segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Alexander Schmemann - Pela Vida do Mundo - Capítulo IV

DA ÁGUA E DO ESPÍRITO

 

1

 

Tudo o que dissemos sobre o tempo e sua transformação e renovação simplesmente não faz sentido a menos que exista um homem novo para desenvolver o sacramento do tempo. É dele que devemos falar agora, e da ação por meio da qual a renovação da vida e o poder de vivê-la são concedidos a ele. Começamos nossa exposição, não pelo batismo, que é o início da vida Cristã, mas com a Eucaristia e o tempo, porque eles são essenciais para estabelecer as dimensões cósmicas da vida dada no batismo. Por muito tempo o interesse teológico e espiritual no batismo esteve virtualmente desconectado de seu significado cósmico, da totalidade da relação do homem com o mundo. Ele foi explicado como sendo a libertação do homem do “pecado original”. Mas tanto o pecado original quanto a libertação em relação ao ele receberam um sentido extremamente estreito e individual. O batismo é entendido como sendo o meio de assegurar a salvação individual da alma humana. Não é de admirar que esse entendimento do batismo conduziu a um estreitamente similar da liturgia do batismo. De um ato de toda a Igreja, que envolvia todo o cosmo, ele se transformou numa cerimônia privada, realizada num canto da igreja com “agendamento particular”, e na qual a Igreja é reduzida a “ministro de sacramento”, e o cosmo a três gotas de água simbólicas, consideradas “necessárias e suficientes” para a “validação” do sacramento. A preocupação se reduz à “validade” – não à plenitude, ao sentido, à alegria. Devido à obsessão da teologia do batismo com aspectos jurídicos e não ontológicos, a verdadeira questão – o que é validado? – permanece, no mais das vezes, sem resposta.  

 

Ultimamente, é verdade, aconteceu em todo o mundo Cristão uma certa ampliação do sentido do batismo. Houve uma redescoberta do significado do batismo como entrada e integração na Igreja, de seu significado “eclesiológico”. Mas a eclesiologia, a menos que lhe seja dada sua verdadeira perspectiva cósmica (“pela vida do mundo”), a menos que seja entendida como a forma Cristã da “cosmologia”, sempre se torna eclesiolatria, considerando a Igreja como “existindo por si só”, e não como uma nova relação com Deus, o homem e o mundo. E não é a “eclesiologia” que fornece ao batismo seu verdadeiro significado; antes, é no batismo e por meio dele que encontramos o primeiro e fundamental significado da Igreja.

 

O batismo, por sua própria forma e pelos elementos presentes – a água da pia batismal, o óleo do crisma – nos liga inescapavelmente à “matéria”, ao mundo, ao cosmo. Na Igreja primitiva a celebração do batismo acontecia durante a solene vigília da Páscoa, e, de fato, a liturgia da Páscoa nasceu do “mistério Pascal” do batismo. Isso significa que o batismo era entendido como tendo um sentido direto com o “novo tempo” celebrado e manifestado na Páscoa. E, finalmente, o batismo e o crisma eram sempre realizados durante a Eucaristia – que é o sacramento da ascensão da Igreja ao Reino, o sacramento do “mundo por vir”.

 

Já mencionamos que a tragédia de certa teologia (e piedade) está em sua busca por definições precisas, que separa artificialmente os sacramentos da liturgia na qual eles se realizam. A liturgia foi relegada a uma categoria de elementos secundários, decorativos e rituais, sem peso no “ser” do sacramento. Ao fazê-lo, porém, a teologia perdeu o verdadeiro significado da realidade do sacramento. Em particular, o batismo sofreu uma perda desastrosa de sentido. Assim sendo, para podermos recuperar esse sentido, é preciso retornar à “leitourgia” da Igreja.

 

 

2

 

No passado, a preparação para o batismo chegava a durar três anos. Hoje o batismo infantil se tornou praticamente universal, e sua preparação se reduz ao interesse histórico. Ainda assim e importante que lembremos a grande parcela que a vida da Igreja dedicava à preparação para o batismo dos catecúmenos, daqueles que já acreditavam em Cristo e que agora se preparavam para completar essa fé por meio do batismo. Na Igreja Ortodoxa, mesmo hoje, toda a primeira parte da Eucaristia é chamada de “Liturgia dos Catecúmenos”. As estações litúrgicas da Quaresma e do Advento, os ciclos do Natal e da Epifania, a estrutura da Semana Santa e, finalmente, a solenidade das solenidades” – a vigília Pascal – eram todas modeladas em seu desenvolvimento pela preparação para o batismo e sua celebração. O sentido de tudo isso para nós, hoje, é em primeiro lugar que toda a vida da Igreja está, de certo modo, na explicação e na manifestação do batismo e, em segundo lugar, que o batismo constitui o real conteúdo, a raiz “existencial” daquilo que hoje chamamos de “educação religiosa”. Essa última não consiste num abstrato “conhecimento de Deus”, mas na revelação das coisas maravilhosas que “aconteciam” e que nos acontecem ainda pelo divino dom da nova vida.

 

O ofício do batismo, tal como é celebrado na Igreja Ortodoxa, começa com aquilo que no passado constituía o ato final do “catecumenato”: o exorcismo, a renúncia a Satanás e a confissão da fé.

 

De acordo com alguns modernos intérpretes do Cristianismo, a “demonologia” pertence a uma visão de mundo antiquada, e não pode ser levada a sério pelo homem “que utiliza a eletricidade”. Não podemos argumentar com eles. O que devemos afirmar, e o que a Igreja sempre afirmou, é que o uso da eletricidade pode ser “demoníaco”, como pode sê-lo o uso de qualquer coisa, e mesmo da vida em si. Essa é, em outras palavras, a experiência do mal a que chamamos demoníaca, e que não consiste na mera ausência do bem, ou, no caso, em todos os tipos de alienações e ansiedades. Trata-se, de fato, na presença de uma força escura e irracional. O ódio não é meramente a ausência de amor. Ele é certamente mais do que isso, e reconhecemos sua presença como uma sobrecarga quase física que sentimos em nós quando odiamos. Em nosso mundo, onde homens normais e civilizados “usam a eletricidade” para exterminar seis milhões de pessoas, nesse mundo onde agora mesmo cerca de dez milhões de pessoas estão em campos de concentração por não terem entendido “o único caminho para a felicidade universal”, nesse mundo a realidade “demoníaca” não é um mito. E, qualquer que seja seu valor ou a consistência de como é apresentado nas teologias e doutrinas, é essa realidade que a Igreja tem em mente, que de fato ela enfrenta no momento do batismo, pelas mãos do sacerdote que sustenta nas mãos um novo ser humano que acaba de entrar na vida, e que, de acordo com as estatísticas, terá grande chance de algum dia entrar para uma instituição psiquiátrica ou penal, ou, na melhor das hipóteses, para o tédio enlouquecedor da vida suburbana. O mundo do qual esse ser humanos recebeu sua vida, e que determinará sua vida, é uma prisão. A Igreja não precisou esperar por Kafka ou Sartre para saber disso. Mas a Igreja sabe também que as portas desse infernos foram destroçadas e que outra Força penetrou no mundo e o reclamou ao seu legítimo Dono. E essa reivindicação não se aplica apenas às almas, mas à totalidade da vida, ao mundo inteiro. E assim, no começo do batismo, a Igreja faz essa reivindicação. O sacerdote “assopra por três vezes na face” do catecúmeno, e “marca com o sinal da cruz sua fronte e seu peito, colocando suas mãos sobre a cabeça”, e dizendo:

 

Em Teu Nome, ó Senhor Deus da Verdade, e em Nome de Teu Filho Unigênito e de Teu Espírito Santo, coloco minhas mãos sobre Teu servo, que foi considerado digno de correr para Teu Santo Nome e refugiar-se ao abrigo de Tuas asas (...) Afasta dele suas antigas ilusões, e enche-o com Tuas fé, esperança e amor, para que ele saiba que Tu és o púnico e verdadeiro Deus (...) Torna-o capaz de caminhar por Teus mandamentos e para realizar todas as coisas que Te agradam, porque o homem que faz essas coisas, nelas encontrará a vida. Concede que ele se alegre com o trabalho de suas mãos, e que por toda sua geração ele possa louvar-Te, cantar-Te, adorar-Te e glorificar Teu santo e exaltado Nome.

 

 O exorcismo significa enfrentar o mal, conhecer sua realidade e seu poder, proclamar o poder de Deus e destruí-lo. O exorcismo anuncia o batismo como um ato vitorioso.

 

Então o sacerdote volta a pessoa que veio batizar-se para o oeste, nua e descalça, com as mãos erguidas, e diz: “Renuncias a Satanás, a todos os seus Anjos e a todas as suas obras, a todo seu serviço e todo seu orgulho?”. E o catecúmeno, ou seu padrinho, responde: “Sim”.

 

O primeiro ato da vida Cristã constitui uma renúncia, um desafio. Ninguém pode ser de Cristo sem ter antes enfrentado o mal, sem estar pronto para combatê-lo. Quão distante está esse espírito do modo como o proclamamos hoje, ou, para utilizarmos de um termo mais moderno, do modo como “vendemos” o Cristianismo hoje! Não é ele normalmente apresentado como um conforto, um auxílio, um alívio das tensões, um bom investimento do tempo, energia e dinheiro? É bastante que leiamos – não mais do que uma vez – os tópicos do sermão Dominical, que são anunciados nos jornais de Sábado, ou alguma das “colunas religiosas”, para termos a impressão de que essa religião é invariavelmente apresentada como a salvação em relação a algo – o medo, a frustração, a ansiedade – mas nunca como a salvação do homem e do mundo. Como podemos então falar em “luta” quando as próprias instalações das nossas igrejas trazem, por definição, ideias de suavidade, conforto e paz? Como pode a Igreja utilizar uma linguagem militar, como fazia nos primeiros dias quando ela ainda se considerava como sendo militia Christi? É difícil entender aonde e de que maneira essa “luta” terá lugar nos boletins semanais das paróquias de subúrbio, no meio de sessões de aconselhamento, vendas de bolos e reuniões de “jovens e adultos”.

 

E, no entanto, essa é a condição necessária para que se possa dar o próximo e decisivo passo.

 

“Desejas te unires a Cristo?”, pergunta o sacerdote, depois de voltar – e converter – para o leste o catecúmeno.

 

Então tem início da confissão de fé, a confissão pelo catecúmeno de sua fé na Igreja, de sua aceitação dessa fé e de sua obediência a ela. Mais uma vez. É difícil convencer um Cristão moderno de que, para ser a vida do mundo, a Igreja não pode apenas manter-se “sorrindo” para o mundo, colocando cartazes de “Benvindos” nas igrejas, e ajustando sua linguagem aos termos que melhor vendem. O começo da vida Cristã – da vida na Igreja – é humildade, obediência e disciplina. O último ato de preparação para o batismo é, assim, essa ordem: “Inclina-te diante Dele”, e o catecúmeno responde: “Inclino-me diante do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

 

 

3

 

O batismo propriamente dito começa com a bênção das águas. Para entender, entretanto, o significado que aqui tem a água, devemos parar de pensar nela como uma “matéria” isolada do resto do sacramento. Ou antes, é preciso nos darmos conta de que a água é a “matéria” do sacramento, porque ela responde por toda a matéria que, no batismo, é o símbolo e a presença do próprio mundo. Na visão do mundo bíblico “mitológico” – que eventualmente é mais cheio de significado e filosoficamente mais consistente do que que aquela que nos é oferecida por alguns “desmitologizadores” – a água é a “matéria prima”, o elemento básico do mundo. Ela é um símbolo natural da vida, pois sem água não existe vida, mas é também um símbolo de morte e destruição e, finalmente, de purificação, pois não há limpeza sem água. No Livro do Gênesis a criação da vida é apresentada como a liberação da terra seca em relação à água – como uma vitória do Espírito de Deus sobre as águas – o caos da não-existência. De certa forma, assim, a criação é a transformação da água em vida.

 

O que nos importa, assim, e que a água batismal representa a matéria do cosmo, o mundo como vida do homem. E sua bênção no início do rito do batismo adquire desse modo um significado verdadeiramente cósmico e redentor. Deus criou o mundo e o abençoou, e o deu ao homem como alimento e vida, como os meio para sua comunhão com Ele. A bênção das águas significa o retorno ou a redenção da água ao seu sentido primeiro e mais essencial. Ao aceitar o batismo de João, Cristo santificou a água – transformando-a em água de purificação e reconciliação com Deus. Foi então, quando Cristo saiu das águas, que a Epifania – a nova e redentora manifestação de Deus – teve lugar, e o Espírito de Deus, que no início da criação “movia-se sobre a superfície das águas”, transformou a água – vale dizer, o mundo – outra vez naquilo que Ele fez desde o princípio.

 

Bendizer, como sabemos, implica agradecer. Ao agradecer, por meio do agradecimento, o homem reconhece a verdadeira natureza das coisas que ele recebe de Deus, e as transforma naquilo que elas são. Bendizemos e santificamos as coisas quando as oferecemos a Deus num movimento eucarístico de todo nosso ser. E na medida em que nos colocamos diante da água – diante do cosmo, da matéria que nos foi dada por Deus – esse movimento eucarístico abarca a tudo, e estabelece o verdadeiro início da liturgia batismal.

 

Sois grande, Senhor, e vossas obras são maravilhosas, e não há palavras capazes de cantar os louvores de vossas maravilhas. Pois, por vossa vontade, tiraste todos os seres do nada para existência; por vosso poder, conservai a criação; e por vossa providência, governais o mundo.

Diante de vós tremem as potências inteligíveis. O Sol louva-vos, a lua glorifica-vos, as estrelas cumprem as vossas determinações; a luz obedece-vos, os abismos tremem na vossa presença, as fontes estão a vosso serviço.

Tu viestes e nos salvastes.

Cantamos nossa graça; proclamamos Vossa misericórdia; não ocultamos vossa bondade.

 

Mais uma vez o mundo é proclamado como sendo o que Cristo revelou e transformou – o dom de Deus para o homem, o meio da comunhão entre o homem e Deus. Essa água nos é manifestada como sendo “a graça da redenção”, a remissão dos peados, o remédio para todas as enfermidades. “Pois chamamos por Teu Nome, Senhor, que é maravilhoso e glorioso, e terrível para Teus adversários”.

 

É nessa água que agora batizamos – isso é, imergimos – o homem, e esse batismo será para ele um batismo “em Cristo[1]”. Pois a fé em Cristo que conduziu essa pessoa até o batismo é precisamente a certeza de que Cristo é o único “conteúdo” verdadeiro – implicando a existência e o fim – de tudo o que existe, Sua plenitude que preenche todas as coisas, pela fé o mundo inteiro se torna o sacramento de Sua presença, o meio de vida Nele. E a água, a imagem e presença do mundo, é em verdade a imagem e a presença de Cristo.

 

Mas “não sabeis vós que ao serdes batizados em Cristo fostes batizados em Sua morte?[2]”. O batismo – o dom da “renovação da vida” – é anunciado como “semelhante à morte”. E por quê? Porque a nova vida que Cristo dá aos que Nele acreditam irradia desde o sepulcro. O mundo rejeitou Cristo, recusou-se a vê-Lo em sua própria vida e plenitude. E, uma vez que não existe outra vida que não seja Cristo, ao rejeitá-Lo e matá-Lo o mundo condenou-se à morte. Sua realidade última é a morte, e nenhuma das escatologias seculares nas quais o homem deposita sua esperança pode ter força contra esse dito de Tolstoy: “E depois de uma vida estúpida só pode advir uma morte estúpida”. Mas o Cristão é precisamente aquele que sabe que a realidade verdadeira do mundo – desse mundo, dessa nossa vida, não de algum misterioso “outro” mundo – está em Cristo; o Cristão sabe, além disso, que Cristo é essa realidade. Em sua autossuficiência o mundo e tudo o que existe nele não possui significado. E na medida em que existimos segundo o modelo desse mundo, ou, em outras palavras, na medida em que vivemos nossa vida como um fim em si mesmo, não resta nem sentido, nem objetivo, porque tudo é dissolvido após a morte. Somente quando abandonamos, de forma livre, total e incondicional a autossuficiência de nossa vida, quando colocamos todo seu significado em Cristo, somente então a “renovação da vida” – que implica uma nova possessão do mundo – é concedida a nós.

 

O mundo então se torna verdadeiramente o sacramento da presença de Cristo, o florescimento do Reino e da vida eterna. Pois Cristo, “tendo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre Ele”. O batismo consiste então na morte de nosso egoísmo e autossuficiência, e é “semelhante à morte de Cristo” porque a morte de Cristo representa essa rendição incondicional. E, assim como a morte de Cristo “esmagou a morte” – porque nela se revelou o sentido e a força da vida – também nossa morte Nele nos une à nova “vida em Deus”.

 

O significado dessa “renovação da vida” se manifesta quando a pessoa recém-batizada é vestida, imediatamente após o batismo, com uma veste branca. Essa é a veste de um rei. O homem se torna outra vez o rei da criação. O mundo se torna outra vez sua vida, não mais sua morte, pois ele sabe o que fazer com ele. Ele foi restaurado à condição de felicidade e poder da verdadeira natureza humana.

 

 

4

 

Na Igreja Ortodoxa, aquilo que chamamos hoje de “segundo sacramento de iniciação” – o crisma, ou confirmação – sempre foi uma parte integral da liturgia batismal. Pois não se trata de outro sacramento, mas da própria completação do batismo, sua “confirmação” pelo Espírito Santo. Ele se distingue do batismo na mesma medida em que a vida se distingue do nascimento. O Espírito Santo confirma toda a vida da Igreja porque Ele é essa vida, a manifestação da Igreja como o “mundo do futuro”, como a alegria e a paz do Reino. Enquanto instituição, ensinamento e ritual a Igreja está de fato não apenas nesse mundo, como ainda é desse mundo, como uma “parte” dele. É o Espírito Santo, cujo advento é a inauguração, a manifestação definitiva, das “últimas coisas”, que transforma a Igreja no “sacramento” do Reino, e que transforma sua vida na presença, nesse mundo, do mundo por vir.

 

A confirmação é, portanto, o Pentecostes pessoal de cada um, sua entrada na verdadeira vida no Espírito Santo, que é a verdadeira vida da Igreja. É a sua ordenação como um homem pleno e verdadeiro, pois para ser plena a pessoa precisa pertencer ao Reino de Deus. E, mais uma vez, não é apenas a “alma” – sua vida “espiritual” ou “religiosa” – que é confirmada, mas a totalidade da pessoa humana. Todo seu corpo é ungido, selado, santificado e dedicado à nova vida: “O selo do dom do Espírito Santo”, diz o Sacerdote na medida em que unge o batizando, “na testa, nos olhos, nas bochechas, nos lábios, nas orelhas no peito, nas mãos e nos pés”. Todo o homem é assim transformado no templo de Deus, e toda a sua vida a partir de agora se torna uma liturgia. É aqui, nesse instante, que a oposição pseudo-Cristã entre o “espiritual” e o “material”, entre o “sagrado” e o “profano”, entre o “religioso” e o “secular” é denunciada, abolida, e revelada como a monstruosa mentira a respeito de Deus, do homem e do mundo. Cada grama de matéria pertence a Deus e Nele encontra sua plenitude. Cada instante do tempo é o tempo de Deus e é preenchido com a eternidade de Deus. Nada é “neutro”. Pois o Espírito Santo, como um raio de luz, como um sorriso de felicidade, “toca” todas as coisas, todo o tempo – revelando a tudo como pedras preciosas de um precioso templo.  

 

Ser uma pessoa verdadeira implica ser plenamente si mesmo. A confirmação é a confirmação do homem em si, de sua “personalidade” única. Trata-se, para usarmos mais uma vez a mesma imagem, de sua ordenação como si mesmo, de se tornar o que Deus deseja dele, aquilo que Ele amou nele desde toda eternidade. Esse é o dom da vocação. Se a Igreja consiste de fato na “renovação da vida” – o mundo e a natureza renovados em Cristo – ela não é – ou melhor, não pode ser – uma instituição puramente religiosa, na qual, para ser “piedoso”, para ser um “bom membro” é preciso deixar a própria personalidade na entrada – na “sala de checagem” – e substituí-la por uma personalidade morna, impessoal, neutra, de “bom Cristão”. A piedade pode de fato ser uma coisa muito perigosa, e se tornar uma oposição real ao Espírito Santo, que é o Doador da Vida – da alegria, do movimento e a criatividade – e não uma espécie de “boa consciência”, que vê todas as coisas com suspeição, medo e indignação moral.

 

A conformação é a abertura da pessoa para a totalidade da criação divina, para a verdadeira catolicidade da vida. É a “brisa”, o ruah de Deus que penetra a vida, que a abraça com fogo e amor, tornando-nos capazes para a ação divina, que preenche a tudo com alegria e esperança.

 

 

5

 

Já mencionamos que no passado o batismo acontecia na Páscoa – como parte da grande celebração Pascal. Sua realização natural consistia assim, naturalmente, na entrada do recém-batizado na Eucaristia da Igreja, no sacramento de nossa participação na Pascha do Reino. Pois o batismo abre as portas do Reino e o Espírito Santo nos conduz à sua felicidade e paz, o que significa para sua plenitude eucarística. Mesmo hoje, o batismo e a confirmação são imediatamente seguidos de uma procissão – que atualmente adota a forma de uma circum-ambulação da pia batismal. Originalmente, porém, tratava-se de uma procissão às portas da igreja, a procissão da entrada. É significativo que o hino do Introito da liturgia Pascal seja o mesmo que cantamos quando conduzimos o “neófito” na procissão batismal: “Vós que fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes, aleluia!”. É o batismo, o Pentecostes batismal que originou a Igreja como procissão, com entrada, como ascensão à eterna Páscoa do Senhor.

 

Então, por oito dias – a imagem da plenitude do tempo – o recém-batizado permanecerá na igreja, e cada um desses oito dias é celebrado como Páscoa. No oitavo dia acontece o rito da lavagem do santo crisma, o corte do cabelo e o retorno ao mundo. Da plenitude do tempo e da felicidade para o tempo do mundo, como testemunha e portador dessa alegria – esse é o significado desses ritos, idênticos à despedida eucarística, “Vamo-nos em paz”. Os sinais visíveis do sacramento são lavados – o “símbolo” deve se tornar realidade, a própria vida se torna um signo sacramental, a realização do dom. e o corte do cabelo – o último rito da liturgia batismal – é o sinal que a vida que agora começa é uma vida de oferenda e sacrifício, a vida que se transforma constantemente em liturgia – a obra de Cristo.

 

 

6

 

Somente na luz do batismo podemos entender o caráter sacramental ligado pela Igreja Ortodoxa à penitência. Em seu desvio jurídico, a teologia sacramental explica esse sacramento em termos de um poder puramente “judicial” para absolver pecados, um poder “delegado” por Cristo ao sacerdote. Mas essa explicação não tem nada a ver com o significado original da penitência na Igreja, que é de natureza sacramental. O sacramento de perdão é um batismo, não porque opera uma remoção jurídica da culpa, mas porque se trata de um batismo em Jesus Cristo, que é o próprio Perdão. O maior dos pecados – o verdadeiro “pecado original” – não consiste numa transgressão das regras, mas, acima de tudo, no desvio do amor humano e em sua alienação em relação a Deus. Que a pessoa prefira algo – o mundo, a si próprio – a Deus, esse é o único pecado real, e nele todos os demais pecados se tornam naturais, inevitáveis. Esse pecado destrói a verdadeira vida do homem. Ele desvia o curso da vida de seu significado e direção únicos. E esse pecado é perdoado em Cristo, não no sentido de que Deus “esquece” e não dá mais atenção a ele, mas porque em Cristo o homem retorna a Deus, e retorna a Deus porque ele ama a Deus e encontra Nele o único objeto de amor e de vida. E Deus aceita esse homem e – em Cristo – se reconcilia com ele. O arrependimento é assim o retorno de nosso amor, de nossa vida, a Deus, e esse retorno é possível em Cristo porque Ele revela a nós a verdadeira Vida e nos torna conscientes de nosso exílio e condenação. Crer em Cristo é arrepender-se – é mudar radicalmente o próprio “entendimento” de nossa vida, é vê-la como pecado e morte. E crer Nele significa aceitar a alegre revelação que Nele o perdão e a reconciliação nos foram dados. No batismo tanto o arrependimento como o perdão encontram sua realização. No batismo o homem deseja morrer como homem pecador e ele é entregue à morte, e no batismo o homem deseja a renovação da vida enquanto perdão, e é entregue a ele.

 

E no entanto o pecado permanece em nós, que caímos constantemente dessa nova vida que recebemos. A luta do novo Adão contra o velho Adão é longa e sofrida, e é uma tola simplificação pensar, como fazem alguns, que a “salvação” que experimentam em reavivamentos e em “decisões por Cristo”, e que resultam em correção moral, soberba e morna filantropia, é a totalidade da salvação, é aquilo que Deus pretendia quando deu Seu Filho pela vida do mundo. A única tristeza verdadeira é “não ser santo”, e quão frequentemente os Cristãos “morais” são precisamente aqueles que nunca sentem, que nunca experimentam essa tristeza, porque sua própria “experiência de salvação”, a sensação de “ser salvos” os enchem de autossatisfação; e qualquer um que tenha se sentido “satisfeito” já recebeu sua recompensa e não pode sentir a fome e a sede dessa transformação total de dessa transfiguração da vida, que, apenas elas, criam os “santos”.

 

O batismo é o perdão dos pecados, não sua remoção. Ele introduz a espada de Cristo em nossa vida e a transforma num conflito real, na dor inescapável e no sofrimento do crescimento. É de fato depois do batismo, e por causa dele, que a realidade do pecado pode ser reconhecida em toda sua tristeza, e se torna possível o verdadeiro arrependimento. Assim sendo, a plenitude da Igreja é ao mesmo tempo o dom do perdão, a alegria do “mundo por vir” e também uma inescapável e contínua metania (arrependimento). A festa é impossível sem o jejum, e o jejum é precisamente arrependimento e retorno, a experiência salvífica da tristeza e do exílio. A Igreja é o dom do Reino – de fato, o próprio dom que torna óbvia nossa ausência do Reino, nossa alienação em relação a Deus. É o arrependimento que nos reconduz à alegria do banquete Pascal, mas é essa alegria que nos revela nossa condição pecaminosa e nos coloca sob o julgamento.

 

Mas o sacramento do arrependimento não consiste num “poder” sagrado e jurídico dado por Deus aos homens. Esse é o poder do batismo na medida em que se vive na Igreja. É do batismo que o arrependimento recebe seu caráter sacramental. Em Cristo todos os pecados são perdoados de uma vez por todas, pois Ele é o próprio perdão dos pecados, e assim já não existe necessidade de nenhuma “nova” absolvição. Mas realmente existe a necessidade, para nós que abandonamos a Cristo e que nos excomungamos de Sua vida,, de que retornemos para Ele, para uma vez mais recebermos o dom que, Nele, recebemos de uma vez para sempre. E a absolvição é o sinal de que esse retorno aconteceu e se realizou plenamente. Assim como cada Eucaristia não constitui uma “repetição” da ceia de Cristo, mas sim nossa ascensão, nossa aceitação no mesmo e eterno banquete, também o sacramento do arrependimento não é uma repetição do batismo, mas nosso retorno à “renovação da vida” que Deus nos concedeu de uma vez por todas.



[1] Romanos 6: 3.

[2] Romanos 6: 3. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário