Em seu livro O Peregrino do Absoluto, Léon Bloy diz: “Sofrer
passa; ter sofrido não passa jamais”. É preciso dar a esse aforismo seu sentido
mais amplo. Podemos superar a experiência da vida, mas a experiência vivida
permanece para sempre como o apanágio do homem e a realidade engrandecida se
sua vida espiritual. Não existe possibilidade alguma de apagar o que foi
vivido. Aquilo que foi continua a existir sob uma forma transfigurada. O homem
não é um ser absolutamente finito, ele se forma e se cria na experiência da
vida, na luta do espírito, nas provas de seu destino. O homem não é senão o
desígnio de Deus.
O passado é superável e pode ser vencido, ele pode ser resgatado e
perdoado, nos ensina o Cristianismo: o nascimento para uma nova vida é
possível. Mas nessa nova vida transfigurada entram essas experiências, que não
podem desaparecer sem deixar traços. Um sofrimento pode ser superado e a
alegria e a felicidade podem renascer, mas em toda nova alegria, em toda nova
felicidade, entrará misteriosamente o sofrimento que foi vivido; a alegria e a
felicidade serão doravante diferentes. As dúvidas torturantes podem ser
dominadas, mas na fé adquirida se revelará a profundidade das incertezas. A
mesma fé será de outra qualidade do que a dos homens que não tiveram essas
dúvidas e que creram por “herança”, pelo nascimento ou pela tradição. O homem
que viajou bastante por mundos espirituais, que passou por provas no decurso de
sua busca e de suas peregrinações, terá uma formação espiritual diferente da de
um homem sedentário, para que esses mundos permanecem desconhecidos. O homem
está ligado ao seu destino, e mão tem poder para renunciar a ele. Meu destino é
sempre particular, ele não se renova, ele é um e único. Na experiência de minha
vida, nas minhas provas e buscas, cria-se a formação do meu espírito. Tudo o
que eu vivi faz parte das mais altas aquisições de minha vida espiritual, de
minha fé, de minha Verdade, eu enriqueço com minhas experiências, mesmo que
essas tenham sido torturantes e terríveis, mesmo se, para escapar do abismo, eu
tenha tido que apelar para outras forças além das forças humanas.
Quando o homem retorna a Deus depois de uma experiência de apostasia,
ele desfruta, em suas relações com Ele, de uma liberdade desconhecida por quem
passou toda a vida numa fé tranquila e tradicional, que viveu numa “herança
patrimonial”. O sofrimento passa, mas haver sofrido não passa jamais. Essa
verdade é exata, seja em relação ao indivíduo em particular, seja em relação às
sociedades humanas. Vivemos numa época transitória de crise espiritual, na qual
muitos peregrinos errantes voltam ao Cristianismo, à fé de seus pais, à Igreja,
à Ortodoxia. Esses homens retornam, tendo passado pela prova da nova história,
da qual eles atingiram os limites extremos. Essas almas, do final do século XIX
e início do século XX, são almas trágicas. São almas novas, das quais não se
pode desenraizar as consequências das experiências vividas.
Como esse viajam são recebidos quando retornam à Casa do Pai?
Frequentemente, é de outro modo do que aquele como foi recebido o filho pródigo
da parábola, a voz do filho mais velho, que se glorifica de ter permanecido
junto ao Pai e de tê-lo servido, se faz ouvir com força. E no entanto, dentre
esses peregrinos do espírito, não existem apenas homens depravados, existem
também os famintos, os sedentos da Verdade; e esses serão mais justificados
perante Deus do que inúmeros “cristãos burgueses” que se orgulham de seu
farisaísmo e se creem “grandes proprietários” da vida religiosa.
A alma humana se tornou diferente do que era quando recebeu o
Cristianismo em suas origens, quando ensinavam os grandes doutores da Igreja,
quando se dogmatizava nos concílios ecumênicos, quando se formava o estado
monástico, quando o regime teocrático dominava e se forjava a religiosidade
medieval e bizantina. Essa transformação e essa depuração da psique se
produziram, antes de tudo, sob a influência da ação misteriosa, tantas vezes
invisível e profunda, do próprio Cristianismo, que triunfava interiormente
sobre a barbárie e a rudeza da alma, enquanto educava os homens.
Não encontramos resposta às angustiantes questões de Nietzsche nos
catecismos ou nos ensinamentos dos starzi[1];
elas exigem d Cristianismo um complemento criativo. Todo o nosso movimento de
filosofia religiosa russa das últimas décadas passou por uma experiência
indelével que não pode deixar de enriquecer o Cristianismo. Ela não resultou de
um processo de aperfeiçoamento individual ou de uma aquisição de santidade.
Entretanto, o espírito eclesiástico reacionário (não a Igreja) se opôs ao
pensamento criativo da filosofia religiosa e a renegou. O mundo Ortodoxo, de
espírito tradicional, ainda não compreendeu que o Cristianismo deixou de ser,
por excelência, a religião dos simples de espírito, e que ele deve se voltar
para almas mais complexas e descobrir uma espiritualidade mais profunda.
Aqueles que conheceram uma liberdade d e espírito ilimitada e que
retornaram livremente à fé Cristã, não podem apagar de suas almas essa
experiência, nem negar sua existência. A liberdade, com sua dialética interior,
o destino trágico que ela traz em si, é uma experiência de ordem particular,
inerente ao próprio Cristianismo. Quem superou de modo definitivo as seduções e
as tentações do humanismo, que descobriu o vazio da adivinhação do homem pelo
homem, não poderá jamais renunciar à liberdade que o conduziu a Deus, a essa
experiência definitiva que o libertou do Mal. Não podemos manter sobre um
terreno abstrato a questão da liberdade religiosa e tratá-la de uma perspectiva
estática. Eu cheguei a Cristo pela liberdade, pela experiencia intima dos
caminhos da liberdade; minha fé Cristã não é a fé dos costumes patrimoniais
recebidos em herança, ela foi obtida através de uma experiência torturante de
vida interior. Eu não conheço constrangimentos na minha vida religiosa, nem
reconheço experiência de fé ou de religiosidade autoritárias. Podemos opor a
esse fato fórmulas dogmáticas e teologias abstratas? Não, porque para mim elas
não serão jamais realmente convincentes.
A liberdade me levou até Cristo, e eu não conheço outro caminho que
conduza a Ele. Não fui o único a ter passado por essa experiência.
Todos aqueles que deixaram o Cristianismo-autoridade não podem retornar senão
ao Cristianismo-liberdade. Essa é uma verdade da vida experimental e dinâmica,
que não podemos ligar a nenhuma concepção das relações da liberdade e da graça.
Trata-se de uma questão de ordem totalmente diversa. Admito que a graça me conduziu
à fé, mas essa graça, eu a vivi com plena liberdade. Aqueles que chegaram ao
Cristianismo pela liberdade, trazem a ele um espírito de liberdade. Seu
Cristianismo é necessariamente mais espiritual, por ter nascido do espírito, e
não da carne e do sangue. A experiência da liberdade do espírito é indelével,
mas o que existe de arbitrário na liberdade é um mal que deve ser superado.
Aqueles cuja religiosidade e autoritária ou hereditária sempre haverão de
compreender mal os homens que chegaram à religião pela liberdade, pela
imanência trágica da experiência vivida.
A vida religiosa passa por três estágios característicos: 1) pelo
estágio objetivo, popular e coletivo, natural e social; 2) pelo estágio
subjetivo, individual, que pertence à alma e ao espírito; e 3) por aquele que
se eleva até superar a oposição entre o objetivo e o subjetivo, e que atinge o
mais alto grau da espiritualidade. A aparição do Cristianismo teve como
condição a passagem da religião coletiva e popular para a religião subjetiva e
individual. Mas em seguida o Cristianismo se rebaixou e se cristalizou numa
religião objetiva e popular, social e coletiva. É precisamente essa forma do
Cristianismo que atualmente está em crise. A vida religiosa passa por uma fase
subjetiva e individual, que não pode ser a última, e que se destina a ser
igualmente superada.
