domingo, 3 de maio de 2020

Nikolai Berdiaev - O Divino e o Humano - Capítulo XII




Messianismo e história

O messianismo não se apoia apenas numa interpretação do sentido da história, mas também sobre a formação da própria categoria da historicidade. A história é criada pela expectativa de que no futuro haverá uma grande manifestação, e que essa manifestação representará uma revelação do sentido na vida das nações. Essa é a expectativa do aparecimento do Messias ou de algum reino messiânico. O movimento da história é também o movimento em direção a essa aparição messiânica, que trará consigo a libertação da escravidão e do sofrimento, que irá inaugurar para o homem um estado de felicidade. A consciência messiânica nasce do sofrimento. Quando o sofrimento não esmaga o homem, ele se torna um poder terrível. O mito messiânico dinâmico se volta para o futuro. Quanto a isso, ele contrasta com os mitos pagãos, que se voltam, não para o futuro, mas para o passado. Isso era característico nas ideias Gregas a respeito da contemplação do cosmos e de seu movimento cíclico. Postulava-se aí que o mundo é eterno e que ele não teve começo nem terá fim – vale dizer, um mundo no espaço, mas não no tempo. Não encontramos nenhuma filosofia da história em Platão ou Aristóteles. Somente no antigo Israel tem início uma filosofia da história, na revelação de Deus na história, que se expressa na consciência dos profetas, e no Livro de Daniel. Mas uma filosofia da história se torna inteiramente possível apenas com o Cristianismo. O sábio de antanho esperava por uma paz interior, por uma harmonia e uma felicidade que não estava ligada a nenhuma espécie de mudança do mundo, sem indagar por um movimento histórico, e sem nenhuma inquietação quanto ao futuro. O Cristianismo introduziu uma inquietação sobre o futuro, uma inquietação messiânica e escatológica. Por esse motivo, ele requer mudança e movimento, e postula a esperança. As origens do messianismo Cristão estão nos antigos Hebreus e talvez nos Persas, mas não derivam da Grécia. Para o pensamento Cristão o tempo e a história adquirem um significado metafísico; e isso seria por completo incompreensível em Platão e Plotino. A metafísica Cristã não consiste numa ontologia, embora tenha havido esforços para encontrar uma base para ela na filosofia, mas ela é acima de tudo uma filosofia da história, ela é messiânica e profética. O Cristianismo primitivo vivia da esperança, da esperança da aparição do Filho do Homem em glória. Os primeiros Cristãos acreditavam que os dons proféticos do Espírito perdurariam até a Segunda Vinda de Cristo. Essa atitude consiste num paradoxo para a história. Por um lado, está a tensa expectativa de uma breve manifestação de Cristo e do reino messiânico, a expectativa da chegada do fim, que obscurece uma longa elaboração de uma perspectiva histórica. Mas, por outro lado, essa expectativa escatológica forneceu um sentido à história, ao interpretá-la como um movimento em direção ao Reino de Deus. Se o processo histórico é visto como não tendo fim, a história perde o sentido, e se coloca num processo cósmico de movimento cíclico. A filosofia da história é sempre profética, e não pode ser outra coisa. A história ainda não alcançou seu final, e o filósofo da história se encontra em meio ao processo histórico. Como é possível entender o sentido da história, sem saber como será o último estágio da história? É sobre esse fundamento que se pode negar a possibilidade de uma filosofia da história. É evidente que uma filosofia da história não pode ser científica; ela pode apenas ser profética. Ela postula a visão da luz que flui do futuro. E somente essa luz pode proclamar um sentido para a história.

A história só possui um sentido se se dirigir para um fim; ter sentido depende de não durar para sempre. A história não possui um sentido imanente; ela só pode ter um sentido transcendente, e somente a consciência messiânica pode proclamar esse sentido transcendente à história. Do ponto de vista imanente a história é falha e não tem sentido. O terreno da história é vulcânico, e as explosões vulcânicas nos mostram o contato com o fim e a possibilidade de uma consumação messiânica da história. A tentativa de construir uma filosofia naturalista da história, que permita sua subordinação ao processo cósmico, como uma parte desse processo, não é capaz de dar sentido a história. Ao contrário, não é a história que é parte do processo cósmico, mas o processo cósmico que é parte da história. É na história do homem, não na história da natureza, que se esconde o significado do mundo. Toda a consciência religiosa do paganismo estava assentada no cosmo e no tempo cósmico. É sobre esse terreno que cresceram os mitos, com sua preocupação com o passado e sua oposição à consciência profética e messiânica. O profetismo se opõe ao romantismo político que idealiza o passado. Dentre os povos que normalmente são considerados pagãos, somente os Persas possuíam um pensamento religioso capaz de dar sentido à história, e isso porque eles reconheciam um final apocalíptico, que veio também a influenciar a religião Hebraica. Sem o profetismo, o Cristianismo não teria relação com a história, não teria futuro; somente do futuro pode provir a luz que ilumina o passado.

