Frequentemente as palavras provocam falsas associações de ideias, que
não correspondem ao seu sentido ontológico. É isso que aconteceu com o termo “teosofia”,
que pode ter diferentes significados. Os movimentos “teosofistas” contemporâneos
o deformaram e nos fizeram esquecer a existência de uma teosofia
verdadeiramente cristã, de uma autêntica sabedoria divina. A tradição teosófica
se irradia através de toda a história do Cristianismo. O primeiro teósofo
cristão, no sentido profundo do termo, representante da gnose cristã, para
distingui-lo dos pseudo-gnósticos, foi o apóstolo Paulo. Também Clemente de
Alexandria e Orígenes foram teósofos e gnósticos cristãos. As obras do
Areopagita e a mística medieval, os escritos do grande Boehme, malgrado alguns
desvios, comportam uma autêntica teosofia cristã, em tudo diferente daquela
reivindicada por Steiner ou Annie Besant. O mesmo podemos dizer de Baader e
Solovieff, numa época mais próxima da nossa. A Cabala é teosófica e exerceu uma
considerável influência sobre a mística cristã. Heráclito e Platão foram
grandes teósofos do mundo antigo, que em seu declínio ainda chegou a conhecer
Plotino. Eram pessoas ébrias, se podemos nos exprimir assim, de sabedoria
divina. A teologia mística, não escolástica, foi sempre uma teosofia, assim
como toda contemplação na qual se dê a síntese da filosofia com a religião.
Mas é evidente que o teosofismo[1]
contemporâneo é totalmente distinto da antiga teosofia. O espírito de Blavatsky
e de Annie Besant é por demais diferente daquele de Heráclito e Plotino, de
Orígenes e do pseudo-Dionísio o Areopagita, de Meister Eckart e de Jacob
Boehme, de Baader e de Solovieff. Trata-se de outra formação; eles não
pertencem à mesma raça. O selo da inspiração criadora e divina não existe nos
escritos dos teosofistas contemporâneos. Aqui, nenhum talento se manifesta;
eles são entediantes, seu estilo se parece com o dos manuais de mineralogia e
de geografia, quase impossíveis de se ler. Os alunos do moderno teosofismo
aprendem de cor os termos dessa geografia, e são constantemente obrigados a
compulsar os de Baedecker, pois se arriscam a confundir as montanhas e os rios
do mundo espiritual. É fácil se perder na sucessão de encarnações terrestres,
confundir Júpiter, Vênus e Mercúrio, pois é desconfortável traduzir esses
avatares numa linguagem de experiência espiritual viva. A maior parte dos
teosofistas e dos antroposofistas não possuem nenhuma clarividência pessoal.
Eles não são capazes de perceber, na memória do mundo, a evolução cósmica, e se
socorrem do libro de Steiner, Crônica akashika, ou de qualquer outro,
que aprendem e decoram. Assim se cria uma orientação de vida espiritual, na
qual até o ponto de partida é falso.
O teosofismo abusa de nomes, aos quais não pode pretender. É tão
difícil encontrar a Deus no teosofismo de Annie Besant, quanto encontrar o
homem na antroposofia de Rudolf Steiner. Abram algumas obras teosofistas:
encontrarão aí tratados sobre a formação e a evolução do cosmo, a estrutura
complexa do homem como resultado dessa evolução, a reencarnação; mas o nome de
Deus não é mencionado. O teosofismo poderia se intitular, com mais justiça,
como cosmosofia, ou seja, o ensinamento relativo à composição e ao
desenvolvimento do cosmo, pois ela não reconhece nada além disso, e nisso ela é
perfeitamente monista. Para ela Deus não existe, só existe o divino, que
constitui precisamente o cosmo com seus múltiplos planos. Nele o homem se
encontra dissolvido, inteiramente submetido aos processos cósmicos.
O teosofismo contemporâneo traz a marca indelével da época intelectual
na qual nasceu. Essa época foi a do triunfo do naturalismo, do evolucionismo,
do racionalismo e do materialismo. O movimento teosofista contemporâneo,
inaugurado por Blavatsky, pretendia afirmar desde o início um naturalismo e um
evolucionismo específicos. Ele não se levantou contra os hábitos intelectuais
do homem do século XIX, ele não exigiu dele um ato de fé, nenhuma revolução
espiritual. O mundo espiritual devia ser conquistado por uma via pacífica, por
uma evolução. O intelectualismo do homem contemporâneo, toda sua mentalidade,
eram tanto acolhidas, como justificadas. O conhecimento teosófico deve ser
assimilado ao naturalismo, ao evolucionismo, quase que ao materialismo da
ciência contemporânea.
Steiner era um discípulo de Haeckel, a quem venerava como seu mestre.
A consciência teosofista adotou o monismo mais vulgar, que as obras do
pensamento teosófico mais refinado já haviam ultrapassado. É chocante notar que
a teosofismo se uniu aos movimentos filosóficos mais simplistas, evitando
aqueles mais complexos e mais profundos; ela rapidamente adotou um caráter
popular. Ela se dirigiu às almas contaminadas pelo evolucionismo, o
positivismo, o naturalismo, vale dizer, pelas correntes claramente inferiores da
consciência filosófica contemporânea, da cultura espiritual de nossa época. Os
teosofistas tentam justificar, por isso mesmo, a vulgarização de sua
literatura. Chegamos mesmo a ouvir de antroposofistas que Steiner, o mais
considerável dos teosofistas, escreveu seus livros para os insensatos, mas que
reservou aos iniciados suas palavras mais profundas.
Entretanto, malgrado o nível baixíssimo da literatura teosofista
popular, malgrado o charlatanismo que aí se encontra frequentemente amalgamado,
não devemos tratar com desdém o teosofismo; é preciso reconhecer nele um
sintoma importante. Sua popularidade crescente está estreitamente ligada às
crises da ciência e do Cristianismo. Esse sintoma denota no homem moderno uma
profunda inquietação e um retorno ao mundo espiritual. Tampouco a ciência e a
Igreja oficial dão suficiente importância ao teosofismo e ao ocultismo ligado a
ele. A popularidade do teosofismo se explica facilmente em nossa época
sincretista. O teosofismo escolheu na evolução o caminho mais fácil para
passar, do ateísmo contemporâneo, do materialismo e do naturalismo, ao reconhecimento
e ao conhecimento dos mundos espirituais. O teosofismo transporta o homem para
além desse abismo que separa os dois mundos. Ele prega o aperfeiçoamento, o
desenvolvimento de novos órgãos receptivos, mas seus preceitos diferem
radicalmente daqueles dos caminhos religiosos ou místicos. O teosofismo não
exige a renúncia à sabedoria desse século. Ele se conforma com os instintos do
homem médio, que pretende, apenas aflore o mundo espiritual, estender seus
domínios e multiplicar suas riquezas. Jamais ele poderá satisfazer a sede
espiritual dos povos, pois esses não podem viver senão de uma fé religiosa.
Quanto à aristocracia espiritual autêntica, ela está igualmente ausente do teosofismo
contemporâneo.
O teosofismo contemporâneo está fundado sobre a contradição inerente
ao tratamento exotérico de um pretenso esoterismo. Sua preocupação essencial é
a revelação do esotérico. Ele não desperta nenhum sentimento de excitação diante
dos mistérios derradeiros. Seu esoterismo oferece bem menos um mistério do que
um segredo. O esoterismo verdadeiro não dissimula nada, nem esconde enigma
algum, mas afirma o mistério, que se revela a uma profundidade maior ou menor,
segundo o dom ou o nível espiritual alcançado. A distinção entre o esotérico e
o exotérico existe efetivamente, ela e eterna, e podemos encontrá-la mencionada
mesmo no apóstolo Paulo. Existe ao mesmo tempo uma compreensão mais profunda e
uma compreensão mais exterior do Cristianismo. O esotérico, no Cristianismo,
quase coincide com o místico. Os místicos cristãos foram os verdadeiros
esotéricos. Mas suas contemplações, inacessíveis aos simples cristãos, nada têm
de enigmáticas. Para poder compreendê-las completamente, basta simplesmente ter
feito uma experiência semelhante à sua. Para perceber o esoterismo do
Cristianismo, é preciso ter uma consciência orientada para o outro mundo. Mas
na teosofismo e no ocultismo, que têm pretensões religiosas, o esoterismo se
reveste de um caráter equívoco.
A diferença entre o exotérico e o esotérico é relativa. O esoterismo
pretende colocar a verdade secreta e o mistério ao abrigo da profanação e da
incompreensão das massas, incapazes de os assimilar. Mas o que pode haver de
esotérico na teosofismo contemporâneo? Será a sabedoria divina ou o monismo
naturalista? A qual das confissões predominantes se opõe esse esoterismo? À
Igreja cristã, ou ao positivismo e ao materialismo contemporâneos? Talvez o
mistério resida em que Deus não existe e que somente exista o cosmo infinito?
Os livros teosofistas nos fornecem sérias razões para compreender assim seu
esoterismo. Nisso, Blavatsky e Steiner se distinguem radicalmente de Jacob
Boehme e de Saint Martin. Na época do politeísmo pagão, o monoteísmo era
esotérico; essa verdade era preservada das massas incapazes de se elevar até
ela. Na época do domínio cristão da Igreja, o monismo naturalista era
esotérico. Mas o que resta a saber, é o que pode subsistir de esotérico em
nossa época confusa e perturbada, desprovida de uma fé única, integral e
predominante.
O teosofismo parece dissimular alguma coisa à consciência da Igreja e
à consciência materialista. Mas quando penetramos no fundo de seu esoterismo, é
sempre uma forma espiritualista, de naturalismo, de evolucionismo ou de
monismo, que aparece. Steiner é um monista, assim como Haeckel, e ele
naturaliza os mistérios divinos. Mas seu monismo está ligado a um dualismo
maniqueísta particular.
O que existe de verdadeiro no ocultismo, é que a diferença que existe
entre o esotérico e o exotérico é função dos graus da consciência; o que é
justo, também, é sua concepção dinâmica da consciência, pois o estado estático,
com seus limites intangíveis, não é senão temporário e passageiro. Estamos
cercados de forças invisíveis e desconhecidas, e a receptividade de nossa
consciência só está fechada para elas momentaneamente. A esfera do oculto e do
mágico existe, e o mundo se encontra penetrado por sua ação. É preciso reconhecê-lo,
independentemente de qualquer juízo de valor sobre essas forças. A própria
ciência positiva reconhece cada vez mais a existência da “meta-física”. Mas o
ocultismo científico tem pouco em comum com as pretensões religiosas do
ocultismo e do teosofismo.
II
Em suas concepções a respeito do homem, o Cristianismo e o teosofismo
se diferenciam profunda e radicalmente. Não existe similaridade alguma entre a
antropologia cristã e a antropologia teosofista popular. É preciso seguir, até
suas últimas consequências, o conflito entre essas duas concepções do destino
humano. O Cristianismo é antropocêntrico e antroposófico, no sentido mais
autêntico da palavra. Segundo ele, o homem constitui o grau supremo do ser,
sendo superior inclusive à hierarquia angélica. O Filho de Deus se encarnou num
homem, não num anjo. O homem existe desde toda eternidade e ele herda a
eternidade; ele foi criado à imagem e semelhança de Deus, ele não surgiu nem se
reabsorve na evolução cósmica; ele não é produto dessa evolução, ele não é
filho da natureza, nem dos processos que se realizam nela. O homem é “filho de
Deus”. A espécie humana não pode ser superada por uma nova raça, como a de um
super-homem, de um anjo ou de um demônio. Nenhuma evolução pode transformar uma
hierarquia em outra. O desígnio divino relativo ao homem não pode ser
modificado, ele só pode ser realizado ou destruído. O homem herda a vida divina
eterna; por intermédio de Cristo, o Deus-homem, ele está enraizado nas
profundezas mesmas da vida divina. O homem pode se colocar em contato imediato
com Deus, e nenhuma evolução cósmica pode separá-los. Se existe alguma coisa
esotérica no Cristianismo, certamente não é a noção de que o homem é um produto
da evolução cósmica, que ele pode ser ultrapassado por ela, que um novo éon universal
virá a acontecer sob o signo de uma nova raça super-humana, mas sim a ideia de
que o homem é mais do que uma simples criatura, que a segunda Hipóstase da
Trindade é o Homem nascido na eternidade.
Na Cabala havia uma teosofia, uma antroposofia e um esoterismo
autênticos. Esse esoterismo era estranho ao teosofismo moderno; quaisquer que
fossem suas formas e nuances, a Cabala possuía seu próprio esoterismo, que
favorecia o orgulho humano no tempo e diminuía o homem perante a eternidade. A
concepção cristã do homem é hierárquica e não evolucionista. O homem não é uma
parte fracionada, transitória, do cosmo, um grau em sua evolução, mas lhe é
superior, independente de sua infinitude e, em princípio, ele o abarca por
inteiro.
A consciência teosofista, embora admitindo as subordinações cósmicas,
é inteiramente evolucionista; para ela, todo grau hierárquico pode se
transformar em outro grau. As correntes predominantes do teosofismo negam
radicalmente a ideia cristã do homem. Segundo elas, o homem nem sempre existiu
e tampouco herdará ele a eternidade. O cosmo é eterno; mas o homem não é mais
do que temporário e passageiro, ele não corresponde senão a um éon da evolução
cósmica. Ele não existia nos períodos precedentes e não existirá mais nos
ulteriores. O homem é oprimido pelos mundos inferiores e superiores, ele não
está enraizado senão no tempo, não na eternidade, enraizado no cosmo e não em
Deus.
A consciência teosofista é monista, monofisita; ela não reconhece
senão uma natureza: o cosmo divino e impessoal. O homem é o produto e o instrumento
da evolução, ele se agrega e desagrega em seu processo. Ele é uma entidade
composta por três corpos (o físico, o etérico e o astral) e por um “eu”
espiritual impessoal. Ele não passa de uma síntese temporária das forças
cósmicas. Sua estrutura evocaria aquela desses ovos de Páscoa que se embutem
uns dentro dos outros; ele não possui um núcleo espiritual sólido, e mesmo que
exista algum, esse núcleo não é humano, mas algo impessoal e cósmico. A antroposofia,
cujo nome provém da palavra “homem”, pressupõe que um único éon universal se
encontra sob o signo do homem, e que esse será ultrapassado. Esse período
cósmico consiste, de certo modo, no Antropo desagregado, cujos fragmentos
compõem o mundo desse éon. Mas esse exagero aparente do valor do homem não
implica seu significado absoluto e eterno. Tudo não passa de um jogo de forças
cósmicas. As épocas seguintes não estarão sob seu signo; deverá se formar um
novo gênero que não será humano. Existe uma hierarquia de espíritos que é
superior ao homem, e que o dirige. Entre Deus e o homem se encontra uma
gradação complexa de anjos e demônios, que torna impossível sua comunicação
imediata. Mas, de resto, Deus não existe; o que existe não é mais do que uma hierarquia
cósmica divinizada. O teosofismo restabelece uma vez mais a antiga
demonolatria, e o homem permanece sob o jugo dos gênios.
A libertação cristã do espirito do homem é eliminada e assistimos ao
retorno do antigo gnosticismo semi-cristão, semi-pagão. O homem se ensombrece e
desaparece, sua imagem se dilui nas hierarquias e nas evoluções cósmicas, na
sucessão infinita dos éons. O teosofismo e a antroposofia, quaisquer que sejam
suas variedades, negam a personalidade, lutam contra esse princípio em nome do
comunismo cósmico. Elas complicam o problema, pelo fato de que não levam em
conta a distinção existente entre a personalidade e a individualidade. Para a
consciência cristã, a personalidade é uma categoria espiritual, enquanto que a
individualidade é uma categoria biológica. Para os teosofistas, assim como para
a escola filosófica de E. Hartmann, a personalidade não é, na realidade, mais
do que o resultado do aprisionamento do espírito na matéria, no corpo físico,
e, por causa disso, ela deve ser superada por uma evolução ulterior. A doutrina
teosofista da reencarnação, emprestada da Índia, destrói o ser integral. A
síntese temporal das forças cósmicas, dos fragmentos planetários das evoluções,
se desagrega em partes constitutivas e numa nova síntese, numa nova coesão de
forma. Mas a unidade e a integridade da personalidade, sua unicidade,
desaparece.
Os teosofistas têm razão quando ensinam a estrutura complexa do homem,
a presença, nele, de superposições cósmicas. Eles também têm razão quando
recusam ver no homem natural o substrato intangível e imutável da
personalidade. A personalidade é a ideia que Deus tem do homem, e seu destino
eterno está indissoluvelmente ligado a essa ideia divina única. Sua imagem
permanece em Deus e não no mundo aqui de baixo, na substancialidade natural.
Mas para os teosofistas existe entre o ser divino e o ser humano, uma evolução
infinita de mundos espirituais. Na realidade, essa evolução infinita constitui
precisamente a existência divina.
