domingo, 13 de maio de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Mantém teu espírito no Inferno e não te desesperes




O asceta em estado de contemplação vê realidades que permanecem misteriosas para a maior parte dos homens, e que difíceis de comunicar; traduzidas para a linguagem humana, elas podem ser deformadas e mesmo traídas. As palavras e os conceitos não possuem mais do que uma limitada possibilidade de transmitir um estado espiritual, e a condição indispensável para que nesse domínio uma pessoa possa compreender a outra é a identidade de experiências, ou, no mínimo, a semelhança. Na falta disso, não se estabelecerá uma compreensão recíproca, já que o valor de uma noção é função do dado vivido que essa noção contém. Assim, por um lado, todos os homens falam línguas distintas; mas, por outro, a palavra pode provocar às vezes, graças à consubstancialidade do gênero humano, uma experiência autêntica no espírito do interlocutor e suscitar nele uma nova vida.

Se isso acontece no que diz respeito às relações humanas, quanto quando o próprio Deus atua! A palavra divina, aproveitando o instante em que a alma está em posição de recebê-la, realmente traz a ela uma nova vida, a vida eterna incluída nessa mesma palavra. “As palavras que vos disse são espírito e vida[1]”.

Dito isso, vamos nos deter sobre aquele “encontro-oração” de tão estranha aparência, a que nos referimos anteriormente, e em especial sobre as palavras: “Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.

Os leitores do Evangelho devem ter certamente percebido a transformação imprevisível que costuma acontecer nos encontros com Cristo, seja o de Nicodemo, o da Samaritana, ou com os discípulos na Santa Ceia. Não se percebe a princípio uma sequência lógica. É que a atenção de Cristo está fixada mais no coração de seus interlocutores do que nas suas palavras, em suas necessidades secretas, em sua capacidade de compreensão.

De modo análogo, o “encontro-oração” do Starets oferece pouco sentido aparentemente, e poderia ser qualificado por alguns como um “delírio incoerente”. Mas se a revelação contida nele nos fosse revelada em todo o seu poder, é certo que nosso coração ficaria profundamente comovido.

O Starets passou dezenas de anos de sua vida pedindo ardentemente ao Senhor que o mundo conhecesse a Deus. Se os homens, pensava – e sua oração abarcava todas as nações – pudessem conhecer o amor e a humildade de Deus, abandonariam, a exemplo de Paulo, como barro[2], como jogo de crianças, suas ilusões e preocupações atuais; e com todas as forças, dia e noite, não aspirariam a outra coisa do que a essa humildade e esse amor. Se assim fosse, dizia o Starets, o destino de cada homem mudaria e o mundo inteiro seria transfigurado. Tão grande é o poder da humildade de Cristo.

Os anciãos e escribas de Israel se admiraram da “segurança de Pedro e João”, “homens simples e ignorantes”, quando Pedro, referindo-se a Cristo, proclamou: “Não existe sob o céu outro Nome dados aos homens, por meio do qual possamos ser salvos[3]”. Ainda hoje isso nos surpreende e desejaríamos saber de que maneira Padro, “que não havia estudado”, e que provavelmente ignorava a história das culturas e religiões da China, da Índia e das demais civilizações, poderia saber quais nomes teriam sido dado sob o céu. Não existe outra resposta a essa pergunta senão a plenitude da revelação concedida a Pedro no Monte Tabor e no dia do Pentecostes.

Ao “ignorante e simples” Silouane, durante aquela noite de seu “encontro-oração”, os “mistérios ocultos aos sábios e aos inteligentes” foram igualmente mostrados. Aquela noite teve uma importância excepcional em sua vida. O mundo está submerso nas trevas da ignorância espiritual. O caminho da vida eterna é pregado sem cessar em todas as línguas, mas os que o conhecem verdadeiramente são poucos em cada geração.

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“Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.

Exortação ininteligível. O que pode significar “manter o espírito no inferno”? isso não se reveste imaginativamente de modo simplista, como vemos às vezes nos quadros grosseiramente realistas criados pela ingênua imaginação dos homens? Não é esse o caso. Ao Padre Silouane, como a alguns dos Padres mais eminentes (Antônio, Sisóes, Macário, Poêmio), foi concedido viver na terra os tormentos do inferno. Tratava-se de um estado cuja intensidade acabava por deixar nos corações uma marca tão profunda que eles podiam renová-lo mediante um movimento interior apropriado, quando queriam. E eles podiam recorrer a esse ato ascético quando alguma paixão, em especial o orgulho, a mais sutil e enraizada de todas, surgia-lhes na alma.

A luta contra o orgulho é efetivamente a última etapa no caminho que conduz à impassibilidade. No princípio, o asceta está ao alcance das grosseiras paixões da carne, depois da irritabilidade, e ao final do orgulho, e esse último combate é sem dúvida o mais doloroso. O asceta, convencido, depois de uma longa experiência, de que o orgulho põe a perder a graça, desce conscientemente, ao vê-lo nascer, ao inferno e desse modo paralisa qualquer movimento passional.

Essa forma de combate nos foi legada por Santo Antônio, fundador do Monaquismo, e o Starets Silouane notara que a maior parte dos monges se assusta e fraqueja quando chega essa etapa. Por esse motivo o grande Sisóes disse: “Quem poderá suportar o pensamento de Antônio?”.

Sisóes, pensava o Starets, aludia aqui ao pensamento ascético que Antônio aprendeu de um sapateiro de Alexandria. Santo Antônio havia suplicado a Deus que lhe mostrasse alguém igual a ele. Deus lhe fez saber que ele não havia alcançado a “estatura” de certo sapateiro de Alexandria. Antônio deixou o deserto, dirigiu-se à casa desse homem e perguntou a ele como vivia. O sapateiro respondeu-lhe que entregava um terço de seus ganhos à Igreja e outro aos pobres, guardando o resto para si. Isso não pareceu extraordinário a Antônio, já que ele havia renunciado a todos os seus bens e vivia no deserto, numa pobreza maior do que a do sapateiro. Não estava ali, portanto, a superioridade desse último. Antônio lhe disse: “O Senhor me enviou para ver como vives”. O humilde artesão, que venerava a Antônio, confiou-lhe então o segredo de sua alma: “Não faço nada de especial; apenas, quando trabalho, olho os passantes e penso: todos se salvarão, só eu perecerei”.

Antônio, preparado por um longo e extraordinário esforço ascético, que enchera de admiração a todo o Egito, penetrou pela graça de Deus no sentido dessas palavras e compreendeu realmente que não havia alcançado a altura daquele sapateiro.

Voltando ao deserto, dedicou-se a esse exercício e o ensinou aos eremitas capazes de absorver, “não o leite, mas o alimento sólido[4]”. Os Padres da Igreja transmitiram essa lição, desde então, como um legado inestimável. Cada qual, é certo, lhe dará uma forma distinta. Assim, Poêmio o Grande dizia aos seus discípulos: “Creiam-me, filhos meus, onde Satanás estiver, ali eu serei deixado”. O exercício, porém, é essencialmente o mesmo.

“Mantém teu espírito no inferno”. Essa expressão parece refletir um extremo desespero. Mