O fim das
coisas e o novo Éon
Todo o desenvolvimento do raciocínio nesse livro conduz à questão do fim,
não como mais um problema entre outros, mas como o problema principal, aquele
que abarca todos os demais. Tese: o mundo teve um começo no tempo e está confinado
dentro dos limites do espaço. Antítese: o mundo nem teve um começo no tempo,
nem tem limites no espaço, sendo infinito num como noutro. Essa é uma das
antinomias da razão pura na dialética transcendental do gênio de Kant. O que me
interessa aqui é simplesmente a antinomia associada ao tempo, que deve ser
estendida para incluir o problema do apocalipse no final dos tempos. As antinomias
de Kant não podem ser resolvidas, não podem ser “canceladas[1]”,
na expressão de Hegel. A razão se encontra no poder da aparência transcendental[2].
Kant está absolutamente certo ao dizer que as antinomias não podem ser
superadas dentro dos limites do mundo fenomênico. No problema que nos diz
respeito agora também é impossível pensar que o mundo existirá indefinidamente
no tempo, tanto quanto pensar que ele terá um final no tempo. Para Kant não
existe desenvolvimento que tenha sua fonte na antítese. A dialética de Hegel possui
um caráter bem diferente. Nele, as antinomias superam umas às outras e são
resolvidas na síntese.
As contradições fazem nascer o desenvolvimento. A descoberta do que
está por vir, do desenvolvimento, foi uma importante descoberta de Hegel. A unidade
da existência e a não-existência dão início ao porvir, ao desenvolvimento. O desenvolvimento
no mundo pressupõe a não-existência. Mas para Hegel não existe fim, nem escatologia
alguma no sentido estrito do termo. A dialética do finito e do infinito se
resolve continuamente, mas nunca se consuma. É por isso que era impossível para
ele aceitar algo tão escandaloso como o final que transformou o Estado Prussiano
numa monarquia absoluta. Os dois filósofos Europeus de maior gênio, Kant e Hegel,
não deram solução à dialética das contradições, pois não tinham uma doutrina
sobre o fim das coisas. Isso só é possível por uma experiência religiosa
profética, que estava fora do alcance de ambos. Existe uma verdade parcial em
Kant, como em Hegel, e eles nos ajudam a compreender o problema filosófico do fim
do mundo e da história, um problema que até agora só foi expresso na
fraseologia religiosa. Não é correto dizer que a dialética de Hegel seja uma
simples questão de lógica. Deduz-se de seu reconhecimento da identidade de
pensamento e existência que a dialética lógica se torna uma dialética do ser. É
preciso dizer, usando a terminologia de alguns movimentos do pensamento filosófico
atual, que em Hegel encontramos uma dialética existencial. Sua teoria do senhor
e do escracho, e da consciência infeliz, são exemplos disso.
Não r3econhecemos a identidade entre ser e pensamento; para nós,
assim, a dialética possui um caráter diferente, que está ligado à experiência
espiritual religiosa. Existe um paradoxo no fato de que quando não se visualiza
o fim, tudo se torna infinito. A eternidade só se revela quando procuramos pelo
fim. A dialética das antinomias não se resolve dentro dos confins de éon do
mundo, que carrega consigo a marca da objetificação. Nisso Kant está mais certo
do que Hegel. Mas Hegel está mais certo do que Kant quando reconhece o
desenvolvimento por meio da contradição, mesmo que o desenvolvimento não chegue
a solução alguma. É paradoxal pensar no final dos tempos, no fim da história,
como coisas que ocorrem dentro desse tempo. É isso que torna a interpretação do
Apocalipse tão difícil. Não se pode pensar no fim da história, nem como algo
que acontece dentro dos limites de nosso tempo vicioso, nem como um evento que
pertence a esse mundo, ou como se acontecesse fora do tempo histórico, como um
evento que pertença ao próximo mundo. O fim é a conquista, tanto do tempo
cósmico, como do tempo histórico. Não haverá mais tempo. Não se trata de um fim
no tempo, mas no fim do tempo. Mas o tempo existencial, que
possui suas raízes na eternidade, permanecerá, e é nesse tempo existencial que
acontecerá o fim das coisas. A isso corresponderá a entrada num novo éon. Ainda
não será a eternidade, que os homens ainda tentam objetificar. A linha estreita
que marca a fronteira entre o aqui e o além deverá ser obliterada.
Mas existe ainda outro aspecto no paradoxo do tempo, que reside no
fato de que existe uma misteriosa coincidência possível entre o passado e o
futuro, uma coincidência entre a origem e o fim. O problema escatológico é uma questão
metafísica fundamental. Os filósofos deram pouca atenção a ele, quase nenhuma
atenção, porque sempre separaram a cognição filosófica da experiência
religiosa. Essa separação é falsa, e conduz a uma interpretação errada das
antinomias da cognição. O mundo deve acabar e a história deve acabar também; de
outra forma, tudo está desprovido de significado. O fim é o triunfo do
significado. É a união do divino com o humano, e a consumação escatológica da
dialética existencial entre o divino e o humano. Devemos nos mover para adiante,
e na verdade já estamos nos movendo dentro do tempo em direção ao fim, que
consistirá numa continuação infinita.
Do ponto de vista filosófico o fim do mundo e da história será acima
de tudo o triunfo sobre a objetificação, vale dizer, o triunfo sobre o mundo da
alienação, da necessidade, da impessoalidade, da hostilidade. É a formação de
um mundo de objetos que cria a fonte de todos os infortúnios do homem. O objeto
é estranho e intolerável para mim. Também Hegel ligava a consciência infeliz
com a relação com o objeto, com a dicotomia e a disrupção. A consciência é
sempre dicotômica e disruptiva; ela pressupõe a oposição entre sujeito e
objeto, que sempre envolve alguma forma de infelicidade. A superação da dicotomia
e da objetificação, o caminho para escapar da escravidão do mundo, dos objetos,
pode ser chamada de despertar da supraconsciência, ou de uma consciência mais
elevada. A objetificação corresponde sempre a um esfriamento do fogo criativo. Na
história ela corresponde a um esfriamento do desenvolvimento. É o que Péguy
chamava de “política”, distinta do “misticismo”. O destino dos mosteiros, das revoluções,
das colônias comunistas, Tolstoyenses, Dukhoborenses, o destino do amor (“somente
a manhã do amor é boa”), o destino póstumo dos homens de gênio, tudo se refere
à congelante objetificação. É impossível esperar a solução final da história do
mundo ao longo dessa linha. A cultura clássica queria a petrificação do mundo, fixá-lo
em formas rígidas, enquanto que o mundo exigia ser fundido e moldado no fogo. “Eu
vim para trazer o fogo ao mundo, e como gostaria que já estivesse aceso!”. Essas
palavras foram esquecidas por um Cristianismo objetificado, congelado. O homem
foi esmagado entre dois infinitos sinistros, e, nessa posição, ele tenta se
organizar para não sentir a própria tragédia.
A expansão indefinida do espaço exterior enchia Pascal de terror, mas
a indefinitude do tempo no passado e no futuro é tão assustadora quanto. O sinistro
duplo infinito se expressa numa existência que se projeta no exterior, vale
dizer, na existência objetificada que cada vez mais se afasta de seu núcleo
noumênico. Em seu descontentamento com o presente o homem se volta tanto para
as lembranças de uma era de ouro no passado, como para a expectativa de uma era
do ouro no futuro. O homem é capaz de imaginar uma vida melhor, mais agradável,
mais justa e mais verdadeira do que essa existência infeliz. Mas de onde ele
tira poder para tal imaginação? Em caso algum esse poder imaginativo que ele
possui será capaz de vencer o poder do tempo, o fatídico poder do tempo, que o
mantém subjugado mesmo em sua própria concepção de uma era de ouro. O homem
materializa o próprio “reino de mil anos”. A ideia profética do “reino de mil
anos” é estranha a Santo Agostinho. Em sua visão o “reino de mil anos” já havia
se realizado na Igreja histórica. Isso o deixou sob o poder da objetificação. Mas
o Cristianismo histórico está chegando ao fim, em sua sina, e a inevitável
transição para um Cristianismo escatológico está se apresentando. Raios de luz
brilham desde o futuro. O futuro definitivo se une às fontes do passado. Existem
três etapas da revelação: a revelação na natureza, a revelação na história e a
revelação escatológica. Somente nessa última Deus se revelará plena e
finalmente. Essa etapa será precedida pelo abandono de Deus, por um anseio
angustiante, pela mecanização e a devastação da natureza, pela mecanização e a
secularização da história e pela transição a um período sem deus.
A revelação escatológica é também uma revelação no Espírito e na
Verdade, que é a eterna revelação. Existe um trágico conflito entre a Verdade e
o mundo. A Verdade pura e sem distorção queima o mundo. O objetivo é alcançar
uma totalidade, a superação da disrupção, das falsas antinomias nos
pensamentos, nos sonhos, nas paixões, nas emoções e nos desejos. Poderá haver
sofrimento nas partes isoladas da alma, enquanto em outras partes pode não haver.
O homem pode existir porque o sofrimento não se apropria de toda a alma, mas
sua existência não é feliz. A história universal lembra à mente não apenas a
tragédia, como também a comédia, e a comédia também chega ao seu fim. Esse é o
fracasso fatal da história de que falei mais atrás. Todo esforço para criar uma
nova existência, seja pelo Cristianismo histórico, seja pela revolução social,
ou pela formação de seitas, etc., tudo termina pela objetificação, pela
adaptação ao medíocre, à normalidade do cotidiano. O velho reaparece em novas
formas, a velha desigualdade, o amor pelo poder, a luxuria, os cismas e todo o
demais. A vida em nosso éon não passa de um teste e de um caminho, mas o teste
possui um sentido e o caminho conduz à consumação final. Seria fácil para o
homem se ele tivesse consciência do fato de que uma próxima revelação está ao alcance
de sua mão, uma revelação, não apenas do Espírito Santo, mas de um novo homem e
de um novo cosmo.
Tanto uma escatologia passiva como uma escatologia ativa são possíveis.
Na maior parte dos casos a estrutura apocalíptica da mente é levada a uma
espera passiva do fim, e a uma recusa em encarar os problemas da história. Assim
é a História do Anti-Cristo de Vladimir Soloviev. O tempo apocalíptico é
interpretado como um tempo de espera, submetido à ação de poderes divinos e
diabólicos. Esse é um aspecto decadente da mente. Mas uma escatologia ativa é
possível, e ela impõe a consciência de si que responde pela dignidade do homem enquanto
espírito livre. Ela estabelece a necessidade de uma ênfase na atividade e na
criatividade humana para quando chegar o fim. o pensamento do fim deve ser
tomado, não com uma atitude mental passiva e negativa, mas de forma criativa e
positiva. Já mencionei que todo ato criativo humano possui um caráter
escatológico e conduz o mundo a um fim. O fim é interpretado de maneiras
diferentes conforme o homem o veja do ponto de vista do Cristianismo histórico,
ou de uma revelação mais completa do Espírito. No último caso, o homem se torna
sujeito, não objeto, e ele se torna um sujeito criativo. A consciência Cristã
pouco refletiu sobre o fato de que a raça humana chegará a um fim e que os homens
deverão se tornar inteiramente Cristãos, monges, talvez, mas absolutamente capazes
de temperança. Aqui vemos a profundidade escatológica da questão do sexo. É comum
dizer-se que o objetivo do casamento é a geração de filhos, e que esse é o
supremo bem. Mas ao mesmo tempo pensa-se que esse bem supremo é resultado daquilo
que se considera vicioso e pecaminoso. Rosanov expõe aguda e vigorosamente a
hipocrisia que resulta dessa inconsistência. Somente Soloviev e Kierkegaard opinam
que no modo atual de geração de filhos haja algo de vicioso e pecaminoso.
A metafísica do sexo possui uma conexão imediata com o problema do
fim. Quando vier o fim, algo deverá mudar na existência do sexo. Depois da
submersão desse lado da vida na dissolução e numa treva horrorosa, deverá
acontecer uma iluminação. O amor poderá transfigurar a antiga vida sexual e
dirigir a energia do sexo, que mantém escravo o homem, para canais criativos. Somos
conscientes da possibilidade dessa sublimação da energia. O amor deverá ter uma
posição central da religião do Espírito, a religião do fim – o amor deverá ser transfigurador
e criativo. Tanto o amor erótico como o amor ágape terão seu papel. Mas, antes
de entrar na época mais alta e encontrar ali a unidade, o homem terá que seguir
até o fim o caminho da dicotomia e do sofrimento, que ainda mal começou. Devemos
sempre lembrar que ao final de seu caminho, Jesus clamou: “Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonaste?”. Houve um homem que, ao final de um longo caminho histórico,
sentiu esse abandono, embora de outra maneira, e esse homem foi Nietzsche. O processo
do mundo possui um caráter trágico; ele não pode ser entendido como um movimento
progressivo e contínuo para frente. O mal resulta do processo do mundo, pois
tudo o que se desenvolve é lançado fora no não-ser; mas homens e mulheres,
criaturas vivas, não poderão ser atirados ao não-ser. Só existe uma coisa que
talvez tenha que suportar as eternas dores do inferno, que é a insistente
defesa delas, acompanhada por um sentimento de satisfação.
A maior verdade religiosa e moral para a qual o homem deve se voltar,
é de que não podemos ser salvos individualmente. Minha salvação pressupõe a
salvação de todos, a salvação de meu próximo, a salvação universal, a salvação
de todo o mundo, a transfiguração do mundo. A própria ideia da salvação nasce
de uma condição oprimida do homem; e ela está associada a uma concepção forense
do Cristianismo. Isso deve ser substituído pela ideia de uma transformação
criativa e de uma iluminação, pela ideia de um aperfeiçoamento de toda a vida. “Vede,
eu fiz novas todas as coisas”. Não é só Deus que faz novas as coisas, mas também
o homem. O período do fim não é apenas um período de destruição, mas também um
período de criatividade divino-humana, de uma nova vida e de um mundo novo. A Igreja
do Novo Testamento era uma imagem simbólica da Igreja eterna do Espírito Santo,
na Igreja do Espírito será lido o Evangelho eterno. Quando nos aproximarmos do
eterno Reino do Espírito, as torturantes contradições da vida serão superadas e
os sofrimentos que levam ao fim aumentarão, para então passar à sua antítese, a
felicidade. E isso acontecerá não apenas em relação ao futuro, como em relação
ao passado, pois haverá uma inversão do tempo, e todas as coisas vivas participarão
do fim.
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