XI
A
imortalidade
O problema da imortalidade é fundamental, é o maior problema da
existência humana, e o homem só é capaz de esquecer-se dela através da
superficialidade e de uma mente leviana. Às vezes ele chega a persuadir-se de
que a esqueceu; ele não se permite pensar a respeito desse tema que é mais
importante do que todo o resto. A prece que nos concede a lembrança da morte é
uma prece profunda, e a seriedade da vida em si é condicionada pela lembrança
da morte, não só da própria morte como da morte das outras pessoas. Todas as
religiões, a começar pelas crenças rudimentares dos selvagens foram modeladas
ao redor da morte. O home é um ser que é confrontado pela morte ao longo de
toda sua vida, não apenas na sua hora final. O homem trava uma dupla batalha:
pela vida e pela imortalidade. A morte é algo que faz parte da vida, e que não
está além dela; é o mais estupendo dos fatos, aquele que toca o transcendente.
Um grande sofrimento sempre levanta a questão da morte e da
imortalidade; mas toda experiência que intensifica a vida também traz à tona a
mesma questão. Muitas formas de religiões e de doutrinas filosóficas foram
construídas sobre a vitória contra o medo da morte e o atingimento de uma
imortalidade real ou imaginária. Tais são, por exemplo, o ensinamento
espiritualista sobre a imortalidade da alma, a doutrina da reencarnação, a
doutrina mística panteísta da fusão com o divino, a doutrina idealista da
imortalidade das ideias e valores; a doutrina Cristã da ressurreição do homem
por inteiro, a suavização do problema da morte através da fusão com a vida
coletiva sobre a terra, e da possibilidade de uma felicidade terrena. O
ensinamento espiritualista a respeito da imortalidade da alma promete a
imortalidade apenas para uma parte do homem, não para o todo. Menos ainda a
doutrina da reencarnação fornece a imortalidade ao homem por inteiro, na medida
em que pressupõe a dissolução em elementos separados, e a precipitação do homem
no ciclo cósmico, deixando-o à mercê do tempo. Dessa forma, o homem pode passar
a formas de existência não humanas. A doutrina da fusão com o divino não
implica a imortalidade da personalidade, mas só a imortalidade do divino. A
doutrina idealista tampouco implica a imortalidade da personalidade, mas a imortalidade
impessoal de ideias e valores. Evitar o tema da imortalidade recorrendo ao que
eu chamo de panteísmo social, voltado para uma felicidade futura da humanidade,
aponta para a insolubilidade do problema e para uma certa hostilidade em
relação a ele. Somente a doutrina Cristã da ressurreição do homem por inteiro
fornece uma resposta para a questão, embora a essa resposta, como veremos,
estejam associadas muitas dificuldades.
O problema da morte e da imortalidade está indissoluvelmente ligado
com a consciência da personalidade e com o destino pessoal. Somente a morte da
personalidade é trágica. O que é trágico é precisamente a morte de um ser
imortal. Não há nada intrinsecamente trágico na morte impessoal; somente a
individualidade, a personalidade morre. Se a aguda consciência da personalidade
se perde, e seu destino único e central é esquecido, podemos encontrar consolo
no fato de que a vida na natureza e na raça se renova eternamente e é imortal.
O homem, enquanto personalidade, luta contra a morte em nome da imortalidade.
Os biólogos dizem que a morte é o preço a ser pago por um desenvolvimento
altamente diferenciado. Simmel expressa isso em termos mais filosóficos, quando
diz que a vida recebe uma forma na medida em que as coisas vivas morrem. Mas
isso significa também que o que morre é aquilo que mais exige imortalidade.
Paradoxalmente, isso se expressa assim: o que mais está sujeito à morte é
imortal. Assim é do ponto de vista naturalista; assim é no mundo objetificado.
Meu gato de estimação morreu; dirão que sua morte não é trágica porque
um animal não possui personalidade. Esse argumento não tem nenhuma importância
para minha experiência de dor profunda, e isso por muitas razões. Um animal no
qual se expressam tão grandes qualidades de beleza, inteligência, ternura e
charme possui, claramente, uma individualidade irrepetível, única em seu
gênero. Não se trata de uma personalidade no sentido humano, mas mesmo assim é
uma personalidade, só que em grau diferente. O que mais importa, evidentemente,
é que meu grande amor pelo meu gato exige, como o exige todo amor, a
imortalidade, a eternidade do objeto amado. Não consigo imaginar o Reino de
Deus sem um lugar para meu gato. É uma questão de relacionamento completamente
pessoal de minha parte, e a morte de uma criatura à qual não me é concedido o
direito de atribuir uma personalidade mostrou-se uma coisa trágica para mim. A
teoria de Descartes de que um animal não possui alma e que constitui um mero
mecanismo sempre me causou revolta. Essa teoria me parece estúpida, e por esse
motivo eu nunca senti muito apreço por Descartes. Mas a negação da
possibilidade de imortalidade no caso dos animas me revolta igualmente. Eu vou
além. A morte de uma árvore que eu amei e da qual eu me afeiçoei pode ser
também uma coisa trágica para mim, e eu faria um esforço espiritual pela sua
ressurreição.
