I
Tanto na filosofia como na teologia, seria preciso começar, nem por
Deus, nem pelo homem, pois nesses dois princípios a divisibilidade permanece
insuperável, mas antes pelo Deus-homem. o fenômeno original da vida religiosa é
o encontra e a ação recíproca entre Deus e o homem, o movimento que vai de Deus
ao homem e do homem para Deus. É no Cristianismo que esse fato encontra sua
expressão mais intensa, a mais concreta, sua expressão integral. O Cristianismo
revela a humanidade de Deus. A humanização de Deus constitui o processo
fundamental da consciência íntima da humanidade. Nos primeiros estágios dessa
evolução, Deus pôde ser confundido com as forças da natureza, com os animais,
as plantas. O totemismo foi a revelação do deus-animal. A consciência que
representa a Deus como imagem do homem foi a contrapartida daquela que
representa o homem como a imagem de Deus. Deus, sem o homem, o Deus “inumano”,
seria Satanás, mas não seria o Deus Trindade.
O mito fundamental do Cristianismo é o drama do amor e da liberdade
que se desenrola entre Deus e o homem, o nascimento de Deus no homem e o
nascimento do homem em Deus. O advento de Cristo, Deus-homem, constitui a união
perfeita dos dois movimentos, a realização da unidade na dualidade, o mistério
teândrico. O mistério da vida religiosa permanece inacessível sem a coexistência
da unidade na dualidade, sem o encontro das duas naturezas e sua fusão, que não
exclui sua distinção.
O fenômeno religioso inicial, a saber, esse drama religioso, essa
nostalgia e esse encontro religioso, esse mistério da transfiguração e da
união, é ininteligível para a consciência monista ou monofisita. Ele também o é
para a consciência dualista. Para a primeira, tudo reside na unidade abstrata
inicial; para a segunda, tudo está desesperadamente dividido, incapaz de se
unir, tudo está “extraposto”. A impotência do monismo e do dualismo em conceber
o mistério teândrico é precisamente a mesma impotência da consciência e do
pensamento racionais. Segundo a concepção racional da divindade, não existe
senão o Absoluto abstrato, privado de vida interior concreta, provado da
tragédia das relações entre Deus e Seu Outro Si-mesmo, relações que alcançam
sua perfeição na Terceira Hipóstase. O Deus vivo e o drama da vida divina não
existem senão para um pensamento ou uma consciência mitológica e simbólica.
Somente para essa consciência Deus e o homem aparecem como face a face, como
personalidades vivas, cujas relações constituem a vida concreta, com a tragédia
inerente a toda vida.
O teísmo abstrato, que foi a forma do monoteísmo abstrato, concebe a
vida como uma monarquia ou um imperialismo celeste, atribuindo a Deus a
autocracia, a suficiência e uma espécie de fechamento sobre si mesmo. Mas
semelhante monarquia está claramente em desacordo com a doutrina cristã
relativa à Trindade e ao amor que preenche sua vida interior. A organização da
vida terrestre à imagem dessa monarquia é a afirmação do poder arbitrário e do
despotismo, e não a afirmação da Trindade e da Unidade no amor. A teologia
catafática tradicional foi aprisionada nos conceitos racionais e é por isso que para ela permanece fechada
essa vida interior da divindade, na qual – e somente nela – a criação do mundo
e do homem, vale dizer a atitude de Deus em relação ao Seu Outro Si-mesmo, pode
ser captada. A criação do mundo e do homem sempre foi compreendida
exotericamente, desde o exterior. A consciência teológica exotérica e
racionalista se acha na obrigação de admitir uma concepção cruel, na qual Deus
teria criado o mundo por capricho, sem nenhuma necessidade, sem que nenhum
movimento interior tenha se produzido Nele. Segundo essa concepção, a criação
seria insignificante, não divina e, na sua maior parte, condenada a
desaparecer. O ensinamento teológico cai no dualismo racionalista, polo oposto
ao monismo racionalista. Somente a teologia mística e simbólica é capaz de se
elevar até a noção esotérica do mistério da criação, como vida interior da
Divindade; esse mistério é a necessidade que Deus tem de Seu Outro Si-mesmo, do
amigo amante e amado, do amor realizável na Unidade-Trindade, que existe no
alto e embaixo, no céu como na terra.
A doutrina teológica e metafísica que fala da imobilidade da
divindade, do repouso absoluto de Deus, é exotérica e racionalista, e mostra os
limites de todo conceito lógico da Divindade. A noção de Deus como coincidentia
oppositorium é mais profunda, fosse a dos místicos, fosse a de Santo
Agostinho. O repouso absoluto está ligado em Deus ao movimento absoluto.
Somente em nossa consciência racional, em nosso mundo natural, que o repouso
exclui o movimento e que o movimento e incompatível com o repouso. A perfeição
absoluta da divindade concilia em si o repouso absoluto e o absoluto movimento.
Para a consciência racionalista, o movimento em Deus parece se opor à perfeição
de Deus, parece ser como que uma imperfeição ou uma insuficiência Dele. Mas a
ideia que fazemos de Deus não pode ser mais do que antinômica, pois os
contrários estão identificados entre si Nele. O fato de que Deus é amoroso em
relação ao Seu Outro-que-Si-mesmo, em relação ao amado, e que a libre
reciprocidade de seu amor demonstra, não possui a insuficiência ou a ausência
de plenitude no Ser divino, mas, ao contrário, a superabundância de sua
plenitude e de sua perfeição. Não podemos considerar a absoluta plenitude e a
perfeição de uma maneira estática e abstrata, mas só podemos vê-las como um
dinamismo concreto, como vida e não como substância.
A teologia mística apofática favorece essa concepção de Deus, ela de
certo modo prepara o terreno para sua fundamentação. É verdade que essa
teologia pode parecer nos levar, em nosso conhecimento de Deus, às formas
supremas da abstração e da separação em relação a todo conteúdo concreto; é o
que encontramos, por exemplo, na doutrina de Deus em Plotino. Mas para a
consciência cristã esse conhecimento de Deus não pode ser senão uma purificação
e uma preparação para a compreensão positiva, simbólica e mitológica da vida
concreta de Deus. A doutrina teológica e metafísica referente à absoluta imobilidade
da divindade, doutrina tradicional e oficialmente reconhecida, acaba por estar
em flagrante contradição com o princípio do mistério cristão. O Cristianismo,
em sua profundidade, não dispõe as relações que existem entre Deus e o homem,
entre Deus e a criação, em categorias estáticas. Para ele, essas relações são
um mistério; ora, o mistério é inacessível ao pensamento abstrato, e não pode
ser encaixado em categorias fixadas.
No centro do mistério cristão se ergue a Cruz do Gólgota, com os
sofrimentos e a morte do Filho de Deus, Salvador do Mundo. A teoria da absoluta
imobilidade da divindade está em oposição com o fato místico dos sofrimentos do
Senhor. O Cristianismo é a religião do Deus sofredor. Não é Deus Pai quem
sofre, como acreditavam os patripassianos[1],
mas o sofrimento do Filho constitui um sofrimento dentro da vida interior da
Trindade. A doutrina que professa a absoluta imobilidade da Divindade consiste
num monoteísmo abstrato que contradiz o ensinamento cristão relativo ao caráter
trinitário da divindade e de sua vida interior. Essa doutrina está sob a
influencia de Parmênides e dos Eleatas. A percepção de Deus como Trindade é a
percepção do movimento interior esotérico em Deus, que evidentemente não possui
nenhuma analogia com o movimento que se realiza em nosso mundo natural. As
relações interiores entre as Hipóstases da Trindade são dinâmicas e não
estáticas, e se revelam como vida concreta. Da mesma forma, o mistério da
criação do mundo não pode ser compreendido intimamente, esotericamente, senão
através da vida interior da Trindade Divina, do movimento interior da divindade,
do dinamismo divino. quando nos aproximamos desse mistério, nos encontramos
como que sobre uma crista, de onde é muito fácil cair num ou noutro abismo. É
essa queda que a consciência da Igreja chama de heresia. O ensinamento
teológico oficial, que de certa forma proíbe os caminhos do conhecimento nos
quais é fácil se perder, constitui uma medida preventiva e pedagógica. Mas todo
desvio herético indica uma concepção racionalista dos mistérios divinos, uma
impotência em conceber a antinomia que está ligada a toda reflexão sobre Deus. As
doutrinas heréticas racionalizam sempre a experiência espiritual, porque elas
consideram como sendo uma verdade integral aquilo que não passa de uma verdade
parcial. Os místicos cristãos não cometem esse erro. Eles emitem as ideias mais
audaciosas, ideias que aterrorizam a consciência mediana e que parecem às vezes
mais extravagantes e contrárias à fé habitual do que o são as doutrinas
heréticas. Mas os verdadeiros místicos descrevem as profundezas da experiência
espiritual, o mistério inicial da vida; eles não elaboram conceitos, eles não
eliminam a antinomia da vida espiritual. Aí reside toda a importância da mística
e toda a dificuldade que nossa consciência tem de a assimilar.
São Simeão o Novo Teólogo disse: “Vem, ó Tu que permaneces imóvel, mas
que, entretanto, te moves todo o tempo e te diriges a nós”. Por meio dessas
palavras sutis, que a doutrina teológica oficial tem dificuldade em reconhecer,
ele exprime a verdade da experiência espiritual, a coincidência, em Deus, do
repouso e do movimento. Não encontramos nela nenhuma metafísica fundamentada em
conceitos; aqui a experiência original da vida espiritual se expressa sem
intermediários. O tomismo nega a potência em Deus e, ao fazê-lo, nega a
possibilidade do movimento, e elabora uma doutrina racionalista de Deus como
ato puro, baseado na filosofia aristotélica. Mas, se Deus é ato puro, então a
criação do mundo, a ação criativa de Deus se torna ininteligível. O caráter
limitado das doutrinas teológicas se deve ao fato de que a visão catafática se
sobrepôs à apofática.
Quando o Cristianismo professa a doutrina trinitária da Divindade e o
sacrifício expiatório do Filho, ele admite, por isso mesmo, um processo em
Deus, uma tragédia divina. O processo divino não pode ser assimilado àquele que
se realiza em nosso tempo dividido. Esse processo na eternidade divina não se
opõe ao repouso divino. a vida divina é um mistério que se realiza na
eternidade. Ela se revela a nós pela experiência espiritual. Tudo o que
acontece no alto se reflete embaixo. Da mesma forma, em nós, no mais profundo
de nós mesmos, se realiza o processo que é elaborado no céu, o do nascimento
divino.
Os grandes místicos alemães fazem uma distinção entre Deus (Gott)
e Divindade (Gottheit). É o que Eckhardt ensinava. Boehme professava a
doutrina do Ungrund, que estaria numa profundeza ainda maior do que o
próprio Deus. O significado da distinção entre Deus e Divindade não pode ser
expresso por uma metafísica ou uma ontologia. Essa verdade não pode se exprimir
senão em termos de experiência e de vida espiritual, e não pode categorias
fixas de ontologia. Como ontologia fixa, essa verdade pode facilmente degenerar
em heresia. Eckhardt descreve as relações recíprocas entre Deus e o homem, que
se revelam na experiência mística. Deus existe se o homem existe. Quando o
homem desaparecer, Deus também desaparecerá. “Antes que a criatura existisse,
Deus não era Deus”. Deus só se torna Deus em relação à criação. No abismo
original do Nada divino, tanto Deus e a criação, como Deus e o homem,
desaparecem e essa própria oposição se esvanece. “O ser inexistente está para
além de Deus, para além da diferenciação”. A própria distinção entre o Criador
e a criação não constitui ainda a profundeza última, ela se extingue no Nada
divino, que já não é Deus. A teologia mística apofática penetra além do Criador
em suas relações com a criação, além de Deus em sua reciprocidade com o homem.
O Criador se manifesta ao mesmo tempo que a criação, Deus e o homem aparecem
simultaneamente. Trata-se de um processo teogônico da Insondabilidade divina,
que é a contrapartida do processo antropogênico.
Angelus Silesius disse: “Eu sei que sem mim Deus não pode existir um
só instante. Se eu sumisse, ele entregaria o Espírito”. E também: “Eu sou tão
grande quanto Deus, e Ele é tão pequeno como eu”. Essas palavras temerárias, vindas de um homem
que era a um tempo místico, poeta e católico ortodoxo, são susceptíveis de nos
perturbar e espantar. Mas é preciso captar seu sentido. Não é fácil entender os
místicos, eles falam numa linguagem particular, e essa língua é universal. É
impossível traduzi-la em termos de metafísica e de teologia. Angelus Silesius
não constrói nem uma ontologia, nem uma teologia, mas se contenta com desenhar
uma experiência mística. Ele fala do amor infinito que existe entre Deus e o
homem. O sujeito que ama não pode existir sem o ser amado. Ele morre quando
morre o objeto de seu amor. As prodigiosas palavras de Angelus Silesius nos
expõem o drama místico do amor, a intensidade infinita das relações entre Deus
e o homem. A mística não se exprime senão em termos de experiência. Da mesma
forma, é sempre um erro e uma incompreensão interpretar os místicos do ponto de
vista da metafísica e da teologia, e situá-los em relação a tais ou quais
tendências doutrinais.
