I
“Tudo o que vemos não passa de um reflexo,
de uma sombra daquilo que é invisível aos olhos”
Wladimir Solovieff
Segundo sua etimologia, a palavra símbolo possui o sentido de
intermediário e de signo, e caracteriza, ao mesmo tempo, uma relação e uma ligação.
O símbolo pressupõe a existência de dois mundos, de duas ordens de existência,
e ele não encontraria espaço caso houvesse apenas um. O símbolo nos ensina que
o sentido do mundo reside num outros, e que esse próprio sentido nos e dado por
esse último. Plotino compreendia o símbolo como a união de dois em um. O
símbolo constitui o ponto que liga dois mundos. O ser não é isolado: o símbolo
evoca para nós não apenas a existência de dois mundos, como também a
possibilidade de uma aliança entre eles, ele nos prova que esses dois mundos
não estão definitivamente cindidos. Ele os delimita, ao mesmo tempo em que os
religa.
Nosso mundo natural empírico não possui em si mesmo nem significado,
nem orientação; ele adquire essas qualidades na medida em que constitui um
símbolo do espírito. Ele não possui em si mesmo a fonte da vida capaz de dar
sentido à existência, ele a recebe simbolicamente do mundo espiritual. O Logos
que existe nesse último não faz senão se refletir, vale dizer, se simbolizar,
no mundo natural. Tudo o que possui um significado em nossa vida não passa de
um indício, de um símbolo de outro mundo, no qual esse sentido tem suas raízes.
Tudo o que é importante em nossa vida é “significativo”, é simbólico. O
encadeamento simbólico dos fatos, tanto em nossa vida como na vida desse nosso
mundo, saturado de nonsense e de futilidade, só nos é dado como um
encadeamento a um outro mundo, o qual possui uma orientação, um significado,
porque se trata do mundo espiritual.
No mundo e na vida da natureza, que constituem um mundo e uma vida
fechados, tudo é acidental, sem encadeamento, privado de significado; o homem,
enquanto ser natural, é desprovido de sentido e de profundidade, e sua vida
natural carece de um encadeamento significativo, na vida do homem, considerado
como um fragmento do mundo natural, não é possível descobrir o Logos, e sua
própria razão não passa de uma adaptação à gravitação desse mundo. Uma
consciência orientada exclusivamente para o mundo natural concentrado em si
mesmo, tocada pela inépcia, pelo caráter acidental e insignificante da
existência. Ela é oprimida, incapaz de dissipar as trevas do mundo natural, no
qual não se pode discernir os sinais de um outro mundo.
Mas o homem, enquanto imagem de um ser divino, vale dizer, enquanto
símbolo da divindade, possui um significado preciso e um sentido absoluto. A
consciência orientada para o mundo divino descobre em todas as coisas um
encadeamento interior e um significado; a ela são dados os indícios de um outro
mundo. Essa consciência é livre, e traz consigo um sentido à inanidade aparente
do mundo natural. É impossível demonstrar a existência de um sentido na vida
universal, não podemos induzi-lo racionalmente a partir do exame do mundo
natural. A finalidade do processo da natureza nos parece muito contestável. Não
podemos descobrir o sentido, a menos que o tenhamos vivido por meio de uma
experiência espiritual, senão nos referenciando ao mundo espiritual. Ele não
pode ser demonstrado, a não ser por uma vida penetrada de sentido, por uma consciência
simbólica capaz de assinalar, de religar, de significar.
A concepção e a contemplação simbólicas do mundo são as únicas
profundas, as únicas capazes de fazer sentir e perceber p abismo misterioso da
existência. Toda nossa vida natural aqui em baixo não faz sentido, a menos que
seja simbolicamente santificada; mas tanto podemos ser conscientes dessa
santificação da vida, como podemos ser inconscientes dela. Podemos viver
superficialmente esse sentido simbólico da vida natural, ou seja, ele pode se objetivar
na consciência e ser percebido no sentido de um realismo ingênuo. Os homens
podem viver de símbolos, tomando-os por realidades, e a natureza simbólica de
tudo o que dá sentido e que é sagrado em suas vidas pode lhes escapar. Então
eles mergulham no mundo natural objetivo, e aí veem a encarnação imediata
daquilo que é sagrado, e, num realismo ingênuo, eles amarram o espírito à carne
desse mundo.
Ao materialismo e ao realismo ingênuos, muitas vezes inerentes, são
apenas à consciência sem religião, como também à consciência religiosa, devemos
opor, não um espiritualismo ou um idealismo, uma espiritualidade abstrata ou
ideias abstratas, mas antes um simbolismo. O espiritualismo e o idealismo não
são estados religiosos da consciência, nem orientações religiosas do espírito,
mas teorias metafísicas, enquanto que o simbolismo é religioso por sua própria
essência. Mas é preciso distinguir o simbolismo realista do simbolismo
idealista. Esse último, que encontramos frequentemente nos meios cultos da
humanidade contemporânea, não constitui um simbolismo autêntico que une e
religa dois mundos, mas o simbolismo da cisão desesperada desses dois mundos,
do isolamento de nosso mundo interior. A filosofia de Kant, mais do que
qualquer outra, se baseia nesse simbolismo, sendo a expressão desse estado, no
qual o homem se encontra separado da profundidade da existência e mergulhado em
seu mundo subjetivo. Esse é o simbolismo da profunda solidão espiritual do
homem moderno, de seu desdobramento e de sua fragmentação. Ele encontra sua
expressão contundente na arte contemporânea. A concepção simbólica do mundo era
aquela típica da Idade Média. Encontramos um exemplo característico disso na
mística de Hugues e de Richard Saint-Victor.
Nossa época perdeu o sentido dos fenômenos. O simbolismo idealista é
subjetivo e convencional, ele não vê nas coisas senão o reflexo de experiências
psíquicas, não mais do que os estados de um sujeito destacado do mundo
espiritual e da fonte original da vida. Encontramos em Schleiermacher a própria
expressão desse simbolismo idealista subjetivo, que nos é oferecido também pelo
símbolo-fideísmo de Sabatier. Nesses símbolos, não existe necessidade
ontológica; na realidade, Schleiermacher contradiz profundamente a própria
natureza do símbolo, que consiste numa ligação, num traço de união, a
existência autêntica de um signo de um outro mundo. Quando o simbolismo
idealista tenta comentar as verdades da religião, ele sempre se inclina a lhes
atribuir não mais do que um valor subjetivo; na experiência espiritual, ele
deixa o homem encerado em si mesmo, separado das realidades do mundo do
espírito; ele não compreende a natureza da experiência e da vida espiritual.
O simbolismo realista é o único autêntico, que religa e une dois
mundos assinalando a existência do mundo espiritual e da realidade divina. Nos
símbolos nos são dados, não os indícios convencionais da vida afetiva do homem,
mas sinais indispensáveis da vida original, do próprio espirito em sua
realidade primitiva; neles nós discernimos as vias que religam o mundo natural
ao mundo espiritual. Para o simbolismo realista, a carne do mundo não é nem um
fenômeno desprovido de realidade, nem uma ilusão subjetiva, mas antes uma
encarnação simbólica das realidades espirituais. O simbolismo realista liberta
e não escraviza, religa e não desune. Ele é profundamente oposto ao realismo
ingênuo, objetivo, mas também é contrário ao idealismo subjetivo, ao simbolismo
idealista. Ele reside além da divisão gnoseológica que existe entre sujeito e
objeto, além da absorção da realidade pelo mundo do sujeito e pelo mundo do
objeto.
A experiência espiritual, sobre a qual repousa o simbolismo realista,
está fora das oposições entre sujeito e objeto, de sua concepção
substancialista. A vida espiritual não nem subjetiva, nem objetiva. Sua
simbolização, sua encarnação nos signos e nas formas do mundo natural, podem
ser compreendidas como uma objetivação, mas é precisamente por causa disso que
ela não é objetiva no sentido racionalista do termo. A consciência simbólica
absorve o sujeito e o objeto numa profundidade infinitamente maior. Se a
objetivação não passa de uma simbolização, então, por isso mesmo, todo
racionalismo objetivo, toda concepção ingênua de um objeto-substância, deixam
de ser justificados. Aquilo a que chamamos de realidades objetivas não passa de
realidades de ordem secundária, e não de ordem primordial; trata-se de
realidades simbólicas, e não das realidades em si mesmas. Mas as realidades
subjetivas, como a da vida afetiva, a da pessoa e de seu mundo subjetivo,
tampouco são primordiais, mas são também secundárias, também são simbólicas.
Não existe nisso uma restauração, sob uma forma diferente, da antiga
distinção entre o noúmeno e o fenômeno, dessa distinção que constitui toda a
teoria do conhecimento, baseada na oposição entre sujeito e objeto. Seria
inexato dizer que o mundo espiritual é uma coisa em si, e que o mundo natural
não é senão aparente. Nesse tipo de distinção e de oposição, o noúmeno é
concebido sob o ângulo do naturalismo, como um legado seu. O noúmeno aparece
como uma realidade análoga às do mundo objetivo natural. A coisa em si não é a
vida, ela não é dada na experiência de vida, ela é coisa, objeto. A vida
espiritual nada tem em comum com o noúmeno dos metafísicos e dos teóricos do
conhecimento. A doutrina da “coisa em si” não supõe a existência da experiência
espiritual, como experiência primordial de vida; ela nasce, na metafísica
naturalista, da impotência em decifrar racionalmente o enigma da vida. Quando Fichte
eliminou como sendo inútil a concepção do noúmeno, ele deu um grande passo
adiante. Ele buscava o ato primordial da vida, o ato e não a coisa. Mas ele foi
enganado pelo perigo de hipostasiar o sujeito. O idealismo subjetivo não pode
ser a doutrina da vida espiritual. Ao contrário, o simbolismo está orientado
para a vida e a experiência espiritual. Encontramos exemplos clássicos de
simbolismo, não entre os filósofos, mas entre os místicos, entre os artistas e
nas descrições da experiência espiritual.
II
Existem duas concepções de mundo que deixaram sua marca nas formas da
consciência religiosa. Uma delas vê por toda parte no mundo as realidades em
si, inserindo integralmente o infinito no finito, e o espírito na carne desse
mundo natural; essa concepção submete o divino à carne finita, ela está sempre
pronta a ver no transitório o absoluto e o permanente, ela transforma o
processo da vida em categorias ontológicas fixas. Essa concepção do mundo gerou
as doutrinas do positivismo e do materialismo religioso, e determinou os
sistemas teológicos dominantes. A experiência que se encontra na base dessa
concepção se tornou a fonte de sentimentos conservadores, hostis ao movimento,
e reacionários. Os homens que aderiram a ela amam a autoridade e alimentam uma
desconfiança contra todo gênio criador. Existe aí uma concepção tolamente
realista e materialista do mundo (malgrado sua forma religiosa), uma concepção
positivista oprimida pelo finito, que teme o infinito, e que vê na carne
natural e histórica, relativa e transitória, o absoluto e o infinito.
Essa concepção de mundo é estática e hostil a todo dinamismo. Ela
resulta do fato de que o centro de gravidade da vida foi transposto para o
mundo natural. Ela santifica de modo absoluto a “carne” histórica. Os hábitos e
costumes nacionais, as formas da monarquia, as da autoridade eclesiástica, que
amarram a Igreja e o Estado, os sistemas teológicos, tudo isso adquire um
significado sagrado, absoluto e imutável; o divino deve se submeter a eles.
Constitui-se uma carne sagrada e escraviza e muitas vezes extingue o espírito.
Sobre esse terreno nascem o materialismo e o positivismo antirreligioso e ateu.
O espirito se distancia e desaparece, pois a carne em si mesma é santificada.
Essa escola subordina o espírito à carne desse mundo, ela nos habitua a ver a realidade
acima de tudo no finito, no mundo natural histórico.
Mas chega a hora em que a carne santificada da monarquia se corrompe,
quando se constitui uma carne sagrada do socialismo, sobre a qual se
transportam todos os sentimentos que antes eram dedicados à monarquia sagrada.
Entre essas duas carnes se estabelece uma luta mortal, mas o espírito não
estará ao lado de uma nem de outra, pois ele não admite que se faça do relativo
um absoluto. O espírito é infinito, ele sopra onde quer. Ele transforma seu simbolismo
conforme a dinâmica da vida espiritual. Ele é dinâmico pela própria natureza,
ele não pode tolerar uma sujeição estática. O espírito não pode se encarnar em
costumes tradicionais. O processo orgânico constitui precisamente uma
correlação entre o exterior e o interior, entre o simbolismo natural e
histórico da carne e a vida do espírito. Quando o simbolismo carnal, exterior,
já não mais exprime a vida interior do espírito, sua santidade se modifica, os
reinos e as civilizações se arruínam, arrastando em sua queda todas as formas
de vida que tinha neles sua base. Um novo simbolismo se torna indispensável
doravante, que irá exprimir um estado de espírito diferente, um estado
organicamente novo, vale dizer, que corresponda à realidade da vida interior. A
carne do mundo pode envelhecer e definhar, e o espírito pode abandoná-la. Mas
extinção do espírito, o pecado contra o Espírito Santo, se manifesta por um
desejo de salvaguardar a todo custo essa carne decomposta, à qual o espírito
estava sujeitado. A vida espiritual recusa ser acorrentada à carne natural; sua
realidade infinita não se manifesta integralmente nesse mundo histórico, no
qual sua presença jamais passa de simbólica.
Mas existe outra concepção de
mundo que expressa a natureza dinâmica do espírito. É a que entrevê em toda
parte no mundo os sinais e os símbolos de um outro mundo, aquela que percebe o
divino, além de tudo o que é finito e transitório, como mistério e infinito.
Nada de relativo e de passageiro é considerado por ela como sendo absoluto e
permanente. Essa concepção simbólica transporta o centro de gravidade da vida
para um outro mundo, espiritual, dinâmico e infinito; ela recusa ver as
realidades últimas nesse mundo, em sua carne natural.
Essa aspiração ao infinito encontrou sua expressão notável num drama
de Ibsen: A Senhora do Mar. O infinito, a imensidão, o mistério do mundo
divino e espiritual não admitem senão uma compreensão simbólica de tudo o que é
finito e natural. A concepção de que tratamos aqui aceita e exige uma santificação
da vida natural e histórica, desde que ela seja simbólica. Ora, essa
santificação não pode venerar a carne do mundo como se fosse uma realidade
absoluta e sagrada, encerrando em si a plenitude do divino.
Toda a vida espiritualmente criativa da humanidade, toda a dinâmica do
Cristianismo, estiveram ligadas a essa segunda concepção de mundo. Toda a vida
da Igreja de Cristo foi um mito criado na história, um simbolismo realista que
exprimiu e encarnou a dinâmica do espírito. A vida e o espírito só foram
intensos e poderosos na Igreja na medida em que foi possível realizar esse
processo de criação de motos, essa concepção de símbolos cada vez mais ricos.
Os dogmas da Igreja, seu culto, suas tradições, a vida dos seus santos e seus
ascetas, proclamam esse dinamismo do espírito. Mas seus costumes tradicionais,
a sujeição de sua vida ao reino de César, a cristalização de seus sistemas
teológicos, a autoridades de seus cânones erigidos indevidamente em leis
absolutas, a criação de uma carne sagrada inalterável, tudo isso gerou, com
frequência, uma ossificação do espírito dentro da Igreja, uma extinção
espiritual, uma detenção do dinamismo e uma vida que já não era mais do que um
reflexo da energia criativa das gerações anteriores.
Somente a concepção simbólica do mundo nos indica o caminho da vida do
espírito, somente ela torna possível a continuidade do processo de criação dos
mitos, garantindo a continuidade da vida tradicional que religa o passado ao
futuro. Segundo Creuzer o simbolismo é a visão do infinito no finito. Ele é a
imagem visível das coisas invisíveis e misteriosas. O símbolo, por sua
natureza, não submete o infinito ao finito. Ele torna o finito transparente e
permite distinguir nele o infinito. No mundo do finito, não existe horizonte
que seja absolutamente fechado; a carne simbolicamente santificada ignora o
peso, a inércia, o isolamento do mundo natural. A realidade autêntica está
sempre situada mais longe e a uma profundidade maior do que o que está aparente
na carne natural. O movimento criador do
espírito não pode ser entravado pela carne impenetrável, que se pretende uma
realidade absoluta.
A encarnação de Deus no mundo, a vinda do Filho de Deus na carne desse
mundo, demonstra a abertura possível da carne, e não seu caráter incoercível, a
infiltração do infinito no finito, a penetração do mundo espiritual no mundo
natural, a manifestação divina da ligação que une os dois mundos, a vitória da
graça sobre a concretude do mundo natural, o desamarrar desse mundo. A vinda de
Cristo, na genealogia de Adão, é a kenosis, a humilhação, o rebaixamento
de Deus, que se realiza a fim de libertar essa carne do peso e de sua
escravização, a fim de iluminá-la e transfigurá-la, e não com o objetivo de
afirmá-la ou de santificá-la de um modo absoluto.
O materialismo religioso que confere um valor absoluto à carne do
mundo constitui uma deformação do mistério da encarnação divina, uma negação de
seu caráter simbólico. O Nascimento do Filho de Deus no mundo, sua Vida, sua
Morte sobre a cruz e sua Ressurreição são fatos que constituem, por seu
significado, um símbolo único, central, absoluto, de um acontecimento do mundo
espiritual, da vida espiritual interior. Esse símbolo nos liberta do poder do
mundo. O fato de que o Filho de Deus viveu na carne natural nos permite esperar
que ela será vencida em seu temível realismo, que ela poderá ser iluminada por
um outro mundo e transfigurada em carne espiritual.
Toda a carne do mundo é símbolo do espírito, reflexo, imagem e signo
de outra realidade situada infinitamente mais longe e mais profundamente. Tudo
aquilo a que chamamos natureza criada não é uma realidade em si mesma, mas uma
realidade simbólica, um reflexo dos caminhos luminosos do mundo espiritual. O
endurecimento da carne do mundo não passa do sinal das quedas que se deram no
mundo espiritual. Mas a iluminação da carne, manifestada pela vida terrestre do
Filho de Deus, é o indicador de uma ascensão realizada no mundo espiritual. A
carne não é uma ilusão e uma isca, ela é o reflexo simbólico das realidades do
mundo espiritual. A aliança entre os dois mundos, a possibilidade de sua
interpenetração, a transfusão das energias de um mundo para o outro, nos são
dadas nesse signo simbólico. O símbolo nos revela a vida de Deus, nos aponta a
passagem da energia divina para a vida desse mundo natural. Mas ele sempre
protege o mistério infinito, e afirma a impossibilidade de remeter a uma medida
comum a vida do mundo e a vida do espírito. O simbolismo não admite o
endurecimento definitivo e o isolamento da carne e do mundo natural,
endurecimento e isolamento que têm como consequência transformá-los em
realidades impenetráveis à infinitude de Deus e do Espírito.
A concepção substancialista do mundo natural, imutável em seu
princípio não divino, representa exatamente um naturalismo religioso, que irá
gerar em seguida o naturalismo materialista e positivista, quando Deus for
definitivamente separado do mundo natural, e o espírito estiver
irremediavelmente extinto. No desenvolvimento contínuo da metafísica
naturalista, o teísmo dualista, que rejeita o laço simbólico que religa o mundo
divino ao mundo natural, desemboca primeiramente no ateísmo em relação ao
mundo, e depois no ateísmo em relação a Deus. A essa concepção se opõe a
concepção simbólica que admite o laço que existe entre os dois mundos, que não
considera o mundo natural como não sendo divino, mas que, ao contrário, nele vê
os signos do mundo divino, os reflexos dos acontecimentos, das quedas e das
ascensões da vida espiritual. A ordem natural não é eterna e imutável, ele não
expressa mais do que um momento que simboliza a vida do espírito. Por
conseguinte, podem brotar forças das profundezas do espirito que a
transfigurarão e a libertarão do poder que a escraviza.
III
Existem três concepções possíveis das relações entre o mundo divino e
o nosso mundo natural: 1) a cisão dualista entre Deus e o mundo, o
agnosticismo, o idealismo subjetivo que se encerra dentro do sujeito, o
simbolismo idealista que não admite senão a simbolização do mundo objetivo da
vida afetiva, separada do seio da existência; 2) a hipótese racionalista que
supõe que o mistério da existência divina é acessível à conceituação, o
realismo objetivo que considera as realidades do mundo natural como absolutas;
e 3) o simbolismo que admite a transfusão da energia divina para esse mundo,
que desliga e religa dois mundos, e que reconhece que a existência divina não
faz outra coisa senão simbolizar a si mesma, ao mesmo tempo em que permanece
inesgotável e misteriosa.
O dualismo e o racionalismo, o falso dualismo e o falso monismo,
afastam igualmente o homem do mundo divino, fechando esse mundo para ele, e
preparam o positivismo e o materialismo, para eles, não existem relações
misteriosas entre os dois mundos, nem transfusão de energia de um para o outro,
nem sinais enviados por outros mundos. Mas o mundo divino se fecha e desparece
também quando é considerado inacessível ao conceito racional, quando se
constrói uma realidade objetiva do mundo natural e se separa a existência divina
do mundo subjetivo, condenando assim o homem ao isolamento de sua vida
emocional. O idealismo subjetivo e o realismo objetivo constituem duas
tendências gnosiológicas que refletem, na mesma medida, mas de modo
diametralmente oposto, a cisão entre o mundo divino e o mundo natural, o
desdobramento do espírito humano. A objetivação da vida divina, sua
identificação com o mundo natural, é a negação do mistério e da infinitude de
Deus. Encontramos essa mesma negação quando se faz da vida divina uma realidade
subjetiva, quando ela é assimilada à vida afetiva. O dualismo gera o
positivismo agnóstico e o psicologismo. O racionalismo gera o naturalismo e o
materialismo.
Essas duas concepções que tentam explicar as relações entre os dois
mundos predominam na consciência de hoje em dia. E a religião se torna
exclusivamente uma categoria psicológica. A razão da história contemporânea
protesta contra a tentação de expressar a existência divina por meio de
conceitos racionais. Por meio do deísmo, da religião natural, a razão desemboca
no ateísmo, na negação da religião. O deísmo é o fruto fatal do teísmo
racionalista, que une em si o dualismo abstrato ao monismo abstrato. Somente o
simbolismo é capaz de expressar e salvaguardar a profundidade, o mistério da
infinitude do mundo divino, sua distinção em relação ao mundo natura e sua
aliança com esse. A vida espiritual não se revela, nem se percebe nesse mundo,
senão por intermédio do simbolismo. Esse último pode ser difícil de conceber,
ele pode ser deformado por princípios heterogêneos, racionalistas e dualistas,
mas é organicamente inerente à vida religiosa.
Não podemos conceber a Deus senão simbolicamente; somente com o
auxílio do símbolo é possível penetrar seu mistério. A divindade não pode ser
determinada racionalmente, ela permanece inacessível ao conceito lógico. Isso é
o que afirmaram sempre os grandes pensadores religiosos, os grandes místicos e
os teósofos cristãos; e nenhuma teologia escolástica ou metafísica pode
contestar essa grande verdade. Para além da ideia religiosa de Deus, está
sempre o abismo, a profundeza do irracional e do suprarracional. Esse abismo
misterioso e irracional determina o simbolismo, a única via que conduz ao
conhecimento e à sabedoria divinos. Todas as categorias conceituais e racionais
de Deus e da vida divina, todas as da teologia catafática, não exprimem a
realidade última do divino, pois elas são todas relativas, orientadas para o
mundo e o homem naturais, e adaptadas às suas limitações.
A concepção racionalista é a reação positivista do homem perante o
mundo natural. E essa reação não é outra coisa que a refração do divino nos
limites do mundo natural. A vida divina em si mesma, e seu inesgotável mistério
não correspondem às afirmações dos conceitos racionais. A lógica não é o Logos,
entre eles se estende um abismo intransponível, uma solução de continuidade. É
impossível aprisionar o infinito no finito, o divino no natural.
O Apóstolo Paulo nos legou uma expressão eterna do simbolismo
autêntico no conhecimento da divindade: “Hoje vemos como num espelho,
confusamente; mas então veremos face a face. Hoje eu não conheço senão
imperfeitamente; mas então eu conhecerei assim como sou conhecido[1]”.
Nós conhecemos a Deus por meio de um espelho, de uma maneira obscura,
vale dizer, de modo simbólico. O conhecimento definitivo de Deus, sua visão
face a face, está reservada a um outro plano, à vida mística em Deus. O
racionalismo, no conhecimento divino, recusa admitir que esse espelho é
confuso; para ele, o conceito racional é capaz de refletir a essência autêntica
de Deus, e capaz de penetrar a divindade.
A teologia apofática do Pseudo-Dionísio Areopagita se opõe a essa
doutrina. Os maiores pensadores religiosos se unem à verdade enunciada por
Nicolas de Cusa, que vê na divindade a coincidentia oppositorum. A
identidade dos contrários é uma antinomia para a razão. O entendimento não está
adaptado a uma forma de realidade na qual os contrários são compatíveis. Ele
está submetido às leis lógicas da identidade e da contradição. Mas essas leis
lógicas não podem jamais traduzir a natureza da divindade. E todos os dogmas do
Cristianismo que exprimem os fatos e os eventos da experiencia espiritual
possuem um caráter supralógico e suprarracional, eles ultrapassam a lei da
identidade e a da contradição.
O conhecimento religioso sempre foi simbólico, indo de encontro a toda
teologia e toda metafísica racional, a toda escolástica. O conhecimento de Deus
não foi, nem nunca pôde ter sido um conhecimento racional, abstratamente
intelectual, ao contrário, ele sempre bebeu de outra fonte. E todos os sistemas
de teologia escolástica e de metafísica racional possuem um caráter limitado,
todos estão adaptados ao mundo e ao homem naturais, e não possuem senão um
valor pragmático e jurídico. Somente os fatos místicos são absolutos no
Cristianismo; o pensamento que os comenta é sempre relativo.
O simbolismo se justifica pelo fato de que Deus é ao mesmo tempo
cognoscível e incognoscível. A divindade é um objeto de conhecimento infinito e
inesgotável, eternamente misterioso em sua profundidade. Da mesma forma, esse
conhecimento é um processo dinâmico que não termina em nenhuma categoria fixa e
estática da ontologia. Os limites estabelecidos pelo agnosticismo não existem.
A gnose que busca sempre cada vez mais longe e cada vez mais fundo, é de fato
possível, pois o conhecimento de Deus é um movimento infinito do espírito. Essa
verdade se exprime pelo símbolo, que escapa a toda compreensão do entendimento,
o qual sempre é limitador, exigindo um fim além do qual não exista mais
mistério. Onde termina o domínio do conhecimento racional e o entendimento
lógico – os quais só são aplicáveis ao mundo natural e limitado – começa o
domínio do conhecimento simbólico, e do símbolo aplicável ao mundo divino.
É impossível elaborar um conceito positivo do ser absoluto, pois, no
que lhe diz respeito, todos os conceitos positivos se desmancham em
contradições inconciliáveis. Podemos pensar a vida interior da divindade por
analogia com os afetos humanos. Os atributos de Deus, dos quais nos fala a
teologia catafática, são logicamente contraditórios e provocam objeções por
parte da razão. O conceito, por sua incapacidade de conhecer a Deus, se torna
inevitavelmente ateu, se for negada a existência de outras vias de
conhecimento.
A teologia religiosa acadêmica é impotente diante das objeções da
razão, diante das reações do pensamento racional. O racionalismo e o
naturalismo são transferidos, do domínio religioso, teológico, para o do ser
natural e aí eles se encontrarão definitivamente consolidados. Então surge um
conflito no qual se enfrentam o conhecimento e a fé, a ciência e a religião.
Aqui a ciência obterá a vitória e reclamará para si domínios cada vez mais
extensos. Esse processo não pode ser detido artificialmente, não é possível
limitá-lo por processos que provenham de uma teologia naturalista e
racionalista. Ao afirmar o dualismo entre dois mundos, Kant tentou defender o
domínio da fé e da religião, transferindo-o para a esfera do sujeito. Mas nesse
caminho a fé se extingue e a religião se vê oprimida e relegada a um espaço
estreito e obscuro. Somente o simbolismo, delimitando as esferas do espírito e
da natureza, limitando a competência do conhecimento racional, abrindo novos
caminhos de conhecimento, salvaguarda os direitos imprescritíveis e as verdades
eternas da vida religiosa.
A teologia racional acadêmica, de um lado, transgride os limites de
sua competência quando reconhece os mistérios da vida divina como sendo-lhe
perfeitamente acessíveis, e, de outro lado, assinala limites fixos à
experiência e às vias espirituais do conhecimento divino quando sustenta o
agnosticismo. O sistema da teologia dogmática acadêmica, ingenuamente realista
e não simbolista, é incapaz de expressar a verdade ontológica última da vida
divina. Para além dos conceitos e das fórmulas da teologia dogmática
encontram-se a infinitude a o mistério da vida divina, que não são perceptíveis
senão pela experiência espiritual e na sua expressão simbólica. O simbolismo
restringe as pretensões do conhecimento racional com seu domínio do conceito,
mas não coloca nenhum limite à experiência espiritual em si; ele de modo algum
afirma em principio o agnosticismo; ele admite a diversidade infinita dos
caminhos do conhecimento. A sabedoria e o conhecimento de Jacob Boehme penetram
profundamente nos mistérios da vida divina, eles revelam a gnose, que ignora
limites, mas trata-se de um conhecimento simbólico e não conceitual da
divindade.
O conhecimento tem uma importância considerável na vida espiritual, um
valor iluminador. Devemos amar a Deus com todo nosso pensamento, e esse
conhecimento deve ser livre, nenhum limite lhe pode ser imposto desde fora. O
conhecimento deve poder se desenvolver ao infinito, tanto na ciência positiva
como na gnose religiosa e filosófica.
O conhecimento simbólico de Deus está profundamente enraizado no solo
da tradição cristã. A teologia negativa apofática, que aparece nas obras do
Areopagita, é simbólica. Essa teologia simbólica e mística nos ensina que Deus
é incognoscível e que as definições positivas não podem expressar os mistérios
da vida divina. Não podemos nos aproximar do mistério da divindade, senão pela
via das locuções negativas. Deus não é nada que seja, ele é o não-ser. Os
maiores pensadores ensinaram a teologia negativa, desde o pagão Plotino até o
cristão Nicolas de Cusa. A teologia negativa nos mostra precisamente que o ser
divino não é o ser na acepção do mundo natural, onde tudo é positiva e
limitativamente determinável. A existência divina é uma realidade de outra
ordem, e, se o mundo natural é o ser, então Deus será o não-ser, o nada, ele
será superior ao ser, será o “supra-ser”. A teologia negativa reconhece o
mistério insondável de Deus, a impossibilidade de esgotar sua natureza por meio
de definições afirmativas, ela reconhece a oposição, a antinomia que a natureza
divina apresenta para a nossa razão. Ela se opõe à naturalização e à
racionalização do ser divino.
Mas é a teologia afirmativa, catafática, que predomina na teologia
acadêmica. Essa teologia é racionalista e antissimbólica. Ela admite a
possibilidade de atingir, por meio de locuções positivas, um sistema perfeito
de conhecimento divino. ela possui uma compreensão naturalista do ser divino,
pois ela considera sua realidade como sendo semelhante à da natureza do mundo,
ela encara a Deus como um ser, e não como o não-ser. Ela se recusa a ver o
“supra-ser” da divindade, ela nega seu mistério e sua insondabilidade. A
teologia afirmativa é a teologia do finito e não a do infinito. É uma teologia
exotérica que confunde a reflexão e a refração de Deus no mundo natural com a
natureza divina em si. Suas definições afirmativas, emprestadas do mundo
natural, são transferidas ao mundo divino. ela toma os símbolos por realidades.
O conhecimento da teologia afirmativa, que é pragmático e jurídico,
exotérico e social, organiza a vida religiosa coletiva das massas, mas não
constitui a gnose autêntica. A gnose penetra mais profundamente os mistérios da
vida divina, reconhecendo-os onde a teologia positiva os nega. O conhecimento
simbólico da teologia mística desce ao abismo do mistério e o protege. A
teologia afirmativa não é um conhecimento, pois seu resultado pode ser previsto
desde o início, mas ela precede o próprio processo do conhecimento e essa
teologia não passa da codificação das verdades dogmáticas da revelação. O
conhecimento de Deus não pode ser senão uma teologia espiritual experimental e
simbólica. Pois todas as aquisições autênticas no conhecimento de Deus repousam
sempre sobre uma experiência espiritual e sobre a expressão simbólica dessa
experiência. A teologia dos místicos cristãos sempre foi experimental, ela foi
uma expressão simbólica do caminho espiritual. O simbolismo pressupõe o abismo,
o Ungrund da vida divina, o infinito que se dissimula além de tudo o que
é finito, a vida esotérica de Deus, que não está submetida às garras da
inteligência e não pode ser formulada logica e juridicamente. O Absoluto dos
filósofos não é o Deus da religião. O Deus da Bíblia não é o Absoluto na
acepção do conceito filosófico.
IV
O fundamento do conhecimento místico e simbólico não é uma proposição
filosófica, mas uma representação mitológica. O conceito gera a proposição
filosófica e religiosa, o símbolo produz a representação mitológica. O
conhecimento filosófico é religioso, chegando ao ponto culminante da gnose, se
liberta do jugo dos conceitos e se orienta para o mito. A filosofia religiosa
está sempre saturada de mitos e não pode se livrar deles sem eliminar a si
mesma, sem abandonar sua função. A filosofia religiosa é, por si mesma, uma
criação de mitos, uma “imaginação”.
De Platão e Plotino a Schelling e Hartmann, todos os pensadores de
tipo gnóstico procederam por meio de representações mitológicas. Toda a gnose
de Boehme é mitológica, toda a filosofia do inconsciente em Hartmann, que tenta
construir uma pura religião do espírito liberta de todo mito, é também
inteiramente mitológica. Ela repousa sobre o mito da divindade inconsciente que
teria, num acesso de loucura, criado a infelicidade do ser e se libertaria dos
sofrimentos desse ser pela plena consciência que o homem poderia adquirir sobre
si mesmo. Platão, em seus diálogos mais admiráveis e melhor elaborados, no
Fedro, n o Banquete, no Fédon, e em outros ainda, afirma que o mito é o caminho
do conhecimento. A filosofia de Platão está saturada de mitos órficos. Na base
da filosofia cristã, embora essa proceda por conceitos, se encontra o mito mais
importante da humanidade, o da Redenção e do Redentor. A teologia racional mais
árida, assim como a metafísica, ambas se alimentam de mitos religiosos. A
metafísica pura, abstrata, totalmente livre de todo mitologismo, é a morte do
conhecimento vivo, uma separação em relação à existência. O conhecimento vivo é
mitológico. Precisamos estar claramente cientes disso, e nos darmos conta do
que significa o mito.
O mito é uma realidade incomensuravelmente maior do que o conceito. É
tempo de deixar de identificar o mito com a invenção, com a ilusão de uma
mentalidade primitiva, com alguma coisa que, em sua essência mesma, seria
oposta à realidade. Pois é esse o sentido que damos às palavras “mito” e
“mitologia” na linguagem corrente. Ora, por trás dos mitos estão dissimuladas
as grandes realidades, os fenômenos originais da vida espiritual. A criação dos
mitos dentre os povos denota uma vida espiritual real, mais real do que aquela
dos conceitos abstratos e do que aquela do pensamento racional. O mito é sempre
concreto e exprime melhor a vida do que o pensamento abstrato é capaz de
fazê-lo; sua natureza está ligada a natureza do símbolo. O mito é um relato
concreto, gravado na língua, na memória e na criação populares, no qual se
exprimem os acontecimentos e os fenômenos originais da vida espiritual
simbolizados no mundo natural. A realidade original preexiste no mundo
espiritual numa profundidade misteriosa. Mas os símbolos, os signos, as imagens
e os reflexos dessa realidade primitiva nos são dados nesse mundo natural. O
mito nos apresenta o sobrenatural no natural, o suprassensível no sensível, a
vida espiritual na vida na carne: ele religa simbolicamente dois mundos.
O grande mito ariano de Prometeu simboliza de um modo sensível, sobre
o plano natural, certos acontecimentos da vida espiritual do homem, de seu
destino e de suas relações com a natureza. O princípio prometeico é o princípio
eterno da natureza espiritual do homem. podemos dizer o mesmo do mito
dionisíaco, que se reflete mitologicamente no mundo sensível. O mito da queda
de Adão e Eva, fundamental para a consciência cristã, exprime a maior das
realidades do mundo espiritual. A separação do homem e do mundo para com Deus
faz parte dos fenômenos originais da vida espiritual, ela pertence às
profundezas do espírito, numa profundidade que precede a origem das coisas. Mas
esse acontecimento espiritual se simboliza no mundo natural e sensível. O
sentido da queda se revela na experiência espiritual, mas esse evento se
expressa por meio de um mito concreto, o de Adão e Eva, que fala de um fato
realizado sobre nossa terra e em nosso tempo. O mito representa sempre uma
realidade, mas sua realidade é simbólica.
A doutrina de Schelling sobre a mitologia é genial: ele a considera
como a pré-história da humanidade, como o reflexo de um processo teogônico e
cosmogônico na consciência humana. A filosofia da mitologia, ligada aos
trabalhos de Creuzer, envelheceu em relação às últimas investigações feitas
nesse domínio, mas o núcleo filosófico da doutrina de Schelling sobre a
mitologia mantém um significado indefectível.
Quando o conhecimento pretende se libertar definitivamente dos mitos
religiosos, ele se submete aos mitos antirreligiosos. O materialismo também
oferece uma forma de criação mitológica, pois ele vive do mito da matéria e da
natureza material. O positivismo vive do mito da ciência enquanto conhecimento
universal. Esses mitos não exprimem realidades profundas da vida espiritual,
eles não expressam mais do que certas etapas do caminho seguido pelo homem. O
Cristianismo é inteiramente mitológico, como toda religião, e os mitos cristãos
expressam as realidades mais profundas e mais centrais do mundo espiritual.
Chegou o tempo de não se ter mais vergonha de uma mitologia cristã, de não mais
separar o Cristianismo do mito. Nenhum sistema conceitual teológico ou
metafísico poderá fazer desaparecer a mitologia do Cristianismo, pois é
precisamente esse conjunto de mitos que constitui sua maior realidade, e o
Cristianismo se torna abstrato assim que o separamos dele. Mas é preciso captar
espiritualmente o sentido interior do mito e do símbolo, a fim de se liberar de
seu poder realista e ingênuo, que gera a superstição e a escravidão do
espirito. Somente assim se abrirá a via que deverá conduzir às realidades
espirituais.
A mitologia formou-se na aurora da consciência humana, quando o
espírito estava mergulhado na natureza, quando o homem natural ainda não havia
se endurecido e as fronteiras entres os dois mundos não estavam claramente
delimitadas. A consciência do homem estava sonolenta, pois o momento de seu
despertar ainda não havia soado. Nossa língua, nossas ideias, trazem a marca
dessa consciência mitológica primitiva. A essência do homem estava ainda
mergulhada numa inconsciência e numa subconsciência de onde provinha a criação
mitológica. A delimitação do espírito e da natureza é fruto de uma evolução
mais tardia. E o retorno a essa criação mitológica não pôde se produzir senão
no terreno de uma nova espiritualidade.
A filosofia pura se liberou do mito e da experiência religiosa, assim
como a teologia que, procedendo por conceitos, não é capaz de conhecer a Deus.
Toda tentativa de conhecimento racional da divindade corre o risco de cair no
monismo ou no dualismo abstratos. Toda concepção da natureza divina que não é
contraditória e paradoxal está desesperadamente afastada dos mistérios da vida
divina. Nem o teísmo dualista que se opõe radicalmente ao Criador e à criação,
nem o panteísmo monista que os identifica, são capazes de expressar os
mistérios da vida divina, pois as relações entre o Criador e a criação são
contraditórios e paradoxais para a razão. Um entendimento natural não pode
captar e traduzir por conceitos a natureza de Deus e suas relações com o mundo.
A vida divina, o esoterismo da existência divina, não admitem ser tratados pela
razão. Mas a razão possui a força de perceber o paradoxo e a antinomia que para
ela apresenta a existência divina; ela pode admitir a existência de um
suprarracional. É esse o sentido da doutrina de Nicolas de Cusa sobre a sábia
ignorância.
O grande mérito do pensamento alemão, que se liga aqui à sua mística,
consiste pre3cisamente em que ele reconhece a profundidade insondável e a
irracionalidade de Deus, fundamento primeiro da existência. É a Gottheit
de Eckhart, situada mais profundamente do que o próprio Deus, o Ungrund
de Boehme. A divindade não pode ser percebida pelas categorias da razão, mas
por revelações da vida espiritual. O caráter trinitário de Deus é inacessível
ao pensamento racional. A razão, não iluminada pela fé, aspira naturalmente ao
monismo e ao dualismo, e o caráter mitológico da Trindade cristã a inquieta e
chega mesmo a indigná-la, pois ela está pronta para ver aí um politeísmo. Diante
do mistério da Trindade, somente o mito e o símbolo são possíveis, jamais o
conceito. Mas esse mito e esse símbolo refletem, não meus sentimentos
religiosos, nem meus estados psíquicos interiores, como pensam os novos
simbolistas do tipo subjetivo e idealista, mas antes a própria profundeza do
ser, os mistérios mais profundos da vida. Somente na Trindade divina pode
existir uma vida interior que escape aos conceitos.
Da mesma forma, é impossível formar uma concepção da natureza
teândrica de Cristo. A razão pende naturalmente para o monofisismo, para o
reconhecimento de uma só natureza; o mistério da unidade das duas naturezas
numa só personalidade é inconcebível para ela. É por isso que, no que diz
respeito à natureza teândrica de Cristo, da mesma forma não são possíveis outra
coisa que o mito e o símbolo.
Quando o pensamento se esforça para penetrar os mistérios últimos da
vida divina, ele provoca necessariamente uma catástrofe da consciência, uma
iluminação espiritual, que transforma a própria natureza da razão. A razão
iluminada é agora uma nova razão, que já não é desse mundo, nem desse século.
Deus é imanente a essa razão iluminada, esclarecida e espiritualmente integral,
mas Ele permanece transcendente, inacessível à antiga razão, à do homem
natural, do primeiro Adão. Somente a sabedoria de Cristo torna possível a
percepção imanente da divindade. Mas a aquisição dessa sabedoria comporta uma
solução de continuidade em nosso pensamento natural. A descontinuidade no
pensamento do divino consiste precisamente no abandono do conceito, substituindo-o
pelo símbolo e o mito. Do ponto de vista de nossa razão natural, nosso próprio
pensamento se torna mitológico; mas isso prova que realidades autênticas
começam a se revelar à nossa consciência. O caráter trinitário de Deus, a
natureza teândrica de Cristo, são realidades iniciais da vida espiritual. Essas
realidades se revelam quando a consciência se desvia do mundo natural para se
orientar para um outro mundo, quando nossa consciência, conformando-se com as
mudanças dessa consciência, deixa de ser oprimida por um conceito. Então a vida
se revela. Ora, somente o mito é suscetível de explicar a vida, que é sempre
inesgotável e insondável.
Na experiência espiritual, na vida espiritual, produz-se um movimento
infinito para as profundezas da vida divina, e esse movimento jamais pode ser
encerrado num conceito, nas categorias teológicas e metafísicas fixadas. Isso
não implica a negação do conhecimento religioso e filosófico, nem de seu valor
efetivo, nem a afirmação do agnosticismo. A docta ignorantia, segundo a
doutrina genial de Nicolas de Cusa, é o conhecimento da ignorância. Existe uma
possibilidade de conhecimento por meio do paradoxo e da antinomia. Em nosso
reconhecimento do caráter inacessível da divindade, da impossibilidade de um
conhecimento racional da vida divina, existe igualmente um conhecimento e uma
filosofia religiosos. Uma teologia negativa é também um conhecimento da
verdade. a afirmação dos limites da razão pressupõe sua acuidade e sua
intensidade; a razão iluminada, mergulhada no espírito, chega ao seu grau
supremo, não à sua negação.
Mas, para renascer, é preciso morrer, é preciso um sacrifício. A gnose
religiosa sempre foi, é e será simbólica e mitológica. E a tarefa da gnose
cristã consiste em expressar o simbolismo cristão e em extrair seu alimento do
mito cristão. Na gnose de Valentim e de Basilide, esse mito estava ainda
sufocado por mitos pagãos, o espírito estava mergulhado na natureza, no
infinito cósmico. Daí provém a confusão da gnose.
Mas hoje em dia, quando falamos do simbolismo das verdades religiosas,
surge um perigo de outra ordem: trata-se da tendência modernista, que chamamos
de “símbolo-fideísta” (Sabatier), que não vê nos símbolos senão o reflexo da
fé, o reflexo de nosso sentimento subjetivo. Já Schleiermacher via nos dogmas
uma simbólica do sentimento religioso. Essa concepção marca uma ruptura entre
os dois mundos, ela aprisiona o homem em seu mundo subjetivo, em sua fé e em
seus sentimentos. Mas os símbolos e os mitos não refletem em realidade a fé,
nem o sentimento religioso do homem, mas antes a vida divina, as profundezas do
ser na experiência espiritual; essa se distingue da experiência psíquica na
medida em que apresenta, não a fé do homem no divino, mas o divino em si.
Quando tomamos o símbolo como sendo a realidade última, o mundo espiritual se
vê submetido ao mundo natural.
V
Não se deve confundir e identificar os dogmas da Igreja com a teologia
dogmática, com as doutrinas teológicas. Existe nos dogmas uma verdade absoluta
e indefectível, mas essa verdade não está necessariamente ligada a uma doutrina
qualquer. A verdade dos dogmas é a verdade da vida e da experiência religiosas.
Seu significado não é moral e pragmático, como pensam certos católicos
modernistas, mas religioso e místico, ele expressa o princípio da vida
espiritual. Os dogmas não adquirem um caráter racionalista senão nas doutrinas
teológicas, nas quais eles estão frequentemente presos ao realismo e o
naturalismo mais grosseiros. Os dogmas são úteis e salutares na media em que
mostram o caminho espiritual que é a verdade e a vida, e não porque a salvação
e a vida necessitem da confissão de certas doutrinas.
Não pode ser indiferente para minha vida e para meu destino, que um
ser humano, que me é mais caro dentre todos, exista ou deixe de existir. Da
mesma forma, não é indiferente para minha vida e meu destino, que Cristo, meu
Salvador, exista ou não. Mas Cristo não existe a menos que Ele seja o Filho de
Des, consubstancial ao Pai (homoousios). O dogma da consubstancialidade
do Filho com o Pai não é uma doutrina, mas a expressão de um fato místico
indispensável à minha vida. Os dogmas não são doutrinas teológicas, eles são
fatos místicos da experiência e da vida espirituais, os indícios dos encontros
religiosos autênticos com o mundo divino. os dogmas são símbolos que indicam o
caminho espiritual, mitos que exprimem os acontecimentos do mundo espiritual,
absolutos por sua importância.
Não pode ser indiferente a mim que um acontecimento, do qual depende
toda minha vida e meu destino, não somente no tempo, mas na eternidade,
aconteça ou deixe de acontecer no mundo espiritual. Deus existe ou não existe?
Ele é uma realidade viva ou uma ideia abstrata? Aqui existe, para mim, uma
questão de vida ou morte, e não um problema de confissão de tal ou qual
doutrina teológica ou metafísica. Se Deus não existe, tampouco existe o homem,
eu mesmo não existo, toda minha vida se transforma numa ilusão insensata,
gerada por momentos de algum obscuro processo natural. Se Cristo não
ressuscitou, então não posso esperar a vitória sobre a morte e a vida natural.
Para minha Ressurreição para a vida eterna, não é a doutrina da Ressurreição de
Cristo que me é indispensável, mas antes o fato de que esse evento realmente
aconteceu. Não pode ser indiferente a mim que esse fato místico tenha ou não se
realizado, enquanto que eu posso ser indiferente à doutrina teológica e
metafísica da Ressurreição. Quem nega o acontecimento místico da Ressurreição
de Cristo nega para mim a vida eterna, e isso eu não posso admitir friamente.
Não, o dogma não é uma doutrina, mas um símbolo e um mito que exprimem
os acontecimentos do mundo espiritual absolutos e fundamentais por sua
importância. O dogma simboliza a experiência espiritual e a vida espiritual por
meio de representações mitológicas e não por meio de conceitos. Mas essa
experiência, essa vida, não são estados de alma do homem, nem sua fé, nem seu
sentimento religioso, mas antes a realidade ontológica, a própria vida
original, a existência original. Quando Santo Atanásio o Grande combateu a
heresia de Arius, dele defendeu, não as doutrinas, mas a vida e a via
autênticas, os encontros reais do mundo espiritual.
Os anais do espírito humano nos contam um evento particularmente
impressionante da via espiritual de um homem: o encontro de Saulo com Cristo.
Esse encontro místico, que transformou Saulo em Paulo, constitui precisamente o
fundamento da fé cristã no Redentor e na Redenção. Esse encontro é o que cada
homem pode experimentar. A transformação de Saulo em Paulo consiste no novo nascimento,
no segundo nascimento espiritual. Mas o encontro autêntico com a realidade
divina não consiste num estado de alma, nem numa experiência psicológica. As
emoções psíquicas mantêm o homem encerrado em si mesmo, absorvido em seus
sentimentos e suas crenças, que são coisas separadas das realidades divinas.
Somente a experiência espiritual pode libertar a alma humana e transformar seus
sentimentos subjetivos em encontros ontologicamente reais com o mundo
espiritual. Os dogmas são dados, não de uma natureza psicológica e naturalista,
mas de uma natureza espiritual.
As fórmulas dogmáticas, na história da consciência da Igreja, possuem
antes de tudo um papel negativo. Elas denunciam, não as doutrinas errôneas, mas
uma falsa orientação da experiência espiritual, um desvio do caminho
espiritual. Elas nos mostram aquilo que traz consigo a vida e aquilo que traz a
morte. Os dogmas têm acima de tudo um valor espiritual e pragmático, mas não
doutrinal e gnóstico. O mal não consiste no fato de que as heresias sejam
doutrinas erradas, mas no fato de que elas testemunham uma deformação da
experiência espiritual. A negação de Cristo enquanto Filho de Deus,
consubstancial ao Pai, enquanto Deus-homem, que une em uma personalidade única
duas naturezas, duas vontades – a divina e a humana – (negações que são as do
arianismo, do monofisismo, do monotelismo e do nestorianismo), equivale a uma
deformação da experiência espiritual. Existe aí um pseudo-simbolismo dos
acontecimentos do mundo espiritual, uma orientação nefasta do espírito, que não
permite ao homem unir-se perfeitamente a Deus. O mal não reside no fato de que
as doutrinas gnósticas sejam falsas, incapazes de fornecer um conhecimento
autêntico, mas em que elas manifestam uma experiência e uma via espirituais nas
quais o mundo inferior não pode ser iluminado e transfigurado em mundo
superior.
O símbolo é importante enquanto indício dos eventos que se realizam no
mundo espiritual, eventos que conduzem ao Reino de Deus, à união do homem com
Deus, à transfiguração e à deificação do mundo. Mas os dogmas não exprimem o
conhecimento último da existência divina; por si sós, eles não constituem ainda
a gnose definitiva, ainda que tenham uma importância preponderante, pois essa
deve se alimentar dos fatos da experiência espiritual. Conciliar a gnose e os
dogmas não consiste em submeter exteriormente o conhecimento a determinadas
doutrinas teológicas, mas sim em recorrer à experiencia espiritual, à fonte
vital do conhecimento divino. a gnose é livre, mas a liberdade do conhecimento
deve conduzi-la às fontes da vida. Os dogmas são símbolos do mundo espiritual e
os acontecimentos desse mundo desempenham um papel importante no seu
conhecimento, pois eles revelam sua unidade e sua integralidade, por oposição
ao papel fragmentado e acidental dos acontecimentos dos mundos psíquico e
natural.
Pouco importa que os sistemas teológicos e dogmáticos sejam
exotéricos, que, por perseguirem um objetivo de organização social, eles
dirijam a experiencia espiritual da humanidade; nem por isso deixa de ser uma
verdade esotérica que o mundo do espírito é o mundo ecumênico (soborni),
que a experiência espiritual não é individual e isolada, que na vida espiritual
acontecem encontros com uma só e mesma realidade divina, na qual se revela o
Cristo único. O ecumenismo procede da natureza do espírito.
A teoria sustentada por Harnack, que tenta demonstrar que a elaboração
dos dogmas constitui um processo de helenização, uma inserção da filosofia
grega no Cristianismo, não corresponde à realidade. Os dogmas relativos à
Trindade divina, à natureza teândrica de Cristo, à Redenção pelo mistério da
cruz, foram e continuaram sendo uma loucura para a razão helênica. Não há nada de
racional neles, de acessível à inteligência. Ao contrário, as heresias sempre
melhor correspondem à compreensão do entendimento. O arianismo, notadamente,
era perfeitamente racional, e assim ele teve como adeptos todos os que frequentavam
a razão e a filosofia helênicas. É mais fácil afirmar apenas uma natureza e uma
vontade em Cristo, como o fizeram os monofisitas e os monotelitas, do que
afirmar, com o dogma, a fusão antinômica e paradoxal de duas naturezas e de
duas vontades. O Cristianismo ensina a loucura da cruz, incompatível com a
razão do mundo natural. É por isso que ele é uma revelação de um outro mundo,
uma verdade que não é daqui de baixo.
A adaptação do Cristianismo a razão desse mundo constitui seu elemento
exotérico, resultando da tarefa patética que ele se impôs no mundo natural,
para a massa da humanidade média. É para essa massa que foram construídos os
sistemas teológicos, que foram criados os cânones imutáveis. As formas
autoritárias da consciência são inevitáveis para a direção religiosa das massas
populares. A consciência religiosa heterônoma e autoritária possui uma natureza
e um significado sociais, ela é exotérica, e não exprime, em si mesma, a
verdade última. A profundidade da experiência espiritual se revela por degraus
e pressupõe uma hierarquia. A vida religiosa dos povos cristãos pressupõe que
existam dentre eles homens que, não possuindo uma experiência pessoal, vivam da
experiência de outros, essa é também uma forma de experiência religiosa, embora
seja a mais primitiva. O esoterismo sempre pressupõe e justifica o exoterismo.
A consciência da Igreja exprime e salvaguarda de um modo organizado a
unidade da experiência espiritual de todas as gerações cristãs, ela garante um
só e mesmo encontro com Cristo e indica os caminhos de salvação a toda a massa
da humanidade, a todos os que se encontram ainda nos degraus inferiores da
espiritualidade. É por isso que a consciência da Igreja observa sempre um justo
meio: nela existe simultaneamente uma revelação e um mistério. É isso que
explica a dificuldade que ela tem em manter em harmonia os princípios
conservadores e os elementos criativos.
VI
A luta contra os gnósticos foi uma luta contra a mitologia pagã e a
demonolatria e não uma luta contra o mito, uma luta contra um falso
conhecimento e não contra a gnose em geral, uma luta em nome da expressão
autêntica e pura dos eventos do mundo espiritual. A consciência da Igreja
sempre temeu uma antecipação do tempo para as massas; ela mantém o equilíbrio,
evitando grandes elevações e grandes depressões.
O conservadorismo da Igreja tem uma natureza democrática, ele
“preserva”, em nome do homem médio e da massa. O espírito criativo na vida
religiosa possui uma natureza aristocrática, ele ousa afirmar aquilo que não de
revela senão a uma minoria eleita, da mais alta qualidade. O primeiro espirito
é por excelência sacramental. O segundo é essencialmente profético, o primeiro
se manifesta pela coletividade, o segundo, pelo indivíduo. O desenvolvimento
criativo na Igreja se manifesta sempre por rupturas de equilíbrio entre a
minoria e a maioria, pela ação de personalidades criativas que se separam da
Igreja da massa média. O sacerdócio é o
princípio conservador da vida religiosa, a profecia é seu princípio criativo. A
missão profética é sempre realizada por inspirações individuais. O espírito
profético resiste a toda teologia e a toda metafísica do finito, a toda
materialização do espírito, a toda tentativa de transformação do relativo em
absoluto. Negar o desenvolvimento criativo na vida da Igreja, na dogmática,
equivale a negar o espirito profético, a reservar exclusivamente ao sacerdote
toda iniciativa da vida religiosa. O Espírito divino é exercido de forma
diferente através do sacerdote e através do profeta. Na consciência e na missão
proféticas, a infinitude do mundo espiritual se entreabre, e os limites desse
mundo finito desaparecem.
Os dogmas, nos quais os eventos absolutos da vida espiritual
encontraram sua expressão simbólica adequada, não podem ser modificados e
transformados. O caráter trinitário de Deus, a natureza teândrica de Cristo,
são fatos místicos eternos: Cristo é o Filho único de Deus pelos séculos dos
séculos. Mas o significado dos dogmas pode ser aprofundado de maneira
diferente, ele pode ser posto em relevo por uma nova gnose, certos
acontecimentos da vida espiritual podem encontrar sua expressão simbólica em
novas fórmulas dogmáticas.
O processo da criação mitológica na vida da Igreja é um movimento
continuo que segue uma marcha irresistível. Trata-se de um processo de vida.
Não se pode viver exclusivamente da experiência de outrem, dos mitos criados
pelas gerações anteriores, mas é preciso possuir uma vida pessoal. Nossa vida e
nossa criação mitológica não podem ser separadas da vida e da criação de nossos
pais e de nossos ancestrais. Trata-se de uma vida criativa que prossegue sem
interrupção, ao mesmo tempo individual e supraindividual, vida ecumênica na
qual o passado e o futuro, a tradição e a criação se unem na eternidade.
Somente a consciência simbólica permanece fiel aos acontecimentos e
aos encontros do mundo espiritual, somente ela corresponde à profundeza
inefável e insondável da vida original. A consciência simbólica comporta uma
libertação para o espírito: ela lhe permite adquirir uma liberdade interior,
libertando-a da magia do mundo finito. Alles vergängliche ist nur ein
Gleichnis[2].
E assim eu não posso ser submetido a nada de transitório.
O centro de gravidade da vida autêntica se transporta para mim a um
outro mundo. Eu passo pela vida desse mundo, com meu olhar voltado para
profundezas inefáveis; por toda parte toco mistérios e entrevejo lampejos que
provêm de outros mundos. Nada está acabado, nada está definitivamente submetido
nesse mundo. Ele é translúcido, seus limites se dispersam, ele penetra outros
mundos e outros mundo o penetram. Não existe nele endurecimento sobre o qual
não se possa triunfar. Sua pesandez e sua obscuridade não são realidades
objetivas, elas não passam de indícios do que acontece nas suas profundezas.
Tudo o que acontece exteriormente no mundo natural e objetivo se produz também
nas profundezas da vida espiritual, se efetua também em mim, na medida em que
sou um ser espiritual, e, por conseguinte, não pode ser para mim algo
intoleravelmente estranho. Todo exterior não passa de um sinal do interior.
Todo processo universal e histórico não é mais do que o reflexo simbólico de um
acontecimento interior em meu espírito. Esse acontecimento não é subjetivo ou
psíquico, mas espiritual: ele pertence ao mundo do espírito, no qual o “eu” e a
existência não são nem divididos, nem “extrínsecos”, pois eu estou dentro da
existência e a existência está em mim.
A partir daí, podemos perceber o Cristianismo como uma luz interior e
como um mistério do espírito, que não faz outra coisa do que se refletir
simbolicamente no mundo natural e histórico. O Cristianismo místico não nega
nem elimina o Cristianismo exterior, mas o percebe sob outro prisma e lhe
confere outro sentido. Todo o mundo natural não passa de um momento interior do
mistério do espírito refletido em mim, do mistério da vida original. Ele deixa
de ser uma realidade exterior que oprime o espírito. A concepção mística e
simbólica do mundo não nega o mundo: ela o absorve. A lembrança é precisamente
a ligação interior que une misteriosamente a história de meu espírito à
história do mundo, sendo essa simplesmente o símbolo da pré-história de meu
espírito. O processo cosmogônico e antropogônico se desenvolve em mim e comigo,
na medida em que eu sou um ser espiritual. Nada me é absolutamente exterior,
superficial ou estranho ao meu espírito, mas tudo lhe é interior, tudo é seu.
A heterogeneidade e a superficialidade não passam de símbolos do
desdobramento do espírito, dos processos interiores de desmembramento que se
efetuam na vida espiritual. Tudo o que se realiza nos cumes se realiza também
nos vales. A própria Trindade divina se encontra em toda parte no mundo. É da
profundeza que nasce a superficialidade, é da divisibilidade da vida interior
que provém a heterogeneidade. O mundo, a natureza, a história, não são mais do
que o caminho do espírito, não passam de um momento de sua vida interior. A
vida do espírito é a minha vida, mas é ao mesmo tempo a vida de todos os
homens, a vida divina e a vida de todo o universo. Na vida do espírito, em meu
caminho espiritual, eu não rejeito nada, no mundo objetivado, mundo dos
símbolos, e eu reintegro novamente a profundidade, a realidade e a vida
originais. Assim se cumpre o mistério da vida. À primeira vista, a relação que
existe entre os símbolos e as realidades parece ser extraordinariamente
paradoxal. Mas é precisamente a consciência simbólica que nos conduz às
realidades originais, enquanto que o tolo realismo que nos mascara essas
realidades e nos submete aos símbolos. a consciência simbólica nos liberta dos
símbolos tomados pelas realidades exteriores.
Essa consciência faz uma distinção entre o símbolo e a realidade, e é
por isso que ela nos orienta em direção à realização da vida espiritual. O
verdadeiro simbolismo marca o retorno a um realismo espiritual autêntico, no
qual os símbolos são trocados pelas realidades, um retorno à transfiguração da
vida, à perfeição espiritual, aquela do Pai Celeste. É precisamente o simbolismo
que aspira ao realismo: esse reside no reino dos símbolos.
A consciência realista confunde os símbolos e as realidades. Ela nos
submete aos símbolos e nos impede de atingir as realidades, ou seja, a
transfiguração real da vida. Essa verdade, que parece paradoxal, é essencial
para a compreensão da vida espiritual. O realismo simplista, objetivo, está
condenado a viver dentro de um simbolismo natural: ele não crê na possibilidade
de alcançar efetivamente a vida espiritual, pois, para ele, o espírito é
transcendente em relação ao homem.
A religião na cultura, na história, se reveste de um caráter
simbólico, ela reflete a vida espiritual no mundo natural e histórico. Os
dogmas, o culto, são simbólicos por natureza. Esse simbolismo é realista, ele
dissimula as realidades da vida espiritual original, mas não deixa por isso de
ser um simbolismo, ainda que não constitua um realismo místico. O realismo
definitivo não pode ser adquirido na mística, mergulhada no abismo do espírito,
na própria vida original. Toda a cultura espiritual é simbólica por sua
natureza; sua importância reside em que ela permite distinguir nesse mundo as
infiltrações de um outro mundo.
Mas a cultura ainda não é a transfiguração da vida, a obtenção da
existência suprema, ela não passa do anúncio dessa. E, para o simbolismo da
cultura, a arte – que é simbólica por excelência – é particularmente
significativa. A arte autointitulada realista é aquela que não busca nenhuma
realidade e que é ingenuamente, inconscientemente, submetida ao símbolo,
enquanto que a arte conscientemente simbólica aspira ao realismo místico, a
obtenção da vida original. A arte de Dante ou de Goethe nos aproxima da vida
original em muito maior medida do que a arte realista do século XIX. O
simbolismo consciente da cultura tenta destruir os limites do simbolismo, tenta
escapar para as realidades originais.
O objetivo essencial parece ser a transfiguração da cultura em
existência, dos símbolos em realidades, vale dizer, a iluminação do mundo.
Nossa cultura, mesmo religiosa, é uma aquisição que se refere à vida superior,
uma santificação simbólica da vida; mas devemos reconhecer que essa
simbolização frequentemente não passa de uma simulação. Os sinais da vida
original nos são sados, mas essa vida em si não, porque o mundo natural não é
capaz de a conter; é impossível adquirir nela a transfiguração da vida. Somente
no mundo espiritual a regeneração real da vida se torna acessível. Ela consiste
na absorção da natureza pelo espírito, na vitória sobre a pesandez, sobre a inércia,
sobre a impenetrabilidade e o estado de esgarçamento do mundo natural.
Aqui em baixo, o espírito se reveste com a forma da cultura, vale
dizer, do simbolismo, e o mistério do espírito se objetiva no culto religioso.
No sacramento da Eucaristia, o pão e o vinho se transformam no corpo e no
sangue de Cristo. Mas essa é uma transubstanciação realista e simbólica, além
da qual reside o mistério do espírito, o mistério da vida original: pois é nas
profundidades do ser que o Cordeiro é oferecido em sacrifício pelos pecados do
mundo. É por intermédio do sacramento que o outro mundo penetra o nosso, mas a
energia divina aparece refletida sobre o plano desse mundo natural: o corpo e o
sangue de Cristo são apresentados sob a forma do pão e do vinho.
A transubstanciação deve ser compreendida dentro do espírito do
simbolismo realista, e não no do simbolismo idealista e subjetivo. Esse
sacramento é o reflexo de um acontecimento do mundo espiritual, que possui um
significado absoluto, que não é desse mundo subjetivo, mas da própria vida
original. Tampouco ele pode ser concebido no espírito de um realismo simplista
objetivado. O sacrifício de Cristo e o resgate dos pecados se realizam
eternamente no mundo espiritual. Esse é o fenômeno inicial da v ida do
espírito, a matéria do sacramento não é acidental, mas está simbolicamente
ligada ao próprio fenômeno espiritual original. A concepção simbólica do
sacramento não tem nenhuma relação com o simbolismo contemporâneo, que rejeita
sua realidade e não vê nele mais do que a expressão convencional das emoções
religiosas da alma. O símbolo não é uma alegoria, e o sacramento possui uma
natureza cósmica, porque ele não se realiza apenas para a alma humana. Seu
simbolismo é real e absoluto. Mas sua realidade original repousa no mundo
espiritual e não em nosso mundo real. Toda carne sagrada do mundo, tudo o que é
santificado aqui em baixo, não constitui uma realidade em si, mas apenas uma
realidade simbólica.
A carne sagrada da monarquia teocrática não apresenta senão um
simbolismo do sagrado, mas ela não comporta uma regeneração real, em que a vida
se transfiguraria em Reino de Deus. A realidade original e autêntica não é dada
senão na vida transfigurada do espírito. Mas quando se faz passar o simbolismo
transitório como sendo uma realidade eterna, quando o sagrado é submetido à carne
do mundo natural, então a via que dá acesso à transfiguração real da vida, a
obtenção das realidades espirituais, se fecha. O falso conservadorismo que
oprime o espírito criativo alardeia que o simbolismo se substituiu à realidade,
que o espírito está subordinado à carne natural. Mas assim que o simbolismo
deixa de expressar os eventos do mundo espiritual, tão logo a energia do
espírito deixa de estar presente nos seus símbolos, ele se desagrega
fatalmente, produzem-se catástrofes e assistimos à ruína do regime existente.
O que existe de verdadeiro e bom na laicização, é a exigência da
consciência que quer ver o sagrado definitivamente libertado de toda simulação
exterior. Um novo simbolismo deve a partir dai se impor, e pode chegar um tempo
em que o real, a transfiguração da vida, a obtenção da existência autêntica, sejam
exigidos. É nesses momentos que surgem as crises do Estado e da cultura, que se
realizam as grandes revoluções do espírito. A simbolização convencional da vida
perfeita é impossível, ela deve se realizar por meio de uma transfiguração
efetiva do mundo natural em mundo espiritual, nela, a forma ideal da carne será
conservada, mas sua pesandez e sua materialidade desaparecerão. Toda teocracia
simbólica, por não admitir senão os signos exteriores do Reino de Deus, se
torna doravante incapaz de saciar sua sede. É preciso realizar o próprio Reino,
é preciso alcançar a perfeição, uma perfeição análoga à do Pai Celeste. Então terminará
a época do simbolismo, e o mundo penetrará num período novo.
O advento dessa nova era de espiritualidade, desse novo realismo,
exigirá do simbolismo que ele liberte o espirito humano do falso realismo, fixado
ao mundo natural pelo símbolo. A consciência simbólica, por um lado, dá
significado à vida, pois ela entrevê por toda parte os signos de um outro
mundo, e, de outro lado, ela permite alcançar uma separação em relação a esse
mundo de vaidade, de aprisionamento e de miséria. Nada de absoluto, nada do que
é sagrado, pode ser acorrentado ao “mundo”, que é incapaz de conter
integralmente o espírito. O Reino de Deus não é desse mundo, ele não é o reino
da natureza e ele não pode se manifestar dentro de seus limites, onde somente
os símbolos de outros mundos são possíveis.
E, no entanto, o Reino de Deus se realiza a cada instante da vida.
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