A crença dos antigos não estava voltada para a imortalidade do homem e
do humano, mas para a imortalidade dos deuses e do divino. a alma estava
associada com o sopro, que provinha do deus. A alma era uma sombra. Havia uma
crença disseminada de que era preciso alimentar os mortos, para evitar ações
hostis de parte deles. No caminho da vida de além túmulo haveria embaraços de
diversos tipos, lugares perigosos pelos quais passar, encontros com bestas
selvagens. Na vida após a morte a luta era também árdua e perigosa. Somente no
Egito a imortalidade se viu condicionada por considerações morais. Os Egípcios
foram os primeiros a reconhecer a alma humana como imortal; mas de início somente
o rei era considerado imortal, e posteriormente, as classes privilegiadas. A
alma que se libertava do corpo era imortal por ser divina. A imortalidade do
grão de trigo era a fonte da crença na imortalidade entre os Egípcios. Por meio
dos rituais de Osíris o rei se tornava um deus. Traços dessa crença
permaneceram ainda na consagração dos reis durante a era Cristã. O rei Egípcio
era considerado como uma alma coletiva, a alma da raça, um totem; ele era
identificado a Osíris. Mas nessa concepção, a composição do homem era muito
complexa. Em cada homem havia um Ka, seu gêmeo, seu totem, sua fonte de
vida, o gênio protetor; e era esse Ka que era imortal. Morrer significava viver
com o Ka.
A doutrina da reencarnação, muito disseminada no mundo antigo, estava
ligada coma ideia de uma compensação mora, com os males que a pessoa causar nas
encarnações anteriores. A ressurreição da carne já aparece no Zoroastrismo. É
típico que os Gregos conectassem suas esperanças de imortalidade com a alma,
enquanto que os Hebreus as conectavam com Deus. É por isso que a ideia de
imortalidade da alma tem origem Grega. Para os Hebreus a salvação implicava a
salvação do povo como um todo. Foram feitas tentativas de encontrar os germes
da crença na imortalidade em Ezequiel, mas de modo geral não encontramos
nenhuma crença na imortalidade pessoal entre os profetas. Na escatologia existe
uma distinção entre a visão histórico-messiânica e a imortalidade pessoal.
Ambas as visões penetraram no Cristianismo. O ensinamento da antiga religião
Hebraica era de um estado sem esperanças, denominado Sheol, após a
morte, e eles acreditavam na concessão de recompensas somente na vida. O livro
de Jó aponta para uma profunda crise nesse pensamento. Somente a partir do
século II o Judaísmo aceitou a crença em uma recompensa na vida futura. Mas,
diferentemente dos Gregos, os Hebreus desenvolveram uma crença na ressurreição
com o corpo, não na imortalidade da alma. Somente os Essênios adotaram uma
linha espiritualista e viram no tema uma fonte de mal. Philo, que pertenceu ao
pensamento Helenístico, não expressava tanto a ideia de uma expectativa
messiânica conectada a todo o povo, como uma expectativa individual em relação
à alma. Os gnósticos pensavam que o elemento espiritual no homem devia se
separar da matéria e se unir a Deus, que não era o criador do mundo. Mas tanto
o Judaísmo como o Helenismo encontraram uma solução para o problema da vitória
sobre a morte e o triunfo da imortalidade.