Existem dois estados da alma que se enfrentam no decurso da história
da humanidade e que têm dificuldade em se compreender mutuamente. O primeiro
pertence ao coletivo, à maioria social e , exteriormente, é ele que predomina
na história; o outro pertence à individualidade espiritual, a uma minoria
eleita, e seu significado ao longo da história é muito mais oculto. Poderíamos
denomina-los como estado “democrático” e estado “aristocrático”. Os socialistas
afirmam que no curso de toda história das sociedades humanas, a minoria
privilegiada explorou a maioria dos deserdados. Mas existe uma outra verdade
mais profunda e menos aparente à primeira vista: o coletivo, a maioria
quantitativa, sempre oprimiu e perseguiu, na história, a minoria qualitativa, a
que possuía o Eros divino, as individualidades espirituais orientadas para as
alturas. A história é elaborada para o homem médio, para o coletivo; é para
esse que foram criados o Estado, a família, as instituições jurídicas, a
escola, o conjunto dos costumes e hábitos, a organização exterior da Igreja; a
ele se adaptaram o conhecimento, a moral, os dogmas religiosos e o culto. É
ele, esse homem médio, esse homem massificado, que é o mestre da história, que
sempre exigiu que tudo fosse feito para ele, que tudo remete a si próprio, ao
seu nível e aos seus interesses.
A “direita” e a “esquerda”, os conservadores e os revolucionários, os
monarquistas e os socialistas, pertencem igualmente a esse tipo coletivo
“democrático”. Os conservadores, os monarquistas os partidários da autoridade,
não são menos “democráticos” do que aqueles que se autointitulam “democratas”.
É para esse coletivo social, para esse homem da massa, que se criam as
monarquias, que é reforçada a autoridade hierárquica, que se conservam as
antigas instituições, e é também em seu nome que essas coisas são abolidas e se
fazem as revoluções. As monarquias absolutas e as repúblicas socialistas são
igualmente necessárias às massas, são igualmente adaptadas ao homem médio. Esse
último tanto dominou a nobreza, como domina a burguesia, e as classes baixas e
trabalhadoras. Jamais é por intermédio da aristocracia espiritual que são
estabelecidos os governos, que são elaboradas as constituições, ou os métodos
de conhecimento e de criação.
Os santos, os profetas, os gênios, os homens que possuem uma vida
espiritual superior, capazes da criação autêntica, não têm o que fazer com a
monarquia, nem com a república, com o conservadorismo, com a revolução, com a
constituição ou a escola. A raça da aristocracia espiritual não traz consigo o
fardo da história. Ela está submetida às instituições, às reformas e aos
métodos antigos e novos, em nome do “povo”, do coletivo, em nome da felicidade
do homem médio. Evidentemente, essa raça aristocrata espiritual, esses homens
eleitos, que vivem o Eros divino, pertencem à raça decaída de Adão e sofrem,
por causa disso, as consequências do pecado que devem expiar. Eles não podem se
isolar do “mundo”, e devem carregar seu fardo, eles devem servir à causa
universal da libertação e da civilização. Não podemos senão deplorar o orgulho
dos homens que, acreditando pertencer à mais alta natureza, consideram com
desprezo os menores, e recusam ajudar o mundo a crescer. Mas os homens de tipo
aristocrático e espiritual, que não são responsáveis pelas qualidades de sua
natureza, têm na realidade um destino amargo e trágico no mundo, pois eles não
podem se adaptar a nenhuma convenção social, a nenhum regime de pensamento do
homem médio; sua raça é oprimida e perseguida na história.
Os homens de tipo “democrático”, orientados para as massas, para a
organização da vida da coletividade, podem ser dotados de grandes talentos, sua
raça pode ter grandes homens, heróis, gênios e santos. E os homens do tipo
“aristocrático”, orientados para os outros mundos, para a criação de valores
inúteis para o homem médio, podem ser desprovidos de gênio, poder ser-lhe
inferiores por sua força e talento. Mas eles possuem uma organização espiritual
diferente, que é ao mesmo tempo mais sensível, mais complexa e sutil, do que a
dos “paquidermes” da raça democrática. Eles sofrem com o “mundo”, com sua
pesandez, sua rudeza e sua decadência, mais do que os homens que estão
orientados para as massas, para o coletivo. Mesmo os grandes homens do tipo
“democrático” possuem essa simplificação da psique que os coloca ao abrigo do
“mundo”, enquanto que o “mundo” fere as personalidades espirituais, que estão
menos adaptadas a ele. Cromwell ou Bismarck eram do primeiro grupo, como, em
certo sentido, todos os homens de ação, todos os grandes homens de Estado ou os
grandes revolucionários. Podemos encontrar também essa simplificação da psique
em muitos doutores da Igreja, que muitas vezes pertenceram ao tipo democrático.
Desse ponto de vista, os gnósticos apresentam um interesse especial.
Grande parte deles pertencem ao tipo do aristocrata espiritual; eles parecem
não ter conseguido se reconciliar com o “democratismo” da Igreja Cristã. A
questão não é de saber se eles estão com a verdade; a Igreja tinha razões
profundas para lutar contra eles e os condenar, pois, se eles houvessem
triunfado, o Cristianismo não teria sido vitorioso na história; ele teria se
transformado numa seita aristocrática. Mas a própria questão que está ligada à
gnose é preocupante, eterna, e tem sua importância mesmo em nossa época. A
verdade absoluta da revelação se refrata e é assimilada de modo diferente,
conforme a organização e o nível espiritual daquele que a recebe. Será
necessário reconhecer como absoluta e imutável a forma da revelação Cristã,
destinada ao homem médio? O homem mais espiritual, mais complexo e sutil, que
recebeu sua parte dos grandes dons da gnose, deverá ele se adaptar a esse
nível, e rebaixar sua espiritualidade em nome da massa, em nome de uma comunhão
com todo o povo cristão? Poderá a visão ecumênica ser a mesma que a visão
coletiva do povo fiel? Será a via que conduz à obtenção dos dons do Espírito
Santo, à perfeição espiritual, a única medida do nível espiritual e a única
fonte da gnose religiosa?
É uma questão angustiante, essa do sentido religioso das aptidões e
dos dons humanos. Ela se colocava para os gnósticos, especialmente para
Clemente de Alexandria e Orígenes, que eram também gnósticos Cristãos. Essa
questão se colocou também para Soloviev, e hoje em dia ela se coloca para a
consciência religiosa: ela faz parte dos grandes problemas cristãos. Devem os
problemas da consciência e do conhecimento cristãos se resolver num espírito
“democrático”, visando o conjunto da humanidade, ou será possível e tolerável
uma solução mais íntima, inacessível e inútil às massas? Existirá dentro do
Cristianismo uma esfera na qual se possa levantar essas questões, um domínio no
qual a gnose seja mais profunda? “Eu vos dei leite, não alimento sólido, que
não poderíeis suportar; e mesmo agora não o podeis, porque sois seres carnais[2]”.
O Cristianismo democrático se alimenta “de leite”, porque ele está
orientado para o “carnal”. E a Igreja tem suas razões para agir assim. Mas isso
não resolve o problema da possibilidade de um outro alimento para uma fome
espiritual insaciada. A história do espírito humano dá testemunho do fato de
que a qualidade das aspirações e aptidões espirituais não são proporcionais à
perfeição e à santidade, conforme o considera a consciência predominante da
Igreja. Existe uma hierarquia natural dos temperamentos espirituais e dos dons
espirituais. Existem seres nos quais predomina o espírito, em outros a alma. E
isso não quer dizer que os primeiros sejam mais perfeitos, que eles tenham
obtido mais santidade e mais graça. Os homens “espirituais” não devem se
orgulhar e se glorificar diante dos homens “psíquicos”, pois eles não são
melhores nem mais merecedores. Na maior parte dos casos, eles são os mais
infelizes desse mundo; sobre eles colocamos pesados encargos; as maiores contradições
interiores os rasgam e eles adquirem com mais dificuldade a plena harmonia de
sua personalidade, bem como o equilíbrio com o mundo que os cerca. Eles são
mais solitários. Mas a própria distinção entre os temperamentos espirituais e
os dons é determinada por Deus e não pelo homem. O erro dos antigos gnósticos,
que a Igreja denunciou, residia em seu orgulho intelectual. Eles não podiam
aceitar que a boa nova da salvação e da vinda do Reino de Deus tivesse sido
trazida por Cristo para todo o universo, para todos e por tudo. A raça dos
“pneumáticos” era, segundo eles, eternamente separada da dos homens “psíquicos”
e dos homens puramente carnais. Esse últimos não poderiam se elevar a um mundo
espiritual superior, eles estariam condenados a permanecer no “fundo”, para
eles a Redenção e a Salvação jamais se realizaria. A ideia da transfiguração do
inferior no superior era inacessível à consciência gnóstica. É por isso que
eles jamais se tornaram verdadeiros cristãos. Nisso eles se aparentavam ao
pagão Plotino, embora esse grande representante do Helenismo os tenha combatido.
Soloviev demonstrou bem que o processo universal permaneceu, para os gnósticos,
improdutivo, porque eles não conseguiam conceber que o inferior se
transfigurasse no superior. O “espiritual”, separado do resto do mundo, se
lançaria aos cumes, enquanto que o “carnal” seria precipitado no abismo. Mas
nada disso poderia dar resultado, porque o “espiritual” pertenceria ipso
facto ao mundo superior, enquanto que o “carnal” pertenceria ao mundo
inferior.
Os gnósticos não compreenderam o mistério da liberdade, da liberdade
em Cristo, assim como não compreenderam o mistério do amor. Existe aí um
dualismo desesperado, que inverte a verdadeira hierarquia do ser. Os gnósticos
não entreviram a ordem dos valores sobre a qual repousa o universo cristão,
onde o grau supremo está organicamente ligado ao grau mais baixo, servindo
assim à causa da transfiguração e da salvação universal. Eles interpretaram
falsamente o princípio da hierarquia. A gnose suprema dos homens “espirituais”
é necessária para a salvação e a transfiguração dos homens “carnais”. Os homens
espirituais não devem permanecer orgulhosamente sobre os cumes, separados do
mundo “carnal”, mas devem se consagrar à sua espiritualização, elevá-lo aos graus mais altos.
De resto, a fonte do mal é espiritual, não carnal. A Igreja condenou com
justiça o orgulho dos gnósticos, seu dualismo desesperado, o sentimento pouco
fraterno e desprovido de amor que eles manifestavam contra o mundo e os homens.
Mas a consciência da Igreja estava orientada de preferência para o homem médio,
o homem da massa, ela estava preocupada em guiá-lo, preocupada com a grande
obra de sua salvação. Ao censurar o gnosticismo, ela afirmou e legalizou, de
certo modo, o agnosticismo. O mesmo problema que atormentava profunda e
sinceramente os gnósticos foi, por assim dizer, reconhecido como ilegal e
inadmissível no Cristianismo, as mais altas aspirações do espírito, a sede de
um conhecimento profundo dos mistérios divinos e cósmicos, foram adaptados para
o nível médio da humanidade. Não apenas a gnose de Valentim, como a de
Orígenes, foram consideradas inadmissíveis e perigosas, como o é atualmente a
de Soloviev. Um sistema de teologia foi elaborado para se tornar um obstáculo à
gnose superior. Somente os grandes místicos cristãos chegaram a abrir para si
uma passagem através dessas fronteiras fortificadas.
Devemos reconhecer que o conhecimento dos antigos gnósticos era
problemático, que ele não havia se livrado da demonolatria; nele, o
Cristianismo estava mesclado a cultos pagãos, à sabedoria pagã. Entretanto,
poderia existir um conhecimento cristão superior, mais esclarecido, que não
seria mais exclusivamente exotérico e adaptados aos interesses do coletivo,
como o é aquele que existe nos sistemas dominantes da teologia oficial.
Poderiam existir no Cristianismo não apenas São Tomás de Aguino, como também
Jacob Boehme, não apenas o metropolita Filatetes, como Vladimir Soloviev. Se os
homens “espirituais” não devem ser vaidosos do grau que atingiram, nem se
separar dos homens “psíquicos” e dos carnais, nem por isso devemos concluir que
eles não existem, nem rejeitar as aspirações de seu espírito e de sua sede
torturante
Afirmando que não existe um conhecimento “espiritual” superior. Isso
equivaleria, num sentido oposto, à mesma destruição da hierarquia orgânica que
encontrávamos nos gnósticos. O mundo renega e desdenha facilmente de toda via
espiritual, de toda aspiração do espírito, de todo conhecimento superior; ele
imagina de bom grado que eles o entravam em seu trabalho de organização
universal e que ele pode facilmente passar sem eles. Ele proclama isso a torto
e a direito, por milhares de milhões de bocas. Ademais, nada pode ser mais
penoso do que observar a consciência da Igreja subscrita à negação do espírito
professada pelo Estado, negação que, nos confins do mundo, no comunismo ateu,
se transforma em extermínio definitivo do espírito, da vida e da aristocracia
espirituais.
“Não extingais o espírito[3]”,
disseram-nos; ora, negar a problemática da consciência cristã equivale a
esquecer esse preceito. O trabalho que objetiva a iluminação do mundo não exige
uma diminuição da qualidade do espírito. Assim, o problema, antes de tudo, é aquele
do espírito e da vida espiritual.
***
Eu gostaria que ficasse bem entendido aquilo que eu pretendo expressar
nesse livro. Eu reconheço que existe algo de essencial que não consigo traduzir
em palavras, e que não tenho como desenvolver meus pensamentos íntimos. É muito
difícil encontrar uma forma de expressão que transmita exatamente a ideia
essencial que vivemos dentro de nós.
Tudo o que eu escrevo nesse livro está ligado à problemática torturante do
espírito. Conforme o aspecto de meu espírito, eu revisto minhas questões
preocupantes de um modo que é ao mesmo tempo afirmativo e oculto, e coloco meus
problemas sob a forma de uma firmação. Mas meu pensamento, em meu ser interior,
é o de um homem que coloca problemas para si, sem que eu seja um cético. Para a
solução de meus problemas de espírito, ou antes, do único problema que consiste
nas relações entre o homem e Deus, eu não posso receber auxílio do exterior.
Aqui, nenhum staretz, por avançado que seja na vida espiritual, poderá
ser de valia. Todo o problema reside no fato de que eu devo descobrir por mim
mesmo o que Deus me escondeu. Deus espera de mim um ato de liberdade, uma
criação livre. Minha liberdade e minha criação são minha obediência à vontade
secreta de Deus, que espera do homem algo que vai além e que é bem mais do que entendemos
habitualmente quando se fala de Sua vontade. Talvez eu devesse me ocupar, não
da metafísica abstrata de Deus, mas de Sua psicologia concreta. É possível que
Deus chore sangue ao ver como os homens compreendem servilmente Sua vontade e a
cumprem de modo puramente formal. A vontade divina deve ser cumprida até o
final. Não quis Deus que o homem fosse um livre criador? Não ama Ele até um
Nietzsche, que O combate?
Meu livro não é um livro de teologia, nem foi escrito segundo um
método teológico; ele não pertence a uma escola filosófica; ele faz parte da
filosofia profética, para a distinguirmos da filosofia científica, para
empregarmos a terminologia proposta por Jaspers. Eu evite a linguagem de
escola, conscientemente. Trata-se de um livro de teosofia[4]
livre, escrito dentro de um espirito de filosofia religiosa e de gnose livres.
Nele, eu ultrapassei conscientemente os limites do conhecimento filosófico,
teológico e místico, que o pensamento ocidental se deleita em estabelecer,
tanto quanto nas escolas católica ou protestante, como na filosofia acadêmica.
Eu me reconheço como um teósofo cristão, no sentido daquilo que eram
Clemente de Alexandria, Orígenes, São Gregório de Nissa, Jacob Boehme, Saint
Martin, Franz Baader, Vladimir Soloviev. Todas as forças de meu espírito e da
minha consciência estão orientadas no sentido da penetração absoluta dos
problemas que me atormentam. E meu objetivo é menos o de lhes dar uma solução
sistemática, do que colocá-los com mais vigor diante da consciência cristã. Não
se deve ver nesse livro palavra alguma dirigida contra a santidade da Igreja.
Eu posso me enganar muito, mas minha vontade não é de apresentar uma heresia
qualquer, ou protesto que possa gerar um cisma. Eu me situo na esfera da
problemática cristã; ela exige esforços criativos do pensamento e as mais
diversas opiniões estão aí autorizadas naturalmente.
Paris-Clamart, 1927
[1]
Monges espirituais, com grandes conhecimentos.
[2] I
Coríntios 3: 2.
[3] I
Tessalonicenses 5: 19.
[4]
Não confundir com o falso “teosofismo”, de Mme. Blavatsky.
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