O caráter profético da filosofia da história pode adquirir formas secularizadas; assim foi o pensamento do século XIX. Kant dizia: “A filosofia poderia ter seu próprio Quiliasmo[1]”. O Milenarismo – quiliasmo –, vale dizer, a ideia messiânica, é profundamente inerente a toda filosofia da história do século XIX, embora ela tenha, com toda aparência, rompido com o Cristianismo. O elemento profético nessa filosofia da história era mais forte do que na filosofia religiosa da história de Santo Agostinho e Bossuet. Isso pode ser dito de Hegel, Marx, Saint Simon e Comte. Toda a sua filosofia da história estava permeada de profetismo e não tinha sentido fora dele. Ela não é menos profética em Comte e Marx, que eram oponentes da metafísica, do que em Hegel, que era metafísico. Hegel reconhecia uma meta na história do mundo. Nela, o espírito do mundo finalmente alcançaria a autoconsciência, por intermédio do homem. A história constitui um crescimento progressivo na consciência da liberdade e na realização de fato do reino da liberdade. Comte sabia que na história da humanidade um período positivo deveria vir para substituir o período metafísico e teológico, e que a religião da humanidade triunfaria. Karl Marx sabia que no lugar do período do capitalismo burguês, marcado pela exploração e a escravização do homem, viria um período no qual o socialismo seria triunfante, quando a classe messiânica, o proletariado, para o qual as propriedades do povo escolhido de Deus seriam transferidas, faria justiça no mundo e libertaria, não apenas a si mesma, como a toda a humanidade.

De onde vem esse conhecimento do futuro da humanidade? Será possível considerá-lo como um conhecimento científico? Não: trata-se de uma fé messiânica; de uma forma secularizada da velha ideia quiliasta. A ideia do progresso da humanidade, que desde os tempos de Condorcet foi fundamental na filosofia da história, é religiosa e Cristã em sua origem; ela é uma forma secularizada da ideia Cristã do movimento em direção ao Reino de Deus como tema básico da história do mundo. A ideia de progresso busca dar um significado à história do mundo, mas seus expoentes têm a ilusão de que ela dará um sentido imanente à história, quando, na verdade, esse sentido é transcendente. A ideia de progresso deve ser diferenciada da ideia de evolução, que é científica e biológica em sua origem. Existe uma inconsistência fundamental na doutrina do progresso e ela reside no fato de que cada geração humana e toda personalidade humana é vista como servindo aos interesses da geração seguinte, de que a perfeição reside no futuro, no Reino de Deus sobre a terra, no qual entrarão aqueles felizes que irão viver no século futuro, mas não as gerações dos mortos; esses terão se tornado não mais do que meros meios visando o fim. A doutrina do progresso é antipersonalista. Mas ela está permeada da ideia messiânica, cujas raízes e fontes possuem um caráter religioso. Sem a ideia messiânica, a história se torna um conjunto de fatos empilhados e sem sentido que os conecte.

Mas a ideia messiânica de modo algum implica uma visão otimista da história. Ao contrário, ela envolve uma visão trágica da história. A história é uma luta entre princípios opostos e nela nem tudo chega a bom resultado. Não apenas o bem se acumula ao longo da história, como também o mal, e é por esse motivo que a história deve chegar a um fim. Mas o Reino de Deus virá para se concretizar plenamente, e nele todas as oposições e conflitos entre os dois mundos serão resolvidos. A chegada do reino de mil anos só pode ser pensada de maneira antitética, ele tem que ser vista pertencendo tanto ao aqui e agora, como ao mundo além, e ao mesmo tempo terrena e celestialmente. Não existe na história uma operação contínua da providência de Deus enquanto encarnação e desenvolvimento do espírito, como pensava Hegel; o que existe são irrupções. A liberdade do homem também opera na história, assim como o destino. Também o acaso opera aí, e o acaso é racionalmente inexplicável. A perfeição futura é um fenômeno que pertence à ordem transcendente, mas o transcendente pode se tornar imanente. A velha antítese entre o imanente e o transcendente está ultrapassada. Sem o profetismo, que foi muito enfraquecido pelo Cristianismo histórico, o Cristianismo não teria relação com a história. Desde que o Cristianismo histórico perdeu o espírito profético ele não mais pôde compreender o sentido da história. Esse sentido só se revela ao Cristianismo escatológico. A negação da possibilidade de um messianismo Cristão é uma tendência reacionária do Cristianismo. O messianismo é uma premonição profética, não apenas da Segunda Vinda de Cristo, como do Reino messiânico. O Cristianismo é messiânico, ele é uma religião profética, que olha para o futuro, para o Reino de Deus. A luz não provém apenas do passado, mas também do futuro. A razão nos mostra que sempre haverá o perigo de um falso messianismo e de falsos messias. Como exemplo de falso messianismo podemos mencionar o caso de Thomas Müntzer (1489-1525). Já o caso de Joachim de Floris (1135-1202) não consistiu num falso messianismo, mas num messianismo prematuro, que chegou antes do tempo.

É falso pensar que depois da chegada de Cristo o Messias, o Reino de Deus terá definitivamente chegado, e que nada haverá para se esperar no futuro; que, daí por diante, o messianismo terá perdido totalmente sua razão de ser. Existe uma maneira similar de pensar, voltada para o passado exclusivamente, que se baseia na falsa identificação do Reino de Deus com a Igreja. É isso que pensava Santo Agostinho, e essa opinião se tornou dominante no Catolicismo Romano.  A partir dessa perspectiva, a autoridade da Igreja histórica fortaleceu-se, e a possibilidade de qualquer profetismo foi varrida. As expectativas que se voltavam para o futuro foram vistas como sendo perigosas; seria preferível não falar da segunda aparição de Cristo o Messias. O apocalipse foi silenciado. Essa atitude também existe na Ortodoxia, embora menos marcante quanto do Catolicismo Romano, que é mais organizado. Mas depois de tudo o Evangelho é a boa nova que veio do Reino de Deus; e a simples ideia do Reino de Deus é uma ideia escatológica. Dizemos na oração que “venha a nós o Reino”, e isso significa que o Reino de Deus ainda não veio, embora a Igreja existe há cerca de dois mil anos. A Igreja é simplesmente o caminho da história, mas não o verdadeiro aparecimento do Reino de Deus. A Igreja é um fenômeno separado na existência histórica dos povos, e não o fenômeno total que o Reino de Deus deve ser. A Igreja não é a transfiguração do mundo. O futuro Reino de Deus está estabelecido nela apenas simbolicamente. Falo da Igreja histórica, não da mística. Esse é o elemento mais importante do destino histórico do Cristianismo.

Em seus ensinamentos, Cristo proclamou a vinda próxima do Reino de Deus, vale dizer, de um mundo completamente novo e de uma vida nova. Os primeiros Cristãos viviam numa atmosfera escatológica; eles esperavam pela segunda vinda de Cristo, pelo fim desse mundo e pela chegada do prometido Reino de Deus. Mas eles não viram o longo caminho da história dentre as duas vindas de Cristo, e suas expectativas não foram justificadas pelo curso dos acontecimentos. Cristo não voltou à terra pela segunda vez; os últimos tempos não chegaram. O longo caminho da história se revelou e, ao longo desse caminho, ao invés do Reino de Deus, a Igreja teve que aparecer e se organizar do mesmo modo como todas as instituições históricas sempre se organizaram. Foi a Igreja sobre a terra que apareceu, não o Reino de Deus, e ela começou a se desenvolver de acordo com as condições desse mundo. A expectativa messiânica foi interiorizada e mais tarde teve que aparecer sob uma forma secularizada. O profetismo foi cada vez mais sufocado e deu origem a uma suspeita de heresia. Algumas vezes ele apareceu sob uma forma prematura e falsamente exaltada, como no Montanismo. O Apóstolo Paulo disse que “devemos aspirar aos dons espirituais, principalmente à profecia[2]”. Essas palavras são repetidas com relutância. O sacramentalismo se opõe ao messianismo, e a salvação pessoal e a imortalidade se opõem ao Reino de Deus.

