sábado, 22 de agosto de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo VII: A mística e o caminho espiritual

 

 

I

 

 

Se a palavra místico deriva do termo mistério, então a mística deve ser considerada como a base da religião e como a fonte de seu movimento criador. A experiência religiosa nasce do contato imediato e vivo com o mistério último. Na vida religiosa, o torpor e a paralisia são superados e o renascimento é adquirido por um retorno ao mistério último da existência – vale dizer: pela mística. Nela a vida religiosa ainda está incandescente, ela não está nem extinta, nem fixada. Todos os grandes iniciadores e criadores da vida religiosa conheceram essa experiência inicial, esses encontros místicos, que os colocaram face a face com Deus, com o divino. Foi no fogo da experiência mística que São Paulo teve a revelação sobre a essência do Cristianismo. A mística é o solo nutriz da religião, a qual perece ao se separar dele.

 

Mas, na história, as relações efetivas entre a mística e a religião foram delicadas e confusas. A religião temia a mística e nela via frequentemente a fonte de heresias. A mística entravava, de certo modo, seu trabalho organizador e ameaçava subverter suas normas. Todavia, a religião tinha necessidade da mística, e assim ela sancionava sua própria forma de mística, como sendo a flor e o coroamento de sua vida. Existe uma mística ortodoxa autorizada e recomendada, uma mística cristã, assim como existe uma mística das religiões não-cristãs. A confissão religiosa se esforça sempre por submeter às suas normas o elemento místico, que muitas vezes era voluntário e violento. Dessa forma, existe sempre uma dificuldade nas relações entre a mística e a religião.

 

Essa dificuldade se tornou ainda mais aguda em nossa época, pelo fato de que a mística está na moda, e que essa palavra é frequentemente empregada num sentido obscuro e indeterminado. A introdução da mística na literatura contemporânea teve consequências fatais. Tentou-se dar a ela atributos de uma cultura refinada, mas o que conseguiram com isso foi deformar sua natureza eterna. A mística não constitui um psicologismo refinado, ela não é uma paixão anímica irracional, nem simplesmente uma música da alma. É por isso que a religião cristã, com toda razão, se levanta contra esse sentido que se pretendeu atribuir à mística. O psicologismo do final do século XIX e início do XX está em contradição com o significado da mística, como, de resto, também o está do Logos. Mas se considerarmos, não as obras literárias contemporâneas, mas os modelos clássicos e eternos da mística, seremos obrigados a reconhecer, antes de tudo, que ela não tem uma natureza psíquica, mas uma natureza espiritual, ou seja, ela não é psicológica, mas sim “pneumática”.

 

Na experiência mística, o homem se evade sempre de seu mundo anímico isolado e entra em contato com a origem espiritual da existência, com a realidade divina. Costumamos dizer a certos protestantes, que atribuem à mística um caráter de individualismo religioso, que a mística consiste na evasão de um estado individualista, que ela ultrapassa. A mística é a profundidade e o cume da vida espiritual, ela é uma de suas qualidades. Ela é intima e oculta, mas ela não é individualista. Windelband expressa do seguinte modo a contradição que, segundo ele, existe na mística alemã: ao mesmo tempo em que ela procede do individual, ela considera a individualidade como pecado. Mas existe aí uma contradição no plano psíquico, que cessa de existir no plano espiritual. É preciso afirmar com insistência que a mística não é um estado ou um romantismo subjetivo, que ela está isenta da oposição entre o subjetivo e o objetivo. Ela não é um estado de alma sonhador. Ela é realista, sóbria no discernimento e na descoberta das realidades. Não é um verdadeiro místico senão aquele capaz de ver as realidades e que sabe distingui-las dos fantasmas.

 

Antes de qualquer coisa, é preciso estabelecer uma distinção radical entre a mística e a magia. Essas esferas, conquanto totalmente diferentes, são facilmente confundidas. Enquanto que a natureza da mística é espiritual, a da magia é naturalista. A mística consiste na união com Deus, a magia é a união com os espíritos da natureza, com suas forças elementares. A mística é a esfera da liberdade, a magia é a esfera da necessidade. A mística é desembaraçada e contemplativa, a magia, ao contrário, é ativa e militante; ela revela as forças secretas do homem e do mundo, sem, no entanto, alcançar a profundidade de sua origem divina. A experiência mística constitui precisamente uma libertação espiritual da magia do mundo natural. Nós estamos pregados a essa magia que nem sempre reconhecemos. A técnica científica possui uma natureza e uma origem mágicas, ela é alimentada pelo desejo de conquista das forças naturais. A magia, por essência, é distinta da religião e frequentemente se opõe a ela, embora, apesar de tudo, a religião contenha em si certos elementos de magia.

 

Uma compreensão mais profunda da natureza é sempre mágica. As energias mágicas agem por toda parte no mundo. A mística é comparada à magia em razão da existência de uma pseudomística. Existem dois tipos de falsa mística: a mística naturalista e a mística psicológica, a mística da natureza e a da alma. Mas nenhuma das duas chega a alcançar efetivamente a profundidade da experiência autêntica; nelas sempre subsiste o isolamento do mundo natural e psíquico. A verdadeira mística é a mística espiritual. Nela são ultrapassadas a falsa magia e o falso psicologismo. Somente na profundidade da experiência espiritual o homem pode alcançar a Deus, somente aí ele sai dos limites do mundo natural e psíquico. Mas a mística não pode ser simplesmente identificada à vida espiritual, cuja extensão é infinitamente mais ampla. Não podemos chamar de mística senão a profundeza e o cume da vida espiritual. É nessa profundeza e nessa elevação que o homem toca o mistério final.

 

A mística pressupõe o mistério, vale dizer, a profundidade abissal, inesgotável e inefável. Mas ela pressupõe igualmente a possibilidade de um contato vivo com esse mistério, de uma vida com ele e nele. Reconhecer a existência do mistério e não admitir sua experiência viva equivale a negar a mística. Spencer reconhecia que na origem do ser repousa o incognoscível, vale dizer, um certo mistério. Mas sendo Spencer um positivista e não um místico, o incognoscível era para ele não mais do que um limite negativo. O enigma da mística não é o incognoscível e não implica o agnosticismo. Assim é que o homem não atinge a profundeza mística da vida na gnoseologia, na qual ele só entre em contanto com o incognoscível; a profundidade mística se atinge na própria vida, na experiência, na união.

 

O mistério não é uma categoria negativa, um limite. Ele resume a plenitude positiva e a infinita profundidade da vida. E, quando ele desaparece, tudo se torna superficial, limitado, desprovido de profundidade. O homem é atraído pelo mistério; assim surge uma possibilidade de viver nele e de se unir a ele. É como Mistério que a Face Divina está voltada para o mundo criado, e não a podemos ver senão como Mistério.

 

A mística tem por fundamento um parentesco interior, uma união entre o espírito humano e o espírito divino, entre a criação e o Criador; uma vitória sobre o abismo da transcendência e sobre a exterioridade. Assim é que a mística nos mostra sempre, não a transcendência da divindade, mas sua imanência, alcançada e vivida na experiência. É por isso que a mística emprega sempre uma linguagem diferente daquela da teologia. É essa também a razão pela qual, do ponto de vista teológico, ela sempre pode ser suspeita de variações heréticas. Mas a mística repousa em tal profundidade, que não é possível aplicar a ela dos critérios superficiais da heresia. Os místicos são sempre suspeito de estar orientados para o panteísmo, e quando tentamos compreendê-los racionalmente, traduzi-los em linguagem teológica ou metafísica, chegamos facilmente a esse ponto. O panteísmo constitui na realidade uma doutrina profundamente racionalista. Ora, a mística emprega uma linguagem paradoxal e antinômica; para ela, tanto a identidade como o abismo entre a criatura e o Criador podem existir na mesma medida. A mística não pode ser expressa nem pelo monismo panteísta, nem pelo dualismo teísta.

 

A teologia e a metafísica que predominam oficialmente na consciência da Igreja, em especial na consciência católica, elaboram um dualismo ontológico que separa o Criador da criação, o sobrenatural do natural. Tudo é repartido e dividido, e não se permite nenhuma confusão. É verdade que São Tomás de Aquino admitia a mística paralelamente a filosofia natural e à teologia, e nisso podemos ver nele a influência do pseudo-Dionísio. Mas a metafísica e a teologia do tomismo não favorecem o mistério, pois elas afirmam as contradições que esse último se esforça em superar; elas não o admitem senão como um domínio diferencial, mas para elas o Cristianismo não é místico.

 

No que consiste a essência da mística?  A MÍSTICA É O TRIUNFO SOBRE O ESTADO DE CRIATURA. Ela é a definição mais profunda e mais intrínseca de sua natureza. Na experiência mística, já não existe o dualismo insuperável que opõe o sobrenatural ao natural, o divino à criatura; nela, o natural se torna sobrenatural, e a criatura se deifica. Mas a união perfeita com Deus não implica a desaparição do homem, nem a da distinção entre as duas naturezas. Somente o nada é superado. A mística é o caminho da deificação, da Theosis do homem e do mundo. Sobre esse ponto, os místicos de todas as épocas e de todas as confissões estão de acordo.

 

A religião mantém a oposição transcendente e dualista entre Deus e o homem, entre o Criador e a criação. Nossa devoção religiosa está baseada na distância, num sentimento de nossa insignificância enquanto criatura. A mística nos mostra que a oposição transcendente entre Deus e o homem, a consciência da infinita pequenez desse último, não é a expressão definitiva do mistério da vida, do mistério de existência. O imanentismo é próprio a toda mística, mas trata-se de um imanentismo inteiramente particular, que difere absolutamente daquele que os diversos gnoseólogos imanentistas apresentam. Trata-se da imanência do Espírito Santo no mundo criado.

 

A mística é também supra confessional por natureza, embora existam tipos de mística confessional, com métodos específicos que devem permitir superar a limitação confessional. Existe na mística uma profundidade na qual se unem não apenas os tipos confessionais da mística cristã, como também alguns tipos de místicas pagãs. O Orfismo de Plotino, a mística hindu e sufi, São Simeão o Novo Teólogo e São João da Cruz, Eckart e Jacob Boheme, convergem de certo modo; eles interpelam a partir de mundos diferentes, e muitas vezes falam uma única e mesma língua. Esse é um fato indubitável, por mais desagradável que possa parecer aos fanáticos da mística confessional.

 

Encontramos esse triunfo sobre o estado de criatura nos mais autênticos místicos da Ortodoxia e do Catolicismo. O grande místico do Oriente ortodoxo, São Simeão o Novo Teólogo, disse: “Eu Te agradeço, ó Deus que reina acima de todos, porque Te tornaste, não conjuntamente, infalivelmente, imutavelmente, um só espírito comigo”. E eis como ele descreve a luz que entreviu na sua experiência espiritual: “Essa luz não é do mundo, nem qualquer coisa que seja desse mundo, nem a criatura, pois ela é incriada e permanece fora das criaturas, como algo incriado entre as coisas criadas”. Ele igualmente traduz a união mística e a fusão com Deus nos seguintes termos: “Mas ainda que tivéssemos nos tornado um, eu e Aquele a quem eu me uni, eu, que Ele criou duplo, como poderia eu me chamar de Deus, que é duplo por Sua natureza e único por Sua Hipóstase? Mas tenho me criado duplo, Ele me concedeu, como você pode ver, um nome duplo. Eis a distinção: eu sou homem pela minha natureza, e Deus pela graça”. “Ele subitamente veio até mim e se uniu a mim de maneira inefável, e sem confusão Se confundiu comigo, como o fogo no ferro e a luz no vidro”. “De que outra maneira poderia o fogo divino descer em seu coração, abrasar-se nele, inflamá-lo e uni-lo a Deus, tornando indivisíveis a criação e o criador!”.

 

A via mística conduz à transfiguração e à iluminação da criatura. “Eu me alegro por Teu amor e por Tua beleza, e me sinto cumulado de felicidade e de doçura divinas. Eu comungo da luz e da glória: minha face reluz como a de meu Bem-amado, e todos os meus membros se tornam luminosos. Agora eu sou mais belo do que os belos, mais rico do que os ricos, mais forte do que os mais fortes, maior do que os imperadores e mais honorável do que tudo o que é visível, não apenas na terra e sobre a terra, como no céu e além do céu”. “Pois ao mergulhar em Tua luz, a inteligência se ilumina e se torna uma luz semelhante à Tua glória, e ela se chama agora Tua inteligência, pois aquele que é digno se tornar tal, é digno antão de possuir Tua inteligência e se unir a Ti indivisivelmente”. “Ele (o Criador) tornará incorruptível todo corpo, e te fará Deus pela graça, semelhante ao Princípio Original”. “Minhas mãos são as de um infeliz, e meus pés são os de Cristo. Eu, indigno, sou a mão e o pé de Cristo. Eu movo minha mão e minha mão é Cristo inteiro, pois a divindade de Deus se uniu a mim indivisivelmente, e eu movo meu pé e ele brilha como Ele”.

 

Falando de um certo asceta, São Simeão diz: “Pois ele possuía Cristo inteiro, e ele próprio era como Cristo, ele tinha seus membros e os membros do outro, ele os tinha únicos e múltiplos. Ele meditava todo o tempo como Cristo, sempre imóvel, invulnerável e impassível, Cristo por inteiro, e é assim que ele via a Cristo em todos os que são batizados em Cristo e que de Cristo se revestiram”.

 

Na mística extática de São Simeão são descritos os cumes aos quais a criatura é transportada, nos quais ela é iluminada e deificada. Estados análogos são descritos nos famosos diálogos de Motoviloff com São Serafim de Sarov, ocasião em que ambos estavam no Espírito Santo. Motoviloff viu São Serafim se tornar radiante, luminoso, impregnado de um suave odor. A mística católica se distingue, por seu tipo, da mística ortodoxa. No entanto, o grande místico católico, São João da Cruz, nos fala assim do triunfo sobre o estado de criatura, sobre a união com Deus: “Essa saída me encheu de felicidade; pois num instante eu havia sido elevado da estados divinos e a conversações familiares com Deus; vale dizer: meu entendimento havia passado de um estado humano a um estado divino. Pois, ao me unir a Deus por meio dessa purificação, em já não possuía um conhecimento débil e limitado de como ela era; mas eu conhecia pela sabedoria divina à qual eu havia me unido. Minha vontade havia saído de si mesma e se tornado, de certo modo, divina; pois, estando unida ao amor divino, ela agora amava, não com suas primeiras forças, mas com as forças do espírito divino”.

 

“O estado de união divina consiste em que a vontade da alma se transforma inteiramente em vontade de Deus, de sorte que a vontade de Deus se torna o único princípio e o único motivo que a faz agir em todas as coisas, como se a vontade de Deus e a vontade da alma não fossem senão uma única vontade”.

 

O estado de união divina que São João da Cruz e outros místicos católicos descrevem constitui o triunfo sobre o estado de criatura. Esse triunfo encontra na mística de Eckart sua expressão clássica. O dominicano Denifle mostrou que Eckart era um católico ortodoxo num grau bem mais profundo do que se suspeitava até então, e que em seus tratados de teologia latina recentemente descobertos ele era completamente tomista.

 

Ora, eis o que enuncia Eckart: “Deus não espera senão uma coisa de ti, é que saias de ti mesmo, na medida em que és criatura, e que deixes Deus ser Deus em ti”. “Por amor a Deus, sai de ti mesmo, a fim de que por amor a ti Ele faça a mesma coisa. Quando ambos tiverem saído, o que restar será, de certo modo, único e simples”. A mística de Eckart admitia que a distinção entre o Criador e a criação, entre Deus e o homem, pode ser definitivamente superada na profundidade última da gnose mística. “O não-ser está além de Deus, além da diferenciação. Somente lá eu fui eu mesmo, eu quis a mim mesmo, eu vi a mim mesmo como sendo aquele que criou o homem. Lá eu sou a causa primeira, a de meu ser eterno e temporal. Somente lá eu nasci (...) Pelo princípio eterno de meu nascimento, eu era de todos os séculos, eu sou e continuarei pela eternidade (...) Em meu nascimento, nasceram todas as coisas; eu fui minha causa primeira e a causa de todas as coisas. Eu desejei que nem eu fosse, nem elas. Mas, se eu não existisse, também Deus não existiria”.

 

Encontramos o mesmo espírito no grande místico alemão Angelus Silesius: “Eu devo ser o Verbo no Verbo, Deus em Deus”. “Eu sou tão grande quanto Deus, e Ele é tão pequeno quanto eu”. “Todo cristão deve ser o próprio Cristo”. “Quem quer a Deus deve se tornar Deus”. “Em Deus só os deuses são recebidos”. Todos esses extratos, de diversos místicos, cuja enumeração poderia se estender ao infinito, estão escritos numa linguagem particular, que não pode ser traduzida pela linguagem da metafísica ou da teologia. É a descrição do caminho, da experiência, dos acontecimentos e dos encontros místicos. Nós admitimos que a teologia e a metafísica racionais contêm a verdade, no que se refere ao abismo transcendente ente o Criador e a criação, entre os mundos sobrenatural e natural. A mística suprarracional não é menos verdadeira, quando entrevê a possibilidade de superar esse abismo. Uma verdade não contradiz a outra. Elas não expressam senão momentos diferentes, diferentes estados da experiência. A mística não elimina os dogmas, mas ela alcança uma profundidade maior do que aquela na qual são elaboradas as fórmulas dogmáticas. A mística é mais profunda, mais fundamental do que a teologia, mas ela, evidentemente, comporta muitos perigos.

 

Na mística tudo se torna interior, tudo é absorvido dentro, nada existe que seja exterior, não há nenhuma objetivação. A mística me liberta do mundo natural e histórico que me é exterior e absorve no espírito toda a evolução da natureza material e da história. Viver um acontecimento de modo místico equivale a vivê-lo interiormente, espiritualmente, nas profundezas do espírito. No caminho místico, todo o universo exterior objetivado se extingue, a noite da sensibilidade se aproxima, e somente no interior do mundo espiritual e divino é que tudo se revela. As realidades últimas não se revelam senão na mística: nela, o homem se evade do mundo secundário e reflexo, do mundo dos símbolos. Tudo aquilo que, na religião, na teologia, no culto, era simbólico e prefigurado na carne, se torna realista na mística, se revela como profundeza última da vida original. Somente na contemplação e na união místicas se pode adquirir a vida eterna.

 

A mística pressupõe uma concepção simbólica do mundo, mas vai além do simbolismo, abandonando os símbolos para se voltar para as realidades. Uma consciência superficial estima que a religião é mais realista do que a mística. Mas a religião comporta sempre uma parte de mística, e dela extrai suas origens. Não há religião que não tenha encontros místicos com as realidades. Mas uma religião positiva está sempre orientada para a vida natural e histórica dos povos, ela possui uma natureza social, ela organiza a vida das massas, ela sempre pressupõe o coletivo. A religião estabelece e organiza socialmente uma ligação e um parentesco, uma comunhão com Deus que pressupõe uma divisão e uma oposição transcendente. A religião educa, ela guia, ela estabelece graus hierárquicos de vida espiritual, ela ensina os caminhos, lembrando sempre que a vida espiritual está elaborada, não apenas tendo em vista uma ascensão a Deus, como também uma descida para o mundo pecador. Na religião, os elementos heteronômicos são inevitáveis. A religião se dirige a toda a humanidade, às massas populares, aos pequenos; ela leva a todos a verdade e a luz, ela não existe somente para a aristocracia espiritual, para os eleitos. A própria experiência religiosa que nos parece heteronômica e autoritária está marcada pela piedade e pela devoção. Em cada um de nós se encontram elementos de religiosidade heteronômica.

 

A Igreja é sábia quando condena o orgulho da via mística. Na religião existe não somente uma heteronomia, como também um exoterismo; ela é não somente uma revelação, como também um conjunto de mistérios. Esses mistérios divinos revelam-se por degraus, na medida do conhecimento espiritual dos homens, na medida da receptividade de sua consciência. Mas, para além do exoterismo existe sempre o mistério. A mística constitui o esoterismo da religião, e assim ela só existe para alguns homens, para uma minoria, enquanto que a religião deve existir para todos, e é nisso que reside a dificuldade de sua tarefa. Os elementos heteronômicos e exotéricos da religião podem sempre degenerar e o espírito da vida religiosa pode ser calado. Então, é indispensável que se possa recorrer à mística, ao esotérico, à fonte original. Esse é um dos aspectos das relações entre a mística e a religião.

 

Mas existe outro aspecto. Nem toda mística é necessariamente boa. Ela também pode se deformar e se corromper; uma mística irreligiosa, carente do Logos, degenera facilmente e pode precipitar o homem nas trevas, nos abismos inferiores. Pode haver uma mística na qual o espiritual, o psíquico e mesmo o corporal sejam confundidos, na qual o espírito não seja mais puro, mas perturbado. Existem tipos de místicas orgíacas, nas quais o espiritual é absorvido pelos elementos psíquico ou corporal, e acaba submetido a eles. Exemplos disso são os cultos de Dionísio e dos chlistis[1]. A mística pagã aspirava a uma espiritualidade, sem, no entanto, atingi-la. Mesmo no seio do Cristianismo encontramos o êxtase místico da carne santificada, na qual o espírito infinito é submetido ao finito; existe aí uma teofania pseudomística.

 

A mística traz grandes problemas para o mundo cristão. Onde começa a mística, finda a esfera da precisão dogmática, daquilo que é universalmente válido. As relações entre a mística e a Igreja são muito complexas. A Igreja ortodoxa e a Igreja católica jamais negaram a mística, mas ela a temem e desconfiam de suas tendências. A Igreja exterior e oficial é normalmente hostil à mística, e é difícil encontrar nela o menor reflexo entre os que são cristãos por tradição. A base mística do Cristianismo é negada pela teologia oficial, e o racionalismo se expandiu fortemente entre os dignitários da Igreja. Negamos o misticismo do Cristianismo, esforçando-nos por torná-lo inofensivo e estabelecemos formas de mística que possam ser oficialmente reconhecidas. A Igreja ortodoxa, e a católica, possuem cada qual uma mística oficial. Mas existem diversos tipos de mística cristã das quais se desconfia, e que são definitivamente condenadas. Tais são em especial a mística gnóstica, que sempre se opõe a teologia e que transgride a ordem hierárquica estabelecida, e também a mística profética.

 

Existe uma dupla compreensão da mística. Ela pode ser uma forma particular diferencial da vida e do caminho espiritual, o ápice desse caminho e o ornamento dessa vida. Nesse caso, ela pressupõe uma certa disciplina e etapas específicas. Seu objetivo é a contemplação de Deus e a união com Ele. A mística autorizada pela Igreja está ligada a essa concepção. Ela está de tal forma unida ao ascetismo que as obras místicas e ascéticas são facilmente confundidas. Assim é que os extratos da literatura patrística reunidos na Filocalia possuem um caráter claramente ascético. O ascetismo ensina as maneiras de lutar contra as paixões, de superar a natureza do velho Adão, e ela revela o que provém do homem. A mística, ao contrário, nos fala da contemplação de Deus e da união com o Divino, e ela nos revela o que procede de Deus. No ascetismo oriental, reconhecido pela Igreja, houve grandes místicos. Dentre eles podemos citar acima de tudo São Macário o Egípcio, São Máximo o Confessor e São Simeão o Novo Teólogo. Mas na maior parte da literatura ascética não existe mística; ela não é alcançada aí. Em São João da Cruz, que representa o modelo clássico da mística católica ortodoxa, livros como A subida do Monte Carmelo e A noite escura da alma são acima de tudo ascéticos, e outros, como A chama viva do amor, são puramente místicos. A vida mística sancionada pela Igreja representa um cume espiritual, o coroamento da vida dos grandes santos, cada qual dotado de dons particulares. A Igreja católica, na qual tudo é tão bem organizado, também modelou sua mística e lhe assinalou um lugar específico. Ela não deve se estender a todos os graus hierárquicos, nem fundamentar nossa concepção do mundo, e deve manter-se dentro de seus limites.

 

Mas existe um outro entendimento da mística, que ocupa um lugar muito importante, e que não pode ser eliminado. A mística pode ser considerada como a profundidade da vida, como um sentimento que abarca todo o universo; ela se propaga, ela está em toda parte; de todos os lados somos rodeados por um mistério, e em tudo vemos os seus símbolos. O sentimento que nos toma diante do profundo mistério que cerca a vida, é também uma espécie de mística. Existem homens especialmente dotados, que possuem os carismas de uma sensação e de uma compreensão místicas do mundo, independentemente de qualquer santidade. É possível ser santo sem possuir um dom místico, e pode-se ter um dom místico, sem por isso ser santo. Voltamos sempre ao mesmo torturante problema referente aos dons, que não são méritos, como o gênio, que não se deve nem à perfeição, nem à santidade. Não apenas existem homens favorecidos por dons místicos, como existe também uma mística inerente à natureza humana em geral, pois o homem é um ser espiritual que não pertence unicamente a esse mundo.

 

É por isso que a história da vida e da cultura espirituais da humanidade compreende místicos e uma criação mística que não provêm de nenhuma disciplina, nem de uma via em particular. Dostoievsky era um místico por seu sentimento e sua compreensão da vida, pelo caráter de sua criação, ainda que não tenha praticado nenhuma disciplina em especial. Sua mística pertencia por excelência ao tipo profético. Baader, Joseph de Maistre, Solovieff, Léon BLoy eram místicos, ainda que estivesse longe da santidade.

 

Podemos nos exprimir assim: existe a mística que consiste num aperfeiçoamento da alma, numa ascensão espiritual, numa aproximação de Deus, e existe uma outra mística, que consiste no conhecimento dos mistérios da existência, dos mistérios divinos. A primeira forma predomina oficialmente na Igreja. Esse é o reino do momento moral, ascético e purificador. Essa forma de mística professa antes de tudo a renúncia ao “mundo” e a concentração em Deus. Mas existe uma mística gnóstica, que deu à humanidade grandes gênios criadores. Basta nomear Plotino, a Cabala, Eckart, Boehme. Como os classificaríamos? A mística gnóstica sempre provocou uma certa desconfiança na consciência da Igreja. A teologia sentis, de certa forma, um ciúme em relação à gnose mística, considerando-a como um falso conhecimento. Por isso, um dos maiores dons que o homem jamais recebeu foi condenado. A mística alemã, uma das manifestações do espírito humano, era gnóstica; fora das divisões estabelecidas pela metafísica e a teologia, revelou-se nela um conhecimento espiritual, uma percepção dos mistérios divinos.

 

A história do espírito humano, da cultura humana, testemunha que o dom da gnose mística, da contemplação dos mistérios da existência, é um dom particular, que de modo algum pode ser identificado com a santidade. Jacob Boehme possuía esse dom num grau infinitamente maior do que São Francisco, do q eu São Domingos e mesmo de São Tomás de Aquino, que, todavia, era também filósofo. E, se São Serafim de Sarov possuía o dom da contemplação dos mistérios cósmicos, isso provinha não da aquisição da santidade, mas de um carisma individual. A questão dos dons, das aptidões, do gênio, que são manifestações do espírito humano, jamais foi bem resolvida pela consciência cristã. Temos um exemplo no que diz respeito ao dom místico, o gênio gnóstico. Os dons prodigiosos de um Plotino ou de um Jacob Boehme não podem preceder senão de Deus, e eles são necessários por causa da criação divina. A consciência da Igreja, inspirada por considerações pedagógicas, se esforça por submeter a mística à lei, mas, fazendo isso, seus maiores dons acabam por ser banidos.

 

 

II

 

Heiler estabeleceu uma distinção entre o tipo místico e o tipo profético. Essa distinção é importante, mas a terminologia proposta é convencional. Não se trata de opor dois tipos um ao outro, mas antes de estabelecer uma categoria particular de mística profética, na qual predominam claramente elementos escatológicos e apocalípticos. Essa é a mística que penetra nos mistérios do devir, dos destinos da humanidade e do mundo, a mística que está orientada para o fim das coisas. A mística profética, que por seu próprio espírito é transformadora, é aquela que, no Cristianismo, mais se distingue da mística sacramental, santificadora, que é, por excelência, conservadora. Na história do Cristianismo a mística profética jamais foi extinta em definitivo. Ela representou uma tradição íntima, e se ligou estreitamente ao movimento criador na Igreja.

 

O Cristianismo nasceu, no mundo, da mística escatológica da primeira comunidade cristã. A consciência da insuficiência da revelação e do caráter inacabado da Igreja, faz parte da mística profética, assim como a ideia da possibilidade de uma nova revelação no Cristianismo e de um movimento criador que se opere nele. Essa forma de mística é a que a consciência da Igreja menos reconhece, porque a mais ortodoxa não é nem profética, nem gnóstica. O que existe de profético no Cristianismo constitui precisamente sua problemática. Será a profecia possível na época cristã da Nova Aliança? A opinião que considera a profecia como apanágio da Antiga Aliança, que não podia se referir mais do que à vinda do Messias, do Cristo Salvador, é largamente difundida. Mas parece que nos esquecemos de que o Apocalipse, a revelação de São João, obra profética, faz parte dos livros santos do Novo Testamento. Esquecemo-nos de que existe no Cristianismo a profecia sobre a segunda vinda de Cristo, aquela da transfiguração, da iluminação e do fim do mundo, do novo céu e da nova terra. O sacerdócio sempre teve tendência a negar a profecia, e essa, por seu espírito, não pode se submeter a ele, nem dele depender. A profecia é livre, ela não está ligada a nenhum princípio hierárquico, ela representa uma inspiração e uma aptidão pessoal, individual. O profeta não pertence, como o sacerdote, à ordem angélica, mas à ordem humana. A ideia central de Vladimir Solovieff foi de defender, no Cristianismo, os direitos da consciência e da função proféticas; ele colocou a profecia no mesmo nível do sacerdócio e do reino.

 

No Cristianismo, o espírito profético está em conflito com o espírito da lei. Toda a orientação para a Segunda Vinda de Cristo, para a Ressurreição, é marcada pelo espírito profético. Nesse mistério escatológico, o sentimento que o homem tem de sua infinita pequenez, é superado. A mística profética é a mística do Espírito Santo. É uma mística russa por excelência. Ela é inerente ao povo russo, e nasceu sobre o terreno espiritual da Ortodoxia, ainda que essa religião e sua hierarquia oficial possam ser-lhes hostis. Isso nos conduz à distinção entre a mística ortodoxa e a mística católica.

 

É preciso buscar a diferença entre a ortodoxia e o catolicismo, antes de tudo, na esfera da mística, na diferença entre as experiências espirituais, entre os caminhos seguidos. Todo o universo cristão é único em sua profundidade. A mística ortodoxa e a mística católica são místicas cristãs com igual direito. Mas esses dois mundos caminharam por vias diferentes e elaboraram duas formas diversas de espiritualidade, ainda que se dirigindo a um só e mesmo objetivo. A mística ortodoxa aspira à aquisição da graça do Espírito Santo; nela, a natureza humana se transfigura, se ilumina, se deifica interiormente. É a mística do coração, do coração que é o centro da vida. Para adquirir a integridade espiritual, a inteligência deve se unir ao coração. Cristo penetra no coração, modificando toda a natureza humana, e o home se torna outra criatura. A noção da theosis é a noção fundamental da mística ortodoxa, que está orientada era a transfiguração da criatura. Ela pressupõe uma façanha ascética, uma luta heroica contra o antigo Adão. Mas a mística ortodoxa é luminosa e feliz, e nela se revela o mistério da criação divina. A graça do Espírito Santo é obtida pela humildade, não pelo sofrimento.

 

A mística católica e mais “Cristocêntrica” e mais antropológica. Ela é a mística eucarística por excelência. Existe em geral no catolicismo uma tendência a compreender a natureza do Espírito Santo de maneira subordinada. Costuma-se identificar o Espírito Santo com a graça. A mística católica consiste numa imitação de Cristo, na qual são revividas as paixões do Senhor. Daí provêm os estigmatas, inconcebíveis para a ortodoxia. O sacrifício, a cooperação na obra da redenção pelo sofrimento humano, pelos méritos supererrogativos, são essenciais na mística católica. Nela, o caminho do homem, o da ascensão mais elaborada, é organizada e disciplinada. Na forma clássica da via mística, são estabelecidas três etapas: a vida purgativa, a vida iluminativa e a vida unitiva. É indispensável passar, na vida mística, por aquilo que São João da Cruz chamou de “noite escura”, a noite dos sentimentos e da razão, a morte para o mundo. A mística ortodoxa não conhece essa noite escura considerada isoladamente como um estado particular do caminho místico. O ascetismo ortodoxo, ainda que muito austero, não constitui ainda um mergulho na “noite escura”; essa pressupõe um antropologismo mais intenso da via mística. Permanecer na “noite escura” não quer dizer estar no Espírito Santo. Na mística católica e nas vidas dos santos, existe o êxtase do sofrimento e do sacrifício. Não podemos negar sua grandeza original, sua profundidade e seu caráter essencialmente cristãos, mas seu tipo é diferente do nosso, e é mais antropológico.

 

Podemos encontrar exemplos clássicos da mística ortodoxa russa em São Serafim de Sarov e numa obra, encantadora por sua simplicidade, que devemos a um autor desconhecido: “Relatos de um peregrino a seu Pai espiritual”. A prática da prece santa, da prece de Jesus, situa-se no centro da mística ortodoxa. Através dessa prece, Jesus penetra em nosso coração e toda nossa natureza se ilumina. A prece de Jesus (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”) é o ponto de partida da concentração mística.

 

 A mística católica atinge a união divina, a fusão com Deus, depois de passar por diversas etapas, pela “noite escura”. Na mística ortodoxa, o caminho é outro. Não podemos pretender que, ao passar por diferentes etapas desse caminho místico, o homem se eleve à união com Deus. O homem se ilumina, ele se deifica pela aceitação do Espírito Santo nele. A glorificação do Nome é uma tendência característica da mística ortodoxa. O próprio Jesus está presente nessa oração. O Nome divino encerra a energia divina que se transfere para o homem, que penetra nele e modifica sua natureza. O Nome possui um significado ontológico e, num certo sentido, mágico. A distinção que faz São Gregório Palamas entre a essência e a energia divina, é característica e permite compreender a mística ortodoxa. A glorificação do Nome, como de resto o platonismo, são estranhos ao catolicismo. Mas a energia divina age no homem e no mundo, e se transfere para a criação. O abismo, a oposição entre o natural e o sobrenatural não existe para a mística e a patrística orientais, num grau tão profundo como existe para a consciência católica e para a escolástica, a qual, nesse domínio, deixou sua marca na mística católica.

 

 A patrística oriental, tendo absorvido em si o espírito do platonismo, jamais afirmou a não-divindade do natural como algo absoluto. A humilhação da criatura não pode ser senão a humilhação do pecado que existe nela, e não a da criação divina, do desígnio divino. não é o mundo criado, o cosmo, a natureza, mas unicamente o pecado, o mal, que não são divinos e que se opõem ao divino. nosso mundo natural é um mundo pecador e, em seu estado de pecado, ele é não-divino. Mas o mundo autêntico é o mundo em Deus. O panenteísmo[2] exprime as relações entre Deus e o mundo do modo mais perfeito. O panteísmo é um engano, mas possui em si uma parte de verdade, que encontramos no panenteísmo, o qual se resume a nos descrever o estado do mundo transfigurado. O mundo, a humanidade, a vida cósmica, são coisas divinas por princípio, e neles agem as energias divinas. O “natural[3]” pode ser superado. O não-ser, ao qual ele se liga, pode ser vencido. O mundo criado pode ser deificado, mas essa deificação não pode ser senão a obra da graça e da liberdade. A criação inicial de um mundo deificado ignoraria a liberdade. A vitória sobre o pecado e o mal constitui a deificação do mundo criado. O mundo natural, falso e enganador, deixa então de existir e a natureza se revela em Deus. O tomismo, que de um lado afirma o sobrenatural e de outro afirma o elemento mau e pecador, tende também a afirmar a existência de uma natureza neutra, de caráter fundamentalmente não-divino e oposto ao sobrenatural. Daí provém o temor da intuição que rompe a distância entre o natural e o sobrenatural, a desconfiança em relação ao misticismo, a condenação da ontologia platônica.

 

Com semelhante concepção, a ação da energia divina no mundo, a transfiguração desse mundo, se tornam inexplicáveis. O dualismo radical entre o natural e o sobrenatural não favorece a mística, e ele provém do fato de que a natureza do Espírito Santo, a Terceira Hipóstase da Trindade, não foi suficientemente revelada. No Espírito se manifesta a natureza divina do mundo, do natural, mas de um natural iluminado, transfigurado, deificado. É pelo fato de que a natureza do Espírito está revelada de modo incompleto, que a natureza do mundo aparece também dessa maneira. O dualismo inerente à mística católica fornece uma visão do homem que é intensamente trágica. A mística ortodoxa nada tem de dramático. Ela aceita um dualismo moral e religioso, mas não um dualismo ontológico. Ela está mais aparentada à mística alemã do que à mística católica latina, embora seja menos gnóstica. A mística alemã é em sua maior parte católica. Eckart, Tauler, Suso, Ruysbroeck, Angelus Silesius, são todos católicos. Mas eles estão ligados a uma mística que se diferencia da mística espanhola latina. A mística católica alemã não foi reconhecida e sancionada pelo catolicismo, tal como foi a mística espanhola. Jacob Boehme era luterano, mas ele é na realidade supraconfessional, como aliás o são, num certo sentido, todos os místicos.

 

A grande obra realizada pela mística alemã foi a divulgação da natureza do espírito, de sua profundidade; ela é a mística espiritual por excelência. Mergulhada nas profundezas do espírito, ela se encontra, por isso mesmo, além da oposição entre o natural e o sobrenatural. Para Boehme, a profundidade da oposição não reside na correlação entre o natural e o sobrenatural, mas na que existe entre a luz e as trevas. A mística alemã se coloca fora da distinção clássica entre as místicas ortodoxa e católica. Mas a mística de inspiração profética e apocalíptica nasce de preferência sobre o solo da ortodoxia russa, porque é nela, precisamente, que a natureza do Espírito Santo se encontra mais revelada. Nem a mística católica latina, nem a alemã, favorecem o profetismo e o apocalipse.

 

A mística da Igreja é sempre uma mística organizada e disciplinada, que leva à ascensão a Deus. Mas existe uma mística que não possui uma forma determinada e que não é organizada, uma mística em estado de matéria e de potência. Essa mística constitui a trama fundamental da vida. Essas energias virtuais se atualizam por meio da disciplina, pelo estabelecimento de etapas sobre a via mística. A contemplação pressupõe uma purificação e um desimpedimento da pessoa. O ascetismo é a etapa preparatória indispensável para essa via. Sem ela, a concentração é impossível. Somente nos libertando do poder desse “mundo”, libertando-nos dos laços que nos encadeiam à multiplicidade universal, podemos obter a contemplação do Deus único. A possibilidade de se absorver imediatamente na contemplação de outros mundos não é dada ao homem. mas aqui nos encontramos na presença do paradoxo fundamental da mística, do problema para o qual não existe solução pronta, do eterno problema dos dons humanos.

 

Existe um dom místico que é, como todo dom, concedido gratuitamente ao homem por Deus. A mística não pode ser obtida por um esforço laborioso; somente o ascetismo pode ser obtido assim. Homens que possuem uma vida espiritual intensa, que seguem uma via religiosa disciplinada, bem organizada, podem não possuir nenhum dom místico e se totalmente desprovidos de sensibilidade e de intuição.   O que constitui o paradoxo desse problema é que, de um lado, o dom místico é gratia gratis data, e que, de outro, a mística pressupõe em suas aquisições que se haja seguido um caminho e uma disciplina. O que podemos chamar de “iluminismo”, termo ao qual se atribui às vezes um sentido odioso, é precisamente a um tempo a possibilidade de uma iluminação da inteligência humana, que jorra semelhante à luminosidade de um raio. A inteligência pode permanecer num estado natural e normal, assim como pode também conhecer um estado iluminado, no qual são dadas clarividências intuitivas. Esse é um problema essencial para toda filosofia religiosa, pois uma filosofia religiosa será sempre, no sentido que dissemos, um iluminismo. São Boaventura, contrariamente a São Tomás de Aquino, fazia depender a filosofia autêntica de uma iluminação da inteligência pela fé.

 

Em geral, a consciência da Igreja não reconhece o valor da mística senão para os monges e para os mosteiros. Os livros místicos, ortodoxos e católicos, nasceram no meio monástico e eram destinados aos monges, como manuais de vida espiritual. Será possível uma mística que não seja monástica? De fato, ela existe e inclusive ocupa um lugar preponderante na história. Mas ela inspira desconfiança na Igreja, como mística gnóstica ou profética. A mística coloca problemas particulares à consciência cristã. Se um renascimento místico algum dia se produzir no mundo, ele não será exclusivamente monástico; ele constituirá uma regeneração e um aprofundamento da vida e da compreensão do mundo. Aqui se coloca uma questão que diz respeito não apenas à mística no Cristianismo, mas também ao Cristianismo místico. Existe um perigo nos caminhos da mística. Fantasmas podem ser tomados por realidade. A mística oriental conhece e descreve esse estado de “encantamento”. A mística pode ser ilusória. O homem pode não discernir os espíritos, e aqueles das trevas podem lhe aparecer sob a forma de espíritos de luz. No caminho do misticismo pode haver uma condensação de obscuridade e não de luz.  

 

Mas a vida espiritual e perigosa em geral. A ausência de vida espiritual é, em si, uma forma de segurança. A vida ordinária, a religião feita de costumes e de gestos exteriores oferece o máximo de quietude. Toda iniciativa criativa traz em si oculto um perigo; se não fosse assim, a vida espiritual se atrofiaria. A mística e o novo nascimento, o nascimento no espírito. Isso é o que nos ensinaram todos os místicos. As formas de vida religiosa mais ao abrigo do perigo são as que estão adaptadas à ordem social estabelecida, aos interesses dos seres que não conhecem mais do que o primeiro nascimento. A mística não organiza a vida dos homens e dos povos da terra. É por isso que ela tantas vezes se choca com a religião, à qual cabe esse trabalho organizador.

 

 

III

 

Mas a mística oculta ainda outros perigos. Ela pode tomar a forma de uma extinção, ao invés de uma iluminação da vida anímica do homem, de sua psique, vale dizer, da multiplicidade concreta das personalidades humanas. O problema que se coloca é o das relações entre o um e o múltiplo. A via mística parte sempre do múltiplo para chegar ao único, ela emerge do mundo e do homem para se orientar a Deus. Ela é antes de tudo a via do desprendimento. A multiplicidade desaparece na unicidade; a alma desaparece no espírito. Mas o ser humano é um agregado no qual o espiritual, o psíquico e o corporal estão unificados. No yoga, assim como no jesuitismo (falamos da mística de Inácio de Loyola), a experiência mística é de certo modo “mecanizada”, e o elemento psíquico no homem se extingue. O mesmo acontece no quietismo, no qual a alma individual desaparece. A mística do único em Plotino ou Eckart não resolve o problema do sentido místico da individualidade humana, da personalidade. A teosofia mística da Cabala, de Boehme, de São Martin, de Baader se reveste de um caráter totalmente diferente.

 

O problema mais delicado da mística é o de sua atitude em face do problema do homem e do mundo, do mundo criado múltiplo. Esse problema perturbador se coloca a cada vez que, dentre os místicos – inclusive entre os que estão ligados à Igreja – se aprofunda a doutrina do amor. Eles preconizam o desprendimento em relação ao mundo criado. A impassibilidade, a indiferença diante de todas as criaturas é a exigência fundamental da disciplina místico-ascética. Santo Isaac o Sírio ensina que é preciso endurecer, tornar-se insensível em relação a todas as criaturas, a fim de amar a Deus de todo coração. A mesma ideia é expressa em São João da Cruz. Eckart coloca o desprendimento acima do amor, e nele falta o espírito do amor. São Basílio o Grande, nos seus preceitos de vida monacal, alerta dos monges contra todo amor individual, contra toda amizade. A impassibilidade, a indiferença perante todos os homens e para com tudo o que é humano parece ser a condição indispensável do ascetismo. O homem é uma criatura e, como tal, não podemos amá-lo, pois não devemos nos ligar a nada do que é criado.

 

Existe uma imensa diferença entre a moral evangélica e a moral ascética dos Padres. Pouco numerosos são os que, como São Francisco de Assis e São Serafim de Sarov, souberam conciliar o desprendimento ascético e a contemplação mística, com o amor a toda a criação, a toda criatura divina. A natureza humana parece ser incapaz de conter em si a plenitude da revelação evangélica, do amor a Deus e do amor ao homem. na literatura ascética e mística, encontramos com frequência um apelo em favor do amor impessoal e impassível, do amor que seria o mesmo para todos, que não conheceria pessoa humana. São Máximo o Confessor declara: “Feliz o homem que pode amar cada ser com um amor igual”. Essas palavras parecem ser a negação de toda eleição, de toda individualização no amor, de toda amizade. O amor aí não é nada senão impessoal; ele não é afirmado como via, mas como coroamento; a via é a humildade.

 

Esse é um dos mais torturantes problemas da mística e do ascetismo cristãos, que parecem trair o Evangelho e as epístolas ao recusar seguir o caminho indicado por João, o discípulo favorito de Jesus. O Cristianismo de João, cujo espírito é o amor, é o oposto desse endurecimento do coração preconizado pela patrística e a mística ascética. Nós devemos amar toda criatura, toda criação divina e toda figura humana, e é precisamente a personalidade que devemos amar em Deus e através de Deus. Não se trata do amor humanista que é sempre impessoal e abstrato, mas do amor de Cristo. Nós o encontramos em São Serafim. Ele é a revelação do Espírito Santo na vida do homem e do mundo. Assim poderemos acreditar na possibilidade de uma nova mística, cuja atitude para com o mundo humano será diferente, pois ela será capaz de unir em si o desprendimento e a contemplação, ao amor iluminado por toda a criação divina, por toda personalidade humana. Nisso reside um grande problema da consciência cristã colocado pela mística. Existe uma mística do amor; seu apóstolo foi João, e é ela que também nos ensinou São Paulo. O Cristianismo é a revelação da personalidade, do valor absoluto de toda alma humana individual; ele é a religião do amor pelo próximo, nascido do amor a Deus. Assim é que um ascetismo que resseca o coração e o torna insensível à criatura, à alma individual, que é incapaz de assimilar a luz e a verdade cristã, se aproxima do ascetismo hindu.

 

Dostoievsky foi, entre nós, o profeta de um espírito novo e diferente, de uma nova e outra mística. Ele se liga, assim como Solovieff, à tradição do Cristianismo russo, à maneira como os russos entenderam a obra de Cristo. Existe uma tradição de erotismo místico. Nós a encontramos na criação mitológica de Platão, na Cabala, em Dante, em São Francisco de Assis, na teosofia de Jacob Boehme, em Baader e em Solovieff. Ela provém da doutrina relativa à imagem andrógina do homem. Ela muitas vezes se apresenta misturada com elementos confusos, mas ela está profundamente enraizada na simbólica cristã. O Cristianismo nos ensina o amor espiritual, mas esse amor tem por missão espiritualizar o psiquismo, e não destruí-lo.

 

 

IV

 

É possível que se produza, no caminho da mística e do ascetismo, uma acumulação de trevas, devido à concentração do espírito sobre o mal, sobre o pecado, sobre a antiga natureza. A verdadeira mística sobrepuja o medo que Satanás inspira. Quando sentimos esse medo, quando nos sentimos vencidos, arrasados pelo mal, isso significa que ainda estamos sob o império da natureza criada, da natureza pecadora abandonada por Deus. Sobrepujá-la implica sobrepujar o medo a Satanás, a obsessão do mal. Dominar a natureza criada significa iluminá-la, significa banir dela o espírito do mal que isola o mundo criado de Deus. O caminho que conduz a essa vitória é antes de tudo o do ascetismo, do sacrifício e da santidade. Mas isso não é tudo, e ele é igualmente o caminho da criação, da iluminação, do voo extático da natureza humana. Existirá uma mística da criação, e a via mística poderá conduzir a criação?

 

Essa questão pertence igualmente à problemática da consciência cristã. Existe uma mística eterna e o Cristianismo deve retornar às suas origens, a fim de não se petrificar definitivamente. Mas, em nossa época, o renascimento místico do Cristianismo encara uma tarefa particular. Habituamo-nos a ver na mística um desligamento absoluto em relação ao mundo e ao homem, uma orientação exclusiva para Deus. A mística deve vencer o “mundo”, no sentido pejorativo do termo, no sentido em que ele é empregado na Santa Escritura e nos Padres ascéticos. Somente a mística pagã, orgíaca, está voltada para o mundo, para a natureza, para a terra, mas a mística cristã sempre a combate. Nós nos encontramos diante do seguinte problema: como poderá a mística cristã se orientar para a vida do cosmos, para a vida da humanidade? Será isso possível? Superar o estado de criatura não significa extinguir e negar a vida do cosmos, da humanidade, mas antes iluminá-la e transfigurá-la. A mística pré-cristã, que alcançou seu auge em Plotino, se afastou do mundo para se dirigir para o Único. Plotino, o último grande helenista, lutava contra o dualismo dos gnósticos, que renegavam a beleza do mundo. Talvez ele também pressentisse o Cristianismo. Toda sua grandeza provém precisamente de que ele abandonou o mundo pagão, agonizante e corrompido, para se dirigir a um novo mundo espiritual, levando consigo a noção helênica da beleza do cosmo. Mas ele não chegou a encontrar a solução para esse dilema.

 

O problema que me inquieta poderia se expressar, na terminologia que adotei, da seguinte maneira: de que forma, no mundo espiritual, poderá o mundo natural ser restabelecido e transfigurado naquilo que ele possui em si de autêntico, de não ilusório? Como poderá o psíquico se agregar ao espiritual? Para a mística, a questão se coloca assim: como poderão o homem e o cosmo espiritualmente transfigurados se afirmarem na experiência e na via místicas? Deus não deseja ser simplesmente Ele próprio, Ele quer que o homem, o cosmo, a criação divina existam, não somente nos tempos, mas por toda a eternidade. A deificação da criação não é nem seu rebaixamento, nem sua extinção. O homem e o mundo não se extinguem em Deus, mas se iluminam, se transfiguram, se transformam definitivamente em ser, libertando-se do não-ser.

 

Não se deve amar o “mundo”, tomado no sentido evangélico, pois é preciso libertar-se de seu jugo, mas é preciso amar a criação divina, o cosmos, é preciso amar o homem. A atitude monástica e ascética, que maldiz e despreza o mundo e o homem, deve ser superada; ela é incapaz de conter a plenitude da verdade crista; ela constitui uma inaptidão em seguir o próprio Cristo. Com efeito, essa atitude não é conciliável com a moral evangélica. O homem, de um lado, deve viver com os outros homens e como o mundo, ele deve tomar sobre si o fardo de seu destino trágico comum, e, de outro lado, ele deve se libertar do mundo, desligar-se de suas paixões, ele deve ser monge no mundo. Existe uma inimizade monástica e ascética em relação a humanidade, uma incompreensão, uma profunda falta de interesse em relação aos movimentos que se realizam no mundo. Mas há aí uma autossuficiência, um enfraquecimento do amor, que se “vitrifica”, como dizia Rosanov. Semelhante mística monástica ou ascética é abstrata e negativa por excelência. E aí ainda, na maior parte dos casos, não se chega a atingir a mística. Pois em Deus, na união com Ele, é impossível que o homem e o mundo não ressuscitem, que a plenitude do ser não seja alcançada. São Serafim superou o que havia nele de sombrio no estado monástico, em benefício de uma mística mais luminosa. Dostoievsky profetizou esse estado de coisas através da pessoa do staretz Zossima.

 

Sobre os caminhos da mística, como de resto por toda parte, os meios costumam se afirmar com vistas aos finas. Esse ascetismo hostil ao homem e ao mundo pode dissimular o objetivo da transfiguração mística em Deus. Ele pode impor ao homem fardos insuperáveis, pesos enormes, e exigir grandes tensões da alma. A dificuldade de nossa vida espiritual consiste precisamente na necessidade de unir o desligamento em relação ao múltiplo, a concentração sobre o único, à libertação e à transfiguração do Espírito da diversidade inerente ao mundo e à humanidade. Duas vias se abrem diante do homem, difíceis para ele conciliar. Uma delas é aquela que, a partir do mundo e do homem, se dirige para Deus, aquela que deixa o múltiplo e o movimento, em favor da Unidade e da Eternidade imutáveis. A outra é a que está orientada para o mundo e para o homem, para a multiplicidade e o movimento. A filosofia grega foi incapaz de resolver o problema gerado por esse dualismo de dois mundos. Platão não o superou, embora tenha pressentido a possibilidade de consegui-lo através do Eros. O pensamento grego estava sob o peso da concepção que Parmênides e os Eleatas tinham do ser único e imóvel, e nisso ele exerceu uma influência inconteste sobre a teologia cristã. Mas o Cristianismo admite, ao menos em princípio, uma solução para esse problema perturbador, e chegou a vencer o dualismo. A plenitude da verdade cristã não pôde ser assimilada pela humanidade, nem mesmo pelos místicos e os santos. Nós nos encontramos mais uma vez diante do problema que se colocara para os gregos, para Platão e Plotino.

 

A solução não é possível senão no amor de Cristo, na plenitude do amor. A energia criativa do homem é igualmente uma manifestação do amor, do Eros, que une e ilumina. A tarefa da vida espiritual é particularmente difícil, ela é insuperável para o homem natural, pois ela consiste em unir, por uma prece incessante, o livre desapego espiritual, a concentração sobre o Único e o Eterno, ao amor pelo mundo e pelo homem, amor que ilumina e transfigura. O auge da via mística não consiste apenas na união com Deus; ele é, na verdade, por meio dessa união, a orientação para toda criatura, ele é a realização do amor e da força criativa. O amor é precisamente a criação, é assim que se realiza o mandamento de Cristo: amor a Deus, amor ao homem.

 

 No amor cristão devem se manifestar todos os dons, todos os carismas conferidos ao homem por Deus. “Existem uma diversidade de dons, mas um só e mesmo Espírito (...) a um é dado, por meio do Espírito Santo, a palavra de sabedoria; a outro, a palavra do conhecimento, segundo o mesmo Espírito; a outro, o dom da cura, por esse mesmo Espírito; a um outro, o poder de operar milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a esse, o dom de falar em línguas; àquele, a interpretação dessas línguas[4]”. E o mesmo apóstolo Paulo nos diz: Não extingais o Espírito; não desprezeis as profecias; experimentai todas as coisas e retende o que é bom[5]”. O Cristianismo monástico e ascético às vezes conduzia à extinção do espírito e à negação dos dons, vale dizer, a um dualismo intenso, no qual a vida, a força criativa e toda nossa atitude para com o mundo e o homem não eram justificados. Eis como se coloca o grande problema da mística. Sua missão consiste em libertar o espírito humano desse estado de abatimento e de não justificação de sua via criativa. A própria mística foi muitas vezes responsável por esse rebaixamento da natureza humana e por essa condenação da vida criativa. A experiência mística da via conhece esse “estado de criatura”, e o considera como um estado de pecado que isola de Deus. Mas, em Deus, o ser natural é superado, e então é uma outra natureza humana que se vê restabelecida em sua força criativa.

 

Na experiência mística, o mundo natural e humano é absorvido no espírito, e já nada se opõe como sendo algo extrínseco. A mística autêntica nos liberta dessa opressão provocada por tudo o que é “estranho” e “extraposto”. Nela, tudo é vivido como fazendo parte de mim, como sendo profundamente interior a mim. A mística constitui uma penetração nas profundezas do mundo espiritual, onde tudo se passa de modo diferente do que no mundo natural, pois aí não se encontram mais divisões, e nenhuma coisa é exterior a outra. Nada existe que esteja fora de mim, tudo está em mim e comigo, tudo se encontra nas minhas profundezas. Mas essa verdade mística é radicalmente oposta a todo subjetivismo, a todo psicologismo, a todo solipsismo; ela não significa que não exista nada exterior a mim, que as coisas não passem de meu estado pessoal. Essa verdade implica a eclosão do mundo espiritual, no qual tudo está oculto numa profundidade íntima; ela implica a revelação interior, e não exterior, de toda realidade. Eu estou em tudo e tudo está em mim, toda orientação da vida se transforma, produz-se uma transmutação. Viver, do ponto de vista místico, já não consiste em experimentar o estado de opressão causado por uma realidade que me é oposta e exterior, como é o caso do mundo natural, mas é ter a convicção de que tudo faz parte de meu próprio destino íntimo, e de que tudo se realiza numa profundidade que me é mais próxima do que eu próprio. A mística é o oposto do realismo histórico. Mas existe uma mística da história. Toda a história do mundo é a história de meu espírito; no espírito, essas duas histórias não estão “extrapostas” uma em relação à outra. Isso não significa que eu me anulo enquanto realidade, que eu me confundo com tudo e me transformo em tudo. Isso significa que eu não recebo a existência, a realidade e a personalidade senão dali, de onde nada me é mais exterior, estranho, impenetrável e morto, de lá onde se realiza o reino do amor.

 

Nós entramos na era de uma nova espiritualidade, que será a contrapartida da materialização desse nosso mundo. A essa época do Cristianismo corresponderá uma nova forma de mística. Daí por diante será impossível se opor a uma vida superior, invocando o pecado da natureza humana, que devemos superar. Já não há mais lugar, no mundo, para um Cristianismo exterior e feito de costumes. A via espiritual e mística constitui precisamente o caminho que conduz à vitória sobre o pecado. O mundo penetra numa época catastrófica de eleição e de divisão, na qual serão exigidas de todos os cristãos uma grande elevação e intensidade de vida interior. O Cristianismo exterior, da zona mediana, se corrompe; mas aquele que é eterno, interior e místico se fortifica e se intensifica. Assim é que a própria Igreja deverá determinar de outra maneira sua atitude em relação à mística e à vida espiritual interior. Não é senão nos períodos em que os costumes e as tradições exteriores se impõem com obstinação, que a religião pode se ver desprovida de mística. Mas ela a reencontra inevitavelmente quando esses costumes e essas tradições sofrem comoções e catástrofes. Então, na própria mística, o tipo paraclítico começa a dominar. A época de uma nova espiritualidade no Cristianismo não pode ser outra coisa do que a época de uma manifestação sem precedentes do Espírito Santo.



[1] Adeptos de uma seita russa orgíaca, cujos ritos lembravam os mistérios de Dionísio, e na qual os elementos pagãos e cristãos estavam confundidos.

[2] Termo criado pelo pensador alemão Christian Krause 1781-1832para designar sua doutrina, caracterizada como uma síntese entre o teísmo e o panteísmo, pois calcada na suposição de que a totalidade do universo está situada no interior de uma única divindade primordial.

[3] Naturlichkeit.

[4] I Coríntios 12: 8-10.

[5] I Tessalonicenses 5: 19-21.


Nenhum comentário:

Postar um comentário