sexta-feira, 1 de julho de 2016

Hierotheus de Nafpaktos - Psicoterapia Ortodoxa - Capítulo IV

1.       Patologia Ortodoxa

João Evangelista, no preâmbulo de sua descrição da cura milagrosa que o Senhor fez do paralítico, nos deu uma descrição da piscina de Bethesda e da situação que acontecia ali durante a visita do Senhor. Bethesda possuía cinco pórticos. “Nesses ficava uma grande multidão de doentes, cegos, coxos, paralíticos, esperando pela subida da água[1]”.

Também a Igreja é uma Piscina, a Bethesda espiritual. Todos nós, seus membros, derrotados pela morte e a decadência, pela corruptibilidade e a mortalidade com todas as suas consequências, esperamos junto a essa Piscina, esperando por nossa cura espiritual.

São João Crisóstomo interpreta o milagre realizado pelo Senhor em Bethesda. Ele levanta a questão: “Que modo de cura é este? Que mistério está sendo insinuado a nós?”. Ele responde que a piscina figura e tipifica o que acontecerá no futuro, que será de fato o batismo. “Ele estava a ponto de ministrar o batismo, que tem muito poder e consiste num grandíssimo dom, o batismo que lava de todo pecado e traz o homem à vida, depois de ter estado morto”.

Dado que o batismo é o Mistério (sacramento) “introdutório”, por meio do qual se entra para a Igreja, podemos estender o simbolismo para dizermos que a Igreja é a Bethesda espiritual, um sanatório e um hospital espiritual. Todos os Cristãos, tendo experimentado o amor e a caridade de Deus para com a humanidade, ao mesmo sentem sua própria pobreza espiritual. Devido ao fato de que Deus lança uma luz sobre a nossa condição interior, podemos ver a força das paixões em nós e a lei do pecado em nossos membros. Por isso nos sentimos doentes. Essa sensação é o começo da cura, ou, para nos expressarmos melhor, é o começo da visão de Deus, uma vez que o arrependimento e a aflição interior são impossíveis num homem carnal. Apenas quem partilha da graça de Deus experimenta essa realidade interior.

Os hospitais possuem clínicas patológicas especializadas. E a Igreja, que é o hospital espiritual, o sanatório espiritual, possui sua própria clínica patológica. Não queremos criar confusão a respeito desses termos, mas acreditamos firmemente que o estudo das paixões e uma patologia. Sendo assim, iremos nos deter agora longamente sobre o tema das paixões. Devemos definir ‘paixão’, estabelecer distinções entre as paixões, e então examinar de forma tão analítica quanto possível a cura das paixões.

Essa explicação é necessária porque ela constitui o ethos Ortodoxo. Estamos convencidos de que o que é dito a respeito de ser Ortodoxo deve incluir diversos elementos básicos. O primeiro se refere à queda do homem da vida divina, e à tragédia de seu estado decaído. Assim, devemos falar de um renascimento por meio do santo batismo, e da continuação desse renascimento que prossegue na Igreja. O ensinamento sobre o renascimento não será Ortodoxo se implicar um evento momentâneo que acontece fora da fé em Cristo, porque o renascimento acontece ao longo de toda a nossa vida, e não existem limites à perfeição, a qual não conhece fronteiras. Temos o caso do Apóstolo Pedro, a quem foi dado ver a Luz incriada no Monte Tabor. Seus olhos foram transformados e ele pôde ver a glória do Senhor. Mesmo assim, poucos dias depois, ele negou a Cristo. Certamente, o grande momento da Teofania o levou ao arrependimento e ao pranto. De qualquer modo, observamos aqui que o poder da lei do pecado era tão forte que o levou à queda mesmo depois de ter certeza sobre a Divindade de Cristo. Pode-se considerar como uma circunstância mitigatória o fato de que quando Pedro viu a glória do Senhor, isto se deu antes do Batismo que viria a acontecer no dia de Pentecostes. A natureza do Apóstolo ainda não havia sido empoderada pela energia do Espírito Santo.

O mesmo podemos dizer do Apóstolo Paulo. Apesar de sentir sua comunhão próxima a Cristo, a tal ponto de dizer: “Não sou mais eu quem vive, mas Cristo vive em mim[2]”, ele disse também, expressando toda a dor da humanidade: “Eu vejo outra lei em meus membros, que faz a guerra contra a lei de minha mente, e me conduz ao cativeiro da lei do pecado que está em meus membros. Pobre homem sou eu! Quem me libertará deste corpo de morte?[3]”.

A seguir tentaremos lançar um olhar sobre essa lei do pecado, a “outra lei”. Acreditamos que este capítulo a que denominamos ‘Patologia’ será um dos mais básicos deste libro. Em alguns pontos tentaremos ser mais analíticos, listando as paixões conforme Cristo, os Apóstolos e os Padres as apresenta, porque queremos apontar a temível realidade que nos flagela e da qual, infelizmente, permanecemos a maior parte do tempo inconscientes.

1.1. O que são as paixões

‘Paixão’ deriva do verbo grego ‘pascho’, ‘sofrer’, e indica uma moléstia interior. De acordo com Filoteu o Sinaíta: “A paixão, no sentido estrito, é definida como sendo aquilo que se embosca ardentemente dentro da alma por um longo período”. A seguir veremos como um pecado se torna uma paixão. Aqui queremos sublinhar particularmente o fato de que quando um pecado é repetido costumeiramente e se tocaia em nossa alma por um longo período, ele passa a se chamar ‘paixão’. Os Padres foram longe na interpretação das diferenças entre paixão e pecado. Paixão é “o movimento que tem lugar na alma”, enquanto que a prática pecaminosa “é aquela que se manifesta no corpo”.

O Senhor explicou seu ensinamento sobre a paixão em muitos pontos, que estão relatados nos Evangelhos. Vamos sublinhar algumas passagens aqui, e voltaremos a elas mais adiante. Em resposta à pergunta do Fariseu: “Porque seus discípulos não caminham de acordo com a tradição dos antigos e comem o pão sem lavar as mãos?”, o Senhor dirigiu a atenção para o homem interior: “Do interior, do coração do homem, provêm os maus pensamentos, a fornicação, o roubo, o assassinato, o adultério, a cobiça, a maldade, a fraude, a luxúria, a inveja, a calúnia, o orgulho, a insensatez. Todas essas coisas vêm de dentro e corrompem o homem[4]”.

Interpretando a parábola do semeador e se referindo especialmente à semente que caiu “entre os espinheiros”, Ele disse que as paixões são aquilo que sufoca a semente e não a deixa produzir. “Aquela semente que caiu entre os espinheiros, representa aqueles que ouvem, mas assim que se afastam são sufocados pelos cuidados, as riquezas e os prazeres da vida, e não conseguem produzir fruto[5]”.

O Apóstolo Paulo também sabe que as paixões existem no coração do homem. Falando da condição anterior ao Batismo, que ele chama de vida carnal, ele escreve: “Enquanto vivemos na carne, nossas paixões pecaminosas, estimuladas pela lei [do pecado] operavam em nossos membros para produzir o fruto da morte[6]”. Descrevendo a vida dos idólatras infiéis, ele escreve: “Por essa razão Deus deu a eles paixões desonrosas[7]”.

Assim é que as paixões sufocam nossa alma e criam terríveis problemas para todo o nosso ser, como poderemos constatar a seguir. De acordo com o ensinamento de São Gregório Palamas, uma pessoa que ama o delito detesta sua própria alma, deixa de lado e “desliga” a imagem de Deus – ou seja, sua alma – e “experimenta um sofrimento semelhante ao do louco que impiedosamente corta sua própria carne em pedaços, sem sentir”. Como um louco, ele “inflige inconscientemente a pior espécie de mal e destroça sua própria beleza inata”. A paixão é o obscurecimento, a desativação e o embaciamento da imagem, da beleza de Deus.

Para falarmos das paixões, devemos colocar com mais precisão o que são elas. Serão forças que penetram na alma e que devemos empurrar para fora, ou serão potências naturais da alma que foram corrompidas pelo pecado e por nosso afastamento de Deus? Toda a tradição bíblica e patrística acredita na segunda hipótese. Por isso, a seguir examinaremos a alma e suas partes para que possamos determinar de que modo essas potências foram corrompidas.

Além dessas divisões, São Gregório Palamas, Arcebispo de Tessalônica, também emprega a divisão da alma estabelecida ao tempo dos antigos filósofos Gregos. A alma do homem é uma, embora possua muitas potências. Ela é dividida em três partes: a inteligência, a potência concupiscente e a potência irascível, sendo que estas últimas constituem a parte chamada de ‘passional’ da alma, enquanto que a palavra está na inteligência. Desta forma, na medida em que avançarmos no tema das paixões, quando falarmos da parte passional da alma que foi corrompida e precisa ser curada, devemos entender com isto as potências concupiscente e irascível. Podemos acrescentar ainda aos ensinamentos desses dois grandes Padres da Igreja, o de São Doroteus, o qual, usando a passagem de São Gregório o Teólogo, escreve que a alma é tripartite: “Ela possui o apetite concupiscente, a irascibilidade e a inteligência”.

Essas três potências devem estar voltadas para Deus. Essa é sua condição natural. De acordo com São Doroteus, que concorda com Evagro, “a alma inteligente trabalha naturalmente quando seu apetite concupiscente se volta para a virtude, sua irascibilidade se esforça nessa direção e a inteligência se devota inteiramente à contemplação das coisas”. E São Thalassius escreve que a função própria da parte inteligente da alma é a devoção ao conhecimento de Deus, enquanto que a função da parte passional (concupiscente e irascível) consiste na busca do autocontrole e do amor. Nicholas Cavasilas, referindo-se a esse tema, concorda com esses Padres e diz que a natureza humana foi criada para o homem novo. Nós recebemos a razão “para que possamos conhecer a Cristo, e nosso desejo para que possamos nos apressar indo a ele. Nós temos a memória para que O tenhamos sempre junto a nós”, uma vez que Cristo é o Arquétipo para o homem.

De acordo com o exposto acima, o homem não foi formado com as paixões tais como elas funcionam hoje em dia no homem de carne, que não possui as operações do Espírito Santo. As paixões não possuem essência nem hipóstases. Do mesmo modo como a escuridão não possui uma essência própria, mas é a ausência de luz, também assim é a paixão. “Foi ao se inclinar das virtudes para o amor ao prazer que a alma preparou o caminho para as paixões e deu a elas um lugar firme em si mesma”. Podemos esclarecer melhor isso dizendo que as paixões são as perversões das potências da alma. Deus não formou o homem com as paixões da desonra. Como diz São João Clímaco, “o mal ou a paixão não são algo de natural implantado nas coisas. Deus não foi o criador das paixões. Por outro lado, existem muitas virtudes naturais que vieram até nós provenientes dele”. A presença das virtudes é o estado natural do homem, enquanto que as paixões são uma condição desnaturada. Nós alteramos e pervertemos as energias da alma e as desviamos de seu estado natural para um estado não natural. De acordo com São João Clímaco, Deus não causou nem criou o mal. “Nós tomamos por nós mesmos os atributos naturais e os transformamos em paixões”. O mesmo santo nos fornece outros exemplos para deixar isso bem claro: “A semente da geração” é natural em nós, mas nós a pervertemos em fornicação. A aversão que Deus nos concedeu contra a serpente, para que fizéssemos a guerra contra o diabo, é natural, mas nós a utilizamos conta nosso vizinho. Temos um ímpeto natural de exercer a virtude, mas ao invés disso competimos no mal. A natureza colocou em nós um desejo de glória, mas de uma glória celeste, para a alegria das bênçãos celestiais. É natural que sejamos arrogantes – mas, contra os demônios. A alegria é nossa por natureza, mas por causa do Senhor e com o objetivo de fazermos o bem ao nosso próximo. A natureza nos deu o ressentimento, mas para nos voltarmos contra os inimigos de nossas almas. Temos um desejo natural pelo alimento, mas não para o desregramento.

Por essa razão os Padres enfatizam constantemente a verdade de que as paixões, tais como as conhecemos no estado decaído, constituem uma vida desnaturada, um impulso que vai contra a natureza. “Uma paixão culpável é um impulso da alma contrário à natureza”. Ao explicar o que é esse impulso desnaturado da alma, São Máximo o chama de “um amor ou um ódio insensato por alguém ou por alguma coisa sensível”. Em outra passagem ele escreve que o vício é um uso errado das nossas imagens conceituais das coisas, que leva ao uso disfuncional das próprias coisas. Tomando o exemplo do casamento, ele diz que o uso correto do relacionamento sexual é a geração dos filhos. Uma pessoa que procura nisso apenas o prazer “usa mal essa dádiva, porque julga bom aquilo que não o é. Quando uma homem se relaciona com uma mulher dessa maneira, ele abusa dela”. O mesmo é verdade em relação a outras coisas.

A parte inteligente da alma do homem decaído é dominada pelo orgulho, a parte concupiscente pelas perversões da carne e a parte irascível pelas paixões do ódio, da aversão e do rancor.

São Máximo, que estava interessado na vida natural e antinatural da alma, analisou-as exaustivamente. As potências naturais da alma, escreve ele, são a inteligência, o desejo e a potência irascível. O uso natural da inteligência “consiste num movimento em direção a Deus numa busca simples”, o do desejo, é “ansiosa e solitária marcha para Deus”, e a da potência irascível é “a luta para alcançar somente a Deus”. Vale dizer que, quando uma pessoa vive naturalmente, ela deseja conhecer a Deus completamente, ela só deseja a Deus e ela luta para alcançar a Deus, ou seja, para atingir a comunhão com Deus. O resultado desse impulso natural é o amor. A pessoa que se une a Deus adquire o bendito estado do amor, uma vez que Deus é Amor. A Sagrada Escritura diz: “Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua mente, com toda a sua força[8]”. Quando uma pessoa usa as três potencias de sua alma de forma antinatural, os resultado da inteligência é a ignorância espiritual, do desejo é o amor-próprio e da irascibilidade é a tirania. Então a pessoa se torna completamente escrava do diabo, e a beleza da alma é destruída.

Em outra passagem São Máximo analisa no que consiste o mau uso. O mau uso da inteligência é a ignorância e a estupidez. O mau uso da ira e do desejo são o ódio e a licenciosidade. O uso apropriado dessas potências produz o conhecimento espiritual, o julgamento moral, o amor e o comedimento. É porque nada do que foi criado por Deus é mau. O fato de que nada do que é natural é mau significa que o mau só existe quando as potências em nós são distorcidas. São Máximo emprega muitos exemplos. Não são os alimentos que são maus, mas a gulodice, não a geração, mas a luxúria, não as coisas materiais, mas a avareza, não a estima, mas a autoestima.

O mau uso das potências da alma é o pecado e a doença. O vício, de acordo com São Doroteus, “é uma doença da alma despojada de sua saúde natural, que é a virtude”.

Por isso falamos de uma moléstia humana que precisa ser curada. Pois a impureza da alma é o fato de que ela “não está funcionando de acordo com a natureza”, e essa condição gera pensamentos passionais no nous. O estado natural da alma humana, que é a saúde por excelência, aparece quando, diante de provocações, suas partes passionais – ou seja, as partes irascível e concupiscente – permanecem impassíveis. E uma vez que a alma humana é uniforme e possui muitas potências, por essa razão, quando uma potencia da alma adoece todo o resto cai com ela.

São Gregório Palamas ensina que do mesmo modo como o mau uso do conhecimento das coisas criadas gera “a sabedoria tola”, também o mau uso das potências da alma geram “paixões terríveis”.

Que as paixões consistem num impulso antinatural das potências da alma, um desvio das partes passional e inteligente da alma para longe de Deus e em direção das coisas criadas, fica demonstrado pelo fato de que quando um homem está curado interiormente pela ação da graça divina e por sua própria luta, as potências passionais da alma não são suprimidas, nem obliteradas, mas se voltam para Deus; elas correm para ele e alcançam o conhecimento e a união com ele. São Gregório Palamas, referindo-se a Barlaam, que sustentava que a dor e a tristeza não pertenciam à oração, mas que as potências passionais, por serem más, deveriam ser mortificadas durante a prece, ensinou que “existem paixões benditas e atividades comuns do corpo e da alma que, longe de amarrarem o espírito à carne, servem para guiar a carne a uma dignidade próxima àquela do espírito”. Essas atividades são espirituais, não se movendo do corpo para o nous, mas do nous para o corpo. Por isso, quando tentamos obter a cura, não mortificamos as paixões, mas as redirecionamos, como explicaremos adiante. As lágrimas, a tristeza, o arrependimento e a dor, que são maneiras efetivas de curar a alma, são as coisas que purificam as partes passional e inteligente da alma.

Encerrando esta seção queremos enfatizar principalmente que as paixões do corpo são energias distorcidas da alma. Quando a alma perde o amor e a temperança, as paixões das partes irascível e concupiscente da alma ficam distorcidas. E essas paixões são estimuladas por intermédio dos sentidos. As paixões da vida carnal, no sentido da ausência do Espírito Santo, se colocam num movimento antinatural da alma, e então resta apenas a agonia, a doença e a morte.

1.2. Tipos de paixão e seu desenvolvimento

Agora que vimos o que são as paixões, estamos prontos para observar como elas se classificam e de que modo se desenvolvem. Ao mesmo tempo, tentaremos empreender uma lista delas, porque acreditamos que isso pode auxiliar os Cristãos que estão lutando a boa luta. Se quisermos nos curar das paixões, precisamos diagnosticá-las.

O ensinamento sobre as paixões é encontrado não apenas nos escritos patrísticos, mas também da Sagrada Escritura. O Apóstolo Paulo fala da carne. É bem conhecido que, de acordo com o Apóstolo, o homem carnal é aquele desprovido das energias do Espírito Santo. “Os desejos da carne vão contra o espírito e os desejos do espírito vão contra os da carne; porque eles se opõem mutuamente[9]”. Então ele descreve as obras da carne, que são as paixões carnais: “As obras da carne são bem conhecidas: imoralidade, impureza, idolatria, licenciosidade, feitiçaria, inimizade, conflito, inveja, ódio, egoísmo, dissensão, divisão, cobiça, assassinatos, embriaguez, desregramento e coisas assim. Eu os aviso, como já avisei antes, que aqueles que fazem essas coisas não herdarão o Reino de Deus[10]”.

Em sua carta aos Romanos o Apóstolo Paulo lista as obras do pecado, as paixões, que infestam toda a nossa existência. Referindo-se àqueles que abandonaram a Deus para adorar os ídolos, ele escreve: “E uma vez que eles desertaram do conhecimento de Deus, Deus lhes deu uma mente estreita e incapaz de conduzi-los. E eles se encheram com todo tipo de fraquezas, males, avareza, malícia. Encheram-se de cobiça, assassinato, conflitos, fraudes, malignidades, eles são fuxiqueiros, difamadores, odeiam a Deus, insolentes, arrogantes e vaidosos, inventores do mal, desobedientes a seus pais, estúpidos, infiéis, sem coração, impiedosos[11]”.

Ele descreve ao seu discípulo Timóteo a condição das pessoas “nos últimos dias”. “Os homens amarão apenas a si próprios, adoradores do dinheiro, orgulhosos, arrogantes, abusadores, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios, desumanos, implacáveis, caluniadores, dissolutos, ferozes, odiadores do bem, traiçoeiros, inconsequentes, inchados de vanglória, amantes dos prazeres mais do que de Deus, propagando uma religião formal e negando a força que a verdadeira religião possui[12]”.

Os três textos mencionados mostram toda a situação do homem que está distante de Deus. Trata-se de um verdadeiro psicograma, uma significativa visão de raios-X da alma do homem que é governado pelas paixões. Mas devemos agora prosseguir na análise das obras patrísticas.

De acordo com São Máximo, a paixão básica da qual todas as demais se originam é o amor por si mesmo. Um homem ama a si mesmo que o faz excessivamente e idolatra a si próprio. Quando a atenção de uma pessoa é desviada de Deus e ela se desinteressa de se unir a Ele e a fazer Sua vontade, ela necessariamente se volta para si mesma, desejando satisfazer seus desejos todo o tempo. “Proteja-se contra a mãe de todos os vícios, o amor por si mesmo”, diz São Máximo. Definindo esse amor, ele diz que se trata de um “amor demente pelo corpo”. É ele que origina as “três paixões gerais dos pensamentos passionais”, que são a gulodice, a avareza e a autoestima. “Todos os demais vícios se originam desses três”.

Em outra passagem, apresentando as terríveis consequências do amor por si mesmo, ele o chama de mãe de muitas filhas. A tagarelice e a glutoneria causam a intemperança. A avareza e a autoestima fazem com que a pessoa deteste seu próximo. O amor a si próprio, também chamado ‘filáucia’, é a causa de ambas essas coisas.

Em sua carta a Thalassius, São Máximo detalha a descendência da filáucia, que ele distribui em duas categorias. Numa categoria estão as paixões que levam ao prazer sensual e na outra aquelas que afastam a dor. Na primeira categoria ele coloca as seguintes paixões: “gulodice, orgulho, autoestima, pavonear-se, avareza, tirania, dar-se ares, ostentação, insensatez, frenesi, presunção, convencimento, desdém, insulto, impiedade, frivolidade, dissolução, licenciosidade, ostentação, inconsequência, estupidez, violência, sarcasmo, tagarelice, palavras inoportunas e indecentes, e todas as coisas do gênero”.  Na segunda categoria, ele coloca as seguintes paixões: “ira, inveja, ódio, inimizade, rancor, prepotência, difamação, injúria, lamentação, desconfiança, desesperança, menosprezo da providência, indiferença, apatia, abatimento, depressão, desencorajamento, luto intempestivo, lágrimas, melancolia, queixas, ciúmes, maldade e todas as demais disposições que não dão ocasião ao prazer”.

São Gregório Palamas cria outra divisão. Na seção anterior nós enfatizamos que a alma se divide em três partes, a inteligente, a irascível e a concupiscente. O primeiro fruto da irascível parte é o amor às possessões e o segundo é a avareza. O fruto da parte inteligente da alma é o amor à glória, e a marca característica da parte concupiscente é a gulodice, da qual provêm “todas as imundícies da carne”. Em outras palavras, da filáucia, que é a senhora e a mãe de todas as paixões, nascem as três paixões gerais, o amor à glória, a avareza e a autoindulgência. Dessas três nascem todas as demais que corrompem a alma e o corpo do homem.

São Marcos o Asceta, esforçando-se para avaliar as paixões e para encontrar as mães que fazem com que nasçam umas e outras, escreve que existem três que são gigantes, e que quando essas três são vencidas e expulsas, todos os demais poderes dos maus espíritos são facilmente removidos. Esses três gigantes são a ignorância espiritual, que é a fonte de todo o mal, o esquecimento, ou negligência, “seu parente próximo e ajudante”, e a preguiça, que “tece a mortalha escura que envolve a alma nas trevas”. Preguiça, esquecimento e ignorância, “sustentam e fortalecem as demais paixões”.

Essa diferença entre os três Padres não é essencial. A filáucia, o esquecimento, a preguiça e a ignorância de Deus são o clima favorável no qual todas as paixões de amor à glória, avareza e autoindulgência se desenvolvem. Cada um dos Padres, conforme sua luta pessoal e de acordo com o tema que ele desejava enfatizar, sublinhou uma paixão diferente. Os Padres não estavam filosofando ou analisando todas as almas quando listaram essas paixões, mas cada um falava de sua experiência pessoal. Mas devemos em primeiro lugar enfatizar que a filáucia está estreitamente ligada à ignorância, ao esquecimento e à preguiça, porque voltar a atenção para si próprio inevitavelmente traz o esquecimento e a ignorância de Deus, o que resulta no nascimento de todos os demais pecados – as paixões.

De acordo com São João Damasceno, a alma possui três partes: a inteligente, a irascível e a concupiscente. Os pecados da parte inteligente são a descrença, a heresia, a insensatez, a blasfêmia, a ingratidão, e “a aquiescência em relação aos pecados originários da parte concupiscente da alma”. Os pecados da parte irascível são a crueldade, o ódio, a falta de compaixão, o rancor, a inveja, o assassinato e “a permanência em meio a essas coisas”. Os pecados da parte concupiscente são a gulodice, a cobiça, a embriaguez, o despudor, o adultério, a impureza, a licenciosidade, o amor pelas coisas materiais e o desejo de glória, de ouro, de saúde e dos prazeres da carne. O mesmo santo lista ainda os oito pensamentos que cercam o mal, e que estão naturalmente ligados às correspondentes paixões, uma vez que é por intermédio dos pensamentos que os pecados chegam a existir e se desenvolvem em paixões. Os oito pensamentos são a gula, a luxúria, a avareza, o ódio, o desânimo a indiferença, a autoestima e o orgulho.

Depois de examinarmos a divisão das paixões que é análoga às divisões da alma, devemos agora observar outra divisão que encontramos nos ensinamentos patrísticos. Aqui as paixões são dividias entre as do corpo e as da alma. A alma tem suas paixões, e o corpo tem as paixões que se relacionam com a carne.

É bem conhecido no ensinamento patrístico que antes da queda a alma humana estava aberta para Deus e era alimentada com a graça de Deus. Certamente, o homem sempre teve que lutar para alcançar a total comunhão e união com Deus, mas nesse tempo ele provava da graça de Deus. A alma se nutria da graça incriada e o corpo se alimentava por meio da “alma cheia de graça”. Todo o homem experimentava os dons de Deus. Desde a queda, a alma, separada de Deus, a verdadeira fonte da vida – “buscou alimento no corpo. E assim nasceram as paixões (...) Por seu lado, o corpo, não encontrando vida na alma, se voltou para as coisas exteriores, e, como é natural, se tornou escravo da matéria e prisioneiro do ciclo de corrupção. Então apareceram as paixões do amor ao prazer corporal, por cuja causa o homem passou a tentar dirigir sua vida no sentido de desfrutar das coisas materiais”. Nisso consiste a morte do corpo, e, especial, da alma. Se, por outro lado, por meio do ascetismo e da vida em Cristo, nos esforçamos para voltarmos nossa alma para Deus para sermos alimentados por ele, o corpo voltará a ser alimentado pela “alma cheia de graça” e então todo o homem será santificado. Vemos isso nos santos da Igreja, nos quais às vezes as funções corporais estão suspensas.

De acordo com São Máximo, algumas paixões pertencem ao corpo, e outras à alma. As paixões corporais são ocasionadas pelo corpo, enquanto que as da alma são ocasionadas pelos objetos exteriores. Encontramos a mesma distinção entre as paixões nos ensinamentos de Elias o Presbítero, que diz: “As paixões do corpo são uma coisa, as da alma outra”.

São João Damasceno desenvolveu uma lista das paixões do corpo e da alma. As da alma são o esquecimento, a preguiça e a ignorância, por meio das quais o olho da alma se obscurece e a alma é dominada pelas demais paixões. Estas são a impiedade, os falsos ensinamentos e todo tipo de heresias, a blasfêmia, o ódio, a raiva, o azedume, a irritabilidade, a desumanidade, o rancor, a calúnia, o criticismo, o desânimo insensato, o medo, a covardia, a turbulência, o ciúme, a inveja, a autoestima, o orgulho, a hipocrisia, a falsidade, a descrença, a cobiça, o amor pelas coisas materiais, os maus desejos, a ligação com os interesses mundanos, a apatia, o desencorajamento, a ingratidão, os queixumes, a vaidade, a empáfia, a pomposidade, a ostentação, o amor ao poder, o amor à popularidade, a fraude, a falta de vergonha, a insensibilidade, a bajulação, a perfídia, a pretensão, a indecisão, “a aquiescência em relação aos pecados originários da parte concupiscente da alma e que passam a se estabelecer nela permanentemente”. E ainda os pensamentos divagantes, a filáucia, a avareza – raiz e fonte de todos os males – e, finalmente, a malícia e a trapaça.

As paixões do corpo, de acordo com São João Damasceno, são a gulodice, a ganância, a autoindulgência, a embriaguez, comer escondido, uma vida fácil, a falta de castidade, o adultério, a licenciosidade, a impureza, o incesto, a pederastia, a bestialidade, os desejos impuros e todas as paixões brutais e antinaturais, o roubo, o sacrilégio, o furto, o assassinato, todo tipo de luxúria física e de gratificação dos caprichos da carne, em especial quando o corpo está com boa saúde. Outras paixões corporais são: consultar oráculos, lançar sortes, buscar presságios e agouros, enfeitar-se, ostentar, exibir-se ridiculamente, usar cosméticos, pintar o rosto, perder tempo, sonhar acordado, trapacear, além do mau uso passional dos prazeres deste mundo. Outras paixões consistem numa vida dedicada ao conforto corporal, “que embrutece o nous e o torna rude e animalesco, não o deixando se erguer em direção a Deus e à pratica das virtudes”.

São Gregório do Sinai resume todo o ensinamento dos Padres sobre as paixões do corpo e as da alma. Ele escreve: “As paixões recebem diferentes nomes, mas elas se dividem entre as paixões da alma e as do corpo. As paixões corporais são subdivididas entre as dolorosas e as pecaminosas; as dolorosas se subdividem entre as relativas às enfermidades e as referentes à punição. As paixões da alma se dividem entre aquelas irascíveis, as concupiscentes e as da parte inteligente. As da parte inteligente se subdividem em imaginação e razão. Todas elas podem ser voluntárias, resultantes do abuso, ou involuntárias, da necessidade. Essas também são chamadas de paixões não vergonhosas, que os Padres descrevem como sendo causadas pelo ambiente e por características e disposições naturais. Algumas paixões são do corpo, outras da alma; algumas são da parte concupiscente, outras da parte irascível, outras da inteligente, algumas do nous e outras da razão. Todas podem combinar entre si de várias maneiras e afetar umas às outras: as corporais sobre as concupiscentes, as da alma sobre as irascíveis, as da inteligência sobree o nous e as do nous sobre as paixões da razão e da memória”.

Independentemente da enumeração e da divisão das paixões, devemos observar que as paixões não estão separadas umas das outras como em compartimentos. Cada uma está intimamente ligada às demais, de modo a que a pessoa se encontre completamente corrompida e condenada. Por causa das paixões da alma se torna doente e o nous definha. Assim, a pessoa se torna idólatra e já não pode herdar o Reino dos céus. O Apóstolo Paulo é claro e categórico a respeito: “Estejam certos disso, que nenhum homem imoral ou impuro, nenhum que seja avarento – pois o avarento é um idólatra – terá a menor herança no Reino de Cristo e de Deus[13]”.