Mas o sentido da história entre as duas vindas de Cristo deve ser justificado, mas, devido ao sufocamento do espírito profético, esse espírito já não pode ser entendido. O sacerdote mais e mais expulsou o profeta; o ritualismo se tornou dominante. Mas o ritualismo não confere nenhum entendimento sobre o significado da história. O enfraquecimento da participação do Cristianismo na história se explica pelo enfraquecimento da consciência messiânica. O profeta ouvia a Voz de Deus, mas os homens deixaram de ouvir essa Voz divina e ela deixou de ser audível. A expectativa de um messias pessoa, foi revelada entre o povo Hebreu, não entre seus escribas e sacerdotes. O Judaísmo transformou a profecia em uma religião legalista e na Torah. A mesma coisa aconteceu com o Cristianismo. O Farisaísmo é um fenômeno que pertence não apenas à religião Hebraica, mas também à Cristã, com a diferença de que, depois da Vinda de Cristo o farisaísmo se tornou mais deteriorado. O reavivamento do fogo da revelação original, o reino da Lei, do formalismo e do Farisaísmo, são fenômenos que se repetem em todas as religiões. Aconteceu no Judaísmo, no Budismo, no Islamismo e no Cristianismo. O lado dolorido da questão do messianismo e da história é que o homem não pode, por causa da ideia messiânica, descartar a responsabilidade da história e recusar-se a assumi-la; ele está obrigado a se submeter aos pesados trabalhos que a história o encarrega de fazer. Um messianismo sonhado constitui uma estrutura falsa da mente. Aqui nos confrontamos com um paradoxo. A consciência messiânica e a expectativa criam a história, proclamam um sentido para ela e a mantêm coesa, mas, ao mesmo tempo, por assim dizer, destroem a história e tentam sobrepuja-la. Essa contradição teve que ser aceita como parte da experiência. Ao mesmo tempo, enquanto a Primeira Vinda do Messias era preparada entre o povo Hebreu, agora toda a humanidade deve ser preparada para a Segunda Vinda; e é nisso que a história encontra sua justificação. O objetivo é nada menos do que o atingimento da plenitude criativa da vida e a realização do Espírito, não somente na vida humana, como ainda na vida do cosmo.

 Podemos distinguir quatro tipos de messianismo, de acordo com suas diferentes características: 1) um messianismo nacional ou universal; 2) um messianismo ligado a esse mundo ou ao próximo; 3) um messianismo vitorioso ou sofredor; e 4) um messianismo que pode ser pessoal ou impessoal. Todos esses tipos podiam ser encontrados em Israel. No Egito havia um messianismo associado à natureza divina do rei. O messias significava, em primeiro lugar, o Ungido de Deus, e essa ideia messiânica do rei como O Ungido foi preservada pelo Cristianismo, embora ela não tenha nada a ver com o Cristianismo. O messianismo está sempre conectado com o milenarismo, com a expectativa do reino de mil anos. O messianismo dos séculos XIX e XX, secularizado e desviado de suas raízes religiosas, continua a esperar pelo reino de mil anos, e isso é verdadeiro em Hegel, Marx, Comte e mesmo no racismo Alemão. Mas esse messianismo secularizado normalmente é desse mundo, ele é triunfante e impessoal. Relacionado a isso existem, de acordo com Hegel, três períodos da história que devem ser notados, que são os períodos da tese, da antítese e da síntese. No terceiro período deverá advir a ordem perfeita, o triunfo da liberdade, da razão e da ciência, o triunfo da justiça e a felicidade universal. Essa esperança na inauguração de uma ordem perfeita no terceiro período, essa esperança de se alcançar o cume do progresso, é uma esperança messiânica; é a expectativa do reino de mil anos. A ciência nada tem a dizer a esse respeito.

No passado, a mais nítida manifestação do messianismo religioso foi o caso de Joachim de Floris, no século XIII, que esperava a vinda da terceira época do Espírito Santo, e o movimento religioso na Itália durante esse período. No século XIX o messianismo assumiu às vezes formas religiosas e proféticas, às vezes formas exteriormente antirreligiosas. O messianismo e o profetismo pode ser encontrado em Saint Simon, Fourier, de Maistre (a expectativa de uma nova revelação do Espírito Santo), em Comte, Hegel e Schelling (Cristianismo Joanino), em Cieskowsky (o mais notável de todos), em Marx, em Nietzsche (a vinda do super-homem e a cultura Dionisíaca), em Ibsen (o terceiro reinado) e no apocalíptico Leon Bloy. Dentre os Russos, ele é encontrado em Dostoievsky, Vladimir Soloviev, Fedorov e especialmente no anarquismo religioso de Tolstoy. A expectativa está sempre associada ao messianismo, ela sempre olha para o futuro, mas constitui uma expectativa que não é passiva, mas ativa, que que demanda ação. Ela consiste numa atividade na história, mas que é inspirada pela crença no fim da história. A isso se deve a aparente inconsciência da consciência messiânica.