É muito interessante seguir a história da luta pela imortalidade da
alma entre os Gregos. Em Homero existe no homem um reflexo invisível que é
liberado na morte. Trata-se da Psiquê. O nome permanece após a morte. A
religião Homérica inclui um elemento racional. Em Hesíodo as pessoas se tornam
demônios. Alcançar a imortalidade implica que o homem se torne um deus. A
imortalidade é a manifestação do princípio divino no homem, e somente ele é
imortal. O home deve rebater os perigos que o ameaçam a partir dos deuses
ctônicos, os deuses do subterrâneo, por meio da purificação. O medo do impuro
era característico dos povos antigos. Mas os heróis eram comparáveis aos deuses
ctônicos e à morte. Os heróis eram semideuses. Somente os heróis, os semideuses
– nunca o povo comum – eram imortais. Existe uma separação entre o homem e a
raça divina; não existe uma ligação deus-homem. A crença na imortalidade da
alma nasceu do culto de Dionísio. Havia ali uma mistura do super-homem com o
inumano, e o humano desaparecia. E isso reaparece em Nietzsche, num período
muito posterior na história. O homem é mortal. Mas a imortalidade é possível
porque existe um princípio divino no homem. Nele existem um elemento titânico e
dionisíaco. A religião puramente Grega de Apolo, infiltrada no culto dionisíaco
elemental, e daí surge o Orfismo. A liberação do homem não provém do homem em
si, mas pela graça de um deus salvador. O Deus sofredor concede a imortalidade
ao homem por Sua morte e ressurreição. A
imortalidade era concedida à alma pela iniciação nos mistérios Órficos. O
êxtase dionisíaco libera o deus da conexão com o corpo. Heráclito ensina que a
alma é fogo. O deus está no homem; não existe uma imortalidade individual, mas
apenas o fogo universal. Pitágoras acreditava na imortalidade da alma, mas a
ligava à reencarnação. De acordo com Anáxagoras, é o espírito, não a alma, que
é imortal. O comum é imortal, mas não o individual. É difícil combinar a
doutrina da imortalidade individual com a doutrina platônica das ideias. A
ideia do mundo além era estranha à tragédia Grega. A ideia de que a alma era
imortal em sua própria natureza era estranha às crenças populares Gregas. Essa
ideia foi desenvolvida na teologia e na filosofia. A busca pela imortalidade
estava conectada com os mistérios, e isso indicava o fim das religiões tribais
e o início do universalismo.
A dificuldade de resolver o problema da imortalidade está em que ele
sempre é colocado a partir de uma perspectiva de objetivação, da projeção da
existência humana dentro do mundo objetivo. Eternamente a alma depende do corpo
e o corpo depende do mundo físico objetivo. O homem é transformado em objeto,
um dentre os muitos objetos que existem no mundo. Biologicamente a morte
acontece a partir da desintegração da complexa composição do organismo. Mas a
célula, por sua vez, é imortal, porque é simples. Weissmann pensava que o germe
plasmático era virtualmente imortal. Platão defendia a possibilidade da
imortalidade com base em que a alma é simples; esse se tornou um argumento
clássico para tudo o que possui um caráter essencialmente naturalístico. A
energia física do organismo humano não perece, ela apenas se transforma e se
dissipa no mundo. Podemos nos perguntar o que acontece com a energia física
após a morte. O organismo humano consiste numa composição múltipla; ele é
colonizado e, por conseguinte, facilmente solúvel. A personalidade é a única
coisa única e imutável dentre as mudanças constantes da composição múltipla do
homem; e o princípio espiritual é o que mantém essa singularidade e essa
permanência.
Mas existe um paradoxo no fato de que o próprio princípio espiritual
requer a morte, uma vez que as infinitas aspirações do homem não podem se
realizar dentro dos limites desse mundo fenomênico. A morte reina apenas no
mundo dos fenômenos, que está sujeito ao tempo cósmico e histórico. No tempo
existencial ela representa não mais do que uma experiência, nada além do que a
passagem por um teste. A morte pertence ao destino do homem; morrer é passar
pela mais irracional e estupenda experiência que o homem pode ter.
O sentido espiritual da morte é diferente do significado biológico. É
um erro pensar que o “nada” existe no mundo natural. Não existe o nada, o
vazio, a não-existência na natureza; existe apenas mudança, dissolução,
composição, desenvolvimento. O horror do nada, do abismo do não-ser existe
apenas em relação ao mundo espiritual. A morte que reina na natureza não é o
“nada”. O horror da morte é espiritual, assim como a vitória sobre a morte é
espiritual. A morte surge de maneira diferente e possui um significado diverso
quando vista de um ponto de vista interior, de uma perspectiva existencial,
quando o homem não pensa a si mesmo como projetado no mundo exterior e
objetivo. Da perspectiva da existência interior ninguém, de fato, reconhece a
possibilidade de um desaparecimento final do ego, daquilo que ele conquistou
enquanto personalidade. Eu me pego num juízo contraditório a respeito disso: se
não houver nada para mim após a morte, após a morte eu devo estar consciente
disso. Se eu morrer e já não houver vida para mim, eu desaparecerei finalmente,
e já não existirá nada; já não existirá mundo, porque eu era a única prova da
existência do mundo.
A personalidade humana é mais real do que todo o mundo; ela constitui
o noúmeno em oposição ao fenômeno; em seu âmago ela pertence à eternidade. Mas
isso não pode ser visto desde fora, mas somente de dentro. A alma humana é
limitada pelo corpo; ela depende da necessidade natural; mas internamente ela é
infinita. Não apenas aquilo que no presente momento se revela como sendo minha
alma, mas também aquilo que se revela como minha alma através de toda a
extensão de minha vida, não passa de uma pequena parte de minha alma enquanto
potencial infinito, tanto em direção à luz, como em direção à treva. A vida,
desde o nascimento até a morte, não passa de um minúsculo fragmento de meu
destino eterno. O que é de vital interesse para mim é o problema da
individualidade que existe em mim, não a questão de minha raça, nem o bem
impessoal, nem a razão, e por aí vai. Se em meu destino final eu devo me fundir
a Deus, e se meu ego individual desaparece, então eu jamais saberei disso, e
isso nada acrescentará a mim, pois não haverá uma consciência minha que esteja
ciente disso. O ensinamento de Averroes sobre a imortalidade do intelecto, por
exemplo, diz respeito à imortalidade do fator racial no homem; mas ele não
responde ao problema da imortalidade. O mesmo é verdade para a imortalidade
racial impessoal na memória dos descendentes, nas ideias ou no mundo criado;
nada disso resolve o problema. O homem busca uma imortalidade pessoal, não a
imortalidade num objeto, mas a imortalidade do sujeito. Mas as doutrinas da
imortalidade, em grande parte, trazem a marca da objetificação. É muito
importante reconhecer o fato de que somente o eterno é real. Tudo o que não é
eterno, tudo o que é transitório, não possui realidade própria. Nietzsche dizia
que a eternidade era necessária para a alegria, para a felicidade momentânea, e
que assim tudo se justificava. Mas isso só faz sentido se esse mesmo momento
entrar na eternidade, se ele não for uma fração do tempo. Nietzsche escreveu
para Deussen que ele gostaria de estar certo, não por hoje, nem por amanhã, mas
para milhares de anos. Mas existe pouca diferença entre milhares de anos, e
hoje ou amanhã; é preciso estar certo por toda a eternidade. Existe um momento
de êxtase e de união criativa com Deus, que é uma união com a eternidade, e um
escape do poder do tempo.
A morte, que surge como a irrupção da regularidade rítmica da
natureza, e à qual o homem está condenado por um processo biológico, é a coisa
mais individual e pessoal para o homem. Ela significa, acima de tudo, a
dissociação dos contatos e relações com outras pessoas e com a vida do cosmos.
Todo homem deve passar pela tragédia da morte. De acordo com Freud, a morte é a
meta para a qual se move a vida; o instinto do ego é o instinto da morte. Ao
mesmo tempo, e ainda de acordo com Freud, que não admitia nenhum princípio
superior ao homem, ninguém acredita na sua própria morte. O paradoxo da morte é
que, embora ela seja o mais temível dos males, aquele que mais aterroriza o
homem, é através desse mal que se abre o caminho para a vida eterna, ou, ao
menos, um dos caminhos para ela. Nossa vida é cheia de paradoxos desse tipo.
Assim, por exemplo, a guerra é um mal terrível, mas ela pode revelar
possibilidades de heroísmo e um crescimento acima da banalidade da vida
cotidiana. Uma infinitude patética da vida é o que torna o homem uma criatura
finita.
Existe um conflito entre a imortalidade pessoal e a geração de um
filho, que constitui a imortalidade da raça. O poder de produzir uma nova
geração de modo algum corresponde a uma qualidade da personalidade, bem ao
contrário. A individualidade mais acabada pode possuir a menor capacidade de
produção de novas vidas. A imortalidade na vida da raça, em filhos e netos,
como a imortalidade da nação, no Estado ou no coletivo social, nada tem em
comum com a imortalidade do homem. Isso é verdade, embora em grau diferente,
não apenas em relação ao mundo humano, como também para o mundo animal. A
relação entre personalidade e sexo é muito complexa e misteriosa. O sexo é algo
impessoal, é a presença da raça no homem; e isso o distingue do eros,
que possui um caráter pessoal. Por um lado, a energia sexual é um impedimento
na luta pela personalidade e a espiritualização, ela esmaga o homem em sua
monótona impessoalidade; ao mesmo tempo, por outro lado, ele pode ser
transmutado em energia criativa, e a energia criativa exige que o homem não
seja uma criatura assexuada. Mas a verdadeira transfiguração e iluminação do
homem requer uma vitória sobre o sexo, que é uma marca da Queda do homem. Uma
mudança na consciência humana também está associada com a vitória sobre o sexo.
A imortalidade depende da condição da consciência. Não se trata de uma
consciência dividida, não uma consciência que se desintegra em seus elementos
ou que se recompõe a partir de seus elementos, que conduz à imortalidade, mas
apenas uma consciência integral. No homem, o imortal está também ligado à memória.
Na vida humana é doloroso, não apenas o esquecimento do que foi querido e
precioso, a perda da memória, como também – o que é pior – a impossibilidade de
esquecer o mal e o penoso do passado. A imortalidade corresponde a uma memória
clara e serena. A coisa mais temida na vida é o sentido da irrevogabilidade, da
irreparabilidade, da perda absoluta. A liberdade do homem nada pode fazer
contra isso, e a crença numa imortalidade individual em nada ajuda. Esse é um
ponto em que a ligação divino-humana se parte. É o abandono de Deus. Somente a
crença no poder da graça que provém de Cristo pode ajudar, pois Nele encontra-se
encarnado o vínculo entre o divino e o humano. A luz pode ser avivada na mais
espessa treva.
O homem aspira a uma imortalidade integral, não à imortalidade do
super-homem, ou do intelecto, ou do princípio ideal que existe nele: ele aspira
à imortalidade do pessoal, não do impessoal ou do que é comum. O problema da
morte foi associado a uma questão de sono. Theodor Fechner pensa que a morte é
uma transição entre um quase sono que é nossa vida terrestre, para um despertar
e um estado de vigilância. O sonho indica a perda da síntese mental; o que
Fechner quer dizer é que estamos vivendo num estado semiconsciente, num estado
parcialmente de sonho. A imortalidade será assim a transição para a consciência
total, que eu prefiro chamar de supraconsciência. Uma consciência plena e
integral é uma supraconsciência, e é também um despertar espiritual. Uma
consciência voltada para o mundo fenomênico é uma semiconsciência; ela não
passa da liberação da consciência apenas em relação ao poder do mundo
fenomênico que abre uma perspectiva de imortalidade. A coisa terrível é que
perspectivas escatológicas, na maior parte das vezes, são pesadelos, que
revelam a temível depressão e o terror que existem no homem.
A consciência humana está sujeita a muitos pesadelos escatológicos,
embora às vezes eles adquiram uma forma agradável. O Cristianismo, até hoje,
não superou o caráter de pesadelo de sua escatologia pessoal, a introdução do
princípio moral nas crenças sobre a vida além túmulo consistiram, é claro, num
progresso; tratava-se da espiritualização de crenças mágicas. Mas o princípio
moral assumiu um caráter que ameaçava o julgamento e inspirava medo. Mesmo as
crenças Cristãs a respeito da vida após a morte carregam a marca de uma
imaginação sádica; a imaginação que criou as imagens da vida após a morte foi
vindicativa e maligna. Um apocalipse vingativo ainda pode ser encontrado no
livro de Enoch, que antecipou o apocalipse Cristão. O Orfismo foi uma forma
elevada da consciência religiosa Grega; mas a ideia de inferno, de recompensas
e de punições provém, ao que parece do Orfismo. Os pesadelos escatológicos
criados pelo próprio homem, às vezes num estado de pavor, às vezes com um
desejo de vingança, tomaram diferentes formas. Esses pesadelos, e a perspectiva
de uma desaparição final da totalidade do homem, são típicas de um ser que se
vê como o centro existencial do universo, com uma realidade maior do que a
realidade do mundo. O homem de nosso tempo que processa uma tola visão
materialista coerente com sua condição de espiritualidade adormecida, é
obrigado a lidar com tais pesadelos. E ele tenta se persuadir de que essa
perspectiva escatológica é um consolo para sua vida terrena. Nesses casos, é a
vida real que perde todo o seu significado.
Mas existem outros, e mais positivos, pontos de vista sobre o futuro,
que não deixam de ser um pesadelo, ou seja, a perspectiva de intermináveis
reencarnações, a de uma completa perda da personalidade numa divindade
impessoal e monótona e, acima de tudo, a perspectiva dos tormentos eternos do
inferno. E, se alguém puder acreditar na possibilidade de uma existência sem
fim nas condições de nossa vida atual, isso o levaria a pensar no inferno, o
que seria também um pesadelo que evocaria o desejo da morte. A filosofia
religiosa Hindu via a reencarnação de uma maneira diversa daquela das modernas
teosofias Europeias. Dentre essas, ela se tornou uma doutrina evolutiva
otimista, enquanto que na Índia ela constitui uma crença pessimista. O Budismo
ensina, acima de tudo, os meios de emancipação dos sofrimentos da reencarnação.
A crença na reencarnação não é algo benéfico, e impede a liberação do Karma.
Ela não contém nenhuma indicação de saída; nenhum meio de passar do tempo para
a eternidade. Adicionalmente, a doutrina da reencarnação justifica da injustiça
social e o sistema de castas. Aurobindo, de quem já falei, construiu uma
doutrina panteísta mística da imortalidade que é muito superior às doutrinas
teosofistas sobre a reencarnação. Segundo ele, a morte é a resposta do todo a
uma falsa limitação do ego em sua forma individual. Aurobindo também assimilou
alguns elementos Cristãos, embora não desposasse a ideia Cristã de
personalidade. Ele dizia que o home que está submetido ao sofrimento e à dor,
que é escravo de sensações e emoções, que se ocupa de coisas efêmeras, não tem
conhecimento da imortalidade. Com isso, ele quer dizer que a imortalidade é
algo a ser conquistado.
A visão de Leon Tolstoy sobre a imortalidade possui um caráter
panteísta e lembra mais a filosofia religiosa Hindu do que o Cristianismo. Ele
vê a vida pessoal como uma espécie de falsa vida, e em sua visão a
personalidade não pode ser herdeira da imortalidade. O horror da morte que
tanto sofrimento causou a Tolstoy conectou-se com sua concepção de
personalidade, ou seja, com essa espécie de falsa vida. Não haveria morte,
pensava ele, quando a vida pessoal é superada. O ensinamento de Nietzsche sobre
o eterno retorno consiste na ideia Grega que só admite o tempo cósmico e que
mantém o homem como um todo debaixo do poder do ciclo cósmico. Isso pertence ao
mesmo tipo de pesadelo que a ideia de uma reencarnação interminável. O eterno
retorno contradiz uma outra ideia de Nietzsche, sua ideia messiânica do
super-homem. Já escrevi o suficiente sobre essa concepção. O humano, segundo
Nietzsche, não somente é mortal como sujeito a desaparição, mas seu
desaparecimento é desejado. O pensamento de Nietzsche é decididamente
antipersonalista, como o é a ideia de sua antítese, Tolstoy.
O ensinamento de Fedorov sobre a ressuscitação é a mais personalista e
humana, de um caráter verdadeiramente humano. Ele pretende que todos os mortos
que nos precederam devem receber de volta a vida; ele não admite ver nenhum dos
que morreram no passado, como meio de assegurar os interesses do futuro ou o triunfo
de qualquer espécie de princípio objetivo impessoal, qualquer que seja, e o que
está em jogo é a ressuscitação do home por inteiro. Isso não implica uma
expectativa passiva da ressurreição dos mortos, mas um processo que envolve uma
participação ativa, vale dizer, um ato de ressuscitação, de reanimação. Mas a
fraqueza filosófica de Fedorov reside nisso, que ele dá muito pouca ênfase ao
poder criativo do espírito na ressurreição dos mortos, e coloca muita fé no
poder do conhecimento técnico. Nisso podemos sentir a influência de uma época
de naturalismo científico. Fedorov está absolutamente certo ao considerar que o
tema principal do Cristianismo não é a justificação, mas a imortalização, a aquisição
da imortalidade, não a sua justificação.
