I
Se a palavra místico deriva do termo mistério, então a mística deve
ser considerada como a base da religião e como a fonte de seu movimento
criador. A experiência religiosa nasce do contato imediato e vivo com o
mistério último. Na vida religiosa, o torpor e a paralisia são superados e o renascimento
é adquirido por um retorno ao mistério último da existência – vale dizer: pela
mística. Nela a vida religiosa ainda está incandescente, ela não está nem
extinta, nem fixada. Todos os grandes iniciadores e criadores da vida religiosa
conheceram essa experiência inicial, esses encontros místicos, que os colocaram
face a face com Deus, com o divino. Foi no fogo da experiência mística que São
Paulo teve a revelação sobre a essência do Cristianismo. A mística é o solo
nutriz da religião, a qual perece ao se separar dele.
Mas, na história, as relações efetivas entre a mística e a religião
foram delicadas e confusas. A religião temia a mística e nela via
frequentemente a fonte de heresias. A mística entravava, de certo modo, seu
trabalho organizador e ameaçava subverter suas normas. Todavia, a religião
tinha necessidade da mística, e assim ela sancionava sua própria forma de
mística, como sendo a flor e o coroamento de sua vida. Existe uma mística
ortodoxa autorizada e recomendada, uma mística cristã, assim como existe uma
mística das religiões não-cristãs. A confissão religiosa se esforça sempre por
submeter às suas normas o elemento místico, que muitas vezes era voluntário e
violento. Dessa forma, existe sempre uma dificuldade nas relações entre a mística
e a religião.
Essa dificuldade se tornou ainda mais aguda em nossa época, pelo fato
de que a mística está na moda, e que essa palavra é frequentemente empregada
num sentido obscuro e indeterminado. A introdução da mística na literatura
contemporânea teve consequências fatais. Tentou-se dar a ela atributos de uma
cultura refinada, mas o que conseguiram com isso foi deformar sua natureza
eterna. A mística não constitui um psicologismo refinado, ela não é uma paixão
anímica irracional, nem simplesmente uma música da alma. É por isso que a
religião cristã, com toda razão, se levanta contra esse sentido que se
pretendeu atribuir à mística. O psicologismo do final do século XIX e início do
XX está em contradição com o significado da mística, como, de resto, também o
está do Logos. Mas se considerarmos, não as obras literárias contemporâneas,
mas os modelos clássicos e eternos da mística, seremos obrigados a reconhecer,
antes de tudo, que ela não tem uma natureza psíquica, mas uma natureza
espiritual, ou seja, ela não é psicológica, mas sim “pneumática”.
Na experiência mística, o homem se evade sempre de seu mundo anímico
isolado e entra em contato com a origem espiritual da existência, com a
realidade divina. Costumamos dizer a certos protestantes, que atribuem à
mística um caráter de individualismo religioso, que a mística consiste na
evasão de um estado individualista, que ela ultrapassa. A mística é a
profundidade e o cume da vida espiritual, ela é uma de suas qualidades. Ela é
intima e oculta, mas ela não é individualista. Windelband expressa do seguinte
modo a contradição que, segundo ele, existe na mística alemã: ao mesmo tempo em
que ela procede do individual, ela considera a individualidade como pecado. Mas
existe aí uma contradição no plano psíquico, que cessa de existir no plano
espiritual. É preciso afirmar com insistência que a mística não é um estado ou
um romantismo subjetivo, que ela está isenta da oposição entre o subjetivo e o
objetivo. Ela não é um estado de alma sonhador. Ela é realista, sóbria no
discernimento e na descoberta das realidades. Não é um verdadeiro místico senão
aquele capaz de ver as realidades e que sabe distingui-las dos fantasmas.
Antes de qualquer coisa, é preciso estabelecer uma distinção radical
entre a mística e a magia. Essas esferas, conquanto totalmente diferentes, são
facilmente confundidas. Enquanto que a natureza da mística é espiritual, a da
magia é naturalista. A mística consiste na união com Deus, a magia é a união
com os espíritos da natureza, com suas forças elementares. A mística é a esfera
da liberdade, a magia é a esfera da necessidade. A mística é desembaraçada e
contemplativa, a magia, ao contrário, é ativa e militante; ela revela as forças
secretas do homem e do mundo, sem, no entanto, alcançar a profundidade de sua
origem divina. A experiência mística constitui precisamente uma libertação
espiritual da magia do mundo natural. Nós estamos pregados a essa magia que nem
sempre reconhecemos. A técnica científica possui uma natureza e uma origem
mágicas, ela é alimentada pelo desejo de conquista das forças naturais. A
magia, por essência, é distinta da religião e frequentemente se opõe a ela,
embora, apesar de tudo, a religião contenha em si certos elementos de magia.
Uma compreensão mais profunda da natureza é sempre mágica. As energias
mágicas agem por toda parte no mundo. A mística é comparada à magia em razão da
existência de uma pseudomística. Existem dois tipos de falsa mística: a mística
naturalista e a mística psicológica, a mística da natureza e a da alma. Mas
nenhuma das duas chega a alcançar efetivamente a profundidade da experiência
autêntica; nelas sempre subsiste o isolamento do mundo natural e psíquico. A
verdadeira mística é a mística espiritual. Nela são ultrapassadas a falsa magia
e o falso psicologismo. Somente na profundidade da experiência espiritual o
homem pode alcançar a Deus, somente aí ele sai dos limites do mundo natural e
psíquico. Mas a mística não pode ser simplesmente identificada à vida
espiritual, cuja extensão é infinitamente mais ampla. Não podemos chamar de
mística senão a profundeza e o cume da vida espiritual. É nessa profundeza e
nessa elevação que o homem toca o mistério final.
A mística pressupõe o mistério, vale dizer, a profundidade abissal,
inesgotável e inefável. Mas ela pressupõe igualmente a possibilidade de um contato
vivo com esse mistério, de uma vida com ele e nele. Reconhecer a existência do
mistério e não admitir sua experiência viva equivale a negar a mística. Spencer
reconhecia que na origem do ser repousa o incognoscível, vale dizer, um certo
mistério. Mas sendo Spencer um positivista e não um místico, o incognoscível
era para ele não mais do que um limite negativo. O enigma da mística não é o
incognoscível e não implica o agnosticismo. Assim é que o homem não atinge a
profundeza mística da vida na gnoseologia, na qual ele só entre em contanto com
o incognoscível; a profundidade mística se atinge na própria vida, na
experiência, na união.
O mistério não é uma categoria negativa, um limite. Ele resume a plenitude
positiva e a infinita profundidade da vida. E, quando ele desaparece, tudo se
torna superficial, limitado, desprovido de profundidade. O homem é atraído pelo
mistério; assim surge uma possibilidade de viver nele e de se unir a ele. É
como Mistério que a Face Divina está voltada para o mundo criado, e não a
podemos ver senão como Mistério.
A mística tem por fundamento um parentesco interior, uma união entre o
espírito humano e o espírito divino, entre a criação e o Criador; uma vitória
sobre o abismo da transcendência e sobre a exterioridade. Assim é que a mística
nos mostra sempre, não a transcendência da divindade, mas sua imanência,
alcançada e vivida na experiência. É por isso que a mística emprega sempre uma
linguagem diferente daquela da teologia. É essa também a razão pela qual, do
ponto de vista teológico, ela sempre pode ser suspeita de variações heréticas.
Mas a mística repousa em tal profundidade, que não é possível aplicar a ela dos
critérios superficiais da heresia. Os místicos são sempre suspeito de estar
orientados para o panteísmo, e quando tentamos compreendê-los racionalmente,
traduzi-los em linguagem teológica ou metafísica, chegamos facilmente a esse
ponto. O panteísmo constitui na realidade uma doutrina profundamente
racionalista. Ora, a mística emprega uma linguagem paradoxal e antinômica; para
ela, tanto a identidade como o abismo entre a criatura e o Criador podem
existir na mesma medida. A mística não pode ser expressa nem pelo monismo
panteísta, nem pelo dualismo teísta.
A teologia e a metafísica que predominam oficialmente na consciência
da Igreja, em especial na consciência católica, elaboram um dualismo ontológico
que separa o Criador da criação, o sobrenatural do natural. Tudo é repartido e
dividido, e não se permite nenhuma confusão. É verdade que São Tomás de Aquino
admitia a mística paralelamente a filosofia natural e à teologia, e nisso
podemos ver nele a influência do pseudo-Dionísio. Mas a metafísica e a teologia
do tomismo não favorecem o mistério, pois elas afirmam as contradições que esse
último se esforça em superar; elas não o admitem senão como um domínio
diferencial, mas para elas o Cristianismo não é místico.
No que consiste a essência da mística?
A MÍSTICA É O TRIUNFO SOBRE O ESTADO DE CRIATURA. Ela é a definição mais
profunda e mais intrínseca de sua natureza. Na experiência mística, já não
existe o dualismo insuperável que opõe o sobrenatural ao natural, o divino à
criatura; nela, o natural se torna sobrenatural, e a criatura se deifica. Mas a
união perfeita com Deus não implica a desaparição do homem, nem a da distinção
entre as duas naturezas. Somente o nada é superado. A mística é o caminho da
deificação, da Theosis do homem e do mundo. Sobre esse ponto, os
místicos de todas as épocas e de todas as confissões estão de acordo.
A religião mantém a oposição transcendente e dualista entre Deus e o
homem, entre o Criador e a criação. Nossa devoção religiosa está baseada na
distância, num sentimento de nossa insignificância enquanto criatura. A mística
nos mostra que a oposição transcendente entre Deus e o homem, a consciência da
infinita pequenez desse último, não é a expressão definitiva do mistério da
vida, do mistério de existência. O imanentismo é próprio a toda mística, mas
trata-se de um imanentismo inteiramente particular, que difere absolutamente
daquele que os diversos gnoseólogos imanentistas apresentam. Trata-se da
imanência do Espírito Santo no mundo criado.
A mística é também supra confessional por natureza, embora existam
tipos de mística confessional, com métodos específicos que devem permitir
superar a limitação confessional. Existe na mística uma profundidade na qual se
unem não apenas os tipos confessionais da mística cristã, como também alguns
tipos de místicas pagãs. O Orfismo de Plotino, a mística hindu e sufi, São
Simeão o Novo Teólogo e São João da Cruz, Eckart e Jacob Boheme, convergem de
certo modo; eles interpelam a partir de mundos diferentes, e muitas vezes falam
uma única e mesma língua. Esse é um fato indubitável, por mais desagradável que
possa parecer aos fanáticos da mística confessional.
Encontramos esse triunfo sobre o estado de criatura nos mais
autênticos místicos da Ortodoxia e do Catolicismo. O grande místico do Oriente
ortodoxo, São Simeão o Novo Teólogo, disse: “Eu Te agradeço, ó Deus que reina
acima de todos, porque Te tornaste, não conjuntamente, infalivelmente,
imutavelmente, um só espírito comigo”. E eis como ele descreve a luz que
entreviu na sua experiência espiritual: “Essa luz não é do mundo, nem qualquer
coisa que seja desse mundo, nem a criatura, pois ela é incriada e permanece
fora das criaturas, como algo incriado entre as coisas criadas”. Ele igualmente
traduz a união mística e a fusão com Deus nos seguintes termos: “Mas ainda que
tivéssemos nos tornado um, eu e Aquele a quem eu me uni, eu, que Ele criou
duplo, como poderia eu me chamar de Deus, que é duplo por Sua natureza e único
por Sua Hipóstase? Mas tenho me criado duplo, Ele me concedeu, como você pode
ver, um nome duplo. Eis a distinção: eu sou homem pela minha natureza, e Deus
pela graça”. “Ele subitamente veio até mim e se uniu a mim de maneira inefável,
e sem confusão Se confundiu comigo, como o fogo no ferro e a luz no vidro”. “De
que outra maneira poderia o fogo divino descer em seu coração, abrasar-se nele,
inflamá-lo e uni-lo a Deus, tornando indivisíveis a criação e o criador!”.
A via mística conduz à transfiguração e à iluminação da criatura. “Eu
me alegro por Teu amor e por Tua beleza, e me sinto cumulado de felicidade e de
doçura divinas. Eu comungo da luz e da glória: minha face reluz como a de meu
Bem-amado, e todos os meus membros se tornam luminosos. Agora eu sou mais belo
do que os belos, mais rico do que os ricos, mais forte do que os mais fortes,
maior do que os imperadores e mais honorável do que tudo o que é visível, não
apenas na terra e sobre a terra, como no céu e além do céu”. “Pois ao mergulhar
em Tua luz, a inteligência se ilumina e se torna uma luz semelhante à Tua
glória, e ela se chama agora Tua inteligência, pois aquele que é digno se tornar
tal, é digno antão de possuir Tua inteligência e se unir a Ti
indivisivelmente”. “Ele (o Criador) tornará incorruptível todo corpo, e te fará
Deus pela graça, semelhante ao Princípio Original”. “Minhas mãos são as de um
infeliz, e meus pés são os de Cristo. Eu, indigno, sou a mão e o pé de Cristo.
Eu movo minha mão e minha mão é Cristo inteiro, pois a divindade de Deus se
uniu a mim indivisivelmente, e eu movo meu pé e ele brilha como Ele”.
Falando de um certo asceta, São Simeão diz: “Pois ele possuía Cristo
inteiro, e ele próprio era como Cristo, ele tinha seus membros e os membros do
outro, ele os tinha únicos e múltiplos. Ele meditava todo o tempo como Cristo,
sempre imóvel, invulnerável e impassível, Cristo por inteiro, e é assim que ele
via a Cristo em todos os que são batizados em Cristo e que de Cristo se
revestiram”.
Na mística extática de São Simeão são descritos os cumes aos quais a
criatura é transportada, nos quais ela é iluminada e deificada. Estados
análogos são descritos nos famosos diálogos de Motoviloff com São Serafim de
Sarov, ocasião em que ambos estavam no Espírito Santo. Motoviloff viu São
Serafim se tornar radiante, luminoso, impregnado de um suave odor. A mística
católica se distingue, por seu tipo, da mística ortodoxa. No entanto, o grande
místico católico, São João da Cruz, nos fala assim do triunfo sobre o estado de
criatura, sobre a união com Deus: “Essa saída me encheu de felicidade; pois num
instante eu havia sido elevado da estados divinos e a conversações familiares
com Deus; vale dizer: meu entendimento havia passado de um estado humano a um
estado divino. Pois, ao me unir a Deus por meio dessa purificação, em já não
possuía um conhecimento débil e limitado de como ela era; mas eu conhecia pela
sabedoria divina à qual eu havia me unido. Minha vontade havia saído de si
mesma e se tornado, de certo modo, divina; pois, estando unida ao amor divino,
ela agora amava, não com suas primeiras forças, mas com as forças do espírito
divino”.
“O estado de união divina consiste em que a vontade da alma se
transforma inteiramente em vontade de Deus, de sorte que a vontade de Deus se
torna o único princípio e o único motivo que a faz agir em todas as coisas,
como se a vontade de Deus e a vontade da alma não fossem senão uma única vontade”.
O estado de união divina que São João da Cruz e outros místicos
católicos descrevem constitui o triunfo sobre o estado de criatura. Esse
triunfo encontra na mística de Eckart sua expressão clássica. O dominicano
Denifle mostrou que Eckart era um católico ortodoxo num grau bem mais profundo
do que se suspeitava até então, e que em seus tratados de teologia latina
recentemente descobertos ele era completamente tomista.
Ora, eis o que enuncia Eckart: “Deus não espera senão uma coisa de ti,
é que saias de ti mesmo, na medida em que és criatura, e que deixes Deus ser
Deus em ti”. “Por amor a Deus, sai de ti mesmo, a fim de que por amor a ti Ele
faça a mesma coisa. Quando ambos tiverem saído, o que restar será, de certo
modo, único e simples”. A mística de Eckart admitia que a distinção entre o
Criador e a criação, entre Deus e o homem, pode ser definitivamente superada na
profundidade última da gnose mística. “O não-ser está além de Deus, além da
diferenciação. Somente lá eu fui eu mesmo, eu quis a mim mesmo, eu vi a mim
mesmo como sendo aquele que criou o homem. Lá eu sou a causa primeira, a de meu
ser eterno e temporal. Somente lá eu nasci (...) Pelo princípio eterno de meu
nascimento, eu era de todos os séculos, eu sou e continuarei pela eternidade
(...) Em meu nascimento, nasceram todas as coisas; eu fui minha causa primeira
e a causa de todas as coisas. Eu desejei que nem eu fosse, nem elas. Mas, se eu
não existisse, também Deus não existiria”.
Encontramos o mesmo espírito no grande místico alemão Angelus Silesius:
“Eu devo ser o Verbo no Verbo, Deus em Deus”. “Eu sou tão grande quanto Deus, e
Ele é tão pequeno quanto eu”. “Todo cristão deve ser o próprio Cristo”. “Quem
quer a Deus deve se tornar Deus”. “Em Deus só os deuses são recebidos”. Todos
esses extratos, de diversos místicos, cuja enumeração poderia se estender ao
infinito, estão escritos numa linguagem particular, que não pode ser traduzida
pela linguagem da metafísica ou da teologia. É a descrição do caminho, da experiência,
dos acontecimentos e dos encontros místicos. Nós admitimos que a teologia e a
metafísica racionais contêm a verdade, no que se refere ao abismo transcendente
ente o Criador e a criação, entre os mundos sobrenatural e natural. A mística
suprarracional não é menos verdadeira, quando entrevê a possibilidade de
superar esse abismo. Uma verdade não contradiz a outra. Elas não expressam
senão momentos diferentes, diferentes estados da experiência. A mística não
elimina os dogmas, mas ela alcança uma profundidade maior do que aquela na qual
são elaboradas as fórmulas dogmáticas. A mística é mais profunda, mais
fundamental do que a teologia, mas ela, evidentemente, comporta muitos perigos.
Na mística tudo se torna interior, tudo é absorvido dentro, nada existe
que seja exterior, não há nenhuma objetivação. A mística me liberta do mundo
natural e histórico que me é exterior e absorve no espírito toda a evolução da
natureza material e da história. Viver um acontecimento de modo místico
equivale a vivê-lo interiormente, espiritualmente, nas profundezas do espírito.
No caminho místico, todo o universo exterior objetivado se extingue, a noite da
sensibilidade se aproxima, e somente no interior do mundo espiritual e divino é
que tudo se revela. As realidades últimas não se revelam senão na mística:
nela, o homem se evade do mundo secundário e reflexo, do mundo dos símbolos.
Tudo aquilo que, na religião, na teologia, no culto, era simbólico e
prefigurado na carne, se torna realista na mística, se revela como profundeza
última da vida original. Somente na contemplação e na união místicas se pode
adquirir a vida eterna.
A mística pressupõe uma concepção simbólica do mundo, mas vai além do
simbolismo, abandonando os símbolos para se voltar para as realidades. Uma
consciência superficial estima que a religião é mais realista do que a mística.
Mas a religião comporta sempre uma parte de mística, e dela extrai suas
origens. Não há religião que não tenha encontros místicos com as realidades.
Mas uma religião positiva está sempre orientada para a vida natural e histórica
dos povos, ela possui uma natureza social, ela organiza a vida das massas, ela
sempre pressupõe o coletivo. A religião estabelece e organiza socialmente uma
ligação e um parentesco, uma comunhão com Deus que pressupõe uma divisão e uma
oposição transcendente. A religião educa, ela guia, ela estabelece graus
hierárquicos de vida espiritual, ela ensina os caminhos, lembrando sempre que a
vida espiritual está elaborada, não apenas tendo em vista uma ascensão a Deus,
como também uma descida para o mundo pecador. Na religião, os elementos
heteronômicos são inevitáveis. A religião se dirige a toda a humanidade, às
massas populares, aos pequenos; ela leva a todos a verdade e a luz, ela não
existe somente para a aristocracia espiritual, para os eleitos. A própria
experiência religiosa que nos parece heteronômica e autoritária está marcada
pela piedade e pela devoção. Em cada um de nós se encontram elementos de
religiosidade heteronômica.
A Igreja é sábia quando condena o orgulho da via mística. Na religião
existe não somente uma heteronomia, como também um exoterismo; ela é não
somente uma revelação, como também um conjunto de mistérios. Esses mistérios
divinos revelam-se por degraus, na medida do conhecimento espiritual dos
homens, na medida da receptividade de sua consciência. Mas, para além do
exoterismo existe sempre o mistério. A mística constitui o esoterismo da
religião, e assim ela só existe para alguns homens, para uma minoria, enquanto
que a religião deve existir para todos, e é nisso que reside a dificuldade de
sua tarefa. Os elementos heteronômicos e exotéricos da religião podem sempre
degenerar e o espírito da vida religiosa pode ser calado. Então, é
indispensável que se possa recorrer à mística, ao esotérico, à fonte original.
Esse é um dos aspectos das relações entre a mística e a religião.
Mas existe outro aspecto. Nem toda mística é necessariamente boa. Ela
também pode se deformar e se corromper; uma mística irreligiosa, carente do
Logos, degenera facilmente e pode precipitar o homem nas trevas, nos abismos
inferiores. Pode haver uma mística na qual o espiritual, o psíquico e mesmo o
corporal sejam confundidos, na qual o espírito não seja mais puro, mas
perturbado. Existem tipos de místicas orgíacas, nas quais o espiritual é
absorvido pelos elementos psíquico ou corporal, e acaba submetido a eles.
Exemplos disso são os cultos de Dionísio e dos chlistis[1].
A mística pagã aspirava a uma espiritualidade, sem, no entanto, atingi-la.
Mesmo no seio do Cristianismo encontramos o êxtase místico da carne
santificada, na qual o espírito infinito é submetido ao finito; existe aí uma
teofania pseudomística.
A mística traz grandes problemas para o mundo cristão. Onde começa a
mística, finda a esfera da precisão dogmática, daquilo que é universalmente válido.
As relações entre a mística e a Igreja são muito complexas. A Igreja ortodoxa e
a Igreja católica jamais negaram a mística, mas ela a temem e desconfiam de
suas tendências. A Igreja exterior e oficial é normalmente hostil à mística, e
é difícil encontrar nela o menor reflexo entre os que são cristãos por
tradição. A base mística do Cristianismo é negada pela teologia oficial, e o
racionalismo se expandiu fortemente entre os dignitários da Igreja. Negamos o
misticismo do Cristianismo, esforçando-nos por torná-lo inofensivo e
estabelecemos formas de mística que possam ser oficialmente reconhecidas. A
Igreja ortodoxa, e a católica, possuem cada qual uma mística oficial. Mas
existem diversos tipos de mística cristã das quais se desconfia, e que são
definitivamente condenadas. Tais são em especial a mística gnóstica, que sempre
se opõe a teologia e que transgride a ordem hierárquica estabelecida, e também
a mística profética.
Existe uma dupla compreensão da mística. Ela pode ser uma forma particular
diferencial da vida e do caminho espiritual, o ápice desse caminho e o
ornamento dessa vida. Nesse caso, ela pressupõe uma certa disciplina e etapas
específicas. Seu objetivo é a contemplação de Deus e a união com Ele. A mística
autorizada pela Igreja está ligada a essa concepção. Ela está de tal forma
unida ao ascetismo que as obras místicas e ascéticas são facilmente
confundidas. Assim é que os extratos da literatura patrística reunidos na
Filocalia possuem um caráter claramente ascético. O ascetismo ensina as maneiras
de lutar contra as paixões, de superar a natureza do velho Adão, e ela revela o
que provém do homem. A mística, ao contrário, nos fala da contemplação de Deus
e da união com o Divino, e ela nos revela o que procede de Deus. No ascetismo
oriental, reconhecido pela Igreja, houve grandes místicos. Dentre eles podemos
citar acima de tudo São Macário o Egípcio, São Máximo o Confessor e São Simeão
o Novo Teólogo. Mas na maior parte da literatura ascética não existe mística;
ela não é alcançada aí. Em São João da Cruz, que representa o modelo clássico
da mística católica ortodoxa, livros como A subida do Monte Carmelo e A
noite escura da alma são acima de tudo ascéticos, e outros, como A chama
viva do amor, são puramente místicos. A vida mística sancionada pela Igreja
representa um cume espiritual, o coroamento da vida dos grandes santos, cada
qual dotado de dons particulares. A Igreja católica, na qual tudo é tão bem
organizado, também modelou sua mística e lhe assinalou um lugar específico. Ela
não deve se estender a todos os graus hierárquicos, nem fundamentar nossa
concepção do mundo, e deve manter-se dentro de seus limites.
Mas existe um outro entendimento da mística, que ocupa um lugar muito
importante, e que não pode ser eliminado. A mística pode ser considerada como a
profundidade da vida, como um sentimento que abarca todo o universo; ela se
propaga, ela está em toda parte; de todos os lados somos rodeados por um
mistério, e em tudo vemos os seus símbolos. O sentimento que nos toma diante do
profundo mistério que cerca a vida, é também uma espécie de mística. Existem
homens especialmente dotados, que possuem os carismas de uma sensação e de uma
compreensão místicas do mundo, independentemente de qualquer santidade. É possível
ser santo sem possuir um dom místico, e pode-se ter um dom místico, sem por
isso ser santo. Voltamos sempre ao mesmo torturante problema referente aos dons,
que não são méritos, como o gênio, que não se deve nem à perfeição, nem à santidade.
Não apenas existem homens favorecidos por dons místicos, como existe também uma
mística inerente à natureza humana em geral, pois o homem é um ser espiritual
que não pertence unicamente a esse mundo.
É por isso que a história da vida e da cultura espirituais da
humanidade compreende místicos e uma criação mística que não provêm de nenhuma
disciplina, nem de uma via em particular. Dostoievsky era um místico por seu
sentimento e sua compreensão da vida, pelo caráter de sua criação, ainda que
não tenha praticado nenhuma disciplina em especial. Sua mística pertencia por
excelência ao tipo profético. Baader, Joseph de Maistre, Solovieff, Léon BLoy
eram místicos, ainda que estivesse longe da santidade.
Podemos nos exprimir assim: existe a mística que consiste num
aperfeiçoamento da alma, numa ascensão espiritual, numa aproximação de Deus, e
existe uma outra mística, que consiste no conhecimento dos mistérios da
existência, dos mistérios divinos. A primeira forma predomina oficialmente na
Igreja. Esse é o reino do momento moral, ascético e purificador. Essa forma de
mística professa antes de tudo a renúncia ao “mundo” e a concentração em Deus. Mas
existe uma mística gnóstica, que deu à humanidade grandes gênios criadores. Basta
nomear Plotino, a Cabala, Eckart, Boehme. Como os classificaríamos? A mística
gnóstica sempre provocou uma certa desconfiança na consciência da Igreja. A teologia
sentis, de certa forma, um ciúme em relação à gnose mística, considerando-a
como um falso conhecimento. Por isso, um dos maiores dons que o homem jamais
recebeu foi condenado. A mística alemã, uma das manifestações do espírito
humano, era gnóstica; fora das divisões estabelecidas pela metafísica e a
teologia, revelou-se nela um conhecimento espiritual, uma percepção dos
mistérios divinos.
A história do espírito humano, da cultura humana, testemunha que o dom
da gnose mística, da contemplação dos mistérios da existência, é um dom
particular, que de modo algum pode ser identificado com a santidade. Jacob Boehme
possuía esse dom num grau infinitamente maior do que São Francisco, do q eu São
Domingos e mesmo de São Tomás de Aquino, que, todavia, era também filósofo. E,
se São Serafim de Sarov possuía o dom da contemplação dos mistérios cósmicos,
isso provinha não da aquisição da santidade, mas de um carisma individual. A questão
dos dons, das aptidões, do gênio, que são manifestações do espírito humano, jamais
foi bem resolvida pela consciência cristã. Temos um exemplo no que diz respeito
ao dom místico, o gênio gnóstico. Os dons prodigiosos de um Plotino ou de um
Jacob Boehme não podem preceder senão de Deus, e eles são necessários por causa
da criação divina. A consciência da Igreja, inspirada por considerações
pedagógicas, se esforça por submeter a mística à lei, mas, fazendo isso, seus
maiores dons acabam por ser banidos.
II
Heiler estabeleceu uma distinção entre o tipo místico e o tipo
profético. Essa distinção é importante, mas a terminologia proposta é convencional.
Não se trata de opor dois tipos um ao outro, mas antes de estabelecer uma categoria
particular de mística profética, na qual predominam claramente elementos
escatológicos e apocalípticos. Essa é a mística que penetra nos mistérios do
devir, dos destinos da humanidade e do mundo, a mística que está orientada para
o fim das coisas. A mística profética, que por seu próprio espírito é transformadora,
é aquela que, no Cristianismo, mais se distingue da mística sacramental,
santificadora, que é, por excelência, conservadora. Na história do Cristianismo
a mística profética jamais foi extinta em definitivo. Ela representou uma
tradição íntima, e se ligou estreitamente ao movimento criador na Igreja.
O Cristianismo nasceu, no mundo, da mística escatológica da primeira
comunidade cristã. A consciência da insuficiência da revelação e do caráter
inacabado da Igreja, faz parte da mística profética, assim como a ideia da
possibilidade de uma nova revelação no Cristianismo e de um movimento criador
que se opere nele. Essa forma de mística é a que a consciência da Igreja menos
reconhece, porque a mais ortodoxa não é nem profética, nem gnóstica. O que
existe de profético no Cristianismo constitui precisamente sua problemática. Será
a profecia possível na época cristã da Nova Aliança? A opinião que considera a
profecia como apanágio da Antiga Aliança, que não podia se referir mais do que
à vinda do Messias, do Cristo Salvador, é largamente difundida. Mas parece que
nos esquecemos de que o Apocalipse, a revelação de São João, obra profética,
faz parte dos livros santos do Novo Testamento. Esquecemo-nos de que existe no
Cristianismo a profecia sobre a segunda vinda de Cristo, aquela da transfiguração,
da iluminação e do fim do mundo, do novo céu e da nova terra. O sacerdócio
sempre teve tendência a negar a profecia, e essa, por seu espírito, não pode se
submeter a ele, nem dele depender. A profecia é livre, ela não está ligada a
nenhum princípio hierárquico, ela representa uma inspiração e uma aptidão
pessoal, individual. O profeta não pertence, como o sacerdote, à ordem angélica,
mas à ordem humana. A ideia central de Vladimir Solovieff foi de defender, no Cristianismo,
os direitos da consciência e da função proféticas; ele colocou a profecia no
mesmo nível do sacerdócio e do reino.
No Cristianismo, o espírito profético está em conflito com o espírito
da lei. Toda a orientação para a Segunda Vinda de Cristo, para a Ressurreição, é
marcada pelo espírito profético. Nesse mistério escatológico, o sentimento que
o homem tem de sua infinita pequenez, é superado. A mística profética é a
mística do Espírito Santo. É uma mística russa por excelência. Ela é inerente
ao povo russo, e nasceu sobre o terreno espiritual da Ortodoxia, ainda que essa
religião e sua hierarquia oficial possam ser-lhes hostis. Isso nos conduz à distinção
entre a mística ortodoxa e a mística católica.
É preciso buscar a diferença entre a ortodoxia e o catolicismo, antes
de tudo, na esfera da mística, na diferença entre as experiências espirituais,
entre os caminhos seguidos. Todo o universo cristão é único em sua
profundidade. A mística ortodoxa e a mística católica são místicas cristãs com
igual direito. Mas esses dois mundos caminharam por vias diferentes e
elaboraram duas formas diversas de espiritualidade, ainda que se dirigindo a um
só e mesmo objetivo. A mística ortodoxa aspira à aquisição da graça do Espírito
Santo; nela, a natureza humana se transfigura, se ilumina, se deifica
interiormente. É a mística do coração, do coração que é o centro da vida. Para adquirir
a integridade espiritual, a inteligência deve se unir ao coração. Cristo
penetra no coração, modificando toda a natureza humana, e o home se torna outra
criatura. A noção da theosis é a noção fundamental da mística ortodoxa,
que está orientada era a transfiguração da criatura. Ela pressupõe uma façanha
ascética, uma luta heroica contra o antigo Adão. Mas a mística ortodoxa é
luminosa e feliz, e nela se revela o mistério da criação divina. A graça do
Espírito Santo é obtida pela humildade, não pelo sofrimento.
A mística católica e mais “Cristocêntrica” e mais antropológica. Ela é
a mística eucarística por excelência. Existe em geral no catolicismo uma
tendência a compreender a natureza do Espírito Santo de maneira subordinada. Costuma-se
identificar o Espírito Santo com a graça. A mística católica consiste numa imitação
de Cristo, na qual são revividas as paixões do Senhor. Daí provêm os
estigmatas, inconcebíveis para a ortodoxia. O sacrifício, a cooperação na obra
da redenção pelo sofrimento humano, pelos méritos supererrogativos, são essenciais
na mística católica. Nela, o caminho do homem, o da ascensão mais elaborada, é
organizada e disciplinada. Na forma clássica da via mística, são estabelecidas três
etapas: a vida purgativa, a vida iluminativa e a vida unitiva. É indispensável
passar, na vida mística, por aquilo que São João da Cruz chamou de “noite escura”,
a noite dos sentimentos e da razão, a morte para o mundo. A mística ortodoxa
não conhece essa noite escura considerada isoladamente como um estado
particular do caminho místico. O ascetismo ortodoxo, ainda que muito austero,
não constitui ainda um mergulho na “noite escura”; essa pressupõe um
antropologismo mais intenso da via mística. Permanecer na “noite escura” não
quer dizer estar no Espírito Santo. Na mística católica e nas vidas dos santos,
existe o êxtase do sofrimento e do sacrifício. Não podemos negar sua grandeza
original, sua profundidade e seu caráter essencialmente cristãos, mas seu tipo
é diferente do nosso, e é mais antropológico.
Podemos encontrar exemplos clássicos da mística ortodoxa russa em São
Serafim de Sarov e numa obra, encantadora por sua simplicidade, que devemos a
um autor desconhecido: “Relatos de um peregrino a seu Pai espiritual”. A
prática da prece santa, da prece de Jesus, situa-se no centro da mística
ortodoxa. Através dessa prece, Jesus penetra em nosso coração e toda nossa
natureza se ilumina. A prece de Jesus (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim, pecador”) é o ponto de partida da concentração mística.
A mística católica atinge a
união divina, a fusão com Deus, depois de passar por diversas etapas, pela “noite
escura”. Na mística ortodoxa, o caminho é outro. Não podemos pretender que, ao
passar por diferentes etapas desse caminho místico, o homem se eleve à união
com Deus. O homem se ilumina, ele se deifica pela aceitação do Espírito Santo
nele. A glorificação do Nome é uma tendência característica da mística
ortodoxa. O próprio Jesus está presente nessa oração. O Nome divino encerra a
energia divina que se transfere para o homem, que penetra nele e modifica sua
natureza. O Nome possui um significado ontológico e, num certo sentido, mágico.
A distinção que faz São Gregório Palamas entre a essência e a energia divina, é
característica e permite compreender a mística ortodoxa. A glorificação do
Nome, como de resto o platonismo, são estranhos ao catolicismo. Mas a energia
divina age no homem e no mundo, e se transfere para a criação. O abismo, a
oposição entre o natural e o sobrenatural não existe para a mística e a
patrística orientais, num grau tão profundo como existe para a consciência
católica e para a escolástica, a qual, nesse domínio, deixou sua marca na
mística católica.
A patrística oriental, tendo
absorvido em si o espírito do platonismo, jamais afirmou a não-divindade do
natural como algo absoluto. A humilhação da criatura não pode ser senão a
humilhação do pecado que existe nela, e não a da criação divina, do desígnio
divino. não é o mundo criado, o cosmo, a natureza, mas unicamente o pecado, o
mal, que não são divinos e que se opõem ao divino. nosso mundo natural é um
mundo pecador e, em seu estado de pecado, ele é não-divino. Mas o mundo autêntico
é o mundo em Deus. O panenteísmo[2]
exprime as relações entre Deus e o mundo do modo mais perfeito. O panteísmo é
um engano, mas possui em si uma parte de verdade, que encontramos no panenteísmo,
o qual se resume a nos descrever o estado do mundo transfigurado. O mundo, a humanidade,
a vida cósmica, são coisas divinas por princípio, e neles agem as energias
divinas. O “natural[3]”
pode ser superado. O não-ser, ao qual ele se liga, pode ser vencido. O mundo
criado pode ser deificado, mas essa deificação não pode ser senão a obra da
graça e da liberdade. A criação inicial de um mundo deificado ignoraria a liberdade.
A vitória sobre o pecado e o mal constitui a deificação do mundo criado. O mundo
natural, falso e enganador, deixa então de existir e a natureza se revela em
Deus. O tomismo, que de um lado afirma o sobrenatural e de outro afirma o
elemento mau e pecador, tende também a afirmar a existência de uma natureza neutra,
de caráter fundamentalmente não-divino e oposto ao sobrenatural. Daí provém o
temor da intuição que rompe a distância entre o natural e o sobrenatural, a
desconfiança em relação ao misticismo, a condenação da ontologia platônica.
Com semelhante concepção, a ação da energia divina no mundo, a transfiguração
desse mundo, se tornam inexplicáveis. O dualismo radical entre o natural e o sobrenatural
não favorece a mística, e ele provém do fato de que a natureza do Espírito
Santo, a Terceira Hipóstase da Trindade, não foi suficientemente revelada. No Espírito
se manifesta a natureza divina do mundo, do natural, mas de um natural
iluminado, transfigurado, deificado. É pelo fato de que a natureza do Espírito
está revelada de modo incompleto, que a natureza do mundo aparece também dessa
maneira. O dualismo inerente à mística católica fornece uma visão do homem que
é intensamente trágica. A mística ortodoxa nada tem de dramático. Ela aceita um
dualismo moral e religioso, mas não um dualismo ontológico. Ela está mais
aparentada à mística alemã do que à mística católica latina, embora seja menos
gnóstica. A mística alemã é em sua maior parte católica. Eckart, Tauler, Suso,
Ruysbroeck, Angelus Silesius, são todos católicos. Mas eles estão ligados a uma
mística que se diferencia da mística espanhola latina. A mística católica alemã
não foi reconhecida e sancionada pelo catolicismo, tal como foi a mística
espanhola. Jacob Boehme era luterano, mas ele é na realidade supraconfessional,
como aliás o são, num certo sentido, todos os místicos.
A grande obra realizada pela mística alemã foi a divulgação da
natureza do espírito, de sua profundidade; ela é a mística espiritual por excelência.
Mergulhada nas profundezas do espírito, ela se encontra, por isso mesmo, além
da oposição entre o natural e o sobrenatural. Para Boehme, a profundidade da
oposição não reside na correlação entre o natural e o sobrenatural, mas na que
existe entre a luz e as trevas. A mística alemã se coloca fora da distinção
clássica entre as místicas ortodoxa e católica. Mas a mística de inspiração
profética e apocalíptica nasce de preferência sobre o solo da ortodoxia russa,
porque é nela, precisamente, que a natureza do Espírito Santo se encontra mais
revelada. Nem a mística católica latina, nem a alemã, favorecem o profetismo e
o apocalipse.
A mística da Igreja é sempre uma mística organizada e disciplinada,
que leva à ascensão a Deus. Mas existe uma mística que não possui uma forma determinada
e que não é organizada, uma mística em estado de matéria e de potência. Essa mística
constitui a trama fundamental da vida. Essas energias virtuais se atualizam por
meio da disciplina, pelo estabelecimento de etapas sobre a via mística. A contemplação
pressupõe uma purificação e um desimpedimento da pessoa. O ascetismo é a etapa preparatória
indispensável para essa via. Sem ela, a concentração é impossível. Somente nos
libertando do poder desse “mundo”, libertando-nos dos laços que nos encadeiam à
multiplicidade universal, podemos obter a contemplação do Deus único. A possibilidade
de se absorver imediatamente na contemplação de outros mundos não é dada ao
homem. mas aqui nos encontramos na presença do paradoxo fundamental da mística,
do problema para o qual não existe solução pronta, do eterno problema dos dons
humanos.
Existe um dom místico que é, como todo dom, concedido gratuitamente ao
homem por Deus. A mística não pode ser obtida por um esforço laborioso; somente
o ascetismo pode ser obtido assim. Homens que possuem uma vida espiritual
intensa, que seguem uma via religiosa disciplinada, bem organizada, podem não
possuir nenhum dom místico e se totalmente desprovidos de sensibilidade e de intuição.
O
que constitui o paradoxo desse problema é que, de um lado, o dom místico é gratia
gratis data, e que, de outro, a mística pressupõe em suas aquisições que se
haja seguido um caminho e uma disciplina. O que podemos chamar de “iluminismo”,
termo ao qual se atribui às vezes um sentido odioso, é precisamente a um tempo
a possibilidade de uma iluminação da inteligência humana, que jorra semelhante
à luminosidade de um raio. A inteligência pode permanecer num estado natural e
normal, assim como pode também conhecer um estado iluminado, no qual são dadas
clarividências intuitivas. Esse é um problema essencial para toda filosofia
religiosa, pois uma filosofia religiosa será sempre, no sentido que dissemos,
um iluminismo. São Boaventura, contrariamente a São Tomás de Aquino, fazia
depender a filosofia autêntica de uma iluminação da inteligência pela fé.
Em geral, a consciência da Igreja não reconhece o valor da mística
senão para os monges e para os mosteiros. Os livros místicos, ortodoxos e
católicos, nasceram no meio monástico e eram destinados aos monges, como
manuais de vida espiritual. Será possível uma mística que não seja monástica? De
fato, ela existe e inclusive ocupa um lugar preponderante na história. Mas ela
inspira desconfiança na Igreja, como mística gnóstica ou profética. A mística
coloca problemas particulares à consciência cristã. Se um renascimento místico
algum dia se produzir no mundo, ele não será exclusivamente monástico; ele
constituirá uma regeneração e um aprofundamento da vida e da compreensão do
mundo. Aqui se coloca uma questão que diz respeito não apenas à mística no
Cristianismo, mas também ao Cristianismo místico. Existe um perigo nos caminhos
da mística. Fantasmas podem ser tomados por realidade. A mística oriental
conhece e descreve esse estado de “encantamento”. A mística pode ser ilusória. O
homem pode não discernir os espíritos, e aqueles das trevas podem lhe aparecer
sob a forma de espíritos de luz. No caminho do misticismo pode haver uma
condensação de obscuridade e não de luz.
Mas a vida espiritual e perigosa em geral. A ausência de vida
espiritual é, em si, uma forma de segurança. A vida ordinária, a religião feita
de costumes e de gestos exteriores oferece o máximo de quietude. Toda iniciativa
criativa traz em si oculto um perigo; se não fosse assim, a vida espiritual se
atrofiaria. A mística e o novo nascimento, o nascimento no espírito. Isso é o
que nos ensinaram todos os místicos. As formas de vida religiosa mais ao abrigo
do perigo são as que estão adaptadas à ordem social estabelecida, aos
interesses dos seres que não conhecem mais do que o primeiro nascimento. A mística
não organiza a vida dos homens e dos povos da terra. É por isso que ela tantas
vezes se choca com a religião, à qual cabe esse trabalho organizador.
III
Mas a mística oculta ainda outros perigos. Ela pode tomar a forma de
uma extinção, ao invés de uma iluminação da vida anímica do homem, de sua psique,
vale dizer, da multiplicidade concreta das personalidades humanas. O problema
que se coloca é o das relações entre o um e o múltiplo. A via mística parte
sempre do múltiplo para chegar ao único, ela emerge do mundo e do homem para se
orientar a Deus. Ela é antes de tudo a via do desprendimento. A multiplicidade
desaparece na unicidade; a alma desaparece no espírito. Mas o ser humano é um
agregado no qual o espiritual, o psíquico e o corporal estão unificados. No yoga,
assim como no jesuitismo (falamos da mística de Inácio de Loyola), a
experiência mística é de certo modo “mecanizada”, e o elemento psíquico no
homem se extingue. O mesmo acontece no quietismo, no qual a alma individual
desaparece. A mística do único em Plotino ou Eckart não resolve o problema do
sentido místico da individualidade humana, da personalidade. A teosofia mística
da Cabala, de Boehme, de São Martin, de Baader se reveste de um caráter
totalmente diferente.
O problema mais delicado da mística é o de sua atitude em face do
problema do homem e do mundo, do mundo criado múltiplo. Esse problema
perturbador se coloca a cada vez que, dentre os místicos – inclusive entre os
que estão ligados à Igreja – se aprofunda a doutrina do amor. Eles preconizam o
desprendimento em relação ao mundo criado. A impassibilidade, a indiferença
diante de todas as criaturas é a exigência fundamental da disciplina
místico-ascética. Santo Isaac o Sírio ensina que é preciso endurecer, tornar-se
insensível em relação a todas as criaturas, a fim de amar a Deus de todo
coração. A mesma ideia é expressa em São João da Cruz. Eckart coloca o
desprendimento acima do amor, e nele falta o espírito do amor. São Basílio o
Grande, nos seus preceitos de vida monacal, alerta dos monges contra todo amor
individual, contra toda amizade. A impassibilidade, a indiferença perante todos
os homens e para com tudo o que é humano parece ser a condição indispensável do
ascetismo. O homem é uma criatura e, como tal, não podemos amá-lo, pois não
devemos nos ligar a nada do que é criado.
Existe uma imensa diferença entre a moral evangélica e a moral
ascética dos Padres. Pouco numerosos são os que, como São Francisco de Assis e
São Serafim de Sarov, souberam conciliar o desprendimento ascético e a contemplação
mística, com o amor a toda a criação, a toda criatura divina. A natureza humana
parece ser incapaz de conter em si a plenitude da revelação evangélica, do amor
a Deus e do amor ao homem. na literatura ascética e mística, encontramos com
frequência um apelo em favor do amor impessoal e impassível, do amor que seria
o mesmo para todos, que não conheceria pessoa humana. São Máximo o Confessor
declara: “Feliz o homem que pode amar cada ser com um amor igual”. Essas palavras
parecem ser a negação de toda eleição, de toda individualização no amor, de
toda amizade. O amor aí não é nada senão impessoal; ele não é afirmado como
via, mas como coroamento; a via é a humildade.
Esse é um dos mais torturantes problemas da mística e do ascetismo
cristãos, que parecem trair o Evangelho e as epístolas ao recusar seguir o
caminho indicado por João, o discípulo favorito de Jesus. O Cristianismo de
João, cujo espírito é o amor, é o oposto desse endurecimento do coração
preconizado pela patrística e a mística ascética. Nós devemos amar toda
criatura, toda criação divina e toda figura humana, e é precisamente a personalidade
que devemos amar em Deus e através de Deus. Não se trata do amor humanista que é
sempre impessoal e abstrato, mas do amor de Cristo. Nós o encontramos em São
Serafim. Ele é a revelação do Espírito Santo na vida do homem e do mundo. Assim
poderemos acreditar na possibilidade de uma nova mística, cuja atitude para com
o mundo humano será diferente, pois ela será capaz de unir em si o
desprendimento e a contemplação, ao amor iluminado por toda a criação divina,
por toda personalidade humana. Nisso reside um grande problema da consciência
cristã colocado pela mística. Existe uma mística do amor; seu apóstolo foi
João, e é ela que também nos ensinou São Paulo. O Cristianismo é a revelação da
personalidade, do valor absoluto de toda alma humana individual; ele é a
religião do amor pelo próximo, nascido do amor a Deus. Assim é que um ascetismo
que resseca o coração e o torna insensível à criatura, à alma individual, que é
incapaz de assimilar a luz e a verdade cristã, se aproxima do ascetismo hindu.
Dostoievsky foi, entre nós, o profeta de um espírito novo e diferente,
de uma nova e outra mística. Ele se liga, assim como Solovieff, à tradição do
Cristianismo russo, à maneira como os russos entenderam a obra de Cristo. Existe
uma tradição de erotismo místico. Nós a encontramos na criação mitológica de
Platão, na Cabala, em Dante, em São Francisco de Assis, na teosofia de Jacob
Boehme, em Baader e em Solovieff. Ela provém da doutrina relativa à imagem andrógina
do homem. Ela muitas vezes se apresenta misturada com elementos confusos, mas
ela está profundamente enraizada na simbólica cristã. O Cristianismo nos ensina
o amor espiritual, mas esse amor tem por missão espiritualizar o psiquismo, e
não destruí-lo.
IV
É possível que se produza, no caminho da mística e do ascetismo, uma
acumulação de trevas, devido à concentração do espírito sobre o mal, sobre o
pecado, sobre a antiga natureza. A verdadeira mística sobrepuja o medo que
Satanás inspira. Quando sentimos esse medo, quando nos sentimos vencidos,
arrasados pelo mal, isso significa que ainda estamos sob o império da natureza
criada, da natureza pecadora abandonada por Deus. Sobrepujá-la implica
sobrepujar o medo a Satanás, a obsessão do mal. Dominar a natureza criada
significa iluminá-la, significa banir dela o espírito do mal que isola o mundo
criado de Deus. O caminho que conduz a essa vitória é antes de tudo o do
ascetismo, do sacrifício e da santidade. Mas isso não é tudo, e ele é
igualmente o caminho da criação, da iluminação, do voo extático da natureza
humana. Existirá uma mística da criação, e a via mística poderá conduzir a
criação?
Essa questão pertence igualmente à problemática da consciência cristã.
Existe uma mística eterna e o Cristianismo deve retornar às suas origens, a fim
de não se petrificar definitivamente. Mas, em nossa época, o renascimento
místico do Cristianismo encara uma tarefa particular. Habituamo-nos a ver na mística
um desligamento absoluto em relação ao mundo e ao homem, uma orientação
exclusiva para Deus. A mística deve vencer o “mundo”, no sentido pejorativo do
termo, no sentido em que ele é empregado na Santa Escritura e nos Padres
ascéticos. Somente a mística pagã, orgíaca, está voltada para o mundo, para a natureza,
para a terra, mas a mística cristã sempre a combate. Nós nos encontramos diante
do seguinte problema: como poderá a mística cristã se orientar para a vida do
cosmos, para a vida da humanidade? Será isso possível? Superar o estado de
criatura não significa extinguir e negar a vida do cosmos, da humanidade, mas
antes iluminá-la e transfigurá-la. A mística pré-cristã, que alcançou seu auge
em Plotino, se afastou do mundo para se dirigir para o Único. Plotino, o último
grande helenista, lutava contra o dualismo dos gnósticos, que renegavam a beleza
do mundo. Talvez ele também pressentisse o Cristianismo. Toda sua grandeza
provém precisamente de que ele abandonou o mundo pagão, agonizante e corrompido,
para se dirigir a um novo mundo espiritual, levando consigo a noção helênica da
beleza do cosmo. Mas ele não chegou a encontrar a solução para esse dilema.
O problema que me inquieta poderia se expressar, na terminologia que
adotei, da seguinte maneira: de que forma, no mundo espiritual, poderá o mundo
natural ser restabelecido e transfigurado naquilo que ele possui em si de
autêntico, de não ilusório? Como poderá o psíquico se agregar ao espiritual? Para
a mística, a questão se coloca assim: como poderão o homem e o cosmo
espiritualmente transfigurados se afirmarem na experiência e na via místicas? Deus não deseja ser simplesmente Ele próprio, Ele quer que
o homem, o cosmo, a criação divina existam, não somente nos tempos, mas por toda
a eternidade. A deificação da criação não é nem seu rebaixamento, nem sua
extinção. O homem e o mundo não se extinguem em Deus, mas se iluminam, se
transfiguram, se transformam definitivamente em ser, libertando-se do não-ser.
Não se deve amar o “mundo”, tomado no sentido evangélico, pois é preciso
libertar-se de seu jugo, mas é preciso amar a criação divina, o cosmos, é
preciso amar o homem. A atitude monástica e ascética, que maldiz e despreza o
mundo e o homem, deve ser superada; ela é incapaz de conter a plenitude da
verdade crista; ela constitui uma inaptidão em seguir o próprio Cristo. Com efeito,
essa atitude não é conciliável com a moral evangélica. O homem, de um lado,
deve viver com os outros homens e como o mundo, ele deve tomar sobre si o fardo
de seu destino trágico comum, e, de outro lado, ele deve se libertar do mundo,
desligar-se de suas paixões, ele deve ser monge no mundo. Existe uma inimizade
monástica e ascética em relação a humanidade, uma incompreensão, uma profunda
falta de interesse em relação aos movimentos que se realizam no mundo. Mas há aí
uma autossuficiência, um enfraquecimento do amor, que se “vitrifica”, como
dizia Rosanov. Semelhante mística monástica ou ascética é abstrata e negativa
por excelência. E aí ainda, na maior parte dos casos, não se chega a atingir a
mística. Pois em Deus, na união com Ele, é impossível que o homem e o mundo não
ressuscitem, que a plenitude do ser não seja alcançada. São Serafim superou o
que havia nele de sombrio no estado monástico, em benefício de uma mística mais
luminosa. Dostoievsky profetizou esse estado de coisas através da pessoa do staretz
Zossima.
Sobre os caminhos da mística, como de resto por toda parte, os meios
costumam se afirmar com vistas aos finas. Esse ascetismo hostil ao homem e ao
mundo pode dissimular o objetivo da transfiguração mística em Deus. Ele pode impor
ao homem fardos insuperáveis, pesos enormes, e exigir grandes tensões da alma. A
dificuldade de nossa vida espiritual consiste precisamente na necessidade de
unir o desligamento em relação ao múltiplo, a concentração sobre o único, à
libertação e à transfiguração do Espírito da diversidade inerente ao mundo e à
humanidade. Duas vias se abrem diante do homem, difíceis para ele conciliar. Uma
delas é aquela que, a partir do mundo e do homem, se dirige para Deus, aquela
que deixa o múltiplo e o movimento, em favor da Unidade e da Eternidade imutáveis.
A outra é a que está orientada para o mundo e para o homem, para a
multiplicidade e o movimento. A filosofia grega foi incapaz de resolver o
problema gerado por esse dualismo de dois mundos. Platão não o superou, embora
tenha pressentido a possibilidade de consegui-lo através do Eros. O pensamento
grego estava sob o peso da concepção que Parmênides e os Eleatas tinham do ser
único e imóvel, e nisso ele exerceu uma influência inconteste sobre a teologia
cristã. Mas o Cristianismo admite, ao menos em princípio, uma solução para esse
problema perturbador, e chegou a vencer o dualismo. A plenitude da verdade cristã
não pôde ser assimilada pela humanidade, nem mesmo pelos místicos e os santos. Nós
nos encontramos mais uma vez diante do problema que se colocara para os gregos,
para Platão e Plotino.
No amor cristão devem se
manifestar todos os dons, todos os carismas conferidos ao homem por Deus. “Existem
uma diversidade de dons, mas um só e mesmo Espírito (...) a um é dado, por meio
do Espírito Santo, a palavra de sabedoria; a outro, a palavra do conhecimento,
segundo o mesmo Espírito; a outro, o dom da cura, por esse mesmo Espírito; a um
outro, o poder de operar milagres; a outro, a profecia; a outro, o
discernimento dos espíritos; a esse, o dom de falar em línguas; àquele, a
interpretação dessas línguas[4]”.
E o mesmo apóstolo Paulo nos diz: Não extingais o Espírito; não desprezeis as
profecias; experimentai todas as coisas e retende o que é bom[5]”.
O Cristianismo monástico e ascético às vezes conduzia à extinção do espírito e
à negação dos dons, vale dizer, a um dualismo intenso, no qual a vida, a força
criativa e toda nossa atitude para com o mundo e o homem não eram justificados.
Eis como se coloca o grande problema da mística. Sua missão consiste em
libertar o espírito humano desse estado de abatimento e de não justificação de
sua via criativa. A própria mística foi muitas vezes responsável por esse
rebaixamento da natureza humana e por essa condenação da vida criativa. A experiência
mística da via conhece esse “estado de criatura”, e o considera como um estado
de pecado que isola de Deus. Mas, em Deus, o ser natural é superado, e então é
uma outra natureza humana que se vê restabelecida em sua força criativa.
Na experiência mística, o mundo natural e humano é absorvido no
espírito, e já nada se opõe como sendo algo extrínseco. A mística autêntica nos
liberta dessa opressão provocada por tudo o que é “estranho” e “extraposto”. Nela,
tudo é vivido como fazendo parte de mim, como sendo profundamente interior a
mim. A mística constitui uma penetração nas profundezas do mundo espiritual,
onde tudo se passa de modo diferente do que no mundo natural, pois aí não se
encontram mais divisões, e nenhuma coisa é exterior a outra. Nada existe que
esteja fora de mim, tudo está em mim e comigo, tudo se encontra nas minhas profundezas.
Mas essa verdade mística é radicalmente oposta a todo subjetivismo, a todo
psicologismo, a todo solipsismo; ela não significa que não exista nada exterior
a mim, que as coisas não passem de meu estado pessoal. Essa verdade implica a eclosão
do mundo espiritual, no qual tudo está oculto numa profundidade íntima; ela
implica a revelação interior, e não exterior, de toda realidade. Eu estou em
tudo e tudo está em mim, toda orientação da vida se transforma, produz-se uma transmutação.
Viver, do ponto de vista místico, já não consiste em experimentar o estado de
opressão causado por uma realidade que me é oposta e exterior, como é o caso do
mundo natural, mas é ter a convicção de que tudo faz parte de meu próprio destino
íntimo, e de que tudo se realiza numa profundidade que me é mais próxima do que
eu próprio. A mística é o oposto do realismo histórico. Mas existe uma mística
da história. Toda a história do mundo é a história de meu espírito; no
espírito, essas duas histórias não estão “extrapostas” uma em relação à outra. Isso
não significa que eu me anulo enquanto realidade, que eu me confundo com tudo e
me transformo em tudo. Isso significa que eu não recebo a existência, a realidade
e a personalidade senão dali, de onde nada me é mais exterior, estranho,
impenetrável e morto, de lá onde se realiza o reino do amor.
Nós entramos na era de uma nova espiritualidade, que será a
contrapartida da materialização desse nosso mundo. A essa época do Cristianismo
corresponderá uma nova forma de mística. Daí por diante será impossível se opor
a uma vida superior, invocando o pecado da natureza humana, que devemos superar.
Já não há mais lugar, no mundo, para um Cristianismo exterior e feito de costumes.
A via espiritual e mística constitui precisamente o caminho que conduz à
vitória sobre o pecado. O mundo penetra numa época catastrófica de eleição e de
divisão, na qual serão exigidas de todos os cristãos uma grande elevação e
intensidade de vida interior. O Cristianismo exterior, da zona mediana, se
corrompe; mas aquele que é eterno, interior e místico se fortifica e se intensifica.
Assim é que a própria Igreja deverá determinar de outra maneira sua atitude em
relação à mística e à vida espiritual interior. Não é senão nos períodos em que
os costumes e as tradições exteriores se impõem com obstinação, que a religião pode
se ver desprovida de mística. Mas ela a reencontra inevitavelmente quando esses
costumes e essas tradições sofrem comoções e catástrofes. Então, na própria
mística, o tipo paraclítico começa a dominar. A época de uma nova espiritualidade
no Cristianismo não pode ser outra coisa do que a época de uma manifestação sem
precedentes do Espírito Santo.
[1]
Adeptos de uma seita russa orgíaca, cujos ritos lembravam os mistérios de Dionísio,
e na qual os elementos pagãos e cristãos estavam confundidos.
[2]
Termo criado pelo pensador alemão Christian Krause 1781-1832para designar sua
doutrina, caracterizada como uma síntese entre o teísmo e o panteísmo, pois
calcada na suposição de que a totalidade do universo está situada no interior
de uma única divindade primordial.
[3] Naturlichkeit.
[4] I
Coríntios 12: 8-10.
[5] I
Tessalonicenses 5: 19-21.
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