Todos os grandes místicos cristãos sem distinção de confissão,
ensinaram que na eternidade, nas profundezas do mundo espiritual, se realiza um
processo divino, no qual aparecem as relações entre Deus e o homem, o
nascimento de Deus no homem e o nascimento do homem em Deus, onde se encontram
o amante e o amado. Essas são verdades da experiência espiritual, verdades
vivas e não categorias metafísicas, nem substâncias ontológicas. O movimento em
Deus, tal como se revela na experiência espiritual, não consistem num processo
no tempo, do tipo que se desenrola numa ordem de sucessão. É a conclusão ideal,
o mistério divino da vida que se realiza na eternidade. Somente uma compreensão
simbolicamente mitológica das relações entre Deus e o homem pode nos aproximar
desse mistério divino; uma concepção metafísica nos esconde sua vida interior.
O personalismo é, por assim dizer, inacessível à metafísica abstrata. Deus e o
homem são personalidades vivas, cujas relações são íntimas no mais alto grau,
constituindo o drama concreto do amor e da liberdade. Um personalismo tão vivo assim
é sempre mitológico. O encontro de Deus com o homem é uma representação
mitológica e não uma proposição filosófica. Esse encontro encontrou sua
expressão mais intensa nos profetas bíblicos, e não entre os filósofos gregos.
Nosso pensamento está irresistivelmente atraído para o monismo abstrato, para o
qual a personalidade viva de Deus e do homem, a tragédia da vida religiosa, não
existem.
Os profetas e os místicos, os apóstolos e os santos revelaram ao mundo
mistérios da vida original. Eles nos confiaram suas experiências espirituais,
seus encontros com Deus. Essas são as verdades da vida religiosa. As
elaborações teológica e metafísica dessa experiência original são já
secundárias, pois nas doutrinas teológicas penetram categorias e conceitos que
racionalizam a experiência religiosa viva. Nelas aparece assim um desvio para o
abstrato, seja no monismo, no dualismo. O teísmo teológico, submetido ao
conceito, que considera o extrinsecismo e a não-divindade da criação como
absolutos, constitui uma racionalização dos mistérios divinos na mesma medida
em que o panteísmo identifica o Criador à criação. A separação em relação ao
mundo sensível e concreto, em relação a tudo o que está em estado múltiplo e
móvel na natureza, a orientação para o mundo permanente das ideias, não constituem
o grau último da experiência e da contemplação espirituais. Platão e Plotino
não se elevaram até o mistério divino da vida. A vida original se situa além e
acima. Na história da consciência cristã e da teologia cristã esses dois momentos
estão ligados: o da separação do pensamento que se orienta para o mundo das
ideias e para o sentido espiritual do concreto, do mistério da vida. A herança
deixada pelo espírito helênico oprime demasiadamente a consciência cristã por
seu pensamento separado e purificado de toda vida concreta: ele dá preeminência
à metafísica sobre a mitologia. Mas, não obstante, na base do Cristianismo
repousa o pensamento mitológico.
II
Na experiência espiritual se revela a nostalgia que o homem tem de
Deus. A alma humana busca a existência superior, o retorno à fonte da vida, à
pátria espiritual. A vida humana se torna realmente terrível quando nada existe
acima do homem, quando não existe mistério divino nem infinitude divina. Assim
aparece o desgosto do não-ser. A imagem do homem se corrompe quando a imagem de
Deus se apaga na alma humana. O homem, na busca de Deus, busca a si mesmo,
busca sua humanidade, a alma humana sofre as dores do parto, e Deus nasce nela.
Esse nascimento de Deus na alma humana constitui o nascimento autêntico do
homem. ele representa o movimento do homem para ele, a resposta à nostalgia que
ele tem por Deus. Esse é um dos aspectos desse fenômeno religioso original. Mas
ele é a um tempo único e duplo, ele possui uma outra face, um outro movimento.
A experiência espiritual revela igualmente que Deus sofre por amor ao
homem, que Ele aspira a que o homem nasça e reflita Sua imagem. Os grandes
místicos, descrevendo a vida espiritual, evocaram essa nostalgia divina. É na
mística, e não na teologia, que se exprime esse mistério. A ideia primordial no
homem é a ideia de Deus, que constitui o tema humano; o homem, ao contrário, é
o tema divino. o amor infinito não pode existir sem o sujeito amante e o objeto
amado. O nascimento do homem em Deus é a resposta à aspiração divina, é o
movimento que vai do homem para Deus.
Toda a complexidade da vida religiosa, do encontro e das relações
entre Deus e o Homem, provêm da existência desses dois movimentos. Se a vida
religiosa não procedesse senão de um só movimento, aquele que vai de Deus para
o homem, da exclusiva vontade de Deus, somente da revelação de Deus, ela seria
simples e as finalidades da vida seriam acessíveis, o Reino de Deus seria
facilmente realizável. E a tragédia do mundo não existiria. Mas o nascimento do
homem em Deus, sua resposta, não pode ser obra apenas de Deus, mas igualmente
obra do homem, de sua liberdade. Pela própria natureza de Deus, que é Amor
infinito, pelo desígnio divino para a criação, o Reino de Deus não pode ser
realizado sem o homem, sem a participação da própria criação. O despotismo é um
engano para o céu, tanto quanto para a terra. O Reino de Deus é o do Deus-humanidade,
onde Deus nasce definitivamente no homem e onde o homem nasce em Deus, e esse
Reino se realiza no Espírito. A esse processo está ligado o mito fundamental do
Cristianismo, mito realista no mais alto grau, que exprime o princípio inicial
da existência, o fenômeno original, o mistério da vida. É o mito relativo à
natureza e ao movimento teândrico, ao Deus-homem.
É o Filho, nascendo por toda eternidade, igual em dignidade ao Pai,
que responde à aspiração divina do sujeito amante e do objeto amado. É ele o
Homem divino absoluto, o Deus-homem, e isso não somente sobre a terra, em nosso
mundo natural e histórico, como igualmente no céu, na realidade divina da
Trindade. É assim que a natureza – não a nossa, pecadora e decaída – a natureza
humana espiritual, celeste e pura, chega a se elevar até o sei da Trindade
Divina. No Filho, no Homem divino, no Deus-homem, está compreendido todo o
gênero humano, toda a multiplicidade humana, toda a imagem do homem. nele se
concilia misteriosamente a oposição entre o um e o múltiplo. A espécie humana
não pertence senão por um aspecto da geração do antigo Adão, à geração pecadora
e decaída de nosso mundo natural. Sob seu outro aspecto, ela e celeste, e
pertence à geração do Adão espiritual, à de Cristo. Pelo nascimento do Filho na
eternidade, todo o gênero humano espiritual e todo o universo compreendido no
homem, todo o cosmo, responde ao chamado do amor divino. a criação do mundo não
pôde se produzir no nosso tempo, pois esse é o tempo decaído, filho do pecado.
A criação aconteceu na eternidade, como ato interior do mistério divino da
vida. A concepção bíblica da criação não passa do reflexo desse ato interior na
consciência da humanidade antiga. O homem, atirado na natureza inferior, foi
rejeitado para fora da realidade divina. A revelação cristã restabeleceu o
homem no seio dessa realidade. Por intermédio do Filho, voltamos ao seio do
Pai. Com Ele começa um novo gênero humano espiritual, o de Cristo, nascido e
regenerado no Espírito. Cristo está no homem e o homem est´=a em Cristo. Ele é
a Videira e eu sou o ramo. Todo o gênero humano regenerado habita em Cristo, o
Deus-homem. No homem espiritual está incluído o cosmos, a totalidade da
criação. O cosmos se separou violentamente do homem decaído e se tornou para
ele a natureza exterior que o escraviza. Mas o cosmo retorna para o homem
regenerado. No mundo espiritual o cosmo habita no homem, como o homem habita em
Deus.
O homem é, por sua própria natureza, um microcosmo; nele estão
compreendidas todas as esferas da realidade cósmica, todas as forças do cosmo.
Por causa do pecado e da queda, o homem perdeu a noção de seu estado
microcósmico, e sua consciência se tornou individualista. O cosmo não se revela
ao homem natural senão como natureza exterior, cuja vida interior permanece
inacessível. Somente ao homem interior a vida interior do cosmo se revela como
realidade espiritual. Assim é que a via que conduz o homem ao conhecimento de
si mesmo é a via que conduz ao conhecimento do cosmo. Por intermédio de Cristo,
pelo Logos, não apenas o gênero humano, como todo o universo, se orienta para
Deus e responde ao chamado divino, à necessidade divina de amor. No homem se
revela o mistério da Bíblia, o mistério do Gênesis.
O mistério divino não se completa na Dualidade, mas pressupõe a
existência de três Pessoas. As relações de Deus com o Outro se realizam num
Terceiro. O sujeito amante e o amado encontram a plenitude da vida no reino do
amor, que é o Terceiro. O Reino de Deus, reino do homem e do cosmo iluminados,
não se realiza senão pelo Espírito Santo, no qual se completa o drama, se fecha
o círculo. Somente nessa “Trinalidade” nos é dada a vida divina perfeita,
somente nela o sujeito amante e o objeto amado encontram o conteúdo definitivo
e a plenitude de suas vidas. A Trindade é um número sagrado, divino, um número
que significa a plenitude, a vitória sobre a luta e a divisão, o ecumenismo e a
sociedade perfeita na qual não existe oposição entre as personalidades, as
hipóstases e o ser único. O mistério do Cristianismo é o mistério da unidade na
dualidade, que encontra sua solução na unidade-trindade. É por isso que o
Cristianismo tem como base o dogma cristológico da natureza teândrica do Filho
e o dogma trinitário. A afirmação da existência é a vida do Espírito Santo e a
vida no Espirito Santo. No Espírito, o homem e o mundo são transfigurados e
deificados. O Espírito constitui a própria Vida, a Vida Original. O mistério
Divino da Vida e precisamente o mistério das três Pessoas. Ele se realiza no
alto, no céu, e se realiza igualmente em baixo, sobre a terra. Onde quer que
haja vida, existe o mistério das três Pessoas, a distinção das três Hipóstases
e sua unidade absoluta. Esse mistério se reflete e se simboliza por toda parte
na vida do homem e do mundo.
A vida em seu princípio é a um tempo a diferenciação e a unidade das
personalidades. A plenitude da vida e o ecumenismo no qual a personalidade
encontra sua realização definitiva, sua integralidade. O encontro de um e de
outro sempre encontra seu desenlace no terceiro. Um e outro chegam à unidade, não
pela dualidade, mas pela trinalidade, pois é nela que eles adquirem sua entidade
comum, sua finalidade. Se o ser fosse um, ele permaneceria em estado
embrionário, num estado de indiferença. Se ele fosse uma dualidade, ele estaria
desunido e dividido irremediavelmente. Mas ele revela seu conteúdo e manifesta
sua diferença, mesmo permanecendo na unidade, porque ele é uma trinalidade.
Essa é a natureza do ser, o fato original de sua vida. A vida do homem e do
mundo é um momento interior do mistério da Trindade.
III
A vida interior de Deus se realiza por meio do homem e do mundo. A vida
interior do homem e do mundo se realiza por meio de Deus. O homem, situado no
centro da existência, chamado a desempenhar um papel preponderante na vida
universal, não pode ter um conteúdo de vida positivo sem Deus e sem o mundo,
vale dizer, sem o que lhe é superior e o que lhe é inferior. Ele não pode
permanecer solitário, ele não pode extrair sua fonte de vida unicamente de si
próprio. Quando o homem se coloca sozinho diante do abismo do não-ser ele é
atraído por essa garganta, ele a sente em si. Se só existisse o homem e seus
próprios estados solitários, não existiria nem homem, nem nada. Um psicologismo
exclusivo equivale à afirmação do não-ser, à destruição do núcleo ontológico do
homem. O ser humano não pode construir sozinho o edifício da vida. A criação da
vida pressupõe sempre, para o homem, a existência de um outro. Se esse Outro,
superior e divino, não existir para ele, ele determinará sua vida por outro,
mas inferior e natural. Ao se afastar de Deus, do mundo superior, o homem se
submete ao mundo inferior, e se torna escravo de seus elementos.
A submissão do homem ao mundo natural e a seus elementos constitui uma
deformação da hierarquia do universo. Tudo é deslocado, o inferior toma o lugar
do superior, o que estava no alto é precipitado abaixo. O homem, o rei do
universo, se torna escravo da natureza, se vê submetido à necessidade natural.