A experiência mística da comunhão com Deus é considerada por eles como
sendo irrealizável. O teosofismo é obrigado a negar que a imagem humana
integral e única repousa em Deus, que essa imagem é a ideia divina, por
considerá-la sempre como resultado de processos complexos que se desenrolam no
mundo. A consciência teosofista e antroposofista nega o homem enquanto desígnio
divino, enquanto nome eterno. Nisso ela se aproxima do comunismo. O teosofismo
popular constitui um naturalismo transferido aos mundos espirituais, um monismo
naturalista do tipo de Haeckel. É por isso que Steiner se permite afirmar que
Haeckel corrigiu e aperfeiçoou Boehme. Mas, se nesse último encontramos uma
doutrina cristã sobre o homem, sobre o primeiro Adão, em Steiner, discípulo de
Haeckel, não subsiste nenhum traço dela. Schuré pretende que o homem procede de
um ser metade peixe, metade serpente. Vemos que esse tipo de antropogênese já
não possui nenhuma relação com o Cristianismo. O evolucionismo naturalista dos
teosofistas é o oposto da doutrina platônica relativa às ideias, aos gêneros, à
hierarquia do ser. O teosofismo é anti-hierárquico, como de resto o é todo
evolucionismo, e ele não admite que uma espécie possa ter existido eternamente,
e que existirá por toda eternidade. Ele também nega isso para o homem. existe
nele um darwinismo espiritual. Para a consciência cristã hierárquica, o homem
não provém do animal e não pode evoluir até um super-homem. Ele pode decair,
assim como pode se desenvolver, mas ele permanecerá sendo homem, mesmo no Reino
de Deus.
Já mostramos de que maneira nossa antropologia varia segundo o caráter
de nossa cristologia. Nossa atitude para com o homem é determinada por nossa
atitude para com Cristo. O homem não atinge uma consciência absoluta de si
mesmo senão por Cristo, o Deus-homem. A cristologia teosofista é elaborada de
tal maneira que ela termina necessariamente pela negação do homem. Ou bem o
teosofismo se encontra no terreno pré-cristão da consciência hindu, que não vê
Cristo senão como um iniciado entre outros, ou bem ele criou uma cristologia
naturalista que vê em Cristo um impulso cósmico. Mas todas as formas de
teosofismo separam, na mesma medida, Jesus de Cristo, e negam o Deus-humanidade.
Madame Blavatsky nãopodia suportar o Cristianismo, e considerava o Brahmanismo
como uma forma de consciência religiosa superior a ele. Já o teosofismo moderno
tende a se adaptar ao Cristianismo. Havia no Brahmanismo uma verdade religiosa
pré-cristã, da qual o teosofismo atual nada possui. Steiner considerava seu
teosofismo como sendo pré-cristão; ele reconhecia que uma nova época universal
começara com a vida de Cristo, e estava quase pronto para qualificar de
reacionário o teosofismo oriental. Entretanto, sua cristologia se reveste de um
caráter naturalista e evolucionista, que influenciam sua antropologia.
O homem é um conjunto, composto de fragmentos de evoluções
planetárias; ele e a terra não passam de etapas dessa evolução cósmica. O homem
se reencarna, perdendo assim sua imagem, o substrato de sua personalidade. A
própria terra está também submetida a essas peregrinações; a entidade única e
integral, o núcleo ontológico se perde, em tudo e por toda parte. A
personalidade se agrega e se desagrega, reaparecendo em outras personalidades.
Toda a humanidade passa por um processo análogo, reencarnando-se num gênero que
já não é mais humano. Existe no homem um corpo físico que corresponde aos
minerais, um corpo etérico que corresponde às plantas, um corpo astral que
corresponde aos animais e um “Eu” espiritual que o aparenta a Deus. Todas essas
partes constitutivas se dissociam, e então a personalidade desaparece. O “Eu”
espiritual não constitui em si mesmo a personalidade; essa só se forma pela
união com os corpos físicos, etérico e astral, como síntese evolutiva,
passageira e transitória de elementos aptos a se unir e se dissociar. Jesus e
Cristo são distintos, e não se unem senão no momento do batismo, mas mesmo a
imagem de Jesus se fraciona, pois, segundo Steiner, existem duas crianças
Jesus. Cristo, enquanto Logos, enquanto agente cósmico, é uma reencarnação de
Zoroastro em Jesus.
A cristologia de Steiner consiste numa reconstituição original e
modernizada das antigas heresias, de um lado o maniqueísmo, de outro o
nestorianismo, para as quais as duas naturezas de Cristo permaneciam distintas.
Steiner nega o mistério da humanidade divina em Cristo, Sua Imagem integral.
Cristo não constitui uma Personalidade, mas um impulso, um agente cósmico. Para
outros teosofistas, Jesus Cristo faria parte da mesma linhagem de Buda,
Zoroastro e outros grandes iniciados. O teosofismo e a antroposofia veem
Cristo, não em Deus, não na Trindade Divina, mas na natureza, no processo
cósmico. A infinidade cósmica engole a Imagem de Cristo, e nisso ela engole
também a imagem do homem que partilhe de Seu destino.
Tal é a consciência teosofista, que se arroga sem ter o direito, os
nomes de teosofia e antroposofia. Essa consciência não quer conhecer nem Deus,
nem o homem, nem a personalidade, mas um cósmico impessoal idêntico ao divino
impessoal, não existem limites hierárquicos, nem fronteiras, nem distâncias, e,
por conseguinte, não existe integridade, seja lá de que espécie for; tudo é
confundido, tudo está em tudo, e tudo passa por tudo. Aqui nós encontramos a
antiga consciência hindu que oprime a consciência teosofista. A verdade da
mística, a da unidade, da profundidade do mundo espiritual, aqui se encontra
naturalizada e vulgarizada.
O teosofismo se vê na obrigação de negar o valor eterno da alma
individual; ele não é capaz de reconhecer o significado indefectível do nome
humano. Ele não acolhe em si a revelação cristã da personalidade, mas permanece
num período pré-cristão. E mesmo Steiner, que gosta de falar do impulso de Cristo,
da época universal colocada sob Seu signo, ignora essa revelação. O
Cristianismo é personalista; para ele, todo ser constitui uma personalidade
única e concreta. O teosofismo e a antroposofia são antipersonalistas. A
doutrina antroposófica do “eu” espiritual não é uma doutrina da personalidade.
Esse “ego” é totalmente impessoal, ele se agrega a corpos que fazem parte de
outros planos e deles se separa a seguir. A personalidade humana não passa de
uma coesão passageira. Um coletivismo original é próprio ao teosofismo; ele
afirma, de certa forma, um comunismo anti-hierárquico do ser. A imagem humana é
obscurecida e fracionada por um medíocre infinito de mundos. É por isso que a
consciência teosofista ignora o mistério do amor cristão, como também o ignoram
a religião e a filosofia hindus.
O mistério do amor é o mistério
da personalidade, a penetração na identidade única, que não se renova, de um
outro homem, a visão de sua imagem em Deus. Somente o sujeito que ama pode
contemplar a face do amado. A imagem humana é sempre deformada e mascarada por
aquele que não ama. Somente por meio do amor podemos ver a beleza da face
humana. O amor não é a confirmação da identidade, a descoberta de um só e mesmo
princípio em mim e no outro, tat twan asi, como afirma a consciência
religiosa da Índia. Se “eu” e “você” não somos senão um, então meu amor por
você não passa de um amor por mim mesmo. Não existe mais um e outro. O sujeito
amoroso e seu amor implicam sempre o outro, pressupõe a saída de si em direção
a esse outro, o mistério da união de dois seres que desfrutam realidades
distintas e independentes. A imagem eterna e absoluta do amor nos é dada na
Trindade Divina, e ela não pode ser adquirida num monoteísmo ou num panteísmo
abstratos. A bem dizer, o teosofismo nega o “eu” e o “você”. Ora, o amor é
sempre uma relação de personalidade a personalidade. Se não existe a
personalidade, não pode haver amor. A imortalidade, a ressurreição, a
eternidade da personalidade são uma reivindicação do amor, a afirmação do ser
amado em Deus, vale dizer, na eternidade.
É evidente que, para a consciência teosofista, que professa a
agregação e a dissolução cósmica da personalidade, seu caráter composto e
efêmero, a personalidade não pode desfrutar da eternidade. A personalidade, o
amor e a imortalidade estão unidos na experiência espiritual, e ali se acham
indissoluvelmente ligados. O amor possui um sentido eterno, quando se orienta
para o ser eterno, e quando afirma essa eternidade com toda a sua energia. O
mistério da unicidade, daquilo que não pode se repetir, é estranho e
inconcebível para o teosofismo, assim como o é para a consciência religiosa da
Índia. O teosofismo considera que tudo se reproduz, que tudo é múltiplo. A
personalidade única de Jesus Cristo não existe. Cristo se reencarnou diversas
vezes. O homem e a terra estão submetidos a essas reiteradas peregrinações. Não
existe acontecimento único na história que, por isso, que confira um sentido
único. O sentido e a individualidade da história estão, no entanto, ligados a
essa unicidade de seus eventos e, antes de tudo, à vinda única de Cristo. Toda
a vida espiritual e concreta repousa sobre essa mesma unicidade. A consciência
hindu pré-cristã, assim como o teosofismo, não veem a personalidade e não
compreendem a história, precisamente porque negam esse fato essencial.