A necessidade da imortalidade jaz nas profundezas da natureza humana. Mas
as crenças na imortalidade trazem a marca da limitação da natureza humana. Nela
entram ainda os maus instintos humanos, que criaram imagens do paraíso e,
especificamente, do inferno. Sempre foi muito difícil para todos falar sobre o
paraíso, pois apesar de tudo o inferno está mais próximo do homem; existe menos
do outro mundo nele. Mas a imagem do paraíso facilmente dá lugar ao tédio. O tema
do paraíso perturbou muito a Dostoievsky, e ele expressou pensamentos notáveis
a respeito, como, por exemplo no Sonho de um Homem Ridículo. Ele sempre
ligava a questão do paraíso ao problema da liberdade; ele não podia aceitar um
paraíso sem liberdade; mas, ao mesmo tempo, o a liberdade sempre poderia criar
o inferno. O caráter repulsivo da imagem de um paraíso que carrega, por transferência,
as marcas sensuais do mundo, no qual os justos sentem prazer nos sofrimentos
dos pecadores no inferno, se deve ao fato de que nada pode ser menos apofático
do que o modo como as pessoas pensam o paraíso. Pois o pensamento catafático sobre
o paraíso sempre será intolerável para uma moral refinada e para um senso estético.
A vida perpassa o infinito; mas a ideia catafática sobre o paraíso possui uma
finitude que é desprovida da verdadeira vida criativa. Karl Jaspers fala sobre
a posição fronteiriça do homem (Grenzsituation), e na verdade o homem se
encontra na fronteira entre diversos mundos; ele não está presente como um todo
em apenas um mundo. O homem é um ser de muitos planos; num momento, ele é
transportado ao outro mundo; em outro, ele vai ao fundo do abismo.
O problema metafísico da imortalidade está ligado, acima de tudo, com
o problema do tempo. Será essa existência nesse tempo cósmico e histórico a
única existência para o homem? Ou existirá ele também no tempo existencial, que
toca a eternidade e pode mergulhá-lo no eterno? Negar a imortalidade implica
assumir que sua existência no tempo é definitiva e única; equivale a dizer que
ele está esmagado pelo tempo no mundo fenomênico. A última palavra em filosofia
que Heidegger propõe é o caráter finito da existência humana. O Dasein,
com o qual ele substitui o homem real, é uma existência finita que se dirige
para a morte. A tormentosa ideia do inferno se deve a uma confusão entre
eternidade e infinito. A ideia de um inferno eterno é absurda por completo. O inferno
não é uma eternidade: não existe outro tipo de eternidade que não a eternidade
divina. O inferno é um mau infinito, a impossibilidade de se libertar do tempo
para a eternidade; é um pesadelo nascido da objetificação da existência humana,
submersa no tempo de nosso éon. Se houvesse algo como um inferno eterno, isso
seria o fracasso definitivo e a derrota de Deus; e a condenação de toda a
criação do mundo como uma farsa diabólica. Mas existem muitos, muitos Cristãos,
para quem o inferno é muito agradável, embora não para eles próprios, naturalmente.
A ontologia do inferno é a mais maligna forma de objetificação, a mais
pretensiosamente detalhada, a mais inspirada pelos sentimentos de vingança e
malícia. Mas a psicologia do inferno é possível, e está associada a uma
experiência real.
A interpretação lega da imortalidade é tão básica quanto a antiga
concepção mágica. Existe um elemento educacional que desempenha um grande papel
nas doutrinas tradicionais sobre a imortalidade, e que é claramente de caráter
exotérico. Somente uma concepção espiritual da imortalidade é capaz de
responder a uma consciência mais elevada, mas uma concepção espiritual não significa
em absoluto que somente a parte espiritual do homem seja imortal. A ressurreição
do corpo também deve ser entendida num sentido espiritual. “Ele é semeado como
um corpo natural, e renasce como um corpo espiritual”. O homem é imortal porque
nele existe um princípio divino, mas não é só o divino no homem que é imortal;
todo o organismo do homem, de que o espírito toma posse, é imortal. É a parte
espiritual do homem que se bate contra a objetificação final da existência
humana, a objetificação definitiva que termina na morte para o homem,
submergindo-o finalmente na corrente mortal do tempo. A objetificação da
consciência produz a ilusão de um espírito objetivo que só é capaz de
reconhecer a imortalidade impessoal.