O homem se separa de Deus, o mundo se separa do homem, e se torna para ele a
natureza exterior, que o constrange com violência e o submete às suas leis. O
homem perde sua independência espiritual. Ele começa a se determinar a partir
do exterior, e não do interior. O sol deixa de brilhar nele, e ele cessa de ser
a luz do mundo. Ele se transporta para a natureza exterior ao homem e a vida
deste passa a depender somente dessa luz que lhe vem de fora. Todo o universo,
separando-se de Deus, deixa de brilhar interiormente; ele necessita de uma
fonte exterior de luz. O principal sintoma da queda é precisamente essa perda
da luz interior, é essa subordinação a uma fonte exterior. Quando o homem
habita em Deus, o cosmo está no homem, o sol está nele. Quando o homem se
separa de Deus, o cosmo se separa do homem e se torna para ele uma necessidade
que deixa de obedecê-lo.
São Simeão, o Novo Teólogo, diz: “Todas as criaturas, quando viram que
Adão era expulso do Paraíso, não quiseram mais se submeter a ele; nem a lua,
nem os outros astros, queriam mais se mostrar; as fontes se recusaram a jorrar
sua água e os rios negavam-se a seguir seus cursos; o ar cogitava deixar de
soprar para não dar a Adão, o pecador, a possibilidade de respirar; quando as
feras e todos os animais terrestres viram que ele havia perdido a vestimenta de
sua glória primeira, eles começaram a desprezá-lo e todos ficaram prontos para
assaltá-lo; o céu se preparou para cair sobre ele e a terra já não queria
suportá-lo. Mas que fez Deus, o criador de todas as coisas, o criador do homem?
Por sua força criadora Ele os deteve, e em Sua misericórdia e bondade, não
deixou que os elementos se desencadeassem sobre o homem. Ele ordenou à criação
que permanecesse submissa a Adão, e que, tornando-se perecível, ela servisse ao
homem perecível, para o qual Ele a havia criado. Porém, quando o homem se
regenerar e se tornar espiritual, incorruptível e imortal, a criação, submetida
ao homem por Deus, se libertará desse trabalho, se regenerará também e se
tornará igualmente incorruptível e, de certa forma, espiritual”. É assim que um
grande místico descreveu a ligação que encadeia o homem ao cosmo, a posição
central que ele aí ocupa e o modo como ele a perdeu.
Ao se afastar de Deus e do mundo espiritual, o homem perde a
independência de sua individualidade espiritual; ele se submete às leis do mundo
animal, se transforma em instrumento do elemento racial[2]
e se condena a viver nos costumes, nas famílias e nos Estados nos quais esse
elemento predomina. O homem nasce e perpetua sua raça, a raça do Adão decaído,
que se encontra submetida à alternância indefinida do nascimento e da morte, ao
mau infinito representado pela multiplicidade das gerações nascentes e
condenadas a morrer. No elemento racial as esperanças da personalidade na vida
eterna são exterminadas. Em lugar da vida eterna e da plenitude exigidas pela
pessoa, o que se tem é um fracionamento infinito de gerações que surgem e
desaparecem. O laço que une o nascimento à morte é indissolúvel no elemento
racial. O nascimento traz consigo a semente da morte, o despedaçamento da
individualidade, a perda de suas esperanças. Aquele que gera está ele próprio
condenado a morrer e, por sua vez, condena aqueles que nascem. No elemento
racial, sobre o qual está fundamentada a vida pecadora da humanidade natural,
não existe vitória sobre a morte, nem a aquisição de uma vida incorruptível.
O sexo, com sua capacidade de geração, que submete o homem à lei
natural e o une ao mundo animal, é o resultado do pecado e da separação em
relação a Deus. Pelo nascimento, o homem traz em si as consequências do pecado;
ele pode resgatá-lo, mas ele jamais chega a vencer a natureza corruptível, ele
não alcança a vida eterna e imortal. A nova raça espiritual, a de Cristo, não é
uma raça que nasce da terra segundo as leis do mundo animal, uma raça
eternamente seduzida pelo elemento inferior. A separação em relação a Deus
implicou para o homem a perda da integridade, da castidade, da virgindade, a
perda da imagem andrógina que constitui a imagem do ser divino.
Segundo o ensinamento genial de Boehme, o homem perdeu a Virgem eterna
(Sophia), e essa o deixou e se refugiou no céu. A natureza feminina se
separou do homem-andrógino, e se tornou para ele uma natureza exterior, o
objeto de uma atração torturante, e fonte de escravidão. O homem integral e
casto, que habita em Deus, compreende em si a natureza feminina. Aqui nós
encontramos tudo o quer concerne ao homem e ao cosmo. O pecado é, antes de
tudo, a perda da integridade e da castidade, ele corresponde à divisão e à
dissensão. A sábia integridade sintetiza precisamente a castidade, a
virgindade, vale dizer, a união, no homem, da natureza masculina e da natureza
feminina. A atração da volúpia, a sensualidade, a depravação apareceram no
mundo como resultado da perda dessa integridade, como consequência inevitável
do desdobramento que aconteceu no interior. Todas as coisas se tornaram exteriores,
umas em relação às outras. Foi esse o caso das naturezas masculina e feminina.
O elemento feminino é um elemento exterior, atraente e sedutor, sem o qual a
natureza masculina não pode existir. O homem não pode permanecer fracionado,
dividido, ele não pode ser uma metade, um ser incompleto. Assim o gênero humano
sofre: ele tem sede dessa “re-união”, ele persegue sempre sua própria
reintegração, ele aspira à realização de seu próprio ser total e andrógino. Mas
no elemento racial, que traz a marca dessa cisão, não se pode adquirir essa
integridade, a imagem andrógina não tem como ser restabelecida, e a sede de
eternidade que o homem sente, seu desejo de alcançar sua Virgem permanece
irresolvido. Cada indivíduo, homem ou mulher, e em proporções diferentes, é
bissexual, e é isso que determina toda a complexidade de sua vida.
O ensinamento de Boehme referente à Sophia é precisamente o da
Virgem e da imagem do andrógino, imagem integral e virginal do homem. “Por sua
luxúria Adão perdeu a Virgem, e em sua luxúria ele adquiriu a mulher; mas a
Virgem espera sempre e se ele quiser nascer de novo ela o receberá, pronta para
coroá-lo com uma coroa de glória”. “A Sabedoria Divina é a Virgem eterna, e não
a mulher, ela é a pureza imaculada e a castidade, e assim aparece como imagem
de Deus e imagem da Trindade”. “A Virgem existe de toda eternidade, ela é
incriada, não-gerada; ela é a sabedoria divina e a imagem da Divindade”. “A
imagem de Deus é a Virgem masculina, e não a mulher ou o homem”. “Cristo
libertou pela cruz nossa imagem virginal da masculinidade e da feminilidade, e
em Seu amor divino, Ele a tingiu de vermelho com Seu sangue celeste”. “Cristo
nasceu da Virgem, a fim de santificar de novo a Tinctur[3]
feminina e uni-la ao princípio masculino, a fim de que o homem e a mulher se
tornem andróginos, como o próprio Cristo o foi[4]”.
A Sabedoria é a eterna virgindade e não a eterna feminilidade; o culto
que lhe é dedicado é o da Virgem, e não o do princípio feminino, o qual já
resulta da queda e da divisão. É por isso que o culto à Sabedoria quase se
confunde com o culto à Virgem Maria, mãe de Deus. Nela, a natureza feminina se
tornou virginal e gerou pelo Espírito. Assim nasceu a nova geração humana, a
geração de Cristo, imortal, triunfante sobre o mau infinito dos nascimentos e
das mortes. A via que conduz ao restabelecimento da imagem integral do homem se
abre por intermédio da Virgem Maria e por sua concepção do Filho de Deus e
Filho do Homem. É a via da castidade, da pureza, da virgindade, a via do amor
místico.
A doutrina e o culto da virgindade sempre foram aprofundados no
Cristianismo, enquanto que a doutrina do casamento e da santificação da
procriação o foram insuficientemente. A revelação do sentido místico e positivo
do amor entre o homem e a mulher (eros e não ágape) pertence à
problemática da consciência cristã. O sentido místico do amor não foi revelado
dogmaticamente e o que encontramos a respeito, nos doutores da Igreja, é pobre
e insuficiente. O Cristianismo dos Padres nos ensina a adquirir a virgindade
pelo ascetismo, mas não nos revela absolutamente o sentido místico do amor,
como caminho que leva à virgindade, ao restabelecimento da imagem integral do
homem e à vida eterna. O Cristianismo tem razão em justificar e santificar o
casamento e a família da humanidade pecadora; assim, ele preserva e
espiritualiza a vida do sexo decaído. Mas ele nada diz sobre a sua
transfiguração, sobre o advento de um novo sexo. Essa transfiguração não é
esclarecida pelo Cristianismo, vem como muitas outras coisas. A santidade da
maternidade possui um sentido cósmico, mas ela não é a resposta para a questão.
O abismo que existe entre o amor racial que gera e o amor místico orientado
para a eternidade cria uma antinomia para a consciência cristã. A Igreja ensina
que o sexo decaído e dividido se transforma, na Virgem Maria, em virgindade e
maternidade iluminadas, recebendo em si o Logos do mundo que nasce do Espírito.
Mas parece que não se extrai nenhuma dedução disso no que diz respeito aos
caminhos positivos de iluminação e da transfiguração do antigo elemento racial,
do elemento sexual. O sentido religioso e positivo do amor, o laço que o une à
própria ideia de homem, enquanto ser integral, não foi revelado. Isso resulta
de um insuficiente desenvolvimento, no Cristianismo, da consciência
antropológica. O amor, como tantas outras coisas na vida criativa do homem,
permanece inexplicado e não santificado, fora da lei, de certa forma, entregue
a um destino trágico no mundo. A doutrina cristã do casamento e da família,
tanto quanto a do poder e do Estado, possui um sentido profundo para o mundo
natural e pecador, para o elemento racial no qual o homem sofre as
consequências do pecado. Mas o problema do sentido do amor, cuja natureza não
provém nem da atração fisiológica, nem da gravidez, nem da organização social
do gênero humano, não é abordado nela. O amor, por sua natureza, ocupa o mesmo
ligar que a mística. Ele é igualmente aristocrático e espiritual, e não pode
ser assimilado à organização democrática, psíquica e corporal da vida humana. O
amor está ligado à ideia inicial do homem. nós não possuímos uma visão do
sentido religioso do amor, a não ser no simbolismo das relações entre Cristo e
Sua Igreja.
IV
O Cristianismo é a religião da Trindade Divina e a religião do
Deus-humanidade. Ele pressupõe não somente a fé em Deus, como também a fé no
homem. A humanidade é uma parte do Deus-humanidade. Um Deus “inumano” não seria
o Deus cristão. O Cristianismo é essencialmente antropológico e
antropocêntrico, ele eleva o homem a uma altura sublime, sem precedente. A
segunda Face da Divindade é manifestada como sendo uma face humana. Por isso
mesmo, o homem é colocado no centro do ser: nele vemos o sentido e a finalidade
da criação. O homem é chamado a participar da obre Divina, da obra de criação e
organização do mundo. Os místicos cristãos tinham uma concepção audaciosa da
posição central e suprema ocupada pelo homem no universo.
Nos cumes mais elevados da consciência cristã, descobrimos que o homem
não é unicamente uma criatura, mas que ele é infinitamente mais, que, por meio
de Cristo, a Segunda Hipóstase da Trindade, ele se incorpora à vida divina.
Somente a consciência cristã reconhece a eternidade do homem, eternidade que
ele herda com a vida divina; ele não pode, por um processo qualquer, evoluir de
uma ordem para outra, se tornar anjo ou demônio. A face eterna do homem repousa
no seio da própria Trindade Divina. A Segunda Hipóstase da Divindade é a
humanidade divina. O Cristianismo sobrepuja a heterogeneidade, ele estabelece
um parentesco absoluto entre o homem e Deus. O transcendente se torna imanente.
Em Cristo, o Deus-Homem, se revela a livre atividade, não somente de Deus, como
também do homem. É por isso que todo monofisismo, ao diminuir e renegar a
natureza humana, constitui uma negação do mistério de Cristo, do mistério
teândrico da unidade na dualidade. Todas as fraquezas, os desvios, os
insucessos do Cristianismo na história, nasceram da dificuldade que teve a
humanidade cristã em assimilar o mistério teândrico, mistério da natureza a um
tempo única e dupla; eles nasceram também de sua inclinação para um monofisismo
prático. No período cristão da vida universal, a consciência humana permanece
igualmente oprimida pelo monismo, e o pensamento se encontra naturalmente
voltado para ele. Assim, o idealismo alemão do início do século XIX, uma das
mais poderosas manifestações do gênio filosófico da humanidade, foi oprimido
pela heresia monofisista e orientada para o monismo, que nega a existência
independente da natureza humana e que a limita consideravelmente.