Em nossos dias, apenas os Russos e os Alemães possuem uma filosofia da história. A filosofia Alemã da história é panteísta e cósmica; a filosofia Russa da história é divino-humana e escatológica. Mas ambos os povos são inspirados pela paixão messiânica, e é isso que determina seu dinamismo e seu ativismo. O dinamismo e a atividade poderiam ser dados por uma interpretação puramente espiritual do Reino de Deus e por uma concepção estritamente individualista da imortalidade. A atitude messiânica da mente é essencial para a solução da história do mundo, e o messianismo enquanto fenômeno está entrelaçado com o lado profético da religião. Uma interpretação puramente sacramental da religião não é favorável ao espírito profético e à expectativa messiânica. Nesse caso não existe uma crença que ilumine as questões, não apenas a partir do passado, mas que brilhe também desde o futuro. E o profetismo é um princípio que conduz ao renascimento, a uma nova vida. Não é verdade que o profeta seja apenas um instrumento passivo nas mãos de Deus. No profetismo, também a humanidade se encontra no grau de atividade mais alto; a profecia é uma atividade divino-humana, uma criatividade divino-humana. O profetismo na arte, na literatura, na filosofia, nos movimentos sociais, é a atividade criativa do homem. É um erro fatal dividir o Deus-homem em duas partes e dizer que na religião e na vida espiritual somente Deus atua, e que na cultura e na vida social apenas o homem atua. Na verdade, o divino-humano atua conjuntamente em ambos os casos. E se existe um dualismo – e o dualismo é necessário à atividade e à luta – ainda assim é um dualismo de um caráter inteiramente diferente; não é o dualismo entre o divino e o humano, mas entre a liberdade e a necessidade, entre o bem e o mal.

Podemos adotar três pontos de vista: 1) o religioso social, racial e tribal, que se origina do Judaísmo e do antigo mundo pagão; 2) o religioso individualista, que envolve uma fuga do mundo e da história, como na religião da Índia, o neoplatonismo e em Eckhardt; e 3) o messianismo Cristão, que é ao mesmo tempo espiritual, e que se eleva acima do poder do princípio nacional, racional e estatal. Ele não apenas postula a existência do transcendente, como reconhece a possibilidade de mudança do nosso mundo através do transcendente. Esse terceiro ponto de vista não admite que princípios espirituais ideais progressivamente se encarnem e se abriguem na história, no Estado, na autoridade e na objetificação do espírito. A história é uma tragédia, e, num certo sentido, uma tragicomédia. A atividade do homem, que é uma tarefa que lhe foi imposta, não deve depender do sucesso, de sua realização na história. É admiravelmente bem colocado no Bhagavad-gîta, que não devemos buscar os frutos da ação. Toda ação boa e positiva do homem terá, de um modo ou de outro, sua importância para a eternidade, para o Reino de Deus, mesmo que os poderes das trevas e do mal ajam contra ela e no sentido de evitar sua realização no tempo.

A filosofia da história levanta o problema da relação da história com o tempo, a liberdade e a personalidade. E essas relações apresentam paradoxos. O tempo é, em si, um paradoxo; o movimento rítmico do tempo, sua ruptura com o passado, que já não amis existe, com o futuro que ainda não aconteceu, e com o presente que é em parte ainda passado e em parte pertence ao futuro, torna difícil captar sua realidade. Existe um presente do passado, um presente do presente e um presente do futuro. Toda nossa vida depende do tempo, e é o tempo que nos traz a morte. As ações criativas se realizam no tempo; ações que trazem coisas novas consigo. A história acontece no tempo; mas o tempo histórico é diferente do tempo cósmico. O movimento que ocorre no tempo não é circular nem cíclico; ele desliza para frente; é esse movimento que se dirige para um objetivo. Mas justamente esse objetivo não pode ser alcançado no tempo histórico, e aqui se abre um sinistro infinito. Um evento só pode acontecer se houver uma irrupção do transcendente. Em termos imanentes, a história pode se inclinar no sentido da criação de uma sociedade perfeitamente racionalizada e mecanizada. Mas não é isso que eu quero, eu quero o Reino de Deus, que advirá imprevistamente.

A relação da história com a liberdade é também um paradoxo. A história na qual se encontra um sentido pressupõe a existência da liberdade. O Cristianismo é histórico precisamente porque a liberdade se revelou nele. Sem a liberdade não existe história, mas apenas o reino da natureza. Mas ao mesmo tempo a história suprime a liberdade do homem, e o subordina às suas próprias necessidades. Essa é uma ideia notável de Hegel, de que a malícia da razão reina da história e subordina tudo a si própria, com vista a fins que não são humanos. O homem cria a história e a enche com seu próprio poder criativo. Mas a história trata o homem com indiferença e crueldade; existe um demonismo real na história. O homem é um ser histórico, e por isso ele não consegue se livrar do fardo da história.

O maior paradoxo de todos deve ser visto na relação entre a personalidade e a história. O conflito entre a personalidade e a história do mundo é um conflito fundamental na existência humana. Homens como Dostoievsky e Kierkegaard estavam bem cientes disso. A história não resolve o problema da personalidade e de seu destino e, sendo assim, o fim da história é inevitável. As pessoas diferem grandemente segundo a medida em que visam a liberdade da personalidade, a Igreja, enquanto sociedade espiritual e comunhão espiritual, enquanto os mais elevados valores, e em que medida veem os supremos valores como sendo o poder do Estado e da nação, e a hierarquia exterior da Igreja. Os inimigos da liberdade são movidos pelo medo, e o medo é um dos principais fatores da história, assim como é um dos principais sinais da Queda do homem. A única coisa que pode reerguer o homem é a consciência messiânica, a consciência de uma aspiração e de um movimento em direção ao fim. O próprio progresso tem uma natureza dupla; tanto ele pode ser orientado para uma solução final, como pode consistir num processo sem fim para o qual não existe solução, e que não contém em si nenhum valor, no qual tudo se transforma em meio. É nisso que consiste a contradição interna do progresso. É nisso que consiste a contradição interna da própria história, que tanto possui sentido como não possui, e que assim se torna uma comédia; que tanto se move em direção a um fim, como constitui um tempo infinito, no sentido mau do termo.

E a existência da Igreja na história é, da mesma maneira, inconsistente. A Igreja histórica lembra qualquer outra instituição histórica, ela é muito similar ao Estado, ao reino de César; pois ela também mostra uma relatividade, uma capacidade de adaptação, também ela está sujeita ao poder da necessidade. Mas a Igreja é também meta-histórica; outro mundo, além desse, se revela nela. Trata-se de uma sociedade espiritual; nela está o reino da liberdade, que não se parece com o reino da natureza. Toda a complexidade e a dor da história da Igreja se deve a essa mistura de duas naturezas. A Igreja deve funcionar dentro da natureza e assumir os pecados da história, mas, sendo também meta-histórica, ela deve conduzir ao Reino de Deus. Existe um significado profundo segundo o qual ela é, por assim dizer, a alma da história e a alma do cosmo, e que suas fronteiras não coincidem com as fronteiras visíveis da Igreja histórica. A existência da Igreja é um processo primeiramente divino e humano, e o princípio humano desempenha um duplo papel nela, criativamente positivo e distorcidamente negativo. Existe nela um princípio inercial conservador e imóvel que é hostil a toda vida criativa, que é um princípio humano, inteiramente humano, e que certamente não é divino, como sustentam seus defensores. Todos os conflitos e contradições da história ecoam na vida da Igreja. A história é uma combinação de tradição e mudança criativa. A tradição, por trás da qual existiu uma verdadeira vida criativa no passado, pode se tornar uma inércia mortal, pode levar à imobilidade, e assim ela trai seu próprio passado, negando o movimento criativo. A mudança não deve ser um mero ajuste oportunista ao mundo tal como o vemos, como um dado. Somente a consciência messiânica dentro da Igreja se volta sinceramente para o Reino de Deus; ali, tanto a religião como a Igreja desaparecem como formas separadas surgidas no decurso da história.