Existe ainda outra divisão entre as paixões, desta vez entre monges e pessoas do mundo. Uma vez que o modo de vida dos monges que praticam o ascetismo nos mosteiros é diferente do das pessoas do mundo, algumas paixões dominam numa situação e outras na outra. São João Clímaco escreve que nas pessoas que vivem no mundo a raiz de todos os males está na avareza, mas entre os monges está na gula. Para explicar isso ele observa que algumas paixões começam de dentro e se manifestam no corpo, enquanto outras vêm de fora para o interior da alma. As primeiras cometem os monges, “devido à falta de estímulos exteriores”, enquanto o segundo caso costuma ser encontrado entre aqueles que vivem no mundo. Quando as pessoas do mundo adoecem, elas sofrem das paixões da gula e da fornicação. Os monges, tendo sua subsistência garantida, são devastados principalmente pelos demônios do abatimento e da ingratidão. Vemos assim que nem todos os homens recebem as mesmas tentações. Isso depende de sua condição espiritual, seu estilo de vida e outros fatores. O diabo é cheio de recursos e combate cada pessoa de acordo com sua condição.

Já apontamos que algumas paixões são apontadas como mães e outras como filhas: algumas paixões fazem nascerem outras, enquanto que certas paixões são os rebentos de outras. São João Clímaco aprendeu com um homem sábio que a gulodice é a mãe da falta de castidade, e que a autoestima é a mãe da indiferença. Vale dizer que quando a indiferença se apodera de nós, podemos estar certos de que a paixão da autoestima está trabalhando para isso. Da mesma forma, o desprezo e a raiva são filhas dessas três mencionadas. A autoestima é a mãe do orgulho. Também é dito que nas pessoas inconsequentes não existe discernimento nem ordem, mas desordem e confusão. Brincadeiras inoportunas às vezes nascem da falta de castidade, às vezes da autoestima. O excesso de sono provém de uma vida fácil, mas às vezes do jejum, da apatia ou de uma necessidade natural. O tagarelar nasce às vezes da gulodice, às vezes da autoestima. A indiferença pode nascer da vida fácil ou da falta de temor a Deus. A blasfêmia é propriamente filha do orgulho, mas às vezes surge da prontidão em condenar o próximo ou inveja inoportuna dos demônios. A falta de coragem pode provir de comer até a saciedade, mas, mais frequentemente, deriva da insensibilidade e do apego. O apego, que consiste numa adesão a alguma coisa sensível, provém da falta de castidade, da avareza e da autoestima, entre outras coisas. A malícia provém do convencimento e da raiva. A hipocrisia vem da independência e do autodirecionamento. De modo geral, o prazer sensual e a malícia são os geradores das paixões.

É importante agora que investiguemos de que modo um pecado se transforma numa paixão. Os Padres, especialistas nessa luta interior, não se contentaram em simplesmente listar as paixões, mas nos relataram suas causas e seu desenvolvimento. De acordo com Thalassius, as paixões são incentivadas por essas três coisas: “a memória, o temperamento do corpo e os sentidos”. A pessoa que fixa seu nous nas coisas sensoriais, afastando-se do amor espiritual e do autocontrole e aceitando as ações do demônio, se torna um objeto de provocação. “É quando o autocontrole e o amor espiritual faltam, que as paixões são estimuladas pelos sentidos”.

Quando o reinado dos sentidos soberanos afrouxa, acontece um levante das paixões, “e a energia das paixões mais servis é posta em movimento”. Quando a irracionalidade dos sentidos perde as cadeias do autocontrole, está criada a causa das paixões. De fato, como já observamos, quando o nous do homem vadia com alguma coisa sensível, “ele rapidamente se apega a ela por meio de alguma paixão, como o desejo, a irritação, a raiva ou o rancor”. Por isso o esforço descrito por todos os Padres é no sentido de não permitir que o nous seja capturado por qualquer coisa ou ideia sensorial, porque a isso se segue imediatamente a paixão e o desastre. As sementes da tragédia são lançadas ao solo da alma quando o nous é capturado.

Igualmente, fora o aprisionamento do nous, nosso desejo desempenha um importante papel em impulsionar as paixões. São Tiago, o irmão do Senhor, descreve essa condição: “Cada pessoa é tentada quando se é enganada e atraída por seu próprio desejo. O desejo, ao ser gerado, dá nascimento ao pecado; e o pecado, ao crescer, leva à morte[14]”. Quando um irmão perguntou ao Abade Sisoé: “O que devo fazer com relação às paixões?”, o Ancião respondeu: “Cada pessoa é tentada quando se é enganada e atraída por seu próprio desejo”.

Mais analiticamente, o desenvolvimento das paixões se dá como descrito a seguir. De acordo com São Máximo, primeiramente a memória traz para o nous um pensamento não passional. Na medida em que esse pensamento persiste, a paixão se põe em movimento. O próximo passo é o consentimento. E este leva a cometer o pecado em ato.

Hesíquio o Presbítero mostra em seguida o caminho que segue a paixão. Primeiro vem a provocação. Em seguida nos juntamos a ela enquanto nossos pensamentos se misturam com os pensamentos do demônio. Então vem o consentimento, e, depois dele, “a ação concreta, ou seja, o próprio pecado”. E, quando um pecado é repetido muitas vezes, a paixão passa a existir.

São Gregório Palamas, dentro da tradição Ortodoxa do tratamento terapêutico, escreve que a autoindulgência é o princípio das paixões corporais e uma doença da alma. Nesse caso, “o primeiro a sofrer é o nous” – ou seja, ele é o primeiro a ser assaltado. Então ele coloca em movimento as más paixões. Por meio dos sentidos ele leva a imaginação das coisas sensoriais para a alma e as direciona pela os pecados. A impressão dessas imagens vem principalmente pelos olhos.

São João Clímaco descreve analiticamente como esse pensamento se desenvolve até se transformar numa paixão. Provocação, ligação, consentimento, cativeiro, luta e paixão são coisas diferentes. Analisando essas coisas, ele escreve que a provocação é uma palavra ou uma imagem casual simples que aparece no coração pela primeira vez. Isso não é pecaminoso. A ligação é a comunhão com essa primeira aparição, seja com ou sem paixão. Muitas vezes esse estado não é censurável. O consentimento é a permissão de bom grado da alma em relação àquilo que ela encontrou. Isso pode ser bom ou mau conforme a condição do asceta. O cativeiro consiste numa “forçosa e indesejável abdução do coração, uma união permanente com aquilo que ele encontrou”. O cativeiro e considerado de modo diverso, dependendo se ele acontece durante o tempo de oração ou se em outro momento. A luta implica uma força igual àquela que produziu o ataque, ou seja, é quando a alma luta e batalha para não permitir que o pecado seja cometido. Essa batalha pode receber um prêmio ou uma punição. Finalmente vem a paixão, a qual, como dissemos, é algo que “permanece oculto na alma por um longo tempo”, e que, devido a um prolongado costume, prevalece sobre a alma para rendê-la. A paixão requer um arrependimento apropriado ou uma futura punição.

Em acréscimo a essa descrição de como os pensamentos se transformam em paixões, os Padres também descrevem outro desenvolvimento: de como as paixões se desdobram com a idade. São Gregório Palamas diz que as paixões se desenvolvem desde a mais tenra infância, na seguinte ordem. Primeiro vêm as paixões da parte concupiscente da alma, ou seja, a possessividade e a cobiça. As crianças pequenas querem pegar as coisas, e logo que crescem um pouco querem dinheiro. Mais tarde “com o avanço da idade”, desenvolvem-se as paixões do amor à glória. O amor à glória é visto de duas maneiras: a primeira é o amor mundano à glória, que busca “cosméticos e roupas finas”, e o segundo é essa autoestima que ataca o direito e se manifesta como prepotência e hipocrisia, através da qual o inimigo trama desmontar a saúde espiritual da alma. Finalmente, depois da possessividade e do amor à glória, desenvolve-se a autoindulgência – ou seja, a gulodice, “da qual provêm todo o tipo de impurezas da carne”. Ao mesmo tempo, São Gregório Palamas faz uma observação interessante. Embora a autoindulgência “e outros impulsos naturais para a procriação já aparecem nas crianças de peito”, essas coisas “ainda não são indícios de uma alma doente”, pois as paixões naturais não são censuráveis, uma vez que foram criadas por Deus “para que, por intermédio delas, possamos executar as boas obras”. A paixão é má “quando fazemos provisões para a carne para satisfazer seus caprichos”. Resumindo, podemos dizer que, de acordo com São Gregório, as paixões da possessividade e da cobiça se desenvolvem nos bebês, as paixões do amor à glória surgem na infância, e só depois começam as da autoindulgência.

É verdade que tanto as paixões do corpo como da alma são difíceis de discernir. Isso se deve ao fato de que os demônios que as provocam normalmente se escondem e não conseguimos distingui-los. Por isso um bom terapeuta é necessário, alguém que conheça a vida interior e que seja um vaso do Espírito Santo de modo a discernir e curar. Esse discernimento é um dos grandes dons da graça do Espírito Santo. São João Clímaco, referindo-se ao exemplo de que quando retiramos muitas vezes a água de um poço, acabamos inadvertidamente trazendo para fora um sapo, relaciona isso com as virtudes. Quando adquirimos as virtudes podemos às vezes nos envolver com vícios que estão imperceptivelmente entrelaçados com elas. Ele nos oferece alguns exemplos. A gulodice pode vir junto com a hospitalidade; a luxúria com o amor; a astúcia com o discernimento; a malícia que soa como julgamento; a duplicidade, a procrastinação, o desmazelo, a teimosia, o voluntarismo e a desobediência com a mansidão; a recusa em aprender pode se misturar ao silêncio; a empáfia com a alegria; a preguiça com a esperança, a severidade também pode ser confundida com o amor; a apatia e a preguiça com o repouso; a amargura com a castidade; a familiaridade com a humildade. Fica claro, assim, que é preciso muita atenção para descobrir as paixões. Pois podemos pensar que estamos sendo virtuosos quando na verdade estamos trabalhando para o diabo, cultivando paixões. Devemos vigiar o sapo, que usualmente é a paixão da autoestima. Essa paixão corrompe a obediência e os mandamentos.

De acordo com o mesmo santo, o demônio da avareza muitas vezes simula a humildade. E o demônio da autoestima e da autoindulgência encorajam as esmolas. Por isso devemos, acima de tudo, estar atentos para discernir a astúcia do demônio mesmo quando estamos cultivando as virtudes. Ele menciona o caso no qual ele foi assaltado pelo demônio da preguiça e pensou em abandonar sua cela. Mas quando diversas pessoas foram a ele e o louvaram por viver uma vida de hesiquiasta, “minha preguiça se transformou em autoestima”. Então ele ficou espantado com a maneira como o demônio da autoestima enfrentou todas as astúcias dos demais demônios. Do mesmo modo, o demônio da avareza luta contra aqueles que são por completo desprovidos de posses. Quando ele não consegue vencê-los, eles começam a argumentar sobre o quão miseráveis são as condições da pobreza, e então tentam induzi-los “a se preocupar com as coisas materiais”. Outro ponto mencionado pelos santos Padres consiste no modo como podemos detectar a presença das paixões. Certamente, um Ancião prudente e impassível terá uma grande importância em observar os impulsos de nossa alma e corrigi-los. Mas, além disso, existem outros meios de perceber a presença das paixões operando em nós. É sinal da existência de uma paixão voluntária quando a pessoa fica contrariada ao ser reprovada ou corrigida a respeito. Quando ela aceita calmamente a reprimenda, é um sinal de que ela estava desatenta e foi vencida pela paixão. Em outras palavras, a contrariedade ou a calma mostram a presença da paixão, e também se ela é voluntária ou involuntária. “As paixões mais ilícitas se escondem em nossas almas; elas só são trazidas à luz quando examinamos nossas ações”.

Em seu esforço para descrever com precisão no que consiste uma paixão, São Máximo escreve que uma coisa, uma imagem conceitual e uma paixão são coisas diferentes entre si. Um homem, uma mulher, o ouro, etc., são coisas; uma imagem conceitual constitui “um pensamento não passional dessas coisas”; uma paixão é “uma afeição insensata ou um ódio indiscriminado por alguma dessas mesmas coisas”. O Abade Doroteus, distinguindo entre pecado e paixão, escreve que as paixões são o ódio, a autoestima, a autoindulgência, a raiva, os desejos malignos e coisas do gênero. Os pecados são as ações das paixões. Assim, é possível a uma pessoa “ter paixões e não as colocar em movimento”. A partir dessa passagem podemos entender que é possível a uma pessoa estar cheia de paixões e não se dar conta disso, porque eventualmente ela não comete nenhum pecado. É por isso que um conselheiro espiritual experimentado é necessário para uma completa cura das paixões.

Para encerrar essa sessão, devemos sumarizar as terríveis consequências das paixões. Já dissemos anteriormente que as paixões matam o nous. Vamos agora desenvolver o tema.

A ressurgência das paixões “num corpo adulto e numa alma consagrada” constitui uma conspurcação da alma.

Assim como quando um pardal preso pelas pernas tenta voar e cai novamente por terra, também o nous, se não se tornar impassível, “é preso pelas paixões e cai novamente por terra”. As paixões amarram a pessoa ao terrenal.

As paixões repreensíveis acorrentam o nous, “amarrando-o aos objetos sensíveis”.

As paixões corrompem a alma depois de um tempo, assim como certos alimentos que prejudicam o corpo só trazem a enfermidade depois de algum tempo, e mesmo passados muitos dias. Em qualquer caso, é evidente que as paixões adoecem a alma.

A alma de uma pessoa passional é “uma oficina para os demônios”. E uma alma maligna se torna um estoque de maldades.

O nous é morto pelas paixões e se torna impermeável a conselhos. Ele não aceitará nenhuma correção espiritual. “Toda paixão traz consigo a semente da morte”.

As paixões são o inferno. A alma passional é punida todo o tempo por causa de seus próprios maus hábitos, tendo sempre amargas lembranças e murmurações dolorosas de suas paixões queimando-a e consumindo-a. esse tormento é apenas o começo, um pequeno gosto dos tormentos que a esperam nos lugares temíveis “onde os corpos que serão punidos recebem variados tormentos e os infligem à alma, num fogo indizível e na escuridão”.

A recompensa dos esforços pela virtude são a impassibilidade e o conhecimento espiritual, que são os mediadores do Reino dos céus, da mesma forma como “as paixões e a ignorância são as mediadoras do castigo eterno”.

São Gregório Palamas, interpretando a passagem que diz como os demônios deixaram o endemoniado e entraram na vara de porcos que se atiraram ao mar, escreve que “a vida suína” simboliza “todas as paixões, devido à sua impureza. Mas em especial aquelas que rodeiam uma túnica suja por causa da carne suína”.

Finalmente, as paixões matam completamente o nous e causam nossa punição. A cura espiritual é necessária para que o nous se liberte e se regozije em Deus. Voltaremos agora ao tema da terapia.

1.3.  A cura das paixões

Agora que estamos conscientes da grande destruição trazida para nossa existência pelas paixões, devemos nos debruçar sobre o tema da terapia. Essa é uma parte fundamental do presente capítulo. Muitos de nós se dão conta de que estão doentes, temos a sensação de estarmos espiritualmente enfermos, mas somos parcial ou completamente ignorantes sobre o modo de nos curarmos. Creio que a Ortodoxia, por ser uma ciência terapêutica, é capaz de responder esses tópicos essenciais. Estou certo de que uma das mensagens que a Igreja Ortodoxa deve oferecer ao mundo contemporâneo perplexo é a de que ele está doente e, ao mesmo tempo, a de lhe oferecer a cura. É sobre isso que trataremos a seguir.

Primeiro devemos esclarecer algumas coisas. Uma, é que a cura das paixões, conforme já descrevemos, consiste basicamente em transformá-las. Uma vez que as paixões impassíveis, as paixões naturais e impecáveis, são pervertidas, é de se esperar que esse estado de coisas possa ser mudado com um tratamento terapêutico adequado. É nisso que reside a cura das paixões. O Abade Poêmio disse ao Abade Isaac: “Nós não temos que assassinar o corpo, mas as paixões”. Quanto a “assassinar as paixões”, isso deve ser entendido no sentido de convertê-las. Outra observação é que os Padres nos oferecem uma grande quantidade de tratamentos terapêuticos em seus escritos. Qualquer um que leia as “Centúrias sobre o amor” de São Máximo verá que elas contêm muito material terapêutico. Devo confessar que quando li esse trabalho, esperava encontrar algumas regras sobre o amor e o valor do amor. Mas logo percebi que São Máximo dá mais atenção ao tema dos pensamentos, das paixões da cura das paixões. Ele dá grande importância à cura do homem, porque o amor a Deus e ao homem “nasce da impassibilidade”. Um coração comandado pelas paixões é incapaz de amar. Outra observação é de que quando os Padres falam da cura do homem eles primeiro estabelecem os princípios básicos para isso. Vale dizer, eles têm em vista o homem universal e fornecem várias prescrições ou métodos de terapia. Devemos mencionar isso a seguir, mas por ora enfatizamos que toda pessoa necessita de seu próprio método terapêutico. Esse método deve ser fornecido por uma terapeuta experiente e cuidadoso a qualquer um que o procure, com humildade, obediência e disposição para ser curado. Por isso iremos agora estabelecer as regras gerais do tratamento terapêutico. “Todo indivíduo deve praticar sua própria terapia sob a orientação espiritual de organismos vivos contemporâneos”.

A cura das doenças de nossa alma é absolutamente necessária. Já vimos isso. Já estabelecemos o estado de deformação que as paixões criam em nós. Muitas passagens da Escritura se referem a isso.

O Apóstolo Paulo dá o seguinte conselho aos Colossenses: “Façam morrer tudo o que existe de terrenal em vocês: a incontinência, as impurezas, as paixões, os desejos malignos e a cobiça, que é uma idolatria (...). E ainda a raiva, o ódio, a malícia, a calúnia, as conversas vãs, afastem-nas de suas bocas. Não mintam uns para os outros, se vocês despediam a antiga natureza com suas práticas e saudaram a nova natureza que renasce no conhecimento segundo a imagem de seu criador[15]”.

De acordo com São Máximo, nessa passagem o Apóstolo chama de “terra” aos desejos da carne. A “incontinência” é a palavra para o pecado cometido em ato. Cometer o pecado em ato equivale a consentir em agir de acordo com ele e fazê-lo existir. “Impureza” é como ele designa o consentimento ao pecado. “Paixão” é o termo utilizado para os pensamentos passionais. Por “desejo maligno” o Apóstolo designa “o simples ato de aceitar o pensamento e o desejo”. “Cobiça” é o nome dado “àquilo que gera e promove as paixões”. As coisas “terrenais”, que são parte do desejo da carne, devem ser deixadas a morrer. Quando elas são postas à morte – e mais adiante veremos como – e transformadas, ou seja, oferecidas a Deus, então a velha natureza, com seus feitos e desejos, é descartada, e a nova natureza é assumida. Ela será feita à imagem e semelhança de Deus: uma pessoa.

Em outra epístola, o inspirado Apóstolo dá as mesmas instruções: “A imoralidade e toda impureza ou rapacidade não devem sequer ser mencionadas entre vocês, como convém a santos. Que não haja indecência, nem conversas vãs, nem futilidade, que são coisas que não convêm; ao contrário, deve haver ação de graças[16]”.

Em outra epístola ainda ele escreve: “Não devemos ter empáfia, nem provocar os demais, nem ter inveja uns dos outros[17]”.

Todas essas coisas mostram a necessidade da terapia. O Cristão é um lugar para a morada do Espírito Santo, e como tal deve estar limpo, ou antes, para se tornar o templo do Espírito Santo e para que Deus habite nele, o Cristão deve previamente ter sido espiritualmente purificado, e, depois de se tornar um templo para o Espírito Santo, ele deve se manter puro.

Isso também demonstra a finalidade da terapia. Não estamos lutando apenas para sermos boas pessoas, ajustadas à sociedade. O objetivo do tratamento terapêutico não é tornar as pessoas sociáveis, nem ser um exercício antropocêntrico, mas sim conduzir à comunhão com Deus, e que essa visão de Deus não seja um fogo devorador, mas uma luz que ilumine. Os Padres estão nitidamente conscientes desse objetivo do tratamento terapêutico, mas eles também conhecem os objetivos que diferentes pessoas se colocam. São Máximo diz que algumas pessoas se abstêm de paixões “por causa do temor humano”, outras por meio do autocontrole, e outras se libertam das paixões “pela divina providência”. O Abade Doroteus toca nesse ponto dizendo que a pessoa não deve querer se livrar da paixão “para escapar ao seu tormento, mas por realmente odiá-la, conforme foi dito: ‘Eu as odiei com perfeita aversão’”. Os santos sabem que algumas pessoas desejam se libertar das paixões porque elas causam muita dor. Mas não é esse o objetivo verdadeiro do tratamento terapêutico Ortodoxo.
Seu objetivo básico é o de alcançar a comunhão com Deus. Sabemos bem que existem idades espirituais diferentes e diferentes condições dentro da Igreja. Alguns, como ensinam os Padres, guardam a palavra de Deus por medo do inferno, outros para ganhar o Paraíso e outros o fazem por amor a Cristo. Os primeiros são escravos, os segundos são operários assalariados, e os terceiros são os filhos de Deus. Nós aceitamos essas idades espirituais, mas enfatizamos que lutamos para alcançar a terceira categoria, e que prosseguimos no tratamento até que o objetivo final seja atingido.

Devemos deixar claro que a cura das paixões não é um trabalho só do homem ou só de Deus. Os dois devem trabalhar juntos: essa é a sinergia entre Deus e o homem. Tudo em nossa Igreja é “teândrico”. Primeiramente a graça de Cristo deve ser concedida. A purificação do homem, que é a cura, começa com a energia de Cristo que é oferecida por intermédio de toda a vida espiritual que o Cristão vive dentro da Ortodoxia. Em suas epístolas o Apóstolo Paulo muitas vezes desenvolve esse tema. O homem de carne tem em si as energias das paixões. Mas quando ele recebe a graça de Cisto, ele se liberta desse mundo antigo, o mundo do pecado. “Enquanto nós vivíamos na carne, nossas paixões pecaminosas, estimuladas pela lei, trabalhavam em nossos membros para dar o fruto da morte. Mas agora nos livramos da lei, e da morte que nos mantinha cativos, de modo que já não servimos sob o antigo código escrito, mas numa vida nova no Espírito[18]”.

Apenas o povo de Cristo, aqueles que vivem em Cristo, estão livres da carne e das paixões da carne, que constituem o mundo do pecado: “E aqueles que pertencem a Jesus Cristo crucificaram a carne junto com suas paixões e desejos. Se vivemos pelo Espírito, devemos também caminhar pelo Espírito[19]”. Quando uma pessoa caminha pelo Espírito, ela possui a graça da Santíssima Trindade e está interiormente curada: “Eu digo, caminhem pelo Espírito, e não satisfaçam os desejos da carne (...) Se vocês forem guiados pelo Espírito vocês não estarão sob o jugo da lei[20]”. E sabemos bem, conforme já indicamos, que as obras da carne são as paixões[21].

Mover a guerra contra o pecado e as paixões, “lutar, sim, continuar lutando e infligir golpes“, esse é o nosso trabalho, mas desenraizar as paixões, transformá-las de modo essencial, esse é o trabalho de Deus. Assim como um homem não é capaz de ver sem olhos nem falar sem língua, ouvir sem ouvidos, caminhar sem pés ou trabalhar sem mãos, também ele não pode “ser salvo sem Jesus, nem entrar no Reino dos céus”. Porque a alma pode se contrapor ao pecado, mas sem Deus ela não consegue conquistar nem desenraizar o mal.

O sentido de amor a Deus, que é uma comunhão com a graça de Deus, e nosso próprio amor a Deus, que é um fruto do Espírito Santo, são as coisas que podem transformar e curar as paixões. Mortificar a parte passional da alma não significa encerrá-la “inútil e imóvel dentro de nós mesmos”, mas sim que desviamos sua conexão com o mal “para o amor a Deus”. Mas essa mudança para o amor a Deus não acontece sem uma vida de amor. Quando uma pessoa se inflama de amor a Deus, que é uma inspiração divina, todo o seu mundo interior se transforma, se aquece pela graça divina e se vê santificado. “Quando o amor a Deus domina o nous, ele o liberta de seus limites, persuadindo-o a se erguer não apenas acima das coisas sensíveis, mas até acima dessa vida transitória”. Essas coisas mostram que a cura das paixões acontece quando a divina graça, o amor de Deus, opera. Essa divina graça só é oferecida por intermédio dos santos sacramentos. Assim, é preciso sublinhar que a divina Eucaristia e a Comunhão do Corpo e Sangue de Cristo são uma ajuda efetiva ao esforço da pessoa no sentido de purificar sua alma. A Santa Comunhão é uma medicina para a imortalidade.

Mas além do poder de Cristo, que desempenha um papel fundamental, o homem também deve cooperar. Se isso não acontece, é praticamente impossível a uma pessoa superar as paixões, superar substancialmente os demônios, uma vez que “aquele que conquista as paixões fere os demônios”, e que “a pessoa expulsará o demônio cuja paixão tenha sido dominada”. A seguir veremos essa cooperação da vontade humana.

Acima de tudo, o autoconhecimento é necessário. Ele é muito importante, para que estejamos conscientes de nossa condição espiritual. A ignorância de nossa enfermidade faz com que sejamos permanentemente incuráveis. João Evangelista escreve: “Se dissermos que não temos pecado, estamos nos iludindo, e a verdade não está em nós[22]”.

Pedro Damasceno, especificando as oito contemplações espirituais, das quais sete pertencem a esse século e a oitava pertence ao século futuro,, considera o conhecimento como a segunda: “o conhecimento de nossas próprias faltas e da bondade de Deus”. Ou seja, o conhecimento de nossas próprias faltas e da bondade de Deus consiste na theoria.

Uma vez que o orgulho vem entretecido com a coragem, “devemos estar sempre em guarda contra a complacência para com um pensamento simples, para obtermos algum bem”. Os Padres sabem, por causa da grande experiência espiritual pela qual passaram, que os sintomas das paixões não são fáceis de diagnosticar com precisão, porque estamos doentes e elas parecem unidas à nossa natureza. Por isso os Padres nos aconselham a vigiar constantemente nossas paixões. “Vigie continuamente os sinais das paixões e você descobrirá que existem muitas dentro de você”. Observando todas as paixões e todas as virtudes, e em especial as paixões, devemos “sondar a nós mesmos incessantemente para ver onde estamos, se no começo, no meio ou no fim”. É essencial fazer isso, porque a vida espiritual é uma jornada contínua e a cura não tem fim. Estamos constantemente nos purificando para poder alcançar a comunhão com Deus. Isso é indispensável, porque a estagnação e a autossuficiência estão constantemente de emboscada em nosso caminho espiritual.

O autoconhecimento é indispensável também porque existem três condições no homem: “a ativação da paixão, a restrição da paixão e o desenraizamento da paixão”. Ou seja, não é o bastante empregar diversos meios terapêuticos para deter o trabalho da paixão, mas é preciso transformá-la em amor a Deus e ao homem. Para obtermos um bom autoconhecimento devemos ter quietude exterior. É preciso dar um basta ao cometimento do pecado em ato. Enquanto os sentidos funcionarem carnalmente, o autoconhecimento é impossível. “Portanto, é preciso vigiar o nous na presença das coisas e discernir para quais delas se manifesta a paixão”.

O conhecimento de nossas paixões está intimamente relacionado ao arrependimento e à confissão. O primeiro estágio do arrependimento é o conhecimento de nossos pecados, a sensação da moléstia de nossa alma. A expressão do arrependimento é a confissão dos erros. Estamos falando aqui da santa confissão.

Devemos dizer que nos textos bíblicos e patrísticos existem duas formas de confissão. A primeira é a confissão noética que fazemos em oração a Deus, e a segunda é a confissão que fazemos ao nosso médico espiritual, que é também nosso terapeuta. São João Clímaco define a compunção como “um eterno tormento da consciência que traz consigo o esfriamento do fogo através da confissão noética”. A confissão noética produz a compunção, e a compunção traz consolo ao coração do homem. Além disso, a confissão é um arrependimento irrestrito e deve se colocar numa atmosfera de arrependimento. É a aflição do coração, que produz o “esquecimento da natureza”. “A confissão é o esquecimento da natureza porque por causa dela o homem até se esquece de comer seu pão”.

De acordo com São Diádoco de Foticéia, devemos em primeiro lugar oferecer ao Senhor uma confissão estrita mesmo de nossas faltas involuntárias, e não parar até que “nossa consciência tenha a certeza de ter sido perdoada, por meio de lágrimas de amor”. Mais ainda, os santos nos exortam a estarmos atentos para que nossa consciência “não se iluda por acreditar que uma confissão feita a Deus seja adequada”. Ele diz isso porque quando oramos a Deus e confessamos nossos pecados, muitas vezes o fazemos de forma inadequada, e seguimos vivendo satisfeitos por termos confessado. Isso é uma autoilusão, e por isso devemos estar em constante prontidão, pois, se não confessarmos convenientemente, poderemos ser tomados por um medo causado pela doença na hora de nossa morte.

A confissão a Deus por meio da prece não substitui a confissão de nossos pecados feita a nosso pai espiritual, nem a confissão ao terapeuta espiritual substitui a confissão pela prece. É essencial que os dois tipos de confissão estejam ligados. Em qualquer circunstância, a confissão pela prece deve ser seguida daquela ao pai espiritual. Deus deu a eles o poder de perdoar os pecados: “Receba o Espírito Santo. Se você perdoar os pecados de alguém, eles lhe serão perdoados; se você os mantiver, eles serão mantidos[23]”. A partir desta passagem, fica claro “quão grande é a honra que o Espírito Santo concedeu aos sacerdotes”. De acordo com São João Crisóstomo, os sacerdotes que vivem na terra “foram empoderados com a custódia das coisas celestiais”, uma vez que “aquilo que eles fazem na terra, Deus ratifica nos céus. O Mestre confirma as decisões de seus escravos”. Por isso precisamos recorrer aos médicos espirituais para nossa cura. “Acima de tudo devemos fazer nossa confissão ao nosso bom juiz, e apenas a ele”. E se o bom juiz nos ordenar que confessemos perante o povo, devemos fazê-lo, pelo princípio básico de que as feridas que se tornam conhecidas são curadas. “As feridas mostradas em público não irão mais piorar, mas serão curadas”. Para que a cura seja bem sucedida, um bom médico é essencial. Todos os confessores são capazes de realizar o sacramento da confissão, mas nem todos podem curar, porque a alguns falta o sacerdócio espiritual, conforme dissemos no capítulo anterior.

“Se o diagnóstico da doença corporal é mal feito, e isso acontece em muitos casos, mais ainda o é para as moléstias espirituais”. “O diagnóstico das almas é impreciso”. As paixões da alma “são difíceis de entender”. Quando um sacerdote as considera impossíveis de seres curadas, devemos recorrer a outro sacerdote, pois “sem um médico, poucos se curam”.

O valor da confissão foi indicado por muitos psiquiatras contemporâneos. É fundamental que a pessoa esteja aberta, não fechada em si mesma. Na linguagem da Igreja dizemos que quando uma pessoa sabe como se abrir para Deus por intermédio do confessor, ela consegue evitar muitas doenças psíquicas e mesmo a insanidade. Sentimos o valor da confissão na prática. A existência de um único pecado nos exaure, e podemos até ficar fisicamente doentes. Quando decidimos fazer uma confissão, começa o estágio da cura. A alma e o corpo são invadidos pela calma. Mas é claro que é preciso seguir adiante e fazer uma confissão real.

Dado que o diabo conhece o valor da confissão, ele faz o possível para nos pressionar a não confessarmos ou a fazer isso como se outra pessoa houvesse cometido os pecados, ou ainda para que imputemos a responsabilidade a outrem. É claro, é preciso coragem para que uma pessoa revele sua ferida ao médico espiritual. São João Clímaco aconselha: “Desnude sua ferida àquele que pode curá-la”. E, juntamente com a revelação de sua moléstia, tome toda a culpa sobre si mesmo, dizendo humildemente: “Essa é a minha ferida, pai, essa é minha injúria. Ela aconteceu por causa da minha negligência e por nenhum outro motivo. Ninguém pode ser culpado dela, nenhum homem, espírito, ente ou coisa parecida. Foi tudo apenas pela minha negligência”. Ninguém deve se envergonhar, ou melhor, é preciso superar a vergonha do pecado e colocá-lo a nu. Ao revelarmos nossas feridas internas ao nosso diretor espiritual, devemos nos parecer, nos comportarmos e pensarmos como uma pessoa condenada. Mais uma vez, São João aconselha: “Se você puder, molhe com suas lágrimas os pés de seu juiz e médico, como se fosse o próprio Cristo”. O mesmo santo afirma que ele viu homens em confissão que mostraram tamanha humildade e que confessaram com olhos tão lacrimejantes e gritos de desespero que abrandaram a dureza do juiz e “transformaram sua ira em misericórdia”.

É natural sentir vergonha quando temos que confessar uma ferida, mas devemos superar isso. “Não esconda seus pecados”. Imediatamente depois de confessar, posto a nu, começa uma paz interior. Conta-se que um zeloso monge, dominado por um pensamento blasfemo, mortificou sua carne com jejuns e vigílias e mesmo assim não conseguir sentir nenhuma ajuda. Quando decidiu confessar esse pensamento ao seu médico espiritual e o descreveu num papel, ele foi imediatamente curado. “O monge me assegurou que ainda antes de deixar a cela do ancião, sua enfermidade se fora”. Isso mostra a verdade de que a confissão não consiste num esforço humano, mas opera pelo poder de Deus. A alma é curada pela graça divina. Nem o jejum, nem a vigília ajudam, a menos que estejam ligadas à confissão.

Normalmente os médicos espirituais recebem ataques daqueles que se confessam, quando estes não fazem sua confissão com humildade e autoconhecimento. Uma operação espiritual começa junto com a confissão, e então o paciente resiste. Mas o conselho dos Padres a ele é bem claro: “Não se irrite com a pessoa que inadvertidamente opera em você como um cirurgião; antes, veja a abominação que foi removida e, culpando a si mesmo, bendiga-o, porque ele prestou esse serviço a você, pela graça de Deus”. A confissão extrai tudo o que é repulsivo de nossa alma e nos move, por um lado, a uma compaixão para conosco mesmos, e, de outro, a uma gratidão em relação ao médico espiritual. Quem rejeita a crítica revela no mínimo a existência da paixão, enquanto que aquele que aceita a crítica “se livra do aguilhão”.

Mais uma vez devemos enfatizar que o arrependimento ligado à santa confissão cura a ferida. O arrependimento, que nos é inspirado pelo Consolador, queima o coração, e onde nasce a tristeza todas as feridas são curadas. Uma pessoa neste estado possui o grande tesouro da virgindade. Nicetas Stethatos aconselha: “Não diga a si mesmo: ‘Não me é possível recuperar a pureza da virgindade porque de muitas maneiras eu caí na corrupção e nas paixões corporais’”. Mesmo que uma pessoa tenha perdido a sua virgindade, ela pode adquiri-la novamente por meio das lágrimas de um segundo batismo com o arrependimento. Por isso o mesmo santo Padre prossegue: “Porque onde as dores do arrependimento são superadas pela mortificação e o aquecimento da alma, e rios de lágrimas correm por causa da compunção, todas as defesas do pecado caem por terra, todo fogo das paixões é extinto, surge um renascimento celestial através da vinda do Consolador, e mais uma vez a alma se torna um palácio de pureza e virgindade”.

O renascimento de um homem não pode acontecer sem a submissão ao pai espiritual que deverá curá-lo em Cristo: “Se a pessoa não se submete ao seu pai espiritual”, em imitação a Cristo, que se submeteu a seu Pai sob a morte na cruz, “ela não poderá renascer”. Pois esse renascimento “acontece por intermédio da submissão ao pai espiritual”.

Mas muitas vezes as amaldiçoadas paixões da alma não se curam imediatamente depois da confissão. É preciso uma grande batalha e muito ascetismo para que a alma se liberte de suas paixões. Essencialmente, não é uma confissão formal, feita talvez debaixo de grande pressão psicológica, que trará o perdão dos pecados, mas a libertação das paixões. Uma pessoa que não tenha se libertado das paixões pela graça de Cristo “ainda não recebeu o perdão”. Assim como uma pessoa que passou anos doente não adquire a saúde instantaneamente, também não é possível superar as paixões – nem ao menos uma delas – “num breve instante”. O Tempo, e em especial uma vida ascética, são coisa necessárias, porque “as paixões realizadas na prática devem ser também curadas com a prática”. Portanto, a impassibilidade é obtida por meio de “refreamento, autocontrole, trabalho e lutas espirituais”.

A seguir tentaremos descrever a cura das três partes da alma, as paixões do corpo e da alma, e quais coisas precedem e quais sucedem. Descreveremos aqui os métodos gerais de cura da alma.

Em outra seção nós enfatizamos que São Gregório Palamas, ao dividir a alma em três partes – inteligente, irascível e concupiscente – disse que, quando um homem se afasta de Deus, todos os poderes de sua alma adoecem, assim como a alma por inteiro. Assim é que a cura se torna necessária. A cura repousa na pobreza espiritual, que o Senhor abençoou. “Sejamos ‘pobres em espírito’ depois de nos humilharmos, sofrendo na carne e nada possuindo de nosso”, para que possamos herdar o Reino dos céus. Com a humildade poderemos curar a inteligência, onde grassam as paixões da ambição; a parte concupiscente, onde residem as paixões do amor às posses e da avareza, desembaraçando-nos de todas as nossas posses; e a parte irascível, devastada pelas paixões carnais, por meio do ascetismo e do autocontrole. É bem característico que São Gregório inclua a solidão e a hesíquia noética entre os métodos de cura das paixões da ambição. “A solidão e a permanência na cela são de grande ajuda na cura dessas paixões”. E as paixões carnais não são curadas senão mediante o sofrimento do corpo e uma prece proveniente do coração humilde, que é o significado de ‘pobre em espírito’.

A vida na tríplice pobreza faz nascer a tristeza divina, que está ligada a uma súplica adequada. A tristeza gera as lágrimas. O valor da tristeza na purificação do nous é muito grande. A pobreza corporal quebranta o coração, “O coração quebrantado é obtido mediante a tripla restrição do sono, da comida e do conforto do corpo; a alma, liberta do diabo e do amargor por meio dessa quebra, recebe em seu lugar a alegria espiritual”. A autorreprovação, que desempenha um importante papel na vida espiritual do homem, nasce dessa humildade e dessa tristeza corporal.

 A pobreza material consiste na não possessão unida á pobreza em espírito, e ela purifica o nous. De acordo com São Gregório Palamas, quando o nous se liberta dos sentidos e se eleva acima da corrente ruidosa das coisas terrenas, voltando-se para si mesmo, ele vê “a máscara horrível que ele adquiriu enquanto buscava as coisas mundanas”, e se apressa a limpá-la com a tristeza. Desse modo o nous atinge a pureza e desfruta da paz dos pensamentos. Quando o nous experimenta a bondade do Espírito Santo, “a graça começa a pintar a semelhança na imagem”. Então o homem se torna uma pessoa, porque a experiência de saber o que é essa semelhança nos torna pessoas. De início a tristeza é dolorosa, porque ela está ligada ao temor a Deus, mas na verdade ela é benéfica. Com o passar do tempo, gera-se o amor a Deus, e com ele vem a semelhança. E quando alguém vive profundamente aflito, “ela recebe como fruto a doce e santa consolação da bondade do Consolador”. O começo da santa tristeza e “como tentar conseguir noivar com Deus”. Mas como esse noivado com Deus parece impossível, os que amam a Deus batem no peito e oram. O fim da tristeza consiste “na união nupcial pura e perfeita” da alma com Deus.

Por isso, de acordo com São Gregório Palamas, a cura da alma tripartite só é alcançada por meio da correspondente pobreza tripartida. A pobreza gera a tristeza, que encontra muitas expressões antes de conduzir a pessoa à comunhão com Deus. A tristeza é como um purgante para o nous e o coração.

Também São João Damasceno, como vimos, divide a alma em três potências, a saber, a inteligente, a irascível e a concupiscente. A terapia e a cura da parte inteligente se dá por meio de “uma fé inabalável em Deus e na verdade, de um seguimento irredutível dos ensinamentos ortodoxos, do estudo contínuo das proclamações inspiradas do Espírito, da prece pura e incessante e das ações de graças a Deus”. A cura e a terapia da parte irascível da alma se dão pela “simpatia profunda para com o próximo, o amor, a gentileza, a afeição fraterna, a compaixão, da paciência e da ternura”. E a terapia e cura da parte concupiscente consistem “no jejum, no autocontrole, das dificuldades, do total desprendimento das posses e sua distribuição aos pobres, do desejo pelas bênçãos imperecíveis, na nostalgia do Reino de Deus e na aspiração à filiação divina”.

A formulação de São João Clímaco é concisa: “Devemos nos armar com a Santíssima Trindade, contra os três, através dos três”, ou seja, em aliança com a Santa Trindade devemos nos armar contra a autoindulgência, a avareza e o amor à glória, mediante o autocontrole, o amor e a humildade.

Já mencionamos que os Padres chamam os aspectos irascível e concupiscente de “passionais”. Assim é que a alma possui uma parte inteligente e uma parte passional. A parte inteligente é purificada por meio das leituras e da oração, e a parte passional pelo amor e o autocontrole.

São Marcos o Asceta, conforme observamos, considera as paixões do esquecimento, da ignorância e da preguiça como as três gigantes. Ele nos exorta a curarmos o esquecimento pela “lembrança constante de Deus”, a expulsarmos as trevas destruidoras da ignorância “por meio da luz do conhecimento espiritual” e a afastar a preguiça “através do verdadeiro ardor por tudo o que é bom”.

Existe ainda uma distinção entre as paixões da alma e as do corpo. Essas paixões são curadas pelas práticas espirituais correspondentes. Os apetites do corpo e os caprichos da carne são detidos por meio do autocontrole, do jejum e das batalhas espirituais. As inflamações da alma e “o inchaço do coração são esfriados pela leitura da Sagrada Escritura e por uma humilde e constante oração; e todas essas coisas são acalmadas com o azeite da compunção”.

Em seu ascetismo curativo os Padres estabelecem também a ordem segundo a qual deve se dar a guerra contra as paixões. De acordo com Nicetas Stethatos, as paixões básicas são a autoindulgência, a avareza e o amor pela glória, que correspondem aos três aspectos da alma. Como existem três paixões, existem três modos de lutar contra elas: o inicial, o intermediário e o final. “O iniciante que acaba de entrar no caminho da luta pela piedade” deve lutar contra o espírito de autoindulgência. Ele deve dobrar a carne por meio do jejum, dormindo no chão, fazendo vigílias e preces à noite. Ele afogará a alma com a lembrança das punições do inferno e pela lembrança da morte. Aquele que está no estágio intermediário, ou seja, que já foi limpo das paixões da autoindulgência, “pegará em armas contra o espírito da maldita avareza”. E “aquele que passou do estágio intermediário com contemplação e impassibilidade”, que penetrou nas trevas da teologia, lutará contra o espírito de amor pela glória. Portanto, a autoindulgência será atacada em primeiro lugar, depois a avareza e finalmente o amor pela glória. Essa é a ordem da terapia.

Até agora listamos os meios terapêuticos que usamos para curar as três partes da alma, falamos das paixões físicas e psíquicas, das três paixões gigantes, etc. Agora vamos verificar os métodos terapêuticos gerais que podemos aplicar a essas paixões.

Em primeiro lugar, a pessoa não deve ficar agitada nessa batalha espiritual. A agitação é muito prejudicial à alma que luta. Quando a paixão explode dentro de nós, não devemos ficar angustiados: “Permitir-se ficar perturbado por essas experiências é uma completa ignorância e também uma forma de orgulho, porque não estamos reconhecendo nossa própria condição e preferimos fugir ao trabalho”. Devemos ser pacientes, lutar e chamar por Deus.

Em seguida, é essencial não depositar muita confiança em nós mesmos, mas nos voltarmos para Deus. “Por sermos passionais, não devemos em absoluto confiar no nosso coração; porque um dirigente trapaceiro transforma mesmo as coisas mais retas em tortas”.

Outro método consiste em lutar contra as paixões enquanto elas ainda são pequenas. Quando a ofensa é pequena “arranque-a antes que se espalhe e cubra os campos”. Se uma pessoa é negligente quando uma falta parece leve, mais tarde ela lhe parecerá “um senhor desumano”. Um homem que luta contra uma paixão desde o início “logo a dominará”. Porque obviamente “uma coisa é arrancar uma muda, outra arrancar uma árvore”. Cortar as paixões no começo é fácil, e requer apenas um pequeno esforço, enquanto que, depois que elas crescem, passado um bom tempo, “elas exigem mais trabalho”. Quanto mais tenras forem, mais fácil é lutar contra elas.

Devemos cortar as provocações e causas que evocam as paixões. Já descrevemos como um pensamento se transforma numa paixão. Quando vigiamos nossos pensamentos e rejeitamos as propostas do maligno, evitamos gerar paixões e as matamos. Quem repele as provocações “corta pela raiz tudo o que poderia advir daquilo”. Quando nosso nous flerta com um objeto sensual, as paixões nascem e se desenvolvem naturalmente. É preciso se desvencilhar do objeto pelo qual o nous se tornou cativo. A menos que o nous se desvencilhe dessa coisa, “ele não será capaz de se libertar da paixão que virá afetá-lo”. Nessa contenda espiritual devemos nos afastar dos atos e desejos vis “e demonstrar que estamos trocando-os pelo bem”.

É um ensinamento patrístico comum que devemos cortar as causas e impulsos do pecado. Deus, o Médico das almas e corpos, não nos incita a abandonar “o contato com as pessoas”, mas para cortar as causas do mal em nós mesmos. “Aquele que odeia as paixões se afasta de suas causas”. Se nos opusermos ao pensamento, “a paixão crescerá fraca e será incapaz de lutar e de nos atormentar”, e assim, “pouco a pouco, lutando com a ajuda de Deus, seremos capazes de suplantar a própria paixão”. Para sintetizar o tema do corte das causas das paixões e impulsos, podemos lembrar o conselho geral dos Padres: “a qualquer momento em que uma paixão o atacar, corte-a imediatamente”.

De modo a diminuir as paixões precisamos enfrentar uma árdua luta, e para tanto será preciso uma vigilância espiritual “a fim de que ela não cresça mais”. Mais uma vez, é preciso lutar para adquirir as virtudes e então ser vigilante para mantê-las. Portanto, todos os nossos esforços serão no sentido de lutar e vigiar.

A batalha é grande. Não é uma coisa fácil transformar a si mesmo, limpar-se das paixões e se encher de virtudes. Pois a purificação do homem é tanto negativa quanto positiva. De acordo com os Padres, a guerra espiritual é feita guardando-se os mandamentos de Cristo, e sabemos que quando uma pessoa luta para sujeitar sei corpo e sua alma a Deus, nela se produzem as virtudes do corpo e da alma. No homem decaído o corpo é alimentado pela matéria, pelas coisas materiais, e a alma é alimentada pelo corpo. Agora é o contrário que deve acontecer. Devemos nos afastar do estado antinatural. Nossa alma deve aprender a tomar seu alimento da graça de Deus, e o corpo deve se alimentar da alma “cheia de graça”, e então nosso organismo entrará em equilíbrio. Podemos adquirir essa condição nos esforçando para obter virtudes tais como a humildade, o amor, o jejum, o ascetismo, a prece, a obediência, etc. Agora vamos apontar algumas das virtudes que são essenciais para a transformação.

Uma vida levada no amor expulsa as paixões: “Esforce-se por amar a todos os homens por  igual e simultaneamente você expulsará as paixões”.

A prece incessante, “chamando incessantemente pelo Nome de Deus constitui um remédio que destrói não apenas todas as paixões, como ainda seu comportamento”. E, assim como um médico coloca um curativo na ferida do paciente, e este funciona de um modo que o paciente ignora, também chamar pelo Nome de Deus “remove as paixões sem que saibamos como nem porque”.

São João Clímaco diz que o remédio para todas as paixões é a humildade. “Aqueles que possuem essa virtude vencem a batalha inteira”. O profeta e rei Davi, referindo-se aos animais da floresta, diz: “Quando o sol se levanta, eles se recolhem e se deitam em seus covis[24]”. E São João Clímaco interpreta isso dizendo que quando o sol se levanta em nossa alma “atravessando as trevas da humildade”, então “os animais selvagens se recolhem aos seus lugares, no coração sensual e não no nous”. O sol de justiça brilha através da humildade, e todas as bestas selvagens das paixões são postas a correr.

Subjugar as potências da alma com as virtudes nos libertarão da tirania das paixões.

A subordinação ao pai espiritual, unida ao autocontrole, subordina as bestas selvagens das paixões.

O Cristão luta “para reprimir seus sentidos por meio da frugalidade e seu nous por meio da prece monológica de Jesus”, e “assim desligado das paixões ele se verá arrebatado pelo Senhor durante a prece”.

“Se você quer se livrar de todas as paixões, pratique o autocontrole, o amor e a oração”. Existem certas ações que detêm o movimento das paixões e não permitem que elas cresçam, e outras que as submetem e as fazem diminuir. Por exemplo, quando se trata do desejo, o jejum, o trabalho e a vigília não permitem o crescimento da paixão, enquanto que o retiro, a theoria, a prece e uma intensa saudade de Deus a submetem e a fazem desaparecer. Em relação ao ódio, a paciência, a gentileza e a falta de rancor, por exemplo, o detêm e evitam que cresça, enquanto que o amor, os atos de caridade, a ternura e a compaixão fazem com que diminua. Que renunciou genuinamente às coisas mundanas, e serve ao seu próximo amorosa e sinceramente “logo se liberta de todas as paixões e participa do amor e do conhecimento de Deus”.

A vigilância, a refutação e a prece afastam as provocações e tentações, e tudo permanece inativo, ou seja, a provocação não encontra lugar nem paixão que lhe corresponda: “Se o nous está atento e vigilante e repele imediatamente a provocação contra-atacando, refutando e invocando o Senhor Jesus, a provocação ficará inoperante”.

Deus concedeu ao homem dois grandes dons de graça por meio dos quais ele pode se salvar e “se libertar de todas as paixões do homem velho: a humildade e a obediência”.

A palavra de Deus também constitui um meio para nos ajudar na purificação e na libertação das paixões. O Apóstolo Paulo, falando da armadura espiritual que todo Cristão deve ter, refere-se à palavra de Deus: “Tome a espada do Espírito, que é a palavra de Deus[25]”. Precisamos ter a palavra de Deus continuamente diante de nossos olhos. “Dedique-se sem cessar à palavra de Deus: sua aplicação destrói as paixões”. Em outra passagem, São Thalassius nos diz para nos esforçarmos para cumprir integralmente os mandamentos, “para que possamos nos libertar das paixões”. Os mandamentos de Deus se referem à alma tripartite. O mandamento de Cristo “legisla sobre a alma tripartite e parece fortalecê-la por meio daquilo que é ordenado. E não apenas parece fortalecê-la, como de fato provoca este efeito”. São Filoteus menciona muitos exemplos para tornar isso mais claro. Em relação ao aspecto irascível ele se refere ao mandamento “Todo aquele que tiver raiva do seu irmão será levado a julgamento[26]”; em relação ao aspecto concupiscente, ele mostra o mandamento “Aquele que olha para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração[27]”; e quanto ao aspecto inteligente, o mandamento “Quem não renuncia a tudo e me segue não é digno de mim[28]”. De acordo com São Filoteus, Cristo legisla sobre a alma tripartite por meio de seus mandamentos. E o diabo luta contra a alma tripartite, e por isso ele luta também contra os mandamentos de Cristo. Se cumprirmos os mandamentos de Cristo nos lavamos de nossas paixões, que são as más disposições de nosso “homem interior”.

Já enfatizamos anteriormente a tristeza, o arrependimento e a confissão dentre as armas mais eficazes contra as paixões. “Aqueles que estão nublados pelo vinho podem ser lavados com água, e os que estão nublados pelas paixões são lavados pelas lágrimas”.

As várias provas e tentações de nossas vidas, ou seja, as “causas involuntárias” são também um suplemento para o arrependimento. O vírus do mal é grande e requer o fogo purificador do arrependimento través das lágrimas. Pois nós nos lavamos da corrupção do pecado tanto pelos sofrimentos voluntários do ascetismo como por provas involuntárias. Quando os sofrimentos voluntários do arrependimento vêm antes, os involuntários, ou seja, as grandes provações, não chegam a acontecer. Deus fez as coisas de tal maneira que, se o ascetismo voluntário não produzir a purificação, então as causas involuntárias “ativarão de forma mais aguda nossa restauração em direção à beleza original”. Isso significa que muitas das provas que nos acontecem ocorrem porque não nos arrependemos voluntariamente. Tomar a cruz do arrependimento voluntariamente evita que carreguemos a cruz das tentações e provas involuntárias e indesejadas.

Oura arma excelente contra as paixões é a hesíquia, em especial o repouso do nous, sobre o que falaremos em outro capítulo. O Apóstolo Paulo assegura que “Ninguém que esteja mergulhado no esforço de guerra se enredará nos assuntos desta vida”. E São Marcos o Asceta comenta que quem deseja conquistar as paixões ao mesmo tempo em que se envolve nos assuntos mundanos se parece a alguém que tenta apagar o fogo com palha. Certamente o tema da hesíquia e do retiro é extenso e delicado. O retiro não é bom para todos. Pois se alguém tem uma paixão oculta em sua alma, ele não poderá se curar no deserto, porque ali não existem objetos para evocar tal paixão. São João Clímaco diz que quando um homem doente de uma paixão da alma tenta a vida solitária, é como alguém que salta do navio para o mar e tenta chegar à praia agarrado a uma prancha.

O conselho dos Padres sobre a hesíquia não é contraditório. A hesíquia é “habitar em Deus”. É a pureza do nous. Essa é a chamada hesíquia noética. O esforço para minimizar os estímulos dos sentidos e para se dedicar à prece ajuda no sentido de se libertar das paixões. Mas quando uma pessoa, sem nenhum preparo especial, nem as bênçãos de um diretor espiritual experiente, se afasta dos homens e vai para o deserto, ela pode não se curar. Porque o deserto esconde as paixões do homem que para lá se dirige sem a preparação necessária para a cura.

Até agora falamos de diversos meios para curar as paixões em geral. Agora vamos apresentar algumas terapias específicas para curar determinadas paixões.

De acordo com São João Cassiano de Roma, existem oito pensamentos maus: a gula, a luxúria, a avareza, o ódio, a acídia, a apatia, a vanglória e o orgulho. Como poderão ser curados esses oito pensamentos, que correspondem a oito paixões?

A gula é curada pelo controle do estômago, “evitando comer além da conta e encher o ventre”, por meio de um “dia de jejum” e para “não se perder pelos prazeres do palato”.

A luxúria é curada pela guarda do coração “contra pensamentos baixos”. Ela é curada pela contrição do coração e “uma intensa prece a Deus, uma frequente meditação das Escrituras, esforço e trabalho manual”. “A humildade da alma ajuda mais do que tudo”.

A avareza se cura com a renúncia e a pobreza, como ensinam os Padres e as Escrituras.

O ódio, que cega os olhos do coração, é curado com a paciência para com o próximo. A paz interior, que é o oposto do ódio, “não se adquire com a paciência que os demais mostram para conosco, mas através de nosso próprio padecimento em relação ao nosso próximo”. Não é suficiente evitar o ódio em relação aos homens, mas também “em relação aos animais e aos objetos inanimados”. O ódio também se cura reprimindo “não apenas a expressão exterior da raiva, mas também os pensamentos raivosos”. Não devemos apenas refrear nossa língua no momento da tentação, mas “purificar nosso coração do rancor e não abrigar pensamentos maliciosos contra nossos irmãos”. A cura final consiste em “realizar que não devemos sentir aversão por nada por nenhuma razão, quer nos pareça justa ou injusta”.

A acídia é curada fazendo uma guerra dirigida “contra as paixões interiores”. Devemos lutar “contra o demônio da acídia que atira nossa alma no desespero. Ele deve ser expulso de nosso coração”. Devemos cultivar apenas a tristeza “que provém do arrependimento do pecado e que é acompanhada da esperança em Deus”. Vale dizer, a acídia é expulsa e curada quando, pela graça de Deus e com nossa própria coragem, a transformamos na tristeza espiritual, na tristeza do arrependimento. Essa tristeza divina nos prepara e nos torna obedientes e ávidos por toda boa obra, “acessíveis, humildes, gentis, tolerantes e pacientes em suportar todo sofrimento ou tribulação que Deus nos enviar”.

A apatia não pode ser curada “senão através da prece, evitando as conversas vãs, através do estudo das Santas Escrituras, e com paciência diante das tentações”. Também se requer o trabalho físico. Os santos Padres do Egito “não permitiam que os monges ficassem sem trabalhar em momento algum”. Eles não apenas trabalhavam por suas necessidades, “mas com seu trabalho atendiam os hóspedes, os pobres e os prisioneiros, considerando que essa caridade constituía um santo sacrifício agradável a Deus”.

A vanglória é multiforme e sutil, e requer muita atenção. Todos os métodos devem ser empregados para suplantar essa “besta multiforme”. A pessoa não deve fazer nada com vistas a ser louvada pelas outras pessoas e “sempre rejeitando os pensamentos de autoestima que penetram no coração, considerar a si mesma como nada diante de Deus”.

Finalmente, o orgulho implica uma luta “mais sinistra e feroz do que tudo o que vimos até aqui”. Ele só pode ser curado mediante a humildade, que se adquire pela fé e o temor a Deus, a gentileza e o desprendimento de todas as posses. É por meio dessas coisas que se atinge o amor perfeito.

Mas o inimigo de nossa salvação, o diabo, é engenhoso. Por isso, o Cristão que luta nessa batalha deve ser também engenhoso. A astúcia de um homem é demonstrada pelo modo como ele ilude o demônio. Nos escritos patrísticos encontramos muitos relatos de habilidades por meio das quais o diabo foi enganado e a alma foi curada.

Usualmente, as paixões tendem a retornar. Quando parece que elas foram curadas e nos abandonaram, elas voltam mais fortes do que antes. As palavras de Cristo sobre o espírito impuro são bem conhecidas: “Quando um espírito impuro sai de um homem, ele vaga por espaços desertos, buscando descanso, e não encontra. Então ele diz, ‘vou voltar para a casa de onde vim’. E quando ele retorna, ele a encontra vazia, varrida e em ordem. Então ele vai e volta com outros sete espíritos ainda piores do que ele, e eles todos passam a habitar nela; e o último estado do homem se torna pior do que o primeiro[29]”. Os santos têm consciência disso e tomam todas as precauções necessárias.

A seguir, vamos apresentar alguns métodos e sugestões dos Padres.

Devemos lutar principalmente contra a paixão dominante, pois, “enquanto esse vício em especial não for varrido, será inútil para nós dominarmos as demais paixões”.

Quando estamos lutando com duas paixões ao mesmo tempo, devemos preferir nos deixar subjugar pela mais branda, para não sermos conquistados pela segunda. São João Clímaco nos oferece dois exemplos. Às vezes, quando estamos rezando, podem chegar alguns irmãos. Então devemos escolher entre duas coisas: ou não receber os irmãos, pois estamos rezando, ou paramos de rezar, para receber os irmãos. Devemos preferir parar de rezar, porque “o amor é maior do que a prece”. Um dia, conta o santo, ele estava na cidade e, ao sentar-se à mesa para comer ele foi afligido por pensamentos de gula e de vanglória; ele preferiu ceder à vanglória (ou seja, ser temperante e sentir-se satisfeito como quem jejua), porque ele tinha mais receio da gulodice: “Conhecendo e temendo o desfecho da gulodice (a luxúria), ele preferiu ceder à vanglória”.

O Abade José ensina que às vezes é preferível deixar que as paixões penetrem em nós e então lutar contra elas, e outras vezes é melhor cortá-las desde o início. Por isso ele respondeu a um irmão que lhe pergunto a esse respeito: “Deixe que venham, e então combata”, dizendo que isso era preferível. Mas a outro irmão ele respondeu a mesma questão – se deveria permitir que a paixão se aproximasse, ou se deveria cortá-la de longe – dizendo: “Não deixe que a paixão se aproxime, mas corte-a imediatamente”. Isso mostra que o terapeuta espiritual é aquele que é capaz de assinalar a cada um o modo apropriado de lutar e se bater, e a cada um seu método, porque cada pessoa é diferente e cada caso é único.

São João Clímaco menciona alguns meio para derrotar os demônios; mas esses meios são extremos, e é preciso notar que nem todos podem aplicá-los, mas apenas aqueles “que derrotaram as paixões”. Em outras palavras, quem é puro de coração tem meios para ferir os demônios.

Um irmão que sofrera uma desgraça não se sentia perturbado com isso, mas orava sem cessar em seu coração. Mas ele começou a protestar e se lamentar a respeito da desonra que sofrera, de modo que simulando uma paixão ele se manteve impassível.

Outro irmão fingia inveja da posição do padre superior, quando na verdade ele não queria essa posição para si.

Outro irmão ganhou um pacote de uvas. E depois que o irmão que lhe dera o presente se foi, o eremita as comeu, parecendo se empanturrar, quando na verdade não sentia nenhum prazer com aquilo, e dessa maneira ele enganou os demônios “que imaginaram que ele era um glutão”.

Essas coisas foram feitas pelos chamados Loucos em Cristo, de modo a iludir o demônio e beneficiar os irmãos de várias maneiras. Mas isso requer uma pureza particular, uma bênção especial e a graça de Deus. Por isso São João Clímaco, em vista dessas circunstâncias, escreve que as pessoas que utilizam esse método devem estar muito atentas “pois em seu esforço para enganar o demônio elas podem estar enganando a si próprias”.

Depois de uma dura luta, pela graça de Deus, um homem pode curar suas paixões, as dores de sua alma, e se tornar um rei. O atleta da batalha espiritual experimenta esses dons, de maneira que ele pode repetir com o Abade José: “Hoje eu sou um rei, porque eu reino sobre as paixões”. Ele assim desfruta da vida em Cristo, pois “aquele que deu morte às paixões e suplantou a ignorância caminha da vida para a vida”.

Mas enquanto vivemos essa vida e trazemos em nós a corruptibilidade e a mortalidade, temos que lutar continuamente. Por isso, mesmo quando uma homem superou “praticamente todas as paixões”, permanecem ainda dois demônios que lutarão contra ele, homem de Deus. Um deles perturba a alma “distraindo-a de seu grande amor por Deus através de um zelo descabido, de modo que a pessoa não quer que nenhuma outra alma agrade tanto a Deus quanto ela própria”. O outro demônio, com a permissão de Deus, “inflama o corpo com o desejo sexual”. O Senhor permite essa tentação a alguém que é cheio de virtudes, “para que o asceta veja a si próprio como mais baixo do que os que vivem no mundo” e, por meio da humildade e da compunção, ele alcance sua salvação. Devemos lutar contra a primeira dessas tentações com muita humildade e amor, e contra a segunda por meio do autocontrole, da ausência de raiva, e de uma intensa meditação da morte. Deus permite que sejamos combatidos pelo demônio ao longo de nossas vidas, para que nos mantenhamos humildes.

Um irmão disse ao Abade Poêmio: “Meu corpo está ficando doente, mas minhas paixões não se enfraquecem”. A despeito dessas coisas, em seu esforço para se purificar, o homem experimenta o abençoado estado da impassibilidade. Vamos então estudar agora a bendita vida de impassibilidade.

1.4. Impassibilidade

Vamos nos esforçar para fazer um estudo breve sobre a impassibilidade, porque o que já foi dito nos mostra o suficiente sobre como atingir esse estado abençoado.

O valor da impassibilidade para a vida espiritual é muito grande. O homem que a obtém está muito próximo de Deus e unido a ele. A comunhão com Deus mostra que existe impassibilidade, que, de acordo com o ensinamento dos Padres, é a própria “saúde da alma”. Se as paixões constituem a doença da alma, a impassibilidade é seu estado saudável. A impassibilidade é “a ressurreição da alma anterior à do corpo”. Um homem é impassível quando purificou sua carne de toda corrupção, elevou seu nous acima de todo o criado, tornando-o mestre de todos os sentidos; quando ele mantém sua alma na presença do Senhor. Portanto, a impassibilidade é a entrada para a terra prometida. O Espírito derrama sua luz sobre quem se aproxima das fronteiras da impassibilidade e ascende, na medida de sua pureza, da beleza das coisas criadas para o Criador. Em outras palavras, a impassibilidade tem um grande valor e é exaltada pelos Padres, pois ela consiste na liberação do nous. Se as paixões capturam e escravizam o nous, a impassibilidade o liberta e o conduz ao conhecimento espiritual dos seres e de Deus. “A impassibilidade estimula o nous a alcançar o conhecimento espiritual dos seres criados”. Por isso ela conduz ao conhecimento espiritual. O resultado do conhecimento espiritual é que a pessoa adquire o grande dom da discriminação. Um homem em estado de graça pode distinguir o mal do bem, as energias criadas das incriadas, as energias satânicas daquelas de Deus. “A impassibilidade gera a discriminação”.

Nossos contemporâneos atribuem uma grande importância à questão da riqueza e da pobreza. Mas o erro de muitos consiste em limitar a pobreza aos bens materiais e esquecer que existe algo mais além dessas coisas. Quando o nous do homem se liberta de todas as coisas criadas e cessa de ser escravo delas, ele se ergue em direção a Deus e então ele experimenta a pobreza verdadeira. Essa pobreza verdadeira do espírito é a que o homem impassível obtém: “A pobreza espiritual é a completa impassibilidade; quando o nous alcança esse estado ele abandona todas as coisas mundanas”.

Mas devemos definir o que é a impassibilidade. Nos tempos antigos os filósofos Estóicos falavam da impassibilidade como a mortificação da alma passional. Nós sublinhamos que a parte passional da alma consiste nos aspectos irascível e concupiscente. Quando esses são mortificados, de acordo com a interpretação antiga, acontece a impassibilidade. Porém, quando os Padres falam em impassibilidade, eles não querem dizer a mortificação da parte passional da alma, mas sua transformação. Uma vez que é por causa da queda do homem que as potências de nossa alma se encontram num estado antinatural, será por meio da impassibilidade, ou seja, por meio da libertação das paixões, que nossa alma se encontrará em seu estado natural.

De acordo com os ensinamentos dos Padres, a impassibilidade é um estado no qual a alma não cede a nenhum impulso maligno; e isso é impossível sem a misericórdia divina. De acordo com São Máximo, “a impassibilidade é uma condição de paz da alma na qual esta não é facilmente movida pelo mal”. Isso implica que a impassibilidade significa que a pessoa já não é afetada pelas imagens conceituais das coisas. Vale dizer, a alma está livre de pensamentos movidos pelos sentidos e pelas coisas em si. Assim como nos tempos longínquos a sarça ardeu sem se consumir, também o homem impassível, “por pesado e febril que seja seu corpo”, esse calor do corpo “não o perturba nem prejudica, nem fisicamente nem em seu nous”. Porque nesse caso “a voz do Senhor afasta as chamas da natureza”. Assim é que a pessoa impassível possui um nous livre e não é perturbada por nada que seja terrestre, nem pelo calor de seu corpo. Certamente essa liberdade do nous em relação a todos os impulsos da carne e imagens conceituais das coisas é inconcebível para aqueles que não vivem num estado de impassibilidade, mas pelas energias das paixões. Para o homem de Deus, porém, aquilo que o mundo chama de natural é antinatural, e ele experimenta como natural o que é considerado antinatural pelo mundo. São Simeão o Novo Teólogo, confrontado por acusações de que é impossível aos homens viverem nesses estados supranaturais, viverem livres da carne, escreveu que quem não é impassível desconhece o que seja a impassibilidade, “e não pode crer que alguém na terra possa possuí-la”. E isso, de certa forma, é natural “pois um homem só pode julgar os assuntos de seu próximo, se bons ou maus, com base em sua própria condição”. Cada qual julga de acordo com o conteúdo de sua vida e o modo como vive. De qualquer modo é certo,  para os que têm experiência, que o sinal característico da pessoa impassível é “permanecer calma e destemida diante de todas as coisas”, porque ela recebeu de Deus “a força para realizar qualquer coisa”.

Tudo isso para sublinhar a verdade de que a impassibilidade é um estado inteiramente natural; ele consiste na transformação da parte passional da alma e seu retorno à vida natural. Esse foi o tema de uma grande discussão no século XIV entre São Gregório Palamas e o filósofo Barlaam. Este último, condenado o tipo de prece praticado pelos hesiquiastas de então e de hoje, insistia que a impassibilidade consistia na mortificação da parte passional. Mas São Gregório, por ter uma experiência pessoal na matéria e expressando a experiência integral da Igreja, refutou esse ponto de vista. “Nós, filósofo, dizemos que a impassibilidade não consiste em mortificar a parte passional da alma, mas em retirá-la do mal e colocá-la no bem, e em dirigir suas energias para as coisas divinas, desviando-a das coisas ruins para as coisas boas. Um homem impassível é aquele que é marcado pelas virtudes, assim como o homem passional é marcado pelos prazeres malignos”. O homem passional sujeita sua razão às paixões, enquanto que o home impassível sujeita a parte passional da alma, ou seja, seus aspectos irascível e concupiscente, “às faculdades do conhecimento, do julgamento e da razão na alma”. Com a parte inteligente da alma, por meio do conhecimento das coisas criadas, do entendimento espiritual, ele adquirirá o conhecimento de Deus, e com a parte passional ele praticará “as virtudes correspondentes: com a potência concupiscente ele abraçará o amor, e com a irascível praticará a paciência”. Portanto, a impassibilidade é a transformação da parte passional, sua sujeição ao nous, que deve governar por sua própria natureza, para que a pessoa se volte sempre para Deus, como é o correto, “por uma ininterrupta lembrança Dele”. Então a pessoa “chegará a possuir a disposição divina e sua alma progredirá em direção ao mais elevado de todos os estados, o amor a Deus”. Assim entendemos que a parte passional não foi mortificada, mas passa a possuir vida e um grande poder. Em outra passagem, São Gregório ensina que crucificar a carne “junto com as paixões e desejos” não implica mortificar cada energia do corpo e cada potência da alma, ou seja, cometer suicídio, mas se retirar dos apetites e práticas vis “e demonstrar inequivocamente que se retirou delas”, ou seja, jamais retornar a tais práticas e apetites, tornando-se assim um homem com desejos espirituais, seguindo em frente corajosamente, a exemplo de Lot, que partiu de Sodoma. Em resumo, podemos dizer que, de acordo com São Gregório Palamas, aqueles que são impassíveis não mortificaram a parte passional de sua alma, mas “a mantiveram viva e trabalhando pelo melhor”.

Portanto, a impassibilidade está ligada ao amor e é vida e movimento. De acordo com São João Clímaco, assim como a luz, o fogo e a chama “se unem para produzir uma atividade”, o mesmo acontece com o amor, a impassibilidade e a adoção. “O amor, a impassibilidade e a adoção se distinguem pelo nome, e apenas pelo nome”. A impassibilidade está intimamente ligada ao amor e à adoção: ela é vida e comunhão com Deus.

Certamente, quando dizemos “impassibilidade” isso não significa que a pessoa não esteja sob o ataque dos demônios. O inimigo de nossa vida continua a empestear mesmo o homem mais impassível; pois ele chegou até a tentar o Senhor no deserto com as conhecidas três tentações. Mas a impassibilidade consiste em “permanecer invencível quando o demônio ataca”.

Existem muitos estágios e graus de impassibilidade no ensinamento dos Padres, que devemos mencionar.

São Máximo estabelece quatro graus de impassibilidade. O primeiro tipo de impassibilidade pode ser observado nos iniciantes e consiste na “completa abstenção de cometer pecado em ato”. Nesse estágio o homem não comete atos exteriores. A segunda impassibilidade, que acontece nos virtuosos, inclui a completa rejeição da mente em concordar com pensamentos malignos. A terceira impassibilidade, que é a completa tranquilidade do desejo passional, é encontrada nos deificados, e a quarta é a total ausência até das imagens isentas de paixão, naqueles que são perfeitos. Nessa passagem transparece que a impassibilidade se manifesta correspondentemente ao estado de purificação do homem.

São Simeão o Novo Teólogo divide a impassibilidade em duas categorias. Uma é a da alma e a outra, a do corpo. “A primeira pode até santificar o corpo com seu próprio brilho e a irradiação do Espírito, mas a do corpo, sem a da alma, não beneficia em nada o homem que a possui”. Assim, mesmo que a pessoa pratique todas as virtudes possíveis, ela não deve assumir que atingiu a impassibilidade.

São João Clímaco, dentro da tradição da Igreja, escreve que um homem é impassível, mas que outro pode se mais impassível ainda. O primeiro detesta o mal, enquanto que o outro possui “a bênção de um estoque inesgotável de virtudes”. Aqui se demonstra que a impassibilidade não consiste apenas num trabalho negativo, mas também positivo. Ela é a aquisição das virtudes, que é um fruto do Espírito Santo.

Nicetas Stethatos divide a impassibilidade em duas partes. A primeira chega aos candidatos depois de terem completado a filosofia pratica, ou seja, depois da própria disputa, quando as paixões foram mortas e os impulsos da carne estão inativos e as forças da alma se movem para seu estado natural. A segunda e mais perfeita impassibilidade chega com a inspiração depois do começo da theoria natural.

A impassibilidade perfeita, que “se ergue do repouso espiritual dos pensamentos para um estado de paz do nous, nos torna clarividentes e previdentes”. O nous da pessoa impassível se torna perceptivo das coisas divinas, das visões e revelações dos mistérios de Deus, e pode prever os assuntos humanos, quando vê as pessoas que chegam até ele.

Os Padres geralmente aconselham a que se tome muito cuidado com a impassibilidade, porque é possível que a pessoa não esteja sendo perturbada pelas paixões, apenas porque os objetos que as estimulam estão ausentes, mas quando estes estão presentes, as paixões voltem a distrair o nous. Isso é uma impassibilidade parcial. A impassibilidade tem graus, e uma pessoa que luta por adquiri-la não deve parar nunca, mas lutar continuamente, porque a perfeição não tem fim. Devemos enfatizar em geral que a remissão dos pecados é uma coisa, e a impassibilidade, outra. São João Clímaco escreve: “Muitos foram rapidamente perdoados em seus pecados. Mas ninguém adquiriu a impassibilidade rapidamente, porque ela requer muito tempo e muita perseverança, e Deus”. Por isso sublinhamos em outra parte o fato de que a confissão sozinha não é suficiente, mas que a alma precisa ser curada, ou seja, que é preciso adquirir uma impassibilidade parcial e até completa.

Por essas coisas fica claro que existem muitos elementos que permitem distinguir a falsa da verdadeira impassibilidade. São João Clímaco, um entendido na vida interior da alma e a quem foi dado o dom do discernimento, escreve que as paixões e os demônios fogem da alma, por algum tempo, ou permanentemente. Mas poucas pessoas conhecem os meios e as causas dessa retirada. A primeira causa consiste em fazer desaparecerem as paixões pelo fogo divino. A graça divina, como o fogo, queima as paixões e purifica a alma. Outra circunstância é quando os demônios se afastam para que fiquemos descuidados, e então subitamente eles atacam e se apoderam da alma. Uma terceira é quando os demônios se afastam quando a alma se habituou às paixões, “quando ela se torna sua própria traidora e inimiga”. É como quando a criança é “retirada do seio da mãe e começa a chupar o dedo porque o hábito de sugar tomou conta dela”. Finalmente, a impassibilidade surge “de uma grande simplicidade e inocência”.

Ademais, a diferença entre a verdadeira e a falsa impassibilidade aparece na atitude que temos em relação às pessoas. A impassibilidade está conectada ao amor, e por isso nossa atitude para com nossos irmãos manifesta a verdadeira ou a falsa impassibilidade. Aquele que “não consegue ignorar a falta do companheiro quando algum julgamento acontece”, não possui a impassibilidade. Porque quando as paixões da alma são perturbadas, elas cegam a mente, “evitando com que ela veja a luz da verdade”. A pessoa também não consegue distinguir o melhor do pior. A impassibilidade imutável em sua forma mais elevada só pode ser encontrada naqueles que alcançaram o amor perfeito e que “se ergueram acima das coisas sensoriais por meio de uma contemplação incessante, e que transcenderam o corpo através da humildade”. A pessoa que chegou aos umbrais da impassibilidade possui uma estima simples por todos os homens, “sempre pensando o melhor de todo mundo, vendo a todos como santos e puros, e possuindo um juízo correto sobre as coisas divinas e humanas”. O nous da pessoa impassível está livre das coisas materiais do mundo, e “inteiramente absorvido nas coisas espirituais de Deus. Ele enxerga a beleza divina e de um modo digno de Deus prefere frequentar os lugares divinos da bendita glória de Deus, num indizível silêncio e alegria. Com todos os seus sentidos transformados, ele se associa aos homens imaterialmente, como um anjo num corpo material”. E quando uma pessoa impassível fala dos pecados de um irmão ela o faz por uma de duas razões: ou para corrigi-lo ou para o benefício de outro. Mas se alguém reporta os pecados de outrem “para abusar dele ou ridicularizá-lo”, Deus abandonará essa pessoa e ela cairá no mesmo pecado ou em outro e, “censurada e reprovada por outro homem, ela será desonrada”.

A perfeita impassibilidade existe quando a pessoa permanece inamovível, tanto pelo objeto quanto pela lembrança deste. “Quando a virtude é habitual ela mata as paixões, mas quando ela é negligenciada elas retornam à vida”. Por isso a pessoa que às vezes está perturbada pelas paixões e às vezes está calma e tranquila, não é impassível; o impassível “desfruta todo o tempo da impassibilidade e, mesmo quando as paixões se apresentam no seu interior, ele permanece inalterado diante das coisas que as provocam”.

Outro sinal da existência de uma perfeita impassibilidade num homem é que durante a prece nenhuma imagem conceitual, nada mundano, perturba seu nous.

São João Clímaco diz que muitos orgulhosos que pensam ser impassíveis “só se dão conta do quão fracos são realmente apenas depois da morte”.

A distinção entre a verdadeira e a falsa impassibilidade nos leva agora a examinar quais são as características reais de uma verdadeira impassibilidade.

O verdadeiro discernimento é uma marca da impassibilidade.

Já dissemos anteriormente que um sinal distintivo entre a verdadeira e a falsa impassibilidade é o amor. Agora vamos ampliar essa distinção. De acordo com São Máximo, “para quem é perfeito no amor e que alcançou o cume da impassibilidade não existe diferença entre suas coisas e as coisas dos outros, ou entre Cristãos e pagãos, ou entre escravos e homens livres, ou entre homem e mulher”. Tendo em vista apenas a natureza humana, “ele enxerga todos da mesma maneira e mostra a mesma disposição para como todos”. São Máximo também diz que uma vez que Deus é bom por natureza e impassível, amando a todos os homens por igual, “Ele glorifica o homem virtuoso porque em seu desejo este está unido a Deus, e em Sua bondade Ele é misericordioso com o pecador; ao castigá-lo em vida Ele o traz de volta ao caminho da virtude”. Quem ama faz o mesmo. Ele ama o homem virtuoso por causa de sua natureza e de suas boas intenções; ele ama também o pecador por causa de sua natureza e por meio da compaixão. Do mesmo modo, o homem impassível é aquele que não guarda rancor contra alguém que o injuriou ou feriu. O homem impassível ama todas as pessoas, “e não distingue o que é divino do que não é”. Mais do que isso, o homem impassível sofre e ora por seu próximo. “Não diga que um homem impassível não pode sofrer de aflição; pois, mesmo que ele não sofra por si próprio, ele tem a obrigação de fazê-lo por seu próximo”.

Da mesma forma, uma pessoa que se encaminha para a impassibilidade e para Deus “considera como perdido um dia em que não tenha sido injuriado”. Vale dizer que ele não apenas não se sente molestado pelas ofensas e insultos dos homens, mas que se sente vexado quando não é criticado. Isso mostra a pureza de seu coração em relação às paixões, mesmo aquelas mais ocultas.

Em geral o homem impassível está cheio dos dons do Espírito Santo: ele é uma árvore cheia de frutos esplêndidos, os frutos do Espírito Santo, as virtudes. Quando os Padres se referem às virtudes, eles não as consideram como atos éticos autônomos, mas do ponto de vista ontológico. Ou seja, as virtudes não consistem em ações ou valores abstratos, mas na pessoa, embora não personalizadas no sentido de serem autoexistentes. O amor é a comunhão com o verdadeiro amor, que é Cristo. A paz não é um valor abstrato, mas o próprio Cristo. O mesmo se aplica à justiça, e assim por diante. Na medida em que a pessoa impassível está em comunhão com Cristo, é natural que as virtudes de Cristo se tornem também suas. Não queremos aqui nos demorar no tema das virtudes. Diremos apenas que, do mesmo modo como existes as paixões do corpo e as da alma, também existem virtudes da alma e do corpo. E assim como existem estágios e graus das paixões, também os há para as virtudes. E assim como existem mães e filhas das paixões, existem mães e filhas das virtudes. Mas não cremos necessário listá-las aqui. Encaminhamos o leitor para a leitura dos seguintes Padres: para as virtudes do corpo e da alma, São João Damasceno; para as virtudes que correspondem aos três estágios espirituais – iniciantes, intermediários e avançados –, São João Clímaco.

Quando uma pessoa não se encontra perturbada por nenhuma paixão, se seu coração aspira mais e mais por Deus, se ela não teme a morte mas a encara como um sono, então ela atingiu o penhor de sua salvação e “alegrando-se com indizível felicidade, ela traz o Reino dos Céus dentro de si”.

Uma pessoa não recebe a graça da impassibilidade de modo causal. Isso requer uma intenso esforço e uma grande luta. Por isso vamos ver agora como a impassibilidade acontece. Claro que o que dissemos na seção precedente sobre a luta para curar as paixões nos mostra a maneira de adquirir a impassibilidade. Agora vamos trilhar alguns breves caminhos que nos poderão conduzir à terra da promessa, ou seja, à terra da impassibilidade. Seremos concisos, sempre citando as passagens patrísticas.

“A humildade provém da obediência, e da própria humildade vem a impassibilidade”. A humildade que provém da obediência traz a impassibilidade. Se um homem escolher outro caminho que não este, ele não encontrará o que deseja. A impassibilidade não pode ser obtida sem amor. Como existem graus de amor, e como as virtudes se interpenetram – porque a vida espiritual é unificada e organicamente interligada – a vida de amor traz a impassibilidade, e esta é estreitamente conectada ao amor. o amor e o autocontrole “mantêm o nous impassível diante das coisas e das imagens conceituais derivadas delas”. A impassibilidade é “o prêmio do autocontrole”. Jejuns, vigílias e orações ajudam enormemente no desenvolvimento da impassibilidade: “Jejuns criteriosos e vigílias, unidos à meditação e à prece, rapidamente conduzem aos umbrais da impassibilidade”, desde que a alma esteja também de posse da humildade, cheia de lágrimas e queimando de amor por Deus. Uma dieta seca e regular, junto com a caridade, “leva o monge rapidamente à porta da impassibilidade”. Quando a pessoa trabalha com paciência, autocontrole em todas as coisas e em constante súplica, ao mesmo tempo conservando o terreno conquistado, com autorreprovação e o máximo de humildade, “no momento oportuno ela receberá a graça da impassibilidade”. São João Clímaco diz que a impassibilidade alcançada por meio do repouso do corpo não permanece inamovível “quando o mundo a afeta”, enquanto que “a impassibilidade obtida pela obediência é genuína e sempre inamovível”. O estado de pureza que provém da guarda dos mandamentos de Deus engendra a impassibilidade. “A guarda dos mandamentos de Deus gera a impassibilidade”.

Mas apenas mediante exercícios corporais, sem a fé, nenhum homem pode entrar “no lugar de repouso da impassibilidade e da perfeição do conhecimento espiritual”. São Teognosto diz também claramente que quando uma pessoa atinge a virtude prática, ela não consegue alcançar a impassibilidade “a menos que a contemplação espiritual confira ao seu nous o conhecimento luminoso e o entendimento das coisas criadas”. Essa passagem é muito importante. Pois hoje em dia existem muitos homens que dizem ser possível alcançar a impassibilidade através da virtude prática. São Teognosto não aceita isso. Ela deve ser necessariamente acompanhada pela contemplação espiritual, pelo arrependimento e a prece, e, em especial, a prece noética.

A tristeza divina dá uma importante ajuda em adquirir a impassibilidade. De acordo com São João Clímaco, “para muitas pessoas, a tristeza preparou o caminho para a abençoada impassibilidade. Ela trabalhou junto, lavrando o campo, e afastando a pessoa do pecado”. A tristeza é, assim, um modo de vida. Ela lava a alma, purifica o nous e o torna capaz de receber as consolações divinas. Essa tristeza se liga ao arrependimento, ao verdadeiro arrependimento que é a aversão ao si. O Senhor falou de detestar nossa vida e ao mesmo tempo seguir a Cristo para ganhar o Reino dos Céus. “Aquele que ama sua vida a perderá, e aquele que detesta sua vida neste mundo receberá a vida eterna[30]”, e “se alguém não detesta seu pai e sua mãe (...) e toda a sua vida, ele não pode ser meu discípulo[31]”. São Gregório Palamas escreve que aqueles que vivem no mundo devem se forçar a usar as coisas deste mundo em conformidade com os mandamentos de Cristo. Esse esforço, prolongado num hábito, torna fácil para nós aceitarmos os mandamentos de Deus e transformar nossa disposição mutável num estado fixo. Essa condição traz uma sólida aversão “contra os estados malignos e as disposições ruins da alma”, e a aversão produz a impassibilidade. Portanto, a aversão ao nosso “eu” mau e confuso se torna uma fonte de impassibilidade. E, quando um homem possui a impassibilidade, o pecado já não consegue dominá-lo e ele descansa na liberdade e na lei do Espírito.

Quando vemos que algumas pessoas proeminentes na vida espiritual apresentam certas faltas e pequenas paixões, não devemos ficar escandalizados, porque Deus, em Sua providência, muitas vezes deixa vestígios das paixões para que elas se envergonhem de si mesmas e obtenham a riqueza da humildade que ninguém poderá roubar.

Esse é o grande tesouro da impassibilidade. Ele está conectado com todas as virtudes e com a vida espiritual. Por isso devemos orar para adquirir a abençoada impassibilidade. São João Clímaco nos exorta a todos os que somos devastados pela paixão a orar “incessantemente ao Senhor, pois todos os impassíveis avançaram assim da paixão à impassibilidade”. E não devemos buscar a impassibilidade com orgulho e egoísmo, a fim de recebermos grandes e sobrenaturais dons. Pois é possível que um homem procure esse dom e o receba do demônio, que age assim para enganá-lo em sua vaidade. Por isso São Teognosto adverte: “Não peça a impassibilidade, porque você não é digno desse dom; peça persistentemente pela salvação, e você receberá a impassibilidade em acréscimo”.

Apesar de nossas orações e de uma intensa luta, é possível que Deus não permita que nos afastemos de uma paixão, para que possamos desfrutar da impassibilidade parcialmente. Isso pode acontecer, seja porque pedimos a Deus prematuramente, indigna ou orgulhosamente, ou porque, caso Ele nos concedesse a impassibilidade total, isso poderia nos encher de vanglória ou nos tornaríamos negligentes e descuidados. Portanto, não devemos nos afligir, “se no momento o Senhor não dá ouvidos às nossas súplicas”. Deus gostaria de nos tornar impassíveis “num instante”, mas Sua providência visa nossa salvação, como já dissemos. Ademais, na história da Igreja tivemos casos em que homens que obtiveram a impassibilidade pediram a Deus que lhes retirasse essa bênção, para que eles voltassem a lutar contra o inimigo. Depois que são Efrém conquistara todas as paixões da alma e do corpo pela graça de Cristo, “ele pediu que essa graça lhe fosse retirada”, para que ele não caísse no ócio e não fosse condenado por deixar de lutar contra o inimigo.

A impassibilidade total ou parcial demonstra a cura da alma. A alma alcança a saúde. O nous, que havia sido mortificado pelas paixões, revive e se levanta novamente. “A bendita impassibilidade levanta o pobre nous da terra aos céus, ergue o ladrão dos calabouços da paixão. E o amor, feliz com isso, o faz sentar-se entre os príncipes, ou seja, entre os santos anjos, os príncipes do povo do Senhor”.



[1] João 5: 3.
[2] Gálatas 2: 20.
[3] Romanos 7: 23-24.
[4] Marcos 7: 21-23.
[5] Lucas 8: 14.
[6] Romanos 7: 5.
[7] Romanos 1: 26.
[8] Marcos 12: 30.
[9] Gálatas 5: 17.
[10] Gálatas 5: 19-21.
[11] Romanos 1: 28-31.
[12] II Timóteo 3: 1-5.
[13] Efésios 5: 5.
[14] Tiago 1: 14 ss.
[15] Colossenses 3: 5-10.
[16] Efésios 5: 3ss.
[17] Gálatas 5: 26.
[18] Romanos 5: 7ss.
[19] Gálatas 5: 25ss.
[20] Gálatas 5: 16-18.
[21] Cf. Gálatas 5: 19-21.
[22] I João 1: 8.
[23] João 20: 22ss.
[24] Salmo 104.
[25] Efésios 6: 17.
[26] Mateus 5: 22.
[27] Mateus 5: 28.
[28] Cf. Mateus 10: 37ss.
[29] Mateus 12: 43-45.
[30] João 12: 25.
[31] Lucas 14: 26.

Nenhum comentário:

Postar um comentário