Uma intensa consciência de sua própria vocação e de sua missão no
mundo pode proporcionar o sentido da imortalidade, e isso independentemente das
ideias conscientes do homem. Assim acontece um entrelaçamento entre a escatologia
pessoal e a escatologia histórica do mundo todo. Minha imortalidade não pode
ser separada da imortalidade das outras pessoas e do mundo. Ser absorvido
exclusivamente na própria imortalidade pessoal, ou em sua própria e exclusiva
salvação constitui um egoísmo transcendente. Se a ideia de uma imortalidade pessoal
é separada de uma perspectiva escatológica universal, do destino do mundo, ela
se torna uma contradição de amor. Mas o amor é a principal arma espiritual na
luta contra a soberania da morte. Essas duas antíteses, amor e morte, estão
conectadas. O amor se revela com o máximo de sua força quando a morte se
aproxima, e ele não pode deixar de conquistar a morte. Aquele que ama
verdadeiramente é o conquistador da morte. Tentamos fazer esforços sobre-humanos
para assegurar que aqueles a quem amamos – não só homens, como animais também –
possam herdar a vida eterna. Cristo conquistou a morte porque Ele era a
encarnação do amor divino universal, e porque o amor não poderia deixar de desejar
a salvação universal da morte, e a ressurreição universal. Enquanto houver uma
única criatura que possua um centro existencial e que não tenha ressuscitado
para a vida eterna, o mundo terá fracassado e a teodiceia terá sido impossível.
Nessas condições, minha imortalidade pessoal não estaria simplesmente
incompleta sob determinado aspecto; ela seria, de fato, impossível. Eu dependo
do destino do mundo e daqueles que estão próximos a mim, e o destino daqueles
que me são próximos, e também o destino do mundo, dependem de mim.
Fedorov estava certo e proclamou uma verdade sagrada quando afirmou
que o homem deveria ser um agente da ressurreição, mas ele vinculou o destino
do homem de forma demasiado exclusiva ao mundo fenomênico, a esse esquema atual
de existência. A morte do homem nesse esquema terrestre de existência não pode
ser decisiva e definitiva para seu destino. Se a reencarnação, num sistema
único de existência, se choca com a ideia de personalidade, num esquema
múltiplo de existência ela se torna inteiramente compatível com a ideia de personalidade.
O fato de que o caminho pelo qual a vida humana atinge a realização da
plenitude da vida e toma seu rumo através do mundo espiritual, não está em
contradição com a verdade de que o corpo humano, a forma do corpo, e não apenas
a alma, deve herdar a eternidade. Pois o fato de que a forma do corpo está
indissoluvelmente ligada com a imagem da personalidade humana certamente não
implica um laço indissolúvel com a materialidade do corpo, que é uma composição
físico-química essencialmente mortal. A ressurreição do corpo é a ressurreição
do corpo espiritual.
A ligação mais misteriosa é aquela entre o destino pessoal e o
messianismo histórico. A plenitude da verdade Cristã, que só pode se realizar
numa religião do espírito, envolve a união da imortalidade pessoal com a solução
messiânica do destino da história, da ideia mística com a ideia profética. Ambos
os caminhos da vida espiritual que buscam elevar-se, escapando aos destinos do
mundo e da história, e não se dispondo a partilhar deles, e, por outro lado, o
que persegue o mesmo objetivo pela atenção exclusiva aos destinos da história,
da sociedade e do mundo, abandonando o caminho espiritual pessoal, ambos são
igualmente incompletos e errados em sua exclusividade. Nisso reside toda a
complexidade do problema da imortalidade. A imortalidade não é somente uma
aquisição humana, não meramente um dom divino, ela é uma empreitada
divino-humana; é o trabalho a cargo da liberdade e uma obra da graça, um efeito
realizado tanto de baixo como de cima. Supor que o homem é por natureza um ser
imortal equivale a se perder no pensamento, assim como não é correto pensar que
ele simplesmente recebe sua imortalidade desde o alto, de um poder divino.
O erro, aqui como em toda parte, reside na ruptura da ligação que enlaça
o homem e o divino, na autoafirmação do homem e ao mesmo tempo na sua
degradação de sua verdadeira humanidade. A toda hora estamos aptos a nos
encontrarmos pensando na imortalidade, transferindo para o mundo fenomênico
aquilo que só tem sentido no mundo noumênico, e vice versa. Também estamos
errados quando criamos um rompimento entre os mundos do fenômeno e do noúmeno. A
doutrina da imortalidade deve passar através da chama purificadora do
criticismo, assim como passou a doutrina da revelação. Ambas tiveram que ser purificadas
do ingênuo antropomorfismo, do cosmomorfismo e do sociomorfismo. Mas existe
também um antropomorfismo verdadeiro que nasce da posição central que o homem
ocupa e do fato da incomensurabilidade entre o humano e o divino. esse antropomorfismo
deve se unir ao teomorfismo, ou seja, ele deve ser divino-humano. A verdadeira
perspectiva da imortalidade deve ser, desde logo, humana e divina, e não
abstratamente humana. Assim, na questão da imortalidade, voltamos a encontrar a
mesma dialética entre o divino e o humano.
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