O teosofismo recusa-se a ver o fim, a eternidade divina, que dá
sentido a tudo o que é único e pessoal. A negação do fim divino, da saída
final, está intimamente ligada à negação do mistério absoluto. O mistério nos
mergulha no absoluto divino. a negação desse mistério nos submerge na
infinitude do processo universal. Tudo aqui se acha inelutavelmente ligado: a
personalidade, a unicidade, a eternidade e o mistério. A afirmação do mistério
não é o agnosticismo. No conhecimento, é possível um movimento infinito em
profundidade. Mas toda gnose desemboca no mistério, o que significa que toda
gnose se dirige a Deus. Ora, Deus é um mistério, no qual todas as coisas
encontram seu fim.
A gnose teosofista jamais desemboca em Deus; ela está completamente
imersa no mundo, na evolução cósmica. Ou bem o mundo encontra seu fim em Deus,
ou bem o mundo é infinito. Se ele encontra seu objetivo final em Deus, então
sua solução última está mergulhada no mistério, o qual devemos considerar com
religioso recolhimento. Se o mundo é infinito, então não há nem solução, nem
mistério final, nem veneração religiosa. O teosofismo, tal como o encontramos
expresso na sua literatura popular, afirma a infinitude do mundo, não considera
a Deus como sua saída, ignora o mistério e só conhece o segredo. Ora, quando
esse segredo se entreabre, não vemos nele mais do que as evoluções de mundos infinitos,
nada além da divinização do próprio mundo. Não existe aí nem a personalidade do
homem, nem a personalidade de Deus, mas apenas e tão somente uma divindade
cósmica impessoal e neutra. A gnose teosofista r3ecusa-se a reconhecer a
antinomia da consciência religiosa, ela estabelece uma continuidade evolutiva.
O Cristianismo é, antes de tudo, histórico, ele libera o conhecimento de Deus e
do homem do jugo esmagador da infinitude cósmica, ele afirma a existência de
uma origem única, não sujeita a repetições, sobre a qual se fundamenta a
história, e que a diferencia da natureza.
O teosofismo não tem uma consciência do mistério da liberdade. Esse
não repousa, para ela, na base do mundo. É por isso que ele não compreende o
mal: ela o considera exclusivamente do ponto de vista do evolucionismo.
Steiner, no início de suas atividades, escreveu A filosofia da liberdade.
Mas não existe liberdade alguma nesse livro, ou antes, a que existe não passa
de um produto da necessidade. O homem chega à liberdade em consequência da
evolução, mas não procede dela. Steiner desconhece a liberdade inicial.
Percebemos em suas obras a influência de Haeckel e Max Stirner. De resto,
nenhum livro teosofista menciona essa liberdade inicial. O espírito humano está
acorrentado à evolução cósmica; ele se liberta dela, mas isso demonstra
precisamente que a liberdade não é resultado dessa evolução. Para o teosofismo,
homem não foi criado à imagem e à semelhança divinas, e é por isso que a
liberdade, como princípio inicial e eterno, não é inerente a ele.
O homem é filho do processo universal; por conseguinte, sua força
propulsora é a necessidade. É verdade que Steiner afirma que o homem deve ser
livre, e que o será. Mas isso não passará de um momento no processo cósmico,
pois o homem está condenado a desaparecer. Ele nem sempre existiu, e não
existirá para sempre, ele será substituído pelas hierarquias superiores; um
novo éon virá em seu lugar. Com essa concepção do ser, na qual o “eu”
espiritual impessoal não passa de um dos elementos constituintes, nos
perguntamos porque o homem teria necessidade de liberdade.
Por negar a liberdade, o teosofismo está obrigado a negar o mal. Ele
adotou, no que lhe concerne, o ponto de vista evolucionista, ao qual ele
acrescenta às vezes um certo maniqueísmo. Se a liberdade não existe, tampouco o
mal existirá. Os teosofistas oscilam entre o monismo evolucionista e
naturalista e o dualismo maniqueísta. Mas o monismo e o dualismo são ambos
incapazes, não apenas de resolver o problema do mal, como simplesmente colocá-lo.
Com efeito, o dualismo também concebe o mal de uma perspectiva naturalista, por
não ver nele mais do que uma esfera particular, independente do ser, nada além
da natureza inferior e má. A interpretação espiritual do mal está sempre ligada
à liberdade. O mal tem sua fonte na liberdade e não na natureza, e é por isso
que ele é irracional. Esse é o ponto de vista do Cristianismo. O teosofismo, ao
contrário, faz o mal derivar da evolução cósmica e não admite que ele possa ser
derrotado nela. O problema do mal, como o do homem e de Deus, se escurece na
infinitude cósmica. Definitivamente, não existe nem liberdade, nem mal, nem
homem, nem Deus, mas unicamente um processo cósmico, uma alternância infinita
de éons, uma agregação e uma dissolução de planos universais. Existe um
infinito em potência, mas não um infinito atual, um infinito cósmico, mas não
um infinito divino, e nenhuma eternidade.
III
A distinção fundamental entre o Cristianismo e o teosofismo reside em
que um é a religião da graça, enquanto que o outro ignora a graça. A concepção
teosofista do mundo traz a marca da lei, não da graça. O caminho professado
pelo teosofismo, e que é seguido pelos teosofistas, é exclusivamente aquele que
vai de baixo para cima. O homem natural faz esforços sobre-humanos para
alcançar os mundos espirituais, subindo pelos degraus de uma escada sombria.
Mas nenhum raio de luz vem do alto para iluminar esse caminho temível em meio à
escuridão. O homem se encaminha para a luz através de trevas espessas, sem
receber apoio algum.
Segundo o teosofismo, o destino humano é regido ela lei e não pela
graça. Esse naturalismo atinge mesmo as profundezas da vida espiritual e
divina. A justiça se identifica com essa lei naturalista, com a lei da natureza
espiritual. O karma é precisamente uma dessas leis do destino humano, da
qual o homem não pode escapar, devendo resgatar, no decurso de suas infinitas reencarnações
no devir, as consequências de suas infinitas encarnações do passado. O passado
se estende indefinidamente em direção ao futuro, ele é invencível. O karma
é, de um lado, a lei natural da evolução espiritual, que indica que o destino
humano é regido pela lei e que ele não se beneficia da graça; e, de outro lado,
ele é a lei da justiça, a recompensa merecida, a colheita do que foi semeado, o
resgate do que foi cometido. Para a consciência teosofista, a lei natural e a lei
moral se identificam.
Podemos contemplar sob um prisma sinistro e inextricavelmente sombrio
a perspectiva dessas transmigrações e dessas evoluções; e, no entanto, a
própria doutrina teosofista está baseada sobre a hipótese otimista que admite
na evolução natural dos mundos espirituais a manifestação de uma lei
equitativa, o triunfo de uma justiça cósmica e divina. O teosofismo não
considera a incursão do mal livre e irracional na vida universal; por isso, ele
não sente necessidade de ser libertado do mal pela graça. Tudo e adquirido pelo
trabalho, nada é concedido gratuitamente. A graça é gratuita, e por isso ela é
incompreensível e inadmissível para o teosofismo. A justiça karmica, que
subordina o homem à evolução cósmica natural, nega igualmente a superabundância
criadora. A natureza do home não é chamada à criação, mas ao desenvolvimento, à
evolução, ao resgate do passado no devir.
Em tudo isso o Cristianismo se distingue radicalmente do teosofismo,
porque ele é a religião da graça superabundante e gratuita. No mistério da
redenção, a lei e a justiça karmicas do destino humano são superadas. O
Cristianismo é a religião do amor; ele triunfa, ao mesmo, sobre a lei da
natureza e sobre a lei da justiça. O homem que comungou do mistério da
Redenção, que recebeu a Cristo em si e que participa da geração de Cristo, já
não pode estar submetido à lei karmica, já não pode ser obrigado a
resgatar o passado, de superá-lo através de infinitas transmigrações, por um
longo processo de justiça em conformidade com a lei. O ladrão sobre a cruz,
que, num impulso espontâneo, recebeu o socorro de Cristo, já não estava mais
subordinado à lei e à justificação karmicas; ele atingiu subitamente o
final do caminho espiritual, que, segundo as leis da evolução e da justiça, ele não poderia alcançar senão
depois de percorrer uma série interminável de encarnações. Ele, que viveu uma
vida de pecados e crimes, foi colocado com Cristo no paraíso, no seio do Pai
Celeste.
Do ponto de vista teosofista, o destino do ladrão do Evangelho é
inconcebível, ainda que por vezes os teosofistas admitam a possibilidade de uma
redução do karma. No destino do ladrão, essa lei foi ab-rogada. A
natureza mais profunda do Cristianismo reside nessa supressão do karma,
na vitória da graça sobre o destino humano submetido à lei. O Cristianismo
subtrai o homem a esse poder do tempo e dos processos transitórios, enquanto
que o teosofismo o mantém aí. Não há livro teosofista em que possamos
encontrar, não apenas a solução do problema relativo ao tempo e à eternidade,
mas mesmo sua colocação. O homem permanece separado de Deus pelo infinito
processo cósmico; ele não pode comungar imediatamente da eternidade, da vida divina,
mas permanece encadeado à vida cósmica.
A Igreja cristã coloca o homem face a face com Deus e lhe abre o
caminho de acesso que conduz à comunhão com Ele. Esse caminho se abre, antes de
tudo, pela prece. Nessa experiência, o homem se coloca diante de Deus sem o
intermediário de hierarquias e de evoluções; ele sai do tempo para entrar na
eternidade, ele deixa a vida do mundo para penetrar na vida divina. A
experiência da comunhão com Deus, estabelecida pela prece, não é justificada
pela consciência teosofista. A prece, para ela, adquire um sentido totalmente
diferente, ela não passa de uma das formas de meditação.
Ao subordinar o homem à evolução cósmica, ao lhe recusar a luz
absoluta adquirida por toda eternidade, o teosofismo torna ininteligível o sentido,
o Logos da vida universal e humana. O sentido não procede da evolução, pois
essa pressupõe um sentido que plana acima de cada processo temporal e seu
precedente. Aluz deve estar no começo, e não no fim do caminho, pois ela deve
iluminar a rota seguida pelo homem. O teosofismo conduz o homem pelo caminho de
uma evolução cósmica, cujo sentido é inexplicável, que permanece obscuro e cujo
término ignoramos. Se a luz só se coloca no final no termo da evolução
infinita, ela não ilumina o caminho e não é capaz de explicar seu significado.
O homem se vê assim como um instrumento de agentes cósmicos que são
ininteligíveis para ele. O Logos, sendo um desses agentes, não domina o
processo cósmico e o homem não tem nenhuma possibilidade de comungar com ele.
Mas o sentido não é adquirido senão na eternidade, ele é inacessível na
infinitude, na qual todo sentido é engolido. Recusa-se ao homem o ponto de
apoio na eternidade, ele não está enraizado senão no tempo infinito. A ausência
da graça no teosofismo nos torna ininteligível o sentido do mundo e o
significado da vida humana. Em nome de que, em nome de quem, deve o home
percorrer seu caminho de evolução? A bem dizer, o teosofismo ignora a
revelação, e isso determina todas as suas peculiaridades.
O Cristianismo é menos otimista, porque ele reconhece o princípio
irracional do mal no mundo e porque ele não presume que a lei de evolução
espiritual seja necessariamente boa. Mas ele é infinitamente mais alegre e mais
luminoso do que o teosofismo, porque ele tem fé na boa nova da libertação do
mal e da vinda do Reino de Deus. A noção desse Reino não desempenha nenhum
papel na doutrina teosofista. Ela não aborda a escatologia, pois o karma,
as evoluções das encarnações infinitas e mesmo a fusão com a divindade
impessoal, não oferecem nenhuma solução para o destino final do homem. Para a
consciência teosofista, a redenção parece não ter sido realizada, ou ao menos
ela não lhe atribui mais importância do que a consciência hindu, embora os
teosofistas se encontrem numa épica cristã da vida universal. Pata eles, o
mundo permanece enfeitiçado pela magia, pela sua necessidade. Sua concepção do mundo
é mágica, e não mística. O teosofismo consiste numa reação, dentro cristão, dos
princípios espirituais pré-cristãos, mas, como ele é um sincretismo, ele
absorve alguns elementos do Cristianismo, mas deformando inevitavelmente as
noções cristãs sobre o homem, a liberdade e a graça. Os teosofistas consideram
evidentemente como inexata tal interpretação de suas doutrinas. Eles tentaram
provar que o teosofismo ensina uma antiga sabedoria divina, anterior a toda
evolução de nosso mundo, a ciência dos grandes iniciados, que dirigiriam toda
essa evolução. Eu já conhecia essas objeções, mas elas não me farão admitir que
o sentido da evolução universal se revele assim ao homem e santifique seu
caminho por toda eternidade. Sua relação diante da sabedoria antiga e dos
grandes iniciados, é uma relação autoritária, e dela eles pretendem ser os
únicos a possuir o segredo.
IV
As correntes teosofistas e ocultistas, que se tornaram mais ou menos
populares, levantam o problema da gnose perante a consciência cristã. É nisso
que reside seu significado positivo. O próprio Cristianismo, ou mais exatamente
a humanidade cristã, é responsável por sua popularidade. O teosofismo seduz por
sua negação dos suplícios eternos do inferno, que a consciência moral do homem
contemporâneo se recusa a admitir. Ele seduz também por sua tentativa de
resolver o problema da origem, do desenvolvimento e do destino da alma, problema
que não tem solução determinada e admissível fora da consciência da Igreja. Ele
seduz ainda por sua reconciliação entre a fé e o conhecimento, entre a religião
e a ciência.
No Cristianismo moderno foi
estabelecida uma concordata, um equilíbrio relativo, uma paz, entre a religião
e a ciência. A consciência cristã, predominante em nossa época, acusa em si uma
perda do sentido do cosmo e da faculdade de sua contemplação. O mundo medieval,
assim como o mundo antigo, ambos entreviam no cosmo o sistema hierárquico da
natureza. O homem moderno perdeu essa faculdade de contemplar o cosmo, e a
natureza se transformou para ele em um objeto submetido ao conhecimento das
ciências matemáticas e físicas, e à reação prática da técnica.
A consciência da Igreja perdeu
cada vez mais em nossa época seu caráter cósmico. Começou-se a ver na Igreja
não mais do que uma comunidade de crentes, uma instituição; começou-se a
interpretar os dogmas de um ponto de vista moralista, já não se distingue nos
sacramentos nada além de seu aspecto psicológico e social, esquecendo-se de seu
elemento cósmico. O nominalismo na consciência da Igreja triunfou sobre o
realismo.
A realidade do cosmo
desaparece e se concentra exclusivamente sobre as realidades da psíquica e
social. Avalia-se a religião de um ponto de vista prático, na medida apenas em
que ela constitui uma força social e organizadora. Desaparece da teologia a
doutrina que via na Igreja o Corpo místico de Cristo, como um corpo cósmico e
não unicamente como um corpo social. Um espírito de positivismo, sem que nos
déssemos conta, penetrou no Cristianismo e na consciência da Igreja. Esse
positivismo teológico de natureza bastante peculiar é desprovido de todo
sentido místico da vida. É curioso constatar que o positivismo que concerne à
concepção da natureza penetrara desde muito tempo o Cristianismo, e que essa
concepção teria mesmo nascido sobre o terreno do Cristianismo.
A obra de São Basílio o Grande, que é uma interpretação livre do
Gênesis, é um exemplo desse positivismo sui generis. Ela é consiste num
tratado naturalista que, para o nível científico daquela épica, poderia ser
comparado aos de Haeckel. O positivismo e o naturalismo dessa obra ficam
particularmente manifestos, mormente se os aproximamos do Mysterium Magnum
de Boehme, que também comporta uma interpretação do Gênesis. Em São Basílio
encontramos uma física descritiva, em Boehme uma gnose cosmológica. Mas essa
gnose não é reconhecida pela consciência da Igreja, que permanece na defensiva
em relação a suas doutrinas. No Cristianismo e na ciência moderna, o
conhecimento antigo foi perdido, e os ocultistas têm razão quando o afirmam.
Como compreende a consciência cristã a relação entre o gnosticismo e o
agnosticismo?
Até os nossos dias, as consequências últimas da controvérsia entre
gnosticismo e agnosticismo não foram esclarecidas. A teologia oficialmente
predominante rejeita os dois sistemas e tenta se afirmar numa esfera
intermediária. Mas é impossível se manter por muito temo nessa zona mediana. A
consciência dogmática da Igreja foi elaborada na luta contra o gnosticismo. Por
esse motivo, muitas coisas foram predeterminadas. O anti-gnosticismo se tornou,
num certo sentido, o agnosticismo. O conhecimento dos mistérios da vida cósmica
foi proibido. A obra dogmática dos Doutores da Igreja e dos Concílios
Ecumênicos não constituiu uma gnose; as fórmulas foram elaboradas tendo em
vista uma experiência religiosa normativa, e essa elaboração se realizou com
base na refutação de doutrinas errôneas. A consciência da Igreja fazia uma associação
entre a gnose e a deformação da experiência religiosa.
A Igreja cristã escolheu primordialmente como missão retirar o homem
do domínio da natureza, libertá-lo do poder dos elementos e dos demônios. O
agnosticismo da Igreja preservava o espírito humano desse jugo dos elementos
naturais, desse infinito cósmico que ameaçava engoli-lo. Foi uma luta que se
travou pelo homem, pela sua imagem, pela liberdade de seu espírito. Eis porque
não devemos considerar com desdém o agnosticismo da Igreja, nem criticá-lo de
forma inconsequente, mas, ao contrário, é preciso captar seu sentido. A
consciência da Igreja admite com mais facilidade a concepção mecanicista da
natureza, o positivismo, do que admitir o gnosticismo, a cosmologia gnóstica.
Ela teme o poder da magia sobre a alma humana e pretende libertar dela seu
espírito.
Os antigos gnósticos eram, sob muitos aspectos, notáveis pensadores.
Os Doutores da Igreja foram, sem dúvida, injustos para com eles, e deformaram
suas ideias. Valentino foi um homem genial; podemos constatá-lo mesmo a partir
do tratado extremamente parcial feito por Santo Irineu. Mas entre os gnósticos,
cuja atitude perante o cosmo seguia sendo pagã, o homem não estava livre do
poder dos espíritos e dos demônios, mas permanecia sob o feitiço da magia. A
bem dizer, os gnósticos não eram heréticos cristãos, mas iniciados pagãos, que
absorveram de modo sincrético alguns elementos da sabedoria cristã. Jamais,
porém, eles acolheram o mistério fundamental do Cristianismo, o da redenção do
homem, da transfiguração da natureza inferior em natureza superior. Eles
tinham, na realidade, uma concepção estática do mundo, e não concebiam o
dinamismo cristão. Podemos encontrar neles rudimentos de evolucionismo: eles
falavam em épocas e períodos históricos. Essas noções apresentavam certo
interesse, mas estavam muito distantes do dinamismo cristão, que prega a
transubstanciação, a transfiguração da natureza inferior. Para os gnósticos, a
imagem de Deus e a imagem do homem se esvaem e se fragmentam nos processos
cósmicos. O cosmo, com sua estrutura hierárquica extremamente complexa, com
seus éons infinitos, não esmagava apenas o homem, esmagava a Deus também.
A consciência da Igreja se rebelou, em nome de Deus e do homem, contra
essa forma de gnosticismo, e se recusou a deixar que o homem se tornasse presa
das forças cósmicas. A libertação espiritual, a libertação em relação ao poder
dessas forças, essa foi a obra significativa da consciência da Igreja. Para
compreender o mistério da transfiguração do inferior no superior, é preciso
retirar o homem da lei cósmica. Assim sendo, enquanto o homem não se emancipar
espiritualmente em relação ao elemento natural, enquanto ele não tiver unido
sua natureza espiritual a Deus, a Igreja estabeleceu limites à sua penetração
gnóstica aos mistérios da vida cósmica. O gnosticismo exaltou o orgulho dos
homens “pneumáticos” e sua presunção de superioridade sobre os homens
“psíquicos” e os homens “carnais”, mas não foi capaz de encontrar o caminho de
santificação da alma e do corpo, de sua transfiguração e de sua inserção no
espírito.
A consequência do agnosticismo na Igreja, na história intelectual da
humanidade, apareceu no desenvolvimento da ciência e da técnica, na mecanização
da natureza. O Cristianismo libertou o homem das forças que a seguir se
levantaram contra ele. tal é o trágico destino do ser humano. E até agora
existem homens, os quais, mesmo tendo o sentido da Igreja, dão preferência à
mecânica e à física positivistas, que, segundo eles, não apresentam nenhum
perigo para o Cristianismo, em detrimento da cosmologia gnóstica, que eles veem
como uma concorrência. Mas a união do Cristianismo com a concepção mecanicista
da natureza não é, em princípio, obrigatória.
Seria errôneo concluir que o Cristianismo não admite a gnose, que ele
não é capaz de tolerar o conhecimento dos mistérios cósmicos. Não é isso que
pretende a consciência dogmática da Igreja. Clemente de Alexandria, Orígenes,
São Gregório de Nissa e São Máximo o Confessor foram todos gnósticos cristãos.
A gnose cristã é, portanto, possível. O Cristianismo não pode admitir um
retorno à concepção pagã da natureza, à demonolatria, à dominação da magia
sobre o espírito humano, à desagregação da imagem humana pelos espíritos dos
elementos.
Foi dito: “Sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas[2]”.
Por isso, a sabedoria da serpente, a gnose, se encontra afirmada. Mas essa
sabedoria não tem nada de incompatível com a simplicidade do coração. O
Cristianismo nega que o homem possa alcançar a Deus e os mistérios divinos pelo
caminho de uma incessante evolução do pensamento; ele afirma que, sobre as vias
do conhecimento divino, o homem sofre uma catástrofe intelectual ao modificar
sua consciência e seu pensamento, que ele passa pela experiência da fé, na qual
o mundo das coisas invisíveis é demonstrado. Nessa experiência se entreabre a
possibilidade de um conhecimento. A fé não nega a gnose, ela aplaina seu
caminho na experiência espiritual.
Essa questão se coloca, para nós ortodoxos, de modo bem diferente do
que o é para a consciência católica. Essa afirma que Deus pode ser conhecido
não apenas pela revelação, mas também pelas forças naturais da razão humana.
Essa noção constitui a pedra de ângulo do sistema tomista. Existe aí um
racionalismo que recusa admitir que possa haver, em todo conhecimento de Deus,
uma antinomia para a razão. O Concílio Vaticano condenou ao anátema todo ser
que afirme que Deus, único e autêntico, nosso Criador e Mestre, não possa ser
conhecido por intermédio das coisas criadas, pela luz natural da razão humana.
Essa sentença, que censura o fideísmo e condena pensadores católicos como
Pascal e Joseph de Maistre, afirma na consciência da Igreja um naturalismo
racional, um modo de pensar em categorias racionais. A teologia natural é
reconhecida assim como obrigatória.
Para a consciência ortodoxa, o problema se coloca de outra maneira:
não existe aí nenhuma doutrina racional obrigatória semelhante ao tomismo. Esse
naturalismo racionalista é o fruto do agnosticismo e se dirige contra toda
gnose. Deus e o mistério da vida divina são incognoscíveis; mas na natureza, na
criação, é possível, por meio de um caminho racionalista e naturalista,
adquirir as provas da existência divina. Estabelece-se uma paz entre a
revelação e o conhecimento natural de Deus, entre a religião e a ciência. Essa
concórdia entre as ordens sobrenaturais e naturais não expande o domínio da
gnose, mas, ao contrário, o estreita; ela resulta de uma falta de fé na
possibilidade de iluminação da razão, na possibilidade de um conhecimento no
Espírito, de um conhecimento teândrico. Mas, se a gnose cristã é possível, ela
não pode ser outra coisa do que um conhecimento espiritual, místico, e não
natural ou racional.
O trabalho do pensamento foi menos intenso no Oriente ortodoxo do que
no Ocidente católico. O pensamento ortodoxo não elaborou uma doutrina precisa,
e, no entanto, o Oriente é mais gnóstico do que o Ocidente, pois ele crê desde
o início na possibilidade de uma gnose mística, de uma gnose que o Ocidente
frequentemente considera como heresia. Os Doutores da Igreja do Oriente são mais
gnósticos do que os Doutores ocidentais. Da mesma forma, a gnose crista pode se
desenvolver com mais facilidade sobre o terreno espiritual da ortodoxia do que
sobre o do catolicismo. Os movimentos russos, religiosos e filosóficos, dão
testemunho disso. O agnosticismo cristão, que subsiste e se afirma
integralmente no racionalismo católico, tinha sua justificação.
Mas pode chegar o dia em que ele deverá desaparecer do Cristianismo,
por se tornar perigoso. Esse agnosticismo cristão afirma um pragmatismo do não
conhecimento. É preciso limitar a receptividade do homem, a fim de que ele não
se torne surdo ou cego pelos trovões e a luz cósmicos. Somos protegidos por
nossa insensibilidade, pela ausência de receptividade, contra tudo o que é
perigoso para nós, e para as coisas para as quais não estamos espiritualmente
maduros. O não conhecimento pode ser uma salvaguarda, tanto quanto o
conhecimento. Se pudéssemos ver e conhecer no mundo tudo o que não vemos nem
conhecemos, não seríamos capazes de suportar e seríamos dispersos pelos
elementos do mundo. A clarividência é perigosa, ela não pode ser acessível
senão a uma minoria, pois ela exige uma grande preparação espiritual. O homem
não seria capaz de suportar a visão da aura que envolve os seres.
Mas pode vir um tempo em que o não conhecimento seja mais perigoso do
que o conhecimento, do que a receptividade sensível. O sentido pragmático do
não conhecimento pode perder seu valor; é então que o pragmatismo do
conhecimento fará valer seus direitos. O conhecimento é útil, enquanto proteção
contra as forças hostis do mundo. Não é apenas o conhecimento mecânico da
natureza, que nos arma com a técnica, que nos é indispensável, mas também o
conhecimento da vida interior do cosmo, da estrutura do mundo. Para essa, o
homem deve estar espiritualmente fortalecido, ele deve adquirir a sabedoria de
Cristo, não essa inteligência validada pelo Concílio Vaticano, que é racional e
natural, mas uma inteligência iluminada. A partir daí, o homem não mais correrá
o risco de ser despedaçado pelos elementos cósmicos, ele já não correrá o risco
de cair sob o poder dos demônios. A gnose cristã repousa sobre a aquisição da
sabedoria de Cristo, sobre o conhecimento teândrico em Cristo e por Cristo. Não
podemos vencer a pseudo-gnose, senão opondo a ela uma gnose autêntica, a gnose
de Cristo. É isso que nos ensinaram os místicos cristãos. Chegou o tempo em que
a ciência já não pode permanecer neutra; ou bem ela será cristã, ou bem se
tornará uma magia negra.
Encontramos no teosofismo algumas verdades e alguns elementos de
conhecimentos antigos. O teosofismo está ligado ao ocultismo; esse último não
constitui uma tendência contemporânea, mas remonta a uma antiquíssima tradição,
que se perpetua através de toda a história do espírito humano. As chamadas
ciências ocultas não comportam mais do que o charlatanismo. A esfera do oculto,
a magia, enquanto força real, existe no mundo natural. Essas forças secretas,
que ainda não foram estudadas pela ciência, agem sobre o homem e no cosmo. No
decurso das últimas décadas, a ciência contemporânea se orientou
progressivamente para o estudo desses fenômenos ocultos, que se manifestam no
homem e na natureza. A esfera do subconsciente, que era conhecida pelos homens
da antiguidade, mas que parecia estar fechada para a humanidade moderna, se
expande pouco a pouco. A ciência começa a admitir, no campo de suas pesquisas,
manifestações mágicas, que por muito tempo foram consideradas como sobrevivências
de superstições e como imposturas. Du Prel, representante do ocultismo
científico, afirmava, há tempos, que a ciência deveria inevitavelmente retornar
às suas verdades mágicas, que a magia consiste precisamente na ciência física
desconhecida. Fenômenos como a telepatia, a clarividência, o magnetismo animal,
o sonambulismo, a materialização, e outros, devem se tornar objetos de análise
científica. A ciência está obrigada a reconhecer certos fatos que ela negou até
hoje. A Sociedade de Estudos Psíquicos da Inglaterra consagra-se há muito tempo
ao estudo desses fatos, e numerosas descobertas foram efetuadas nesse domínio
por psiquiatras e neuropatologistas.
A opinião oficial predominante, que, estabelecendo limites
intransponíveis ao conhecimento, determina previamente aquilo que não pode ser
obtido pela experiência, já não é admissível, pois nele podemos discernir um
caráter supersticioso e dogmático. Hoje em dia reconhece-se o campo ilimitado
da experimentação e já não se crê nas proibições mantidas pelo empirismo
racionalista. Não nos encontramos artificialmente subtraídos à receptividade de
toda uma classe de fenômenos ocultos da natureza, que eram percebidos em épocas
anteriores, quando a consciência ainda não estava oprimida pelas limitações
racionalistas. A ciência se vê obrigada a recuar até o infinito o seu
horizonte, e a estudar todos os fenômenos, por mais inacreditáveis, ocultos e
milagrosos que lhe possam parecer. A natureza do universo e a do homem são
infinitamente mais ricas em forças, do que consegue conceber a consciência
científica da época das “luzes”. A esfera do subconsciente faz definitivamente
parte da esfera das pesquisas científicas, e essa esfera constitui uma fonte
inesgotável. Todo poder criativo da humanidade provém do subconsciente. O
desenvolvimento da ciência nessa direção confirma muitas das asserções da
tradição oculta. A magia primitiva não chegou a se cristalizar definitivamente
na ciência, que ela própria gerou; mas ela possui igualmente sua linha
diferenciada de progresso. Não existe apenas a magia dos selvagens, existe
também uma magia dos homens civilizados. Esse caminho seguiu paralelamente ao
do desenvolvimento da ciência. Mas chegou um momento em que essas duas
paralelas se encontraram num ponto comum, no qual a ciência, chegada aos seus
últimos aperfeiçoamentos, voltou a se unir à magia. É esse processo que estamos
assistindo atualmente. A popularidade das correntes ocultistas não passa de um
sintoma disso.
O ocultismo, na medida em que constitui uma expansão da esfera
relativa ao conhecimento do mundo e do homem, é conciliável, ao menos em
princípio, com o Cristianismo, que não se opõe a ele, assim como não se opõe à
ciência. O ocultismo não está em maior contradição com o Cristianismo do que a
física ou a psicologia. Mas ele se choca com o Cristianismo e provoca uma viva
reação da parte da consciência cristã, cada vez que pretende se substituir à
religião. O ocultismo, enquanto religião, é o antípoda do Cristianismo. Podemos
dizer o mesmo do espiritismo, que tanto pode ser um estudo científico como uma
pseudo-religião, como ocorre em Alan Kardec. Dentro da consciência cristã o
ocultismo pseudo-religioso dá lugar às mesmas objeções que antigamente
provocava o ensinamento dos gnósticos. Nosso conhecimento de Deus, nossa cristologia
e nossa concepção da missão do homem, não podem resultar de conhecimentos
ocultos. As ciências ocultas fazem buscas em cima de forças ocultas da
natureza, mas não conseguem resolver os problemas últimos da existência.
Podemos ver, nas contemplações teosofistas da vida cósmica, o lado perigoso do
ocultismo, quando ele transgride seus limites.
O teosofismo pretende fazer a anatomia do homem e do cosmo, ele
disseca tudo o que possui uma perfeita unidade orgânica, e contempla o estado
cadavérico do mundo. Não se trata de uma contemplação, ou de um conhecimento
vivo. A vida se extingue em contato com os teosofistas e com os ocultistas que
pretendem conhecer o mistério derradeiro. Eles são capazes de perceber as
partículas do ser, mas não lhe é dado ver sua integridade. O teosofismo
pretende constituir uma vastíssima síntese, mas na realidade ele é analítico;
ele faz a autópsia dos tecidos vivos do corpo universal e procede à sua
preparação, e a isso corresponde bem o esquematismo extremo da doutrina teosofista.
Em seus esquemas, que é preciso aprender e decorar, existe um quase cheiro de
cadáver. O teosofismo nos dá os traçados do despedaçamento terrestre, no qual
tudo é dissecado em partes constituintes. Quanto ao mistério da agregação
dessas partes num corpo vivo, num organismo integral, isso ele ignora. O
teosofismo não constitui uma síntese da religião, da filosofia e da ciência,
mas, ao contrário, uma mistura confusa no qual já não se pode encontrar nem
religião, nem filosofia, nem ciência verdadeiras.
O ocultismo deve ser inteiramente referenciado ao domínio da ciência,
cujos horizontes ele amplia. Mas, de modo algum, a religião pode ser submetida
a ele. A gnose cristã autêntica pressupõe um fundamento religioso positivo, ela
extrai sua força das revelações do mundo espiritual, e ela une a religião, a
filosofia e a ciência, sem subordinar a fé a uma pseudociência.
A consciência da personalidade pode e deve ser desenvolvida; e a esse desabrochar
deverá corresponder uma nova interpretação da natureza, que não mais será
percebida de um modo estático. Mas a afirmação de uma consciência cósmica
também apresenta alguns perigos. A emancipação da personalidade, que lhe
permite alcançar a extensão do cosmo, pode conduzir à perda dos seus limites,
ou à sua absorção pelo infinito cósmico. Ora, a consciência cristã não pode
admitir mais do que uma gnose cósmica, na qual a natureza da personalidade
permanecerá precisa, na qual nada ela não será perturbada, nem dissociada por
essa infinitude. O problema da gnose é,
para toda a consciência cristã, uma questão de dois gumes. A proibição da gnose
concede a supremacia à pseudo-gnose, gera a doutrina teosofista, onde as
verdades esparsas são artificialmente sintetizadas. É preciso opor ao falso
teosofismo uma teosofia cristã autêntica.
V
O ocultismo tem razão quando vê na natureza, não um mecanismo, mas uma
hierarquia de espíritos; ele também tem razão quando nega a unicidade, o
isolamento e a estagnação de nosso éon universal. Não apenas a consciência
positivista, como a própria consciência da Igreja identifica, de certo modo, o
universo e a criação com o éon de nosso mundo. Não existem limites precisos que
o isolem daquilo que o precedeu, daquilo que lhe sucederá, ou daquilo que se
encontra além dele.
Na aurora da vida universal, a natureza se encontrava menos
materializada, menos condensada do que ela o é na evolução de nosso éon. As
tradições ocultas nos falam dessa incandescência do mundo, e elas encerram
grandes verdades esquecidas por nossa consciência religiosa e científica. No
início de nossa vida universal a consciência do homem era sonolenta; a esse
estado corresponde uma ausência de limites precisos entre nosso mundo e os
outros. A própria crônica akashika contém elementos de verdade a esse
respeito. O endurecimento da natureza material não constitui a verdade última.
Na consciência cristã, a concepção materialista da natureza sofrerá
inevitavelmente uma crise. Presentemente, o homem já receia essa espécie de
mecanicismo mumificado. O ocultismo se perde na contemplação da natureza viva e
animada, mas a questão que ele propõe é justa.
Os filósofos e os teósofos da época da Renascença abordavam melhor os
mistérios da natureza do que os homens contemporâneos. Boehme considerava que a
vida do cosmos se desenrolava em categorias de bem e de mal, de pecado e
redenção, de trevas e de luz, vale dizer, em categorias de vida espiritual;
Paracelso, rico em ideias profundas, já seguira essa via, e nós podemos sempre
nos socorrer deles. Sua teosofia e sua cosmologia são infinitamente superiores
ao teosofismo de Besant ou de Steiner. Não podemos conceber o cosmo senão como
um organismo vivo. É preciso ver o espírito na natureza e a natureza no
espirito. É preciso perceber o subjetivo no objetivo, o natural no espiritual,
o cósmico no antropológico. A cosmologia sempre foi fundamentada sobre a visão
da identidade interior entre o espírito e a natureza, vale dizer, sobre uma
concepção da natureza que contempla o fenômeno do espírito.
A doutrina sofiológica do pensamento religioso russo é uma dessas
tentativas que têm por objetivo restituir ao Cristianismo sua consciência
cósmica, de dar em Cristo um lugar para a cosmologia e a cosmosofia. Ela possui
um valor sintomático, pois ela se esforça em superar o positivismo da Igreja.
Encontramos aqui uma das expressões do platonismo cristão, a penetração do
mundo das Ideias na consciência da Igreja, da doutrina relativa à alma
universal, do realismo platônico, que podemos opor à degeneração nominalista do
Cristianismo. É preciso reconhecer que a consciência da Igreja, nas suas formas
oficiais e dominantes, não crê na realidade do cosmo, que ela encara o mundo
sob o ângulo do positivismo, adotando uma interpretação moralista do
Cristianismo. A natureza cósmica da Igreja é totalmente inacessível a essa
consciência, que não entrevê mais do que seu alcance social. Mas a doutrina
sofiológica se reveste de um caráter tal, que o problema do cosmo ameaça
absorver definitivamente o problema do homem; sua liberdade e sua atividade
criativa desaparecem aí. Entretanto, em nossa época, o problema religioso
capital é o do homem, e não o da Sophia ou do cosmo. A sofiologia deve
ser conectada ao problema antropológico. Boehme, nesse sentido, é um grande
precursor. Para nossa consciência, ele tem mais valor do que Platão. Sua
doutrina é também menos panteísta do que a dos adeptos da sofiologia russa.
Lembremos aqui brevemente o que foi dito sobre essa doutrina de Boehme, e
tentemos tirar algumas conclusões daí.
A Sophia é a Virgem do homem, sua Virginitæt. O homem é
andrógino quando nele habita sua Virgem, ou seja, quando ele é virgem, casto e
integral. A queda do homem-andrógino significa para ele a perda da Virgem, que
retorna ao céu, ao passo que sobre a terra aparece a mulher, que resgata seu
pecado na maternidade. A natureza feminina atrai e seduz eternamente o
princípio masculino desprovido de integridade, ao mesmo tempo em que aspira a
se unir a ele sem jamais obter satisfação. O homem cai sob o poder do elemento
sexual e se submete à necessidade natural. Ademais, a perda da Virgem marca,
para ele, a perda da liberdade, pois a integridade e a castidade constituem a
liberdade. O mundo natural não é Virgem, pois ele não é regido por um elemento
feminino sábio. Mas a Virgem celeste penetra novamente no mundo natural sob a
forma da Virgem Maria, e dela nasce em espírito a geração do novo Adão, na qual
a virgindade sábia e a maternidade santa devem vencer a feminilidade inferior.
A veneração da Sophia, da Virgem celeste, se une à veneração da Mãe de
Deus. Dela nasce o Deus-Homem, no qual, pela primeira vez na história do mundo
natural, aparece a virgindade absoluta, a absoluta integridade, vale dizer, o
estado andrógino da natureza humana.
A alma universal é feminina, ela é decaída, mas é nela, assim como é
na alma humana, que o restabelecimento da virgindade é possível. A Virgem Maria
aparece como o princípio virginal da alma universal. A cosmosofia é o
conhecimento desse princípio, vale dizer, de sua beleza eterna. A Sophia
é a Beleza. A Beleza é a Virgem Celeste. A iluminação e a transfiguração do
mundo natural criado são manifestações da Beleza. E quando a arte, no sentido
mais amplo do termo, penetra na beleza do cosmo, ela percebe, para além da
pesandez do mundo natural, a virgindade do mundo, a ideia divina que a ele se
refere. Mas a sabedoria do mundo está ligada à virgindade do homem. A doutrina
sofiológica russa parece negar que o homem seja o centro do mundo, que o cosmo
esteja nele, e assim ela não constitui uma doutrina viril, pois ela submete o espírito
masculino à alma feminina.
Devemos voltar de maneira nova ao sentimento do cosmo. A tarefa da
gnose cristã consiste em estabelecer um equilíbrio ideal entre a teo-sofia, a
cosmo-sofia e a antropo-sofia. Pois a mística, o ocultismo e a religião coexistem
na consciência humana. A mística é a comunhão imediata com Deus, a contemplação
de Deus e a união com Ele. o ocultismo é a união com as forças secretas do
cosmos, e constitui também um desenvolvimento cósmico. A religião é a atitude
organizada da humanidade perante Deus, a via hierárquica e normativa da
comunhão com Ele. Boehme, mais do que os outros gnósticos, soube unir em si os
momentos místicos, ocultos e religiosos; também a gnose, malgrado alguns
desvios, se aproxima mais da gnose cristã autêntica. O esoterismo e o
exoterismo não se excluem mutuamente; o exoterismo deve ser compreendido a
partir da profundeza do esoterismo.
O teosofismo é um sincretismo religioso. Tais movimentos surgem em
épocas de pesquisas e de crises espirituais. Fragmentos de conhecimentos
antigos e de tradições ocultas nele se misturam à consciência moderna, ao
naturalismo e ao racionalismo contemporâneos. O que mais choca no teosofismo e
no antroposofismo, é sua presunção, sua pretensão a um conhecimento que eles
não possuem, a reivindicação de uma atitude específica em relação aos seus
escritos, a certeza com que afirmam que os não-iniciados não são capazes de
alcançar as alturas de seus ensinamentos. A atitude espiritual dos teosofistas
não é cristã; ela é marcada pela suficiência. O teosofismo seduz pela ideia da
fraternidade entre os homens e os povos, que ela jamais será capaz de realizar.
Entretanto, correntes desse tipo costumam ser precursores de uma forte luz
espiritual.
[1]
Empregamos o termo “teosofismo” ao invés de “teosofia”, e “teosofista” em lugar
de “teósofo”, para distinguir essa deformação contemporânea da verdadeira
teosofia.
[2]
Mateus 10: 16.
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