Tudo o que se realiza na história dá a impressão de falha. O que de fato se realiza não é o que foi previsto pelo ideal criativo. Em especial, o Cristianismo não funcionou bem na história. Existe uma trágica falta de coerência entre os Cristãos das catacumbas e os Cristãos da grandeza e do poder imperial e papal, entre os Cristãos perseguidos e os Cristãos perseguidores. Todas as religiões funcionam mal. É ridículo dizer que a Revolução Francesa criou a liberdade, a igualdade e a fraternidade como um fato real. Existe uma acachapante falta de correspondência entre os revolucionários bolcheviques durante o período de sua atividade clandestina e de seu exílio, e as mesmas pessoas no zênite de seu poder, com seus uniformes, suas ordens, suas cortes e embaixadas. A mesma incongruência pode ser apontada entre a Reforma de Lutero e os pastores Luteranos do século XIX. Todos os esquemas de um império mundial foram de curta duração, como, por exemplo, os impérios de Alexandre da Macedônia – que desapareceu após sua morte – o império de Roma, o império de Carlos Magno, o de Napoleão. A glória e a majestade desse mundo têm vida curta e são irreais. A mesma coisa acontecerá com o reino socialista, que foi construído para ser um fato realizado. O poder pertence ao príncipe desse mundo, e ele joga ardilosamente com os projetos dos seres humanos. As sociedades humanas passam de estados de constrangimento, opressão, crueldade e perigo, sem garantias de vida e com medo dos horrores da guerra e da revolução, vale dizer, de uma vida dura e cruel, para uma vida mais pacífica, contente e livre, para uma vida de mediocridade burguesa, de perseguição ao prazer, e daí para a desmoralização e a decadência; e todo o processo se reinicia. E assim segue a tragicomédia da história.

Significa isso que é necessário repudiar a história por completo? Não. A história é um teste, ela é um experimento pelo qual o homem tem que passar. Os fracassos da história, o fracasso de todas as realizações da história, não são uma pura perda, pois é por meio desses fracassos que o homem avança em direção ao Reino de Deus. Isso simplesmente nos conduz à questão do fim. O Reino de Deus não pode ser alcançado dentro das condições de nosso mundo. O que é preciso para sua realização, não são mudanças nesse mundo, mas uma mudança desse mundo, não uma mudança no tempo, mas uma vitória sobre o tempo. O messianismo é a crença de que novos tempos estão ao alcance, de que o Reino de Deus está chegando, de que o Messias aparecerá com seu poder. A expectativa que inspira a consciência messiânica está na fronteira entre dois mundos, na fronteira entre esse mundo e o mundo além, entre o imanente e o transcendente, entre o terreno e o celestial, na fronteira que divide o histórico do meta-histórico. A expectativa messiânica não pode ser realizada, nem dentro da história em si, nem fora dela. Essa é uma contradição que está incrustrada em nossa consciência limitada, em nossa razão decaída. Toda ação criativa do homem está sujeita ao fracasso, no sentido de que o produto de fato criado não é aquele que foi idealizado na mente criativa. Mas ao mesmo tempo toda ação criativa é essencialmente de caráter escatológico, e nela esse mundo encontra seu fim e outro mundo se inicia. Mas nossa consciência limitada não consegue ver isso claramente.

No mundo atual, duas ideias messiânicas colidiram, a Russa e a Alemã. A ideia Russa, em sua forma mais pura, é a ideia de realizar de fato os ideais de verdade e de direito, a fraternidade entre os homens e os povos. Os Russos herdaram essa ideia. Ela foi herdada dos profetas, das verdades eternas do Cristianismo, de alguns doutores da Igreja, especialmente do Oriente, e dessa busca pela verdade que é característica do próprio povo Russo. A ideia Alemã é a ideia da dominação por uma raça escolhida, por uma raça de senhores nascida ara dominar as outras raças e povos, vistos como inferiores. Essa ideia foi herança dos antigos pagãos, a ideia Greco-Romana, da formação seletiva de uma raça de senhores poderosos que transformaria em escravos as demais raças. O caminho foi preparado no pensamento Alemão por uma série de pan-Germanismos. A primeira aspirava ao Reino de Deus, vale dizer, a busca pela “verdade sobre a terra”, que não teria sido suficientemente estabelecida pelo Cristianismo, e que só poderá se revelar na revelação suprema do Espírito.


[1] “Die Philosophie könne auch ihren Chiliasmus haben”.
[2] I Coríntios 14: 1.

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