Fichte e Hegel não reconheciam senão a natureza divina e negavam a
natureza humana, que para eles não passava de uma função da divindade. Não
seria o homem, mas somente a divindade que poderia conhecer. No “Eu” de Fichte
e no “Espírito” de Hegel o homem concreto desaparece. Mas um monismo idealista
consequente é obrigado a negar tanto o homem como Deus; ele não pode reconhecer
outra coisa do que um divino impessoal e abstrato. O monismo recusa admitir o
mistério nupcial da vida religiosa, ele contradiz o fenômeno original da
experiência espiritual. Esse monofisismo do idealismo alemão já se encontrava
em estado latente em Lutero, que rejeitava a liberdade do espírito humano, a
atividade do homem na vida religiosa e finalmente toda existência independente
da natureza humana. Já em Santo Agostinho existiam desvios e argumentos que
seriam depois invocados para diminuir a natureza humana. Ao estabelecer uma
distinção entre o Criador e a criação, segundo se considere o que é imutável e
o que não é, ele considerava todo modificação como uma imperfeição, e via nisso
uma regressão. O ser divino seria imutável e, por conseguinte, perfeito. O ser
humano está sujeito à mudança, mas suas mudanças são regressivas e não progressivas.
A queda é um exemplo disso. O homem não pode se aperfeiçoar, a não ser pela
ação da graça. Assim Santo Agostinho rejeita no homem a natureza e a liberdade
criativa. Por essa doutrina, elaborada sob a influência da luta contra o
pelagianismo, o homem acaba por ser singularmente diminuído.
A antropologia católica diminui também o homem, mas procedendo de
outra forma. O homem é criado como ser natural, e somente mais tarde, pela ação
da graça, foram-lhe outorgados os dons espirituais, sobrenaturais. Depois da
queda, o homem perdeu seus dons e se tornou um ser natural, para quem tudo o
que é espiritual é exterior. Podemos deduzir que o homem não foi criado como
ser espiritual, feito à imagem de Deus e segundo a semelhança divina. E, no
entanto, o homem é um ser espiritual.
V
Podemos conceber as relações entre Deus e o homem sob três diferentes
aspectos: primeiro, o dualismo transcendente que submete a vontade humana à
vontade divina, no qual as duas naturezas permanecem divididas, “extrapostas”;
segundo, o monismo imanente que identifica metafisicamente a vontade humana com
a vontade divina, que rejeita toda existência independente da natureza humana e que não vê no homem mais
do que uma manifestação da vida divina, um momento transitório no desenvolvimento
da divindade; terceiro, o antropologismo teândrico criador e cristão que
reconhece a existência independente das duas naturezas, a ação recíproca da
graça divina e a liberdade humana. O homem, que é o “outro” divino, oferece uma
livre resposta ao chamado de Deus, revelando com isso sua natureza criativa. No
próprio Cristianismo, podemos encontrar, em maior ou menor grau, essas três
diferentes concepções. A terceira é a mais antinômica para a consciência
racional; e essa noção também complica singularmente a doutrina cristã da
Redenção, a compreensão da obra da salvação universal e da libertação.
Aqui poderíamos distinguir duas maneiras de ver, que de resto são
raras de se encontrar em sua forma pura. Deus, pela ação organizada da graça,
ajuda o homem, que perdeu sua liberdade na queda, a se salvar, a vencer o
pecado. Essa concepção, em suas formas mais extremas, desemboca na justificação
da violência e da imposição na obra da salvação. Mas existe outro modo de compreender
o sentido da vida. DEUS ESPERA DO HOMEM UMA LIVRE RESPOSTA AO SEU CHAMADO, A
RECIPROCIDADE DE SEU AMOR E SUA COOPERAÇÃO CRIATIVA NA VITÓRIA SOBRE AS TREVA
DO NÃO-SER. O homem deve manifestar toda a atividade de seu espírito, toda a
intensidade de sua liberdade, a fim de realizar o que Deus espera dele. Essa
concepção fornece uma justificação religiosa ao poder criativo do homem. No
Cristianismo essas duas concepções estão ligadas e não podem ser separadas.
Através de Cristo, Deus-homem, Redentor e Salvador do mundo, se unem os dois movimentos
que procedem de Deus e do homem, da graça e da liberdade. Deus, pela energia de
Sua graça, ajuda o homem a vencer o pecado, restabelecendo a força abalada da
liberdade humana. O homem, desde as profundezas dessa liberdade, responde então
a Deus, se entreabre para Ele e continua assim a obra da criação. O homem não é
um escravo, ele não é uma nulidade, ele coopera com a obra divina da vitória
criativa sobre o nada. O homem é necessário a Deus, e Deus sofre quando ele não
é consciente dessa utilidade. Deus assiste o homem, mas o homem deve assistir
Deus, e esse é precisamente o lado esotérico do Cristianismo.
Quando professamos a deificação do homem e sua fusão com Deus, é o
panteísmo, a desaparição da independência do homem, que tememos; quando professamos
a liberdade e a independência do home, distinto de Deus é o dualismo e o
orgulho que receamos para ele.
Na experiência espiritual, em sua profundidade, se revela não apenas a
necessidade que o homem tem de Deus, como também a necessidade que Deus tem do
homem. Evidentemente, “necessidade” é um termo inexato, como o são todos os
termos humanos quando se trata de Deus. Falamos numa linguagem simbólica,
traduzimos o mistério inefável na língua de nossa experiência. Podemos nós
descobrir a psicologia de Deus, Sua vida interior, ou devemos nós, de uma vez
por todas, nos limitarmos à compreensão das relações exteriores de Deus para
com o mundo e o homem?
A sagrada Escritura, que nisso se distingue da doutrina teológica, nos
oferece uma psicologia divina, nos fala da vida afetiva e emocional de Deus. Na
Bíblia, as relações entre Deus e o homem se apresentam como um drama passional,
um drama que se desenrola entre o sujeito amante e o objeto amado, no qual não
apenas o homem, como o próprio Deus, experimentam paixões, sentem cólera,
tristeza, alegria. O Deus de Abrahão, de Isaac e de Jacó se distingue do
Absoluto dos filósofos e do Deus dos teólogos. Ele é um Deus que se parece com
o homem, um Deus que se agita, não um Deus inerte. O Cântico dos Cânticos, fonte
de inspiração para os místicos, é bem um retrato da vida emocional divina. Essa
vida interior de Deus se revelou aos místicos cristãos e eles encontraram
palavras para expressar as emoções sentidas por Deus. Entre os grandes místicos
católicos, em São João da Cruz, por exemplo, encontramos uma visão mais íntima
das relações entre Deus e o homem. Para ele, Deus não é o Absoluto, inerte e
impassível. Na filosofia grega, Heráclito, professando sua doutrina do
movimento inflamado, se aproximou mais do Deus cristão do que Parmênides,
Platão, Aristóteles ou Plotino, cuja influência sufocou todos os sistemas da
teologia cristã.
Léon Bloy nos diz que Deus é sofredor, solitário e incompreendido; ele
admite a tragédia em Deus. O amor por Deus ditou-lhe palavras audaciosas: Deus
sofre e verte sangue quando não encontra no homem a reciprocidade de Seu amor,
quando a liberdade humana não participa de Sua obra, quando o homem não cede a
Ele suas forças criativas. A que ponto a responsabilidade humana se vê
engrandecida e enobrecida por essa concepção! O homem não deve sonhar
unicamente consigo mesmo, com sua salvação, com seu bem-estar; ele deve também
pensar em Deus, em Sua vida interior, ele deve dar a Ele o dom desinteressado
de seu amor, ele deve estancar a sede divina. Existe nisso uma dívida de honra.
Os místicos puderam se elevar até esse desinteresse, eles consentiram em não
mais se preocupar com sua salvação, eles estavam prontos a renunciar a ela e a
aceitar os tormentos do inferno, caso o exigisse o amor por Deus.
Encontramos aqui uma estranha contradição: de um lado, a teologia teme
reconhecer o movimento, a nostalgia, a tragédia em Deus, porque ela ensina a
imutabilidade e a imobilidade de Deus; por outro lado, essa mesma teologia
elabora uma teoria jurídica da redenção, segundo a qual o sacrifício de Cristo
constituiu uma propiciação para a cólera divina, uma satisfação concedida ao Deus
ofendido. A cólera de um Deus que sente uma ofensa, não constituirá ela desde
já a vida efetiva em Deus, o movimento do coração divino? Por que haveria de
ser menos humilhante admitir a ofensa divina do que admitir o langor divino?
Existe nas doutrinas teológicas uma contradição manifesta, que se
explica não pelo desejo de elevar a Deus, mas pelo desejo de rebaixar o homem, de
mantê-lo em inquietude. Deus espera do homem infinitamente mais do que nos
ensinam as doutrinas habituais relativas à redenção e à realização da vontade
divina. Não espera Deus que o homem, em sua liberdade, revele sua natureza
criadora? Não terá Deus escondido de Si mesmo aquilo que o homem manifestará em
sua resposta ao chamado Divino? Deus jamais constrange o homem, jamais estabelece
limites à sua liberdade. O desígnio que Deus concebeu é que o homem Lhe
entregue livremente suas forças no amor, realizando assim, em Seu nome, uma
obra criadora. Deus espera do homem sua participação na obra da criação, na
vitória do ser sobre o não-ser. Ele espera dele o ato heroico e criador. Os que
se levantam contra esse pensamento, sustentando que a tarefa do home consiste
unicamente na sua submissão à vontade de Deus e ao cumprimento dessa vontade,
penetram num círculo formalista sem saída. É evidente que o homem deve se
submeter sua vontade à de Deus, que ele deve superar o egocentrismo em nome do
teocentrismo, que ele deve cumprir a vontade divina até o fim; mas não exige a
vontade de Deus que o homem, dotado dessa liberdade criativa que traz o selo da
imagem e da semelhança divinas, participe da obra da criação em seu oitavo dia?
Não espera Deus do homem o ato criador livre, o florescimento de todas as
forças que ele traz em si? A vontade de Deus parece ser essa; e o homem deve se
submeter a ela.
No Evangelho se fala dos talentos que não devemos enterrar, mas que
devemos fazer frutificar. O apóstolo Paulo nos ensina a diversidade dos dons do
homem, que deve ser livre de espírito, que deve ser criativo, não em seu
próprio nome, mas em nome de Deus, em nome da vontade divina. Mas o mistério
mesmo do gênio criador, da natureza criativa, permanece desconhecido, e ele não
foi divulgado nas santas Escrituras. Se elas nos revelassem esse mistério, a
liberdade do ato criador, tudo aquilo que ele comporta de heroísmo já não
existiria, e aquilo que Deus espera do homem se tornaria impossível. A missão
criativa do homem no mundo exige que ele tome consciência de si mesmo
livremente, e desse ato deve resultar um benefício absoluto para o ser.
O ato criador do homem, a continuação da criação do universo, não
constitui na arbitrariedade, nem na revolta, mas na submissão e no abandono a
Deus de todas as forças de seu espírito. Em seu amor criador por Deus, o homem
não faz apenas invocá-lo por causa de suas necessidades humanas, esperando Dele
sua salvação, mas Lhe oferece também, com total desinteresse, toda a
superabundância de suas forças, toda sua liberdade insondável. Se o homem não
entrega a Deus seu dom criador, se ele não participa ativamente da edificação
do Reino de Deus, se ele se mostra escravo, se ele enterra seus talentos na
terra, então a criação sofrerá um revés, e a plenitude da vida teândrica
concebida por Deus não se realizará; Deus languidescerá e sofrerá, insatisfeito
em Suas relações dom Seu Outro que Si-mesmo. O homem deve ser absolutamente
desinteressado, na sua vida religiosa, deve ser liberto do eudemonismo do céu.
Quando ele só pensa em si mesmo, nas suas necessidades, no seu bem-estar, na
salvação humana, ele diminui a ideia divina relativa ao homem, ele nega sua
natureza criadora. Quando ele sonha com Deus, com a divina nostalgia do amor,
com aquilo que Deus espera dele, ele supera o homem, ele realiza sua ideia, ele
afirma sua natureza criativa.
É assim que aparece para nós o paradoxo existente nas relações entre
Deus e o homem. a personalidade constitui precisamente a ideia divina, a imagem
e a semelhança divinas no homem, para distinguir-se da individualidade, que é
um conceito naturalista e biológico. Por isso, para compreender a si próprio, o
homem deve se dirigir a Deus, ele deve adivinhar a ideia divina a seu respeito
e orientar todas as suas forças para a realização dessa ideia. Deus deseja que
o homem exista, Deus não quer ser solitário. O sentido de existir reside na
vitória sobre a solidão, na obtenção de um parentesco. Essa é a essência mesma
da experiência religiosa. O homem é chamado não apenas a buscar a ajuda divina,
a salvação, como também a ajudar a Deus na realização de Seu desígnio referente
ao mundo. O homem natural é demasiado fraco pra cumprir sua missão criadora;
sua força é abalada pelo pecado e sua liberdade se encontra enfraquecida. Na
geração do Novo Adão, no homem espiritual, a força e a liberdade criativas do
homem são restabelecidas pela redenção. Essa força criativa, capaz de
satisfazer à exigência divina, não pode ser adquirida integral e definitivamente
senão no novo nascimento espiritual; ela só pode ser obtida em Cristo. A
energia criativa do homem não se eleva jamais à altura da ideia divina. Somente
é capaz de descobri-la e orientá-la para Deus o homem que restabeleceu sua
integridade, sua virgindade, sua imagem andrógina. Somente então a dissensão
entre o homem e o cosmo, entre o elemento masculino e o elemento feminino, pode
ser superada. No homem natural decaído, as possibilidades criadoras se
encontram enfraquecidas; não obstante, em todo ato criativo, ele realiza a
vontade divina, ele revela a ideia divina relativa ao homem.
Existe, porém, uma criação que deforma progressivamente a imagem do
homem. pois o ato criador autêntico pressupõe o ascetismo, a purificação e o
sacrifício; ora, o homem decaído, satisfeito consigo mesmo, cria
frequentemente, não em nome de Deus, mas em seu próprio nome; ele assim gera um
ser ilusório e falso, o não-ser. Mas a criação em nome de si mesmo não é capaz
de se manter na esfera intermediária da humanidade; cedo ou tarde, ela se
transforma inevitavelmente em criação em nome de um outro, em nome de Satanás.
É por isso que a justificação religiosa do ato criador não é necessariamente a
justificação de toda criação, porque existem algumas que são funestas.
Somos assim conduzidos ao problema da justificação religiosa da
criação na cultura, nas ações humanas e na história. O que se realiza nos cumes
do mundo espiritual se realiza igualmente na nossa realidade histórica.
VI
A antropologia patrística não revela inteiramente a verdade cristã
referente ao homem; ela não extrai do dogma cristão todas as conclusões
possíveis relativas à natureza humana. A compreensão jurídica do Cristianismo
prejudicou sua compreensão ontológica e antropológica; de fato, a antropologia
autêntica está contida na cristologia. A ciência cristológica e a ciência
antropológica são semelhantes entre si em muitos pontos. A ideia que se tem de Cristo
depende da ideia que se tem do homem. a personalidade humana, no sentido
autêntico da palavra, não existe senão em Cristo e por Cristo; ela só existe
porque Cristo, o Deus-homem, existe. A profundidade ontológica do homem está
ligada ao fato de que Cristo não é unicamente Deus, mas também homem. É por
isso que a natureza humana participa da vida da Divina Trindade. A doutrina
positiva referente ao homem não pode ser deduzida senão do dogma do estado
teândrico de Cristo e da consubstancialidade do Filho com o Pai. Uma
antropologia cristológica profunda será também uma cristologia do homem.
A geração de Cristo, raça espiritual da humanidade, deve ter também
uma ciência antropológica enraizada na ciência cristológica. Os pais e doutores
da Igreja, orientados para os altos cumes, para Deus, rejeitaram a natureza
pecadora do homem e foram absorvidos
numa luta heroica conduzida contra essa natureza; a eles foi possível, com seu
temperamento espiritual, formular a doutrina da Santa Trindade e de Cristo, mas
eles não conseguiram desenvolver uma teoria do homem que lhe correspondesse.
Eles elaboraram, de preferência, uma antropologia negativa, aquela que diz
respeito à natureza pecadora do antigo Adão, e buscaram os meios que lhes
permitissem lutar contra as paixões.
Dessa forma, na história da gnose mística, não encontramos nenhum
ensinamento esotérico referente ao homem, a não ser na Cabala, em Boehme e
Franz Baader, e na mística que recebeu alguma inoculação semítica. Esse
ensinamento quase não se encontra na mística de Plotino, de Eckhardt e dos
quietistas. A doutrina patrística positiva do homem alcançara já a suprema
perfeição: ela ensinou a obtenção da graça do Espírito Santo, a iluminação da
criatura, a deificação do homem. mas a natureza criativa do homem, situada
entre esses dois antípodas, não foi religiosamente santificada, e acabou
relegada a uma esfera secular. Ela se afirmou e se expressou fora da
santificação e da interpretação religiosa, e seguiu seu caminho,
manifestando-se como reação a opressão medieval da liberdade humana.
Na Idade Média, a natureza espiritual do homem era mais elevada e mais
forte do que o é na época moderna. Nessa ocasião ela acumulou sua força
criativa. Mas a liberdade humana ainda não estava suficientemente provada, e ela
não era capaz de realizar o Reino de Deus. As forças criativas do homem não
haviam ainda encontrado sua expressão definitiva. O humanismo surgiu no seio do
mundo cristão, porque o Cristianismo havia deixado na sombra a verdade
referente ao homem, porque nessa subsistia um mistério, que não havia sido
expressado, nem santificado. A chegada do humanismo no mundo cristão é um
paradoxo, e nem poderia ser outra coisa. O humanismo da nova história se
distingue claramente do antigo humanismo, e não poderia eclodir em outro que
não o período cristão da história. Ele é ligado, de certa forma, a um problema
cristão que é ao mesmo tempo torturante e insolúvel. A humanidade cristã não
podia renunciar à revelação da imagem humana, que se realizara na Grécia, na
cultura, na tragédia e na filosofia. O humanismo consiste numa falsa
consciência do homem, gerada pela separação com Deus, e que traz em seu seio
venenos capazes de extinguir o homem. Não obstante, o humanismo é a via de
liberdade do homem, a via na qual ele experimenta suas forças criadoras, e na
qual a natureza humana se revela a si mesma.
O homem não pôde se contentar com a doutrina antropológica da
patrística ou da escolástica; ele começou a descobrir e a santificar em si
mesmo da natureza criativa. A sociedade já não podia continuar vivendo dentro
de uma teocracia imposta. A natureza humana permanecia pagã, não-iluminada e
não-transfigurada; e a teocracia, o Reino de Deus não podia ser realmente
adquirido, e com isso contentava-se com certas marcas e signos convencionais.
Era inevitável que as realidades autênticas da humanidade se manifestassem cedo
ou tarde. A humanização que caracteriza o período humanista da história não é
em si mesma fonte de mal; não é ela que separou de Deus todas as formas da cultura
e da sociedade, pois ela não fez mais do que apontar as coisas, denunciando sua
verdadeira situação. A teocracia medieval, cujo tipo espiritual era muito
elevado, não chegou a revelar a verdade relativa ao homem. Assim, era
necessário que ela ruísse. A nova humanidade seguiu uma linha que deveria
fazê-la experimentar a fundo as funestas consequências de seu egocentrismo e de
seu isolamento. O homem deveria descobrir todas as possibilidades de sua vida
terrestre, a fim de tudo conhecer e de tudo denunciar, por sua experiencia
pessoal. O humanismo traz em seu bolo uma dialética fatal, que deve conduzi-lo
ao seu destino final. O homem, em sua solidão e em sua separação, em seu
egocentrismo, não pode encontrar as fontes infinitas da vida, ele não é capaz de
descobrir as forças necessárias para salvaguardar e afirmar sua imagem.
O humanismo vê no homem exclusivamente o filho do mundo natural.
Assim, a antropologia humanista é uma antropologia naturalista. A consciência
humanista já não enxerga o homem como um ser pertencente a dois mundos, a duas
ordens, como o p0onto de intersecção do mundo espiritual com o mundo natural.
Para ela, o homem deixa de ser um enigma e um mistério, ele não é m ais a
refutação experimental da pretensão desse mundo de bastar a si mesmo. Ela nega
o pecado original e, por conseguinte, não chega a explicar o próprio nascimento
do mundo natural. A consciência humanista estabelece definitivamente o homem
sobre o território desse mundo, sobre a superfície da terra. Se a antropologia
patrística sofre um desvio – não em princípio, mas de fato – para um certo
monofisismo, a antropologia humanista, por sua vez, constitui também um
monofisismo, mas situado no antípoda.
A plenitude e a integridade teândrica da verdade cristã não haviam
sido assimiladas pela humanidade. Essa verdade havia se cindido: ou bem se
obedecia ao mandamento de amor a Deus, negligenciando o homem, e então esse
amor a Deus resultava deformado; ou bem só existia o amor ao homem, e caía-se
assim na mesma alteração. Do ponto de vista monofisita, monista, é impossível
decifrar a natureza do homem, que é ao mesmo tempo dupla e única, terrestre e
celeste, e que traz em si a imagem da besta e a imagem de Deus. Quando o homem
renega e apaga em sua a imagem divina, ele não mais consegue conservar a imagem
humana, e dá preeminência à imagem animal. Ao perder seu ponto de apoio em Deus,
ele se submete aos elementos inconstantes desse mundo, que cedo ou tarde o
farão submergir e ser engolido.
A própria ideia de homem não pode ser constituída senão pela ideia de
Deus. O homem é precisamente essa ideia e só por meio dela ele existe ontologicamente.
O homem não pode ser unicamente uma ideia humana, ou uma ideia do mundo natura,
pois nesse caso ele perderia seu ponto de apoio ontológico e pereceria. É por
isso que o orgulho espiritual do homem constitui a fonte original do pecado e
do mal, que conduz à destruição de sua entidade. O homem natural não é capaz de
conservar sua originalidade qualitativa, seu lugar único na hierarquia do ser,
quando ele nega definitivamente o homem espiritual, quando ele perde o ponto de
apoio que ele possuía no outro mundo.
O humanismo conheceu uma época de florescimento do reino puramente
humano. Foi seu período mais criativo, no qual se manifestaram as forças do
homem reunidas no decurso da Idade Média. O humanismo francês dos séculos XVI e
XVII era cristão, e dentre os humanistas podemos contar São Francisco de Sales.
Na época do Renascimento, o homem ainda não havia rompido definitivamente com o
mundo superior; ele ainda trazia em si a imagem divina. Num período de transição,
vivido pela consciência, período de florescimento para o humanismo, seus lados
positivos se revelaram: o voo do gênio criador do homem, a vitória sobre a
crueldade herdada da época bárbara, uma recrudescência do “humano”, que não
seria possível em outro mundo que não o cristão. Existe no humanismo uma
inconsciente verdade positiva, a verdade da compaixão, mas ela se apresenta
aqui marcada por enganos e erros. Entretanto, o humanismo é superior ao
animalismo, e seu engano não pode ser dissipado por um retorno a esse último.
Superar o humanismo equivale a alcançar a plenitude da verdade cristã,
a verdade teândrica, é passar de um estado superior e não retornar a um
Cristianismo deformado por sua refração no elemento bárbaro. O humanismo é
duplo, por sua natureza e seus resultados. Nele se revelaram, de um lado,
forças humanas positivas que fazem parte do Cristianismo sem que se tenha
consciência delas e, de outro, princípios negativos que conduziram a uma
ruptura com o mundo divino e que ameaçam extinguir o homem. Foi graças ao
humanismo que a ciência livre pôde se desenvolver. Mas, tendo alcançado apogeu
de seu desenvolvimento negativo nos séculos XIX e XX, o humanismo degenerou em
seu contrário, desembocando na negação do homem, na destruição de tudo o que
era considerado como humanitário. Assistimos a essa transformação do humanismo,
levada ao extremo, no comunismo, mas podemos constatá-lo também em todas as
correntes características de nossa época: na ciência contemporânea, na moral,
no conjunto de usos e costumes, na técnica. No final da época humanista, na
civilização técnica, a personalidade do homem foi abalada. Um perigo a ameaça,
e somente o Cristianismo, graças à verdade teândrica, somente um renascimento
cristão, pode salvar o homem e preservar sua imagem.
A nova história não criou nenhuma heresia cristã; podemos mesmo nos
perguntar se a indiferença religiosa dessa época não torna impossível o
nascimento de heresias. Mas esse é um ponto de vista superficial. Depois da
vinda de Cristo, toda a vida universal se encontra sob o signo do Cristianismo,
e ninguém mais pode ficar indiferente a seu respeito. O que a nova história
criou foi a grande heresia do humanismo, que não poderia ter nascido senão numa
atmosfera cristã, por responder a uma questão religiosa referente ao homem.
Trata-se de uma heresia antropológica que penetra o mundo com pretensões
religiosas.
De resto, em todos os tempos as heresias colocaram uma questão vital,
para a qual a consciência da Igreja não havia dado uma resposta suficientemente
clara e explícita. Elas tiveram uma importância considerável, pois estimularam
na Igreja uma criação dogmática, um desenvolvimento positivo. Sempre houve
nelas alguma parte de verdade, mas à qual acabavam por se juntar,
eventualmente, o exagero e a mentira. A heresia rompe o equilíbrio, ela é
incapaz de conter a plenitude, ela toma pelo todo aquilo que não passa de uma
parte, ela racionaliza do tema colocado pela experiência espiritual. A
consciência da Igreja responde às heresias, redige fórmulas contendo uma
plenitude suprarracional, e indica a via espiritual justa e sã. Mas ela ainda
não deu uma resposta definitiva à heresia do humanismo, ela ainda não
desenvolveu todas as possibilidades contidas no Cristianismo e capazes de
resolver o problema religioso do homem. Todavia, não existe razão alguma para
crer que essa consciência não responderá a essa questão, cedo ou tarde, por
meio de um esclarecimento dogmático da autêntica antropologia cristã.
Toda a agudeza da questão reside no seguinte: teria o humanismo
realmente colocado tal problema, a um tempo profundo e grave? Pouquíssimos
homens, dentre os que estiveram ligados às tradições da Igreja, puderam captar
toda sua profundidade e gravidade. O mundo está dividido em dois: de um lado, o
mundo e a consciência da Igreja, de outro o mundo e a consciência humanistas.
Esses dois mundos ainda não se encontraram face a face, a fim de situar e
resolver o problema religioso do homem. Somente entre alguns gênios isolados
esse problema alcançou certa intensidade extrema, que coloca em cena o Cristianismo
e o humanismo. Tais foram, por exemplo, Dostoievsky e Nietzsche. Ainda que
fossem muito diferentes um do outro, ambos prestaram um serviço ao conhecimento
religioso do homem; todos os dois nos fizeram sair da esfera neutra, aquela que
está igualmente distante do céu e do inferno, de Deus e de Satanás.
É superando o antagonismo entre o Deus-homem e o homem-deus, que a
questão religiosa relativa ao homem poderá ser colocada clara e integralmente.
Mas a resposta que a consciência da Igreja dará à humanidade deverá se
distinguir essencialmente, por seu próprio caráter, de todas as respostas dadas
pelas heresias precedentes; a verdade referente à natureza criadora do homem
deverá nela ser revelada. Nessa revelação caberá ao próprio homem uma atividade
excepcional. Ora, é natural supor que o homem, por sua energia criativa,
preparou desde cedo a resposta a esse problema religioso, mas que a Igreja,
exteriormente, ainda não reconheceu esse trabalho como algo seu, não o tendo
admitido como uma parte orgânica de sua obre teândrica. A Igreja é o
Deus-humanidade, e é por isso que em seu encaminhamento para a plenitude, a
atividade criativa do homem deve desempenhar um papel preponderante. A Igreja
não pode se realizar sem o “humano”, Deus não pode passar sem ele. Mas o homem
pode colocar sua livre atividade criadora a serviço de Deus, assim como pode
colocá-la a serviço de Satanás, do espírito do não-ser. Essa atividade do homem
se reveste de um caráter duplo no período humanista, estando dirigida aos dois
reinos opostos. Tal é o trágico processo da história.
Existe no humanismo uma verdade cristã, uma verdade da própria Igreja,
mas dele nasce também uma religião que é antagônica ao Cristianismo, a do
anti-Cristo, nos confins da qual o homem e Deus são extintos. Todo o tormento
do homem reside na necessidade de estabelecer uma distinção entre esses dois
princípios, que se opõem um ao outro. Para a resolução desse problema
angustiante, muitos elementos dependem do próprio homem, de sua liberdade e de
sua escolha. Os dons do conhecimento religioso, os dons da gnose não pertencem
à hierarquia eclesiástica, à hierarquia angélica, mas à ordem humana, ao gênio
criador do homem. E esses dons não são em absoluto proporcionais ao grau de
santidade, como de resto nos ensina a história espiritual da humanidade.
VII
A consciência do homem e o desenvolvimento de suas forças espirituais
não são determinados apenas por suas relações com Deus, mas também pelas suas
relações com a natureza; e o homem, no decurso de sua história, adotou
diferente atitudes em relação à natureza. Podemos distinguir três períodos
correspondentes a diferentes relações: primeiro se da a absorção primitiva do
homem na natureza, a consciência cósmica primitiva da vida geral ligada à vida
da natureza; depois vem a separação em relação à natureza, a oposição do homem
à natureza e a luta espiritual contra ela; finalmente, se dá a orientação para
a natureza com o objetivo de domá-la, e a luta material contra ela.
A esses três períodos correspondem diferentes concepções da natureza.
No primeiro, ela é animada, povoada de espíritos bons e maus, e o Grande Pã
ainda existe. A magia primitiva é ao mesmo tempo a ciência e a técnica dessa
época. O homem, a fim de viver, luta com as forças naturais, mas luta em correlação
com os espíritos da natureza. No totemismo, forma primitiva da vida religiosa,
o homem adora o animal, que considera como sendo o protetor de um grupo social,
de um clã. Nas representações escultóricas, a imagem humana ainda não se
distingue da imagem animal, essas imagens estão confundidas. É a esse período,
precisamente, que corresponde o paganismo, o politeísmo, o fracionamento da
imagem divina na multiplicidade natural. Os deuses da natureza se revelam e a
vida do homem lhes é subordinada.
Mas já no mundo pagão se manifesta a aspiração do homem a se elevar
acima da natureza e se libertar de seus demônios. É o início do segundo período
que encontra sua expressão definitiva no Cristianismo. O homem, no processo de
sua libertação e de sua ascensão, se separa da alma da natureza e tenta
adquirir a independência espiritual, buscando um ponto de apoio, um fundamento
para sua vida, não mais no mundo natural exterior, mas no mundo espiritual
interior.
A Redenção operada por Cristo nos revela uma atitude inteiramente
nova: é somente por meio dela que o homem pode adquirir essa independência
espiritual, que ele pode dominar o poder dos elementos naturais. Os deuses
morrem, o Grande Pã desaparece nas profundezas da natureza e ali jaz em
cativeiro. Era preciso se desembaraçar da natureza, vencer em si o paganismo.
Era preciso se libertar da demonolatria, do poder dos demônios que perturbavam
o mundo antigo e lhe inspiravam terror. Não havia, no paganismo, apenas uma
vida feliz no seio da natureza primitiva, mas também uma angústia e um terror,
provocados pelas forças misteriosas. Os magos se esforçavam por dominar essas
forças demoníacas, e os cultos mágicos tentavam apaziguar os deuses. Mas no
mundo pagão a autêntica libertação espiritual não podia ser alcançada. A fim de
fortalecer o homem espiritual, e de fornecer uma outra base à sua vida, a
Igreja cristã opôs o homem ao demonismo da natureza e o proibiu de ter qualquer
relação com seus espíritos. Era preciso, a todo custo, proteger no homem do
poder esmagador da infinitude cósmica.
Um segundo resultado dessa atitude diante da natureza se traduziu por
sua mecanização. O fato de depender dela, de ter uma atitude pagã a seu
respeito, não permitia conhecê-la nem dominá-la, científica e tecnicamente.
Isso só se tornou possível no mundo cristão. Por paradoxal que isso possa
parecer, foi precisamente o Cristianismo que favoreceu o desenvolvimento das
ciências da natureza e da técnica; pois elas nasceram da libertação do espírito
humano em relação ao poder da natureza e da demonolatria. Era impossível
conhecer, pela ciência, os demônios da natureza, ou dominá-los pela técnica. Só
se podia amarrá-los por meio da magia ou apaziguá-los com sacrifícios cruentos.
O animismo não autorizava a ciência e a técnica, a não ser sob a forma de
magia. A ordem cósmica ainda era admitida na Idade Média, mas a consciência
medieval estava impregnada de um dualismo religioso e moral. O homem
sustentava, em si a ao redor de si, uma luta espiritual contra a natureza. Ele
passava por um ascetismo austero, por meio do qual ele desenvolvia e
concentrava suas forças espirituais interiores. A personalidade humana estava
se forjando. Mas, tanto na primeira época como na segunda, o cosmos subsiste
para o homem.
O terceiro período começa com o Renascimento. O homem mais uma vez se
orienta para a natureza, sedento de conhecer seus mistérios. Com o humanismo,
ele sente que se torna outra vez um ser natural, mas que aspira a se tornar
mestre dessa natureza. Assim se prepara o poder técnico, que será fruto do
impulso dado pela Renascença às ciências da natureza. A natureza se torna
exterior e claramente estranha ao homem; ele já não sente sua alma, ela deixa
de ser o cosmos e se torna um objeto submetido às ciências da natureza e às
matemáticas. E o homem moderno já não teme seu demonismo, nem seus espíritos,
mas sim seu mecanismo inanimado. A concepção mecânica do mundo, devida à
vitória espiritual obtida pelo Cristianismo sobre a natureza, se torna uma
força hostil a essa fé.
Mas o Cristianismo alimenta a esperança num quarto período na atitude
do homem perante a natureza: ele começará quando o homem novamente se orientar
para sua vida interior, quando ele reencontrar o cosmo divino, mas dessa ver
unido ao poder espiritual sobre os elementos, e afirmando assim sua soberania
no mundo.
Nessa nossa nova época, a cultura, cuja base é sempre religiosa, cuja
natureza é sempre simbólica, cuja existência pressupõe uma meditação e uma
criação desinteressadas, começa a se transformar numa civilização, mas secularizada,
interessada no poder e no bem-estar da vida, e na qual predomina um ingênuo
realismo. A civilização constitui o limite extremo da mecanização da vida
humana e da natureza. Nela, tudo o que é orgânico morre. A mecânica, criada
pelo poder da ciência humana, submete não só a natureza, como também o homem.
esse último já não é escravo da natureza; ele se libertou de seu poder
orgânico, mas se tornou escravo da máquina, prisioneiro do meio social que ela
criou. Na civilização, último resultado do humanismo, a imagem humana começa a
perecer. A cultura é impotente para lutar contra crescente da civilização.
Manifesta-se uma vontade que aspira a modificar e transfigurar a vida; mas a
cultura não transfigura a vida, ela não faz mais do que lhe trazer os grandes
valores criativos: as filosofias, as artes, as instituições do Estado e do
direito. Produz-se um desdobramento nessa aspiração à vida real, à sua
transfiguração: de um lado, a vontade é dirigida para a transfiguração social e
técnica dentro de uma civilização ateia; de outro, a vontade aspira a uma
transformação religiosa, à iluminação espiritual do universo e do homem. Essas
duas vontades se enfrentam no mundo. Esse é o esquema das relações entre o
homem e a natureza.
O homem é a criação de Deus e ele precede, metafisicamente falando, o
mundo natural e seu destino histórico. Não podemos deduzir o fenômeno humano a
partir do desenvolvimento natural do mundo. Bem ao contrário, o homem possui.
No mundo natural, sua própria evolução. O homem decaído não se ergue, nem
adquire sua imagem, senão por meio de um processo de desenvolvimento
progressivo. Nisso reside a verdade do evolucionismo. O homem se confundiu com
a natureza inferior e perdeu sua imagem. É nos degraus mais baixos da vida
animal que ele começou sua vida animal. A personalidade humana não despertará
do estado de inconsciência e de evanescência no qual foi lançado por sua
separação em relação a Deus, senão por meio de um longo e torturante processo
de luta e de crescimento.
Na antiga Hélade, onde, por um instante, a visão do Éden perdido foi
recuperada, o homem se elevou pela primeira vez sobre o mundo pagão, e sua imagem
modelou-se em magníficas formas plásticas. Durante muito tempo, os limites da
natureza humana permaneceram indistintamente marcados. A imagem do homem era
ainda confusa, ela ainda não havia se liberado da imagem dos deuses e da
natureza animal. Ainda não havia uma distinção cara entre o herói, o deus e o
homem. O herói não era simplesmente um homem, ele era um semideus. Realizava-se
na Grécia antiga um processo antropogônico, por meio da criação de deuses e
heróis. A fim de se elevar acima do estado no qual as imagens humana e animal
se encontravam confundidas, o homem deveria acolher em si a imagem do deus ou
do semideus, princípios considerados sobre-humanos.
Se, nos últimos dias da história humanista europeia Nietzsche aspirava
a se elevar do homem ao super-homem, se ele buscava outra vez confundir a
imagem do homem com a do deus, do herói, ao contrário, na aurora do humanismo
grego, o homem nascia do super-homem. na escultura grega, a revelação da imagem
humana nos foi dada pela beleza, e o homem se desembaraçou do estado de
confusão com o animal, que era inerente ao Oriente.
A cultura do Ocidente nasceu na Grécia, e na sua origem repousa o mito
ariano, tão diferente do mito bíblico: o mito de Prometeu. O mito da queda do
primeiro homem é mais profundo e mais fundamental do que o de Prometeu. A queda
de Adão determinou a própria existência do mundo natural e de todo o seu
destino. O mito de Prometeu nos revela um determinado fenômeno espiritual já
realizado dentro do mundo natural decaído, como sendo um momento importante e
determinante no destino da humanidade. Esse mito não é metafísico, ele se
refere ao nascimento da cultura humana. Ele nos ensina que o super-homem, o
herói, luta, em nome do homem e de sua cultura, contra os deuses e os demônios,
contra os espíritos da natureza e os elementos. O homem e a cultura não começam
a existir, nesse mundo natural, senão a partir do momento em que o fogo do céu,
que só pertencia aos deuses, foi roubado; somente a partir do momento em que o
homem se apropria do princípio supremo, que somente os violentos são capazes de
conquistar. Prometeu liberta os homens, não de Deus, que permanece oculto para
ele, mas dos deuses da natureza, do poder dos elementos: ele é o pai da cultura
humana. A luta titânica contra os deuses não é uma luta com Deus. Assim, o mito
prometeico não pode, de forma alguma, se opor ao mito bíblico, sobre o qual se
apoia o Cristianismo, porque eles pertencem a planos diferentes.
O princípio prometeico é o princípio eterno; sem ele não haveria homem.
separado de Deus, o homem era obrigado a se erguer pela afirmação do princípio
prometeico. Sem esse princípio, o home permaneceria na confusão, ele não seria
revelado. O homem tinha que se libertar dessa submissão aos deuses da natureza.
Esse era o caminho pelo qual ele se encaminharia para o Cristianismo, para o
advento do novo Adão. A imagem do homem não poderia se manifestar senão por
meio desse princípio heroico e titânico, rebelando-se contra os deuses. É a
luta cósmica em meio a sofrimentos, da qual nascerá o homem. O mito prometeico
é um grande mito antropológico e antropogônico. Sem Prometeu, não existiria
cultura no mundo, o gênio criativo do homem não se manifestaria. Por isso esse
mito deveria receber sua santificação cristã.
O mito da queda nos fala da atitude do homem para com Deus. O mito de
Prometeu nos fala da atitude do homem para com a natureza. O homem separado de
Deus deveria necessariamente se ver colocado diante da natureza e de seus
dominadores, numa situação análoga à de Prometeu. E é assim que o destino do
homem foi revelado na criação mitológica da Grécia.
A tragédia grega revela ao mundo o grande drama da vida e do destino
do homem. Ela foi, para o mundo antigo, uma revelação que o resgatou de seus
limites e o direcionou a um outro mundo. Foi por vias diversas que o mundo
humano se revelou na cultura grega: o humanismo antigo se afirmava, o homem se
preparava para receber a verdade do Cristianismo, a verdade do Deus-homem. O
titanismo antigo e o heroísmo antigos não chegaram a resolver o problema do
destino humano – eles apenas o colocaram. A solução só foi obtida na religião
do Deus-homem. O asceta cristão, o santo, alcançam essa vitória final sobre o
“mundo”, sobre os elementos da natureza, sobre o destino, que era tragicamente
inacessível ao herói e ao titã. O herói trágico se dirige para a morte. O
cristão se dirige para a Ressurreição.
A imagem do homem, na cultura antiga, se manifestava pela ação
recíproca e a luta entre os princípios dionisíaco e apolíneo. O princípio
dionisíaco é o elemento original sem o qual o homem não possui fonte alguma de
vida. A superabundância da força dionisíaca gera a tragédia, ela rompe os
limites de toda individualidade. O culto dionisíaco é um culto orgíaco. O homem
busca nele a libertação do mal e dos tormentos da vida, pelo deslocamento da individualidade,
pela perda da personalidade, pela imersão no elemento natural original. A
religião de Dionísio é a religião da salvação impessoal. O princípio dionisíaco
em si não e capaz de moldar o homem, ele não tem como afirmar e conservar a
imagem humana. Assim, a predominância de elementos e de cultos dionisíacos
constituiu, de certa forma, um retorno para o homem do Oriente à
“não-diferenciação” oriental.
A personalidade era forjada pela religião de Apolo, deus da forma e da
medida, ela era gerada dentro da religião apolínea. O princípio apolíneo é, por
excelência, o princípio individual. Ele é igualmente o princípio aristocrático.
O gênio helênico da forma pertence ao culto de Apolo. Mas uma predominância
exclusiva de seu princípio ameaça por a perder toda ligação com o princípio
dionisíaco. O gênio helênico recusava a submissão à influência do Oriente, e
não se deixou despedaçar pelo elemento dionisíaco, mas o submetei à forma
apolínea, impondo-lhe seus limites. A beleza está ligada ao princípio apolíneo.
O princípio dionisíaco em si é desarmônico. O cosmo é belo porque nele se
unificam o elemento dionisíaco e a forma apolínea. O homem possui a beleza, a
imagem e a semelhança divinas, porque também nele esses dois elementos se
conciliam. O equilíbrio entre esses dois princípios é o objetivo ideal, que o
mundo helênico soube atingir. Mas esse equilíbrio podia ser rompido por um ou
por outros desses princípios.
Se, de um lado, o triunfo exclusivo do elemento dionisíaco ameaça
destruir a personalidade do homem, por outro lado, o triunfo excessivo do
elemento apolíneo ameaça o homem com um formalismo exterior, uma cultura
puramente formal, um alexandrinismo, uma espécie de positivismo à antiga. O
princípio apolíneo é o princípio da medida. O infinito está fechado para ele.
ele se entreabre para o princípio dionisíaco, mas nele os abismos superior e
inferior são indiscerníveis. O mundo antigo jamais consegui se liberar do
antagonismo desses dois princípios e não chegou a salvar o homem do perigo que
o afligia.
VIII
A revelação definitiva e a afirmação da personalidade humana não é possível
senão no Cristianismo, pois é ele que reconhece a importância e o valor eterno
do homem, da alma humana individual e de seu destino. A alma humana tem mais valor do que todos os
reinos do mundo, pois ela encerra o infinito. O Cristianismo apareceu no mundo,
antes de tudo, como a religião da salvação do homem, e ele manifestou, por isso
mesmo, sua solicitude em relação à personalidade e à alma humana; ele jamais
viu o homem como um meio ou um instrumento para servir a objetivos quaisquer,
como um momento passageiro do processo cósmico ou social. Essa atitude em
relação ao homem é inerente a ele. A consciência cristã tem como fundamento o
reconhecimento do valor eterno daquilo que é único, daquilo que é irrepetível.
Somente no Cristianismo encontramos o individual em seu valor eterno. A face
única e inimitável de todo homem não existe senão porque existe a Face única e
inimitável de Cristo, o Deus-homem. Em Cristo e por Cristo se revela a face
eterna de todo ser humano. No mundo natural ela está dividida e se torna sempre
um simples meio a serviço da raça natural. O antropologismo autêntico não é
próprio senão à consciência cristã, e o objetivo para o qual pendia o mundo só
se vê realizado no Cristianismo.
Mas o caminho da Redenção que liberta a alma humana da servidão ao
pecado e ao poder dos elementos inferiores, dissimulou durante algum tempo a
missão criadora do homem. A consciência patrística se preocupava com a salvação
da alma, e não com a criação. A Igreja dava uma sanção religiosa a esse estado
de alma a que chamamos de santidade, mas a recusava ao estado da natureza
humana que denominamos gênio. A santidade é antropológica, ela consiste na
aquisição suprema da natureza humana, na sua iluminação e deificação. Nisso ele
se distingue do sacerdócio, que não é um princípio humano, mas angélico. No
entanto, será o caminho da santidade e sua obtenção a única via, a única
aquisição religiosa do homem? Será possível afirmar que todo caminho criativo do
homem, que não esteja fundamentado na santidade, não seja autorizado senão em
razão do pecado da natureza humana, e não possa receber uma justificação
religiosa positiva?
Existe nisso, para a consciência cristã, uma questão profundamente
perturbadora, e a impossibilidade de responder a ela faz com que a vida humana
permaneça desunida e, na sua maior parte, não santificada. O caminho da
inspiração criativa permanece terrestre, secular, não sagrado. O sentido
religioso do gênio, como manifestação suprema da criação humana, permanece
oculto. Paralelamente à existência dos santos, dos ascetas, daqueles que buscam
a salvação de suas almas, que sentido atribui a consciência cristã à vida dos
gênios, dos poetas, dos artistas, dos filósofos, dos sábios, dos reformadores,
dos inventores, desses homens que se ocuparam acima de tudo em criar? Não
podemos eludir a essa questão sugerindo que o Cristianismo não renega de modo
algum as manifestações do gênio criador do homem. Ela é infinitamente mais
complexa, ela atinge a profundeza mesma da metafísica do Cristianismo e de sua
consciência dogmática. Não é a inspiração criativa em si uma experiência
espiritual, a manifestação da missão positiva do homem? Não espera Deus do
homem o heroísmo criador?
A criação não pode ser unicamente autorizada, escusada: ela deve poder
se justificar de maneira positiva do ponto de vista religioso. Se o homem se
torna poeta ou filósofo, unicamente porque seu estado de pecado e fraqueza o
impendem de seguir o único caminho autêntico, o caminho do ascetismo e da
santidade, então o poeta e o filósofo estão condenados pela consciência cristã,
e assim sua obra criativa deve ser rejeitada como sujeira e inanidade.
É evidente que o homem deve seguir o caminho da purificação, o do
ascetismo e do sacrifício, e que ele deve lutar contra sua natureza inferior. Toda
obra criativa, todo conhecimento, toda arte, toda inovação, nada disso é
possível sem uma limitação de si mesmo, sem uma elevação acima da natureza
inferior. Quem coloca o objeto de sua criação acima de si mesmo e que prefere a
verdade acima de si mesmo também, somente esse é capaz de criar seja o que for
na vida. Esse é um axioma espiritual. O poeta por ser um grande pecador e cair
até muito baixo, mas no momento da inspiração poética, no abrasamento criativo,
ele se ergue acima de sua decadência, ele ultrapassa a si mesmo. Esse pensamento
está expresso no famoso verso de Pushkin: “Quando não é chamado por Apolo para
realizar o sacrifício sagrado, o poeta é talvez o mais miserável das crianças
miseráveis desse mundo”.
A vida criativa possui sua santidade, sem a qual toda criação se corrompe,
e nela existe também uma piedade, sem a qual o criador perde sua força. Mas toda
a acuidade do problema religioso da criação reside na seguinte questão: será a
humildade o único fundamento autêntico da vida espiritual, ou existirá algum outro,
do qual nasce a energia criativa? Quando damos uma descrição fenomenológica e
psicológica da criação, somos obrigados a reconhecer que essa, em qualquer esfera
da vida que seja, não depende exclusivamente do fenômeno espiritual da humildade.
A humildade se encontra na origem da vida espiritual do cristão. Graças a ela,
a natureza pecadora do homem se transfigura, o egocentrismo é vencido. Esse processo
espiritual se produz igualmente em todo criador, que deve, por humildade, por
desembaraço, pelo sacrifício de seu egocentrismo, transfigurar sua natureza, se
libertar do fardo do pecado. É preciso, para que nasça a necessidade de criar,
escapar ao contentamento de si. Mas a própria criação, o impulso criador,
indica um momento diferente na vida e na experiência espirituais.
No momento em que cria, o homem não sonha com a vitória sobre o
pecado, pois ele se sente já liberto de seu peso. A própria criação já não é
nem humildade, nem ascetismo, mas inspiração e êxtase, a comoção benfazeja de
todo ser humano, na qual se manifesta e se descarrega a energia espiritual
positiva. O problema da justificação da criação é o da inspiração criadora,
enquanto experiência espiritual. A criação pode adquirir um sentido e uma
justificação religiosa se, na inspiração, o homem responde à exigência, ao
apelo divino, cooperando com a criação Divina. Se, quando falamos de criação,
nos é respondido com um apelo à humildade, o problema permanece incompreendido
e a discussão não vai além disso.
Jamais o sábio faz descobertas, jamais o filósofo penetra os mistérios
e o sentido do mundo, jamais o poeta nos dá seus poemas, nem o pintor seus
quadros, jamais o inventor trará suas invenções, nem o reformador social novas
formas de vida, partindo de um estado de humildade, deplorando sua fraqueza e seu
pecado, sua impotência e sua aparente nulidade. O ato criador pressupõe um
estado espiritual bem diferente: uma superabundância de força criativa, seu
impulso imediato, o sentimento de uma integridade nesse estado espiritual.
O criador pode, num mesmo período de sua vida, orar com humildade, confessar
seus pecados, submeter sua vontade à de Deus, e ao mesmo tempo sentir a
inspiração, ter a consciência de sua força criativa. Existe, na inspiração criadora, no êxtase, um desembaraço
inédito, uma vitória sobre a “necessidade” do pecado, uma integridade interior
e um esquecimento de si. Talvez nessas coisas exista mais desprendimento do que
na humildade; sonha-se mais com Deus do que consigo próprio. Na salvação da
alma, na redenção, o homem pensa ainda em si mesmo. A criação, no sentido
profundo, é uma contemplação de Deus, da verdade, da beleza e da vida suprema
do espírito, Deus não se contenta com a busca da salvação. Ele precisa que o
homem, na revelação positiva de sua natureza, manifeste seu amor criativo em
relação a Ele. Mas Deus não pode amar o rebaixamento do homem. a criação
autêntica não pode, em caso algum, ser uma criação em nome do homem; ela não
pode ser outra coisa que uma criação em nome daquele que lhe é superior, em
nome de Deus, mesmo que esse nome não represente para a consciência humana
senão a verdade, a beleza ou a justiça.
A criação, por sua natureza, constitui um sacrifício, e o destino do
gênio criador é um destino trágico. A criação do homem, como tudo o que se
encarna no mundo, como até a própria organização da Igreja cristã, pode
facilmente se contaminar, se desnaturar e degenerar. Desde o momento em que o
homem começa a criar em seu próprio nome, a se autoafirmar na sua criação, a recusar
o ascetismo e o sacrifício, o abismo do nada se abre diante de sua obra. A vaidade
agarra o criador e desfigura sua natureza criativa.
No mundo contemporâneo espiritualmente decaído, é temível, na verdade,
o vazio, o “não-ser”, da literatura, da arte, do pensamento, da filosofia, das inovações
da vida, da edificação social; temível é, na criação, a ausência de verdadeiras
realidades objetivas. O esteticismo atual, do modo como se manifesta no pensamento
científico, na arte, no direito, na vida politica e na técnica, é a expressão
de uma separação desesperada do processo criador em relação à existência, em
relação a Deus, ele é a expressão de uma indiferença para com tudo o que existe
ontologicamente, ou que não existe. Existe aí uma decadência que esconde à
consciência moderna o sentido religioso da criação. A criação contemporânea está,
na maior parte das vezes, desprovida de sentido religioso e de realidade
objetiva, ele não passa de uma tentação para os homens de consciência cristã. É
assim que ela provoca contra si, na civilização moderna, uma reação religiosa.
IX
No mundo cristão existem duas correntes que sempre se enfrentaram: a
manifestação do espírito criativo do homem e a reação monofisita contra esse
espírito. Essa corrente monofisita ainda existe em nossos dias. Ela não percebe o problema religioso do homem
e se vê incapaz de superar o humanismo. Somente poderá vencer o humanismo a descoberta
positiva da verdade referente ao homem e à sua missão criativa. A negação
monofisita provoca sempre uma reação humanista.
O Cristianismo monacal e ascético fundado sobre a antropologia
patrística, ou mais exatamente sobre uma pequena parte de sua doutrina, que
considera o ascetismo como a única vida espiritual, reprovando todas as que conduzem
à criação humana, não pode desembaraçar o
humanismo da crise universal, que não passa da contrapartida da crise
que o Cristianismo sofre. A concepção místico-ascética do mundo frequentemente
não passa de um maniqueísmo velado.
Hoje em dia, nenhuma consciência cristã compenetrada de sua responsabilidade
pode pretender que nada de especial se produziu no mundo e no homem desde a
época dos concílios ecumênicos e das polêmicas dos doutores da Igreja, que não
se colocaram problemas novos ao pensamento religioso, que nada mudou e que
somente o pecado humano persiste em deformar tudo, como no passado. O homem
percorreu um longo e complexo caminho, ele viveu uma tragédia que as épocas
anteriores, mais simples, ignoraram, e a extensão de sua experiência se
desenvolveu infinitamente, de modo que sua psique se modificou e que problemas inteiramente
novos se apresentam a ele na atualidade.
Não é possível satisfazer as novas exigências da alma por meio de
procedimentos que então eram empregados pelos Padres da Igreja, numa época
inteiramente diferente da nossa. O elemento humano na Igreja se modifica e se
desenvolve. É preciso atualmente dar continuidade e renovar a obra criativa dos
antigos doutores da Igreja, e não retomar suas respostas a questões que hoje em
dia estão desatualizadas. O Cristianismo não poderá continuar a existir se
continuar num estado de epigonismo, de plágio e de decadência, se ele insistir
em viver às custas de seu antigo capital, em procurar acumular novas riquezas. As
portas do inferno não prevalecerão contra ele porque ele contem uma fonte
inesgotável e eterna de forças criadoras. Mas a humanidade cristã pode sofrer
uma decadência. A reação monofisista constituiu uma dessas decadências.
Nietzsche foi uma vítima desse monofisismo decadente que surgiu no seio do Cristianismo,
dessa negação do homem. ele vivia torturado por uma sede criativa, que ele
jamais chegou a justificar religiosamente. Ele se levantou contra Deus que,
segundo ele, proibia toda criação.
A Igreja, cuja consciência era superficial, não observou, se podemos
nos exprimir assim, a extensão do caminho que o homem percorreu; ela não esteve
suficientemente atento às mudanças ocorridas na alma humana. A Igreja, no
sentido diferencial e não integral do termo, não reconheceu como seu o trabalho
criativo positivo do homem, como se ela houvesse esquecido sua própria natureza
teândrica. O homem se transformou profundamente, ele foi contaminado por novos
pecados, ele sofreu novos tormentos e tenta hoje amar a Deus com um novo amor
criador. Mas os representantes da antiga consciência da Igreja acreditam ter
diante de si sempre a mesma alma imutável com os mesmos pecados e as mesmas
questões. O homem passou sucessivamente pela experiência de Hamlet e de Fausto,
pela de Nietzsche e de Dostoievski, pelo humanismo, o romantismo e o gosto
pelas revoluções, pela filosofia e a ciência contemporânea; é impossível rasurar
esse passado.
Quando a experiência vivida é superada por um estado superior, ela faz
desse estado uma parte integrante. Essa é uma lei da vida. A alma se transforma
em outra coisa, infinitamente mais sensível; paralelamente aos novos pecados e
às novas tentações, surgiu nela uma compaixão em relação a tudo o que vive,
compaixão que a alma mais rude das épocas anteriores ignorava. Essa nova
sensibilidade se estendeu ao homem em relação a si mesmo. Produziu-se no mundo
um processo duplo, a um tempo de “democratização” e de “aristocratização” da
alma.
Uma resposta cristã positiva deverá, cedo ou tarde, ser fornecida à
nostalgia criativa do homem, pois o destino do Cristianismo no mundo depende
disso. O próprio Cristianismo tornou infinitamente mais complexa a psique do
homem, mas não foi capaz de iluminá-la com um brilho suficiente. É preciso
sempre distinguir a ação profunda, subterrânea, do Cristianismo ao longo da
história, de sua ação exterior, terrestre, que faz parte da consciência da
Igreja. A vinda de Cristo ao mundo trouxe consigo a cristianização de todo o
cosmo, e não só o estabelecimento de Igrejas visíveis. Por toda parte vemos
essa dupla ação das forças de Cristo. Assim é que o Cristianismo introduziu no mundo
o amor entre o homem e a mulher, esse amor romântico desconhecido do mundo
pré-Cristão. Mas a consciência da Igreja não conseguiu resolver a questão do
sentido religioso do amor. O Cristianismo forjou a personalidade humana e
tornou possível o nascimento de uma individualidade específica que se refinou
progressivamente na nova história. Mas a consciência da Igreja insistiu em
ignorar o desenvolvimento da individualidade, seu destino trágico no mundo. Por
outro lado, nossa nova época desenvolve e intensifica o sentimento de
individualidade ao mesmo tempo em que oprime o indivíduo, impondo-lhe um nível
e subordinando-o às massas.
Vivemos e sofremos essas contradições. O homem, num processo de
desenvolvimento que parece ser inteiramente natural, se evade de seus costumes
e da consciência coletiva e chega à consciência pessoal e às formas individuais
de criação na vida. Daí decorrem grandes modificações no estilo do Cristianismo.
Ele se encontra num estado transitório, tendo perdido sua austeridade anterior
e sua integridade. Ele á não pode ser um Cristianismo de costumes. A antiga
ordem, a antiga consciência racial se desagrega.
A nova raça comunista acolhe em si a imagem do anti-Cristo. A individualidade
humana é esmagada entre os vestígios da antiga geração e os embriões da nova. Não
pode haver aí um retorno ao antigo agregado, no qual estavam unificados o
Cristianismo e a organização tradicional da vida. Uma tentativa desse gênero
nunca passou de uma reação impotente. A esse novo estado no destino da
sociedade humana deve corresponder também um novo estilo de Cristianismo, que,
em seu estado transitório, histórico e psicológico, não pode ser considerado
como absoluto e eterno. O finito jamais pode submeter o infinito; não é
possível submeter o espiritual às formas naturais efêmeras. O falso conservadorismo
amarra sempre o espirito infinito à forma finita e substitui por essa última a
própria essência do divino. Contra esse falso estilo clássico o romantismo se
levanta, com toda justiça, com sua nostalgia do infinito, com sua recusa em se
reconciliar com o finito.
Vivemos numa época na qual o estilo estático clássico do Cristianismo já
não é mais possível, na qual a submissão aos costumes constitui um obstáculo à
expressão infinita do ser. Nosso Cristianismo é outro, a um tempo eterno e
novo. Ele não é nem clássico, nem estático, porque ele designa um movimento
espiritual, um dinamismo intenso, que ainda não encontrou seu adequado
simbolismo.
O Cristianismo que domina nossa nova época é inevitavelmente um Cristianismo
que viveu a decadência e a queda do humanismo, as tempestades da revolução, a inédita
intensidade do desdobramento do pensamento, as buscas pela liberdade e a
criação humanas. A antiga forma de cultura já não responde à nossa época
catastrófica. Não podemos ver o ser eterno nos costumes efêmeros. Cristo veio
para todo o universo, para todos os homens e para todas as épocas. O Cristianismo
não existe somente para as almas simples, mas também para as almas complexas, é
preciso lembrar. O estilo predominante da Ortodoxia foi, por muito tempo,
adaptado a um estado de alma ingênuo e rude. Mas a alma humana se tornou mais complicada e
refinada. O que deve ser feito? Será possível que Cristo não tenha vindo para
ela, e que a verdade do Cristianismo não exista para essa alma?
A verdade cristã existe para todos e para tudo, mas a forma estática
do Cristianismo de tal ou qual época pode não estar orientado senão para uma
categoria determinada de almas. Assim é que o starchestvo[5]
russo havia elaborado uma forma de Cristianismo que possuía suas almas “tipo”. Constatamos
que uma manifestação tão importante quanto essa foi impotente para responder à
nostalgia criadora do homem. Ela jamais conseguiu, por exemplo, obter um domínio
real sobre a alma de Dostoievsky.
Jamais o princípio hierárquico da Igreja, o principio sacerdotal, será
capaz de resolver o problema religioso da criação. Esse é a manifestação do princípio
humano, da natureza humana. Somente o homem pode encontrar sua resolução;
nenhuma autoridade, qualquer que seja, nenhuma hierarquia que não seja humana,
poderá fornecê-la. A solução do problema religioso da criação será uma solução
humana. O PROBLEMA CONSISTE PRECISAMENTE EM QUE SUA SOLUÇÃO SEJA HUMANA, QUE
ELA VÁ DO HOMEM PARA DEUS E NÃO DE DEUS PARA O HOMEM.
A humanidade, no período cristão da história, se dilacerou na contradição
entre um Cristianismo sem criação humana e uma criação humana sem Cristianismo,
entre um Deus sem homem e um homem sem Deus. O amor a Deus se transformou,
muitas vezes, em ódio ao homem. O movimento do Cristianismo para a plenitude
deve assegurar a vitória sobre essa divisão, a revelação positiva do
Deus-humanidade, a união dos dois movimentos, a aliança entre o Cristianismo e
a criação.
Aproxima-se a hora em que se torna cada vez mais claro que somente no
Cristianismo, e por intermédio dele, a imagem do homem poderá ser salva, pois
os elementos desse mundo tendem a destruí-la. A criação do homem é possível e
justificada, desde que a serviço de Deus e não de si mesmo, desde que ela se
associe à criação divina. Esse problema está ligado ao problema da consciência
divina, à vitória sobre os vestígios do dualismo metafísico maniqueísta, que
opõe radicalmente Deus à criação e a Igreja ao mundo. Todo ser autêntico está
enraizado em Deus. Fora de Deus não há outra coisa que o não-ser, o mal e o
pecado, jamais a natureza.
[1]
Doutrina condenada pelo Concílio de Antioquia (435) que sustentava que foi Deus
Pai, e não o Filho, que sofreu na cruz.
[2]
Berdiaev não se refere à questão de cor, como hoje em dia se costuma entender o
termo “racial”, mas à raça, na qualidade de “raça humana”, por exemplo.
[3]
Boehme chama a substância “tinctur”, a qualidade vivificadora
individual, da qual tudo brota.
[4]
Citações extraídas de obras de Jacob Boehme, Die drei Principien göttlichen
Wesens, Vom dreifachen Leben des Menschen, Lysterium Magnum.
[5]
O starchestvo, uma prática religiosa informal da Igreja Ortodoxa Russa,
constitui um fenômeno que, paralelamente às doutrinas teológicas oficiais, se
reveste de um sistema de práticas e crenças chamadas de “Ortodoxia popular”.
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