem o qual a independência
da vida espiritual não pode ser entendida. Mas o dualismo não é entre espírito
e matéria, ou entre espírito e corpo. O espírito é liberdade, não natureza. O
espírito não é um constituinte da natureza humana; mais do que isso, ele é o
mais alto valor qualitativo. A qualidade espiritual e o valor espiritual do
homem são determinados, não pela natureza de qualquer espécie, mas pela união
da liberdade e da graça.
O espírito é revolucionário em relação ao mundo natural e histórico;
ele irrompe desde o outro mundo nesse mundo, e derruba a ordem coercitiva desse
mundo. O elemento fundamental da existência do mundo consiste na libertação da
escravidão. Mas o erro fatal dos libertadores foi o de supor que a libertação
provém da matéria, da natureza. A liberdade provém do espírito. Um erro ainda
mais fatal, e esse, de parte dos defensores do espírito, foi o de pensar que o
espírito não liberta, mas que ele está ligado e subordinado à autoridade. Tanto
um grupo como outro se enganam a respeito do espírito, e prepararam o caminho
de um verdadeiro progrom sobre a espiritualidade. O espírito não é
apenas liberdade, ele também é sentido. O sentido do mundo é espiritual. Quando
se diz que a vida e o mundo não têm sentido, a existência de um sentido mais
elevado do que a vida e o mundo e consentido por isso mesmo, ou seja, o
julgamento é estabelecido sobre a falta de sentido da existência do mundo, do
ponto de vista do espírito. O filósofo Alemão Karl Jaspers (1884-1969) diz com
razão que o espírito ocupa uma posição paradoxal entre opostos. O espírito e a
espiritualidade refazem, transformam e iluminam o mundo natural e histórico;
eles lhe trazem liberdade e sentido.
A objetificação do espírito aparece quando ele é visto como encarnação
e realização. Mas o espírito objetificado é um espírito alienado de si mesmo,
um espírito que perdeu seu fogo, sua juventude e força criativa; é um espírito
acomodado ao mundo do dia-a-dia, à mediocridade. Não podemos falar em um
espírito objetivo, como falou Hegel. A verdade é que só existe o espírito
subjetivo, ou um espírito que se coloca além do subjetivo e do objetivo.
“Espiritualidade objetiva” é uma expressão sem sentido. A espiritualidade é
sempre subjetiva; ela está fora da objetificação. A objetificação é, como se
fosse, a atrofia e a mortificação do espírito. A espiritualidade está fora do
mundo fenomênico objetificado; não que ela não possa se desenvolver fora dele,
ela simplesmente irrompe dentro dele. Não podemos acreditar num triunfo
progressivo no desenvolvimento do espírito e da espiritualidade na história,
como acreditava Hegel. As mais altas expressões da espiritualidade no mundo não
transmitem a impressão de serem resultado de um desenvolvimento gradual do
espírito na história.
Alcançar a espiritualidade consiste na libertação do poder do mundo e
do meio social. É como se fosse uma irrupção do noumênico no fenomênico. O crescimento
da espiritualidade no homem não pertence à regularidade rítmica do processo
evolutivo. Onde opera a liberdade não existe processo algum controlado pela
necessidade; onde age a criatividade não existe evolução no sentido naturalista
do termo. A espiritualidade é uma incumbência, um problema colocado para o
homem em relação à vida. Existe um paradoxo no fato de que o crescimento da
espiritualidade é realizado pelo próprio esforço espiritual que existe no
homem; mas esse crescimento não pode se o resultado de condições que não sejam
espirituais. O mais elevado não pode provir do mais baixo, daquilo que não
contém em si a semente do mais alto, que não contem a potencialidade do mais
alto. O desenvolvimento espiritual é a realização do possível. Uma experiência
de vida que não contenha nada de espiritual pode parecer estimular uma força
espiritual num homem; por exemplo, o sofrimento devido a uma doença ou devido
ao desejo por justiça, contra uma injustiça ou uma traição; mas, na realidade, o
despertar da força espiritual pressupõe que ela sempre tenha estado ali,
latente, num estado oculto e adormecido. A liberdade, que se opõe à natureza, é
sempre espírito. O erro da teoria evolucionista natural consiste na suposição
de que o mais baixo pode dar origem ao mais alto, de que o material tem poder
para criar o espiritual. O poder espiritual no homem não é humano em sua
origem, ele é divino-humano. A espiritualidade é uma condição divino-humana. Em
suas profundezas espirituais o homem toca o divino, e é dessa fonte divina que
ele recebe seu suporte.
Não existe uma evolução necessária na história espiritual do mundo,
como supunha Hegel e outros depois dele. O que vemos na história do mundo é a
objetificação do espírito. Mas a objetificação do espírito corresponde à sua
diminuição. A objetificação é o contrário da transcendência, vale dizer, do
movimento em direção a Deus. Mas seria um erro ver no processo de objetificação
da espiritualidade, que encontra sua expressão na evolução da civilização, apenas
uma negatividade. Nas condições do mundo fenomênico, ele também possui um
sentido positivo. Ele contribui para subjugar a barbárie, a selvageria, a
natureza animal do homem, e assim a consciência do homem começa a crescer. Mas
esse é um processo elementar, e as alturas da espiritualidade não podem ser
alcançadas por ele. Mais do que isso, não temos como definir exatamente quando
a verdadeira espiritualidade se revela; sua revelação pode não se dar nos
pontos mais altos da civilização. É muito importante entender, além disso, que
de modo algum a espiritualidade se opõe à alma e ao corpo; ela os controla e os
transfigura. O espírito é, acima de tudo, uma força libertadora e
transformadora. Um homem que expressa uma grande espiritualidade não é
necessariamente um homem que se retirou do mundo e da existência histórica. Ele
é um homem que se coloca na existência do mundo e da história, que é ativo
nela, mas que é livre de seu poder e que está empenhado em transformá-la.
A espiritualidade que dá as costas ao mundo pluralista, como, por
exemplo, em certas formas de espiritualidade na Índia, como em Plotino, como no
monasticismo ascético, não pode ser considerada Cristã; ela contradiz o caráter
divino-humano do Cristianismo e o mandamento de Cristo a respeito de amar o
próximo. A espiritualidade Cristã não é apenas ascendente; ela é também
descendente, e somente essa espiritualidade é verdadeiramente humana. Uma forma
de espiritualidade que seja inumana e hostil ao homem é também uma
possibilidade; e essa deterioração da espiritualidade é mais comum do que se
pensa. Mas o homem deve aceitar a responsabilidade não apenas sobre seu próprio
destino e sobre o destino dos que lhe são próximos, mas também sobre o destino
de seu povo, da humanidade e do mundo. Ele não deve se separar de seu povo e do
mundo para, orgulhosamente, habitar a sós nas alturas espirituais. O perigo do
orgulho reside em esperar no caminho, e muitas advertências foram feitas a esse
respeito. Esse perigo é sempre resultado do mesmo rompimento da ligação
divino-humana. Um exemplo desse orgulho está em alguns Brâmanes que se
consideram super-homens; ele também está presente em certas formas de
ocultismo. A coisa mais necessária é esforçar-se pela espiritualidade humana,
que é também uma espiritualidade divino-humana.
Não apenas existem espiritualidades Cristãs e não-Cristãs, como ainda
dentro do próprio Cristianismo existem vários tipos, como, por exemplo, as
espiritualidades Ortodoxa e Romana. Mas a espiritualidade possui suas próprias
fundações eternas. A espiritualidade da Índia é muito profunda. Os místicos de
todos os tempos e de todos os povos saúdam-se mutuamente. A oração possui um
significado universal. O homem é uma criatura que ora, e mesmo os que não se
consideram crentes sentem necessidade de orar. No que consiste a essência da
prece? A prece é evocada pelo anseio que a pessoa tem de não se sentir
inteiramente dependente da necessidade que reina no mundo, e do poder do
destino que está presente nesse mundo. A prece é uma conversa com o Único
Existente, que é exaltado acima do ciclo do mundo, acima da falsidade e o erro
nos quais o mundo está submerso. A espiritualidade Cristã se distingue da não-Cristã
pelo fato de afirmar constantemente a personalidade, a liberdade e o amor. Uma
espiritualidade na qual a pessoa única, ímpar, irrepetível desapareça, e na
qual não exista a liberdade do homem e o amor pelo homem, deve ser considerada
como sendo não-Cristã. A espiritualidade chamada monástica, que nega a
independência da natureza humana, é não-Cristã.
A espiritualidade da Índia, sublime como é, é fria em comparação com a
espiritualidade Cristã, devido principalmente ao seu caráter panteísta, que
nega metafisicamente o princípio da personalidade. Aurobindo, em seus
comentários sobre o Bhagavad-Gîta, diz que o homem sábio é benevolente
com todos por igual; que ele se caracteriza pela indiferença em relação ao
tudo, pela ausência de desejo, e por negar a distinção entre a felicidade e a
infelicidade. Ideias similares nasceram também no Cristianismo, em especial na
espiritualidade ascética Síria e na Dobrotolyubie. A mesma separação em
relação ao mundo múltiplo pode ser encontrada no misticismo de Plotino e nos
neoplatônicos. Mas a verdadeira espiritualidade do Cristianismo é cristológica,
ou seja, divino-humana. Nela, o homem não pode desaparecer numa apática união e
identificação. A espiritualidade divino-humana pode começar com a consciência
da condição pecadora e da indignidade do homem, submerso que está ele nos
elementos do mundo, mas ela deve afirmar a dignidade do homem por ser a
semelhança de Deus, predestinado à eternidade. O sentimento amargo que nasce do
conhecimento da baixeza humana não deve esconder o alto destino ao qual o homem
está predestinado.
A espiritualidade Cristã não é friamente desapaixonada; ela é uma
chama ardente; nela combinam-se um sentimento de emancipação e de separação em
relação aos elementos do mundo e uma participação no destino desse mesmo mundo,
da humanidade e de toda a criação sofredora. A espiritualidade deve
transformar, não esmagar a natureza passional do homem. O Cristianismo liberta
o homem dos espíritos elementais da natureza, e ao fazer isso ele afirma a
independência e a liberdade do homem e do espírito. Mas isso não implica em
absoluto uma indiferença em relação ao mundo e ao homem. No próprio fundamento
do Cristianismo está o mandamento de amar a Deus e ao próximo, e nisso reside
seu caráter divino-humano e, por isso, verdadeiramente humano. Trata-se da
antítese da separação e do distanciamento em relação ao mundo múltiplo. Amar ao
próximo equivale a amar o mundo múltiplo. Voltar-se para o Um não significa dar
as costas ao múltiplo, e a tudo o que há de individual no mundo.
Mas a espiritualidade, como tudo o mais no mundo, é objetificada. Ela
adquiriu um caráter formal e legal; ela se esfriou; ela se acomodou à prosaica
normalidade social e se adaptou ao homem médio. O caráter não espiritual da
pretensa vida nas Igrejas oficiais e outras Confissões é apavorante. Elaborou-se
uma espiritualidade convencional, retórica, formal, e que fez nascer um
desgosto em relação ao Cristianismo. Estabeleceu-se uma importância desmedida
ao fato de que a espiritualidade estava originalmente ligada aos mitos. Todo
mito significativo estava ligado a uma realidade, mas essa conexão se perdeu, e
um ávido desejo pelo direito e a veracidade da vida espiritual fez com que
surgisse uma necessidade de libertar a espiritualidade do mito. Isso implicou uma
transição do simbolismo para o realismo, para um realismo místico.
O ego profundo do homem conecta-se com a espiritualidade; o espírito é
o princípio que sintetiza, que mantém a unidade da personalidade. O homem deve o
t empo todo realizar uma ação criativa em relação a si mesmo. Nesse ato
criativo a autorrealização da personalidade abre seu caminho. Trata-se de uma
luta constante contra a multiplicidade do falso ego que existe no homem. O caos
puxa o homem; e ele se conecta com o caos oculto que se esconde por detrás do cosmo.
É desse caos que nascem os egos falsos e ilusórios. Toda paixão pela qual o
homem se vê possuído pode criar um ego que não é real, que é um Es. NA
luta pela personalidade, pelo ego real e profundo, surge um processo de
dissolução – esse é um perigo que aguarda sempre – e um processo de síntese, de
integração. O homem tem mais necessidade de uma psico-síntese do que de uma
psico-análise, que pode conduzir à desintegração ao colapso da personalidade.
A espiritualidade que provém das profundezas constitui também um poder
que molda e mantém a personalidade do homem. O sangue, a hereditariedade, a
raça possuem um significado que não vai além do fenômeno, do mesmo modo que o
indivíduo biológico. Mas o espírito, a liberdade, a personalidade possuem um
sentido noumênico. Os sociólogos sustentam que a personalidade humana é moldada
pela sociedade, pelas relações sociais, e que a sociedade organizada é a fonte
da mais elevada moralidade. Mas a ação da sociedade sobre o homem, impondo-se a
ele de fora para dentro, exige uma adaptação a normalidade do cotidiano, aos
requisitos do Estado e ao código de comportamento estabelecido pela nação. Isso
atira o homem numa atmosfera de mentiras úteis que o protegem e garantem. Um sentimento
de verdade e de direito conduz o homem a um conflito com a sociedade. Aquilo que,
espiritualmente, é mais significativo no homem certamente não provém das
influências sociais, nem do meio social; ele provém de dentro, não de fora.
O primado da sociedade, a dominação da sociedade sobre o homem, leva a
que a religião se transforme numa arma da tribo e do Estado, e numa negação da
liberdade de espírito. A religião Romana estava baseada num forte sentido da
vida social, mas do ponto de vista espiritual ela era uma religião muito fraca.
O Cristianismo histórico foi distorcido pelas influências e os ajustes sociais.
A arregimentação social do homem conduziu à indiferença em relação ao direito e
à verdade. Todo sistema social monista é hostil à liberdade de espírito. O conflito
entre o espírito e a sociedade organizada com seu legalismo é um conflito
eterno. Mas seria um erro interpretar isso como um individualismo e uma falta
de senso de sociedade. Ao contrário, é preciso insistir em que existe uma sociabilidade
interior, que o homem é um ser social e que ele é plenamente capaz de se
realizar apenas dentro da sociedade. Mas uma sociedade melhor, mais justa e
real só pode ser criada a partir da sociabilidade espiritual do homem, a partir
de uma fonte existencial, e não da objetificação.
A sociedade que é deificada o é de um ponto de vista metafísico, o que
constitui um princípio reacionário. A irrupção da espiritualidade na vida
social é possível, e tudo o que existe de bom na vida social provém dessa
fonte. A espiritualidade traz consigo a libertação; ela traz consigo a
hominidade, enquanto que a dominação de uma sociedade objetificada traz em si a
escravidão. A ideia absolutamente falsa corrente na segunda metade do século
XIX, de que o homem é uma criação do meio social, deve ser abandonada. Ao contrário,
o meio social é que consiste numa criação do homem. Isso não significa que o
meio social não atue sobre o homem; ele o faz, e em alto grau. Mas o meio
social servil que escraviza o homem é fruto de uma condição servil do próprio
homem, uma criação de almas servis. Se não existe Deus, então eu sou um escravo
do mundo. A existência de Deus e a garantia de minha independência em relação
ao mundo, à sociedade e ao Estado.
Dostoievsky diz que às vezes o homem acredita em Deus através do
orgulho. Essa frase é um paradoxo; mas, socialmente, seu significado é de que o
homem não consente em se prostrar diante do mundo, da sociedade e das pessoas,
e que ele adora a Deus como a única fonte de sua independência e liberdade em
relação ao poder do mundo. Existe um orgulho, no bom sentido, na recusa em
adorar a qualquer um, ou qualquer coisa, exceto Deus. Espiritualmente, o que
está sempre ligado a Deus é o encontro da força interior; ela constitui uma
resistência ao poder do mundo e da sociedade sobre o homem. São loucos os que
pensam que o fato de que Deus existe empobrece o homem, e que Deus constitui
uma alienação de suas próprias riquezas, como pensa Feuerbach. Não: o homem se
torna incomensuravelmente rico pelo fato de que Deus existe. A pessoa só é
miserável se só existir ela mesma, se não nada acima dela, nada maior do que
ela. E todo o mundo se torna terrivelmente pobre, insosso e sem brilho se ele
for suficiente em si, se não existir um Mistério além dele.
Além do tipo de espiritualidade que encontramos nos livros de misticismo
que descrevem o caminho da alma para Deus e a experiência de comunhão com Deus,
existe também outro tipo de espiritualidade, totalmente diferente, que podemos
chamar de profética. O profetismo é de inspiração divina; trata-se de ouvir a
voz interior de Deus sobre o destino do mundo e da humanidade, sobre o futuro. O
homem profeticamente inspirado é um solitário; muitas vezes, ele é apedrejado
pelo povo a quem ele serve, mas num sentido espiritual ele se inclina para a sociedade;
ele está envolvido com a sociedade. O caminho do homem de inspiração profética
não é um caminho de ascensão metódica, mas o caminho de uma irradiação interior.
A espiritualidade profética é inteiramente diferente da espiritualidade elaborada
pelas escolas místicas da Índia e da Grécia. Trata-se da espiritualidade do
tipo dos antigos Hebreus, dos Persas e dos Cristãos. Mas o Cristianismo combina
em si os dois tipos de espiritualidade.
A espiritualidade está ligada tanto com uma escatologia individual
como com uma escatologia histórica e universal. O Cristianismo primitivo herdou
um messianismo Hebraico conectado com o destino da história, e um messianismo
Grego ligado ao alcance de uma imortalidade individual através dos mistérios. Por
esse motivo podemos ver que na doutrina Cristã da imortalidade existem dois
estratos (a imortalidade individual da alma e a ressurreição dos mortos na
carne), que não são fáceis de combinar numa unidade. Mas a espiritualidade é
sempre uma preparação e uma promessa de imortalidade. A estrutura natural do homem
não é imortal em si, ela se torna imortal em virtude de estar penetrada pelo
espírito, pelo princípio que permite que o humano e o divino se toquem. O amor
é uma grande força espiritual, e ele vence a morte e traz a imortalidade; ele é
mais forte do que a morte. O amor está conectado com a personalidade e exige
que a personalidade seja imortal.
Nygren, em seu livro já referido aqui, vê no ágape a essência do Cristianismo,
e conecta isso ao senso de comunidade, vale dizer, à Igreja. O homem se eleva a
Deus pelo eros; no ágape Deus se abaixa até o homem. Deus ama porque ama, não
como resultante de qualquer qualidade presente no objeto de Seu amor. E é nisso
que consiste também o verdadeiro amor humano. Não é possível encaixar o mais
misterioso fenômeno da vida do mundo, o amor, num esquema de “eros” e “ágape”. Na
visão de Nygren o misticismo e a gnose pertencem à tradição de eros, e por isso
ele os rejeita. Dessa maneira, o Cristianismo é empobrecido. A espiritualidade,
em todas as suas formas, é uma luta pela eternidade. A verdadeira humanidade
exige uma luta pela eternidade, pois a morte é o mais inumano dos princípios.
Na fraseologia religiosa a espiritualidade é a revelação do Espírito
Santo ao mundo e ao homem. Mas o Espírito Santo não se revela de fato completamente;
ele não se extravasa realmente na vida do mundo. Uma nova espiritualidade é
possível, uma espiritualidade divino-humana na qual o homem se revele com sua
força criativa, numa extensão mais ampla do que o fez até agora. A criatividade,
a liberdade, o amor, mais do que tudo, devem caracterizar a nova
espiritualidade. É preciso dar uma resposta à agonia do mundo, ao interminável
sofrimento do homem. A velha espiritualidade não fornece resposta a isso. Mas antes
do transbordamento da luz é inevitável uma diminuição das trevas. Antes de uma
nova intensidade da espiritualidade o desgaste da espiritualidade se torna
visível. Antes do advento do novo Deus-homem, deve acontecer uma irrupção da
desumanidade, indicativa do estado de abandono de Deus no homem. A dialética
existencial entre o divino e o humano ainda não chegou ao fim, ainda não
atingiu seu limite, mas existem ocasiões em que ela toca seu fim e seus
limites, e o homem se vê na beira do abismo. A expectativa por uma nova
espiritualidade é a expectativa por uma nova revelação do Espírito Santo no
homem e através do homem. Aqui não cabe uma espera meramente passiva; é preciso
que existe uma condição ativa no homem. Se o homem estiver condenado a esperar
um evento do alto, tremendo passivamente, a espiritualidade não será
divino-humana, e a divina humanidade não se tornará possível. O paráclito se
revelou mais de uma vez na história Cristã, mas ai da não chegou o tempo, a
hora ainda não se apresentou. Mas existem muitas circunstâncias que nos fazem
pensar que o tempo e a hora estão se aproximando cada vez mais.
[1]
Nikolay Gavrilovich Chernyshevsky (1828-1889) foi um escritor revolucionário
russo, filósofo materialista, crítico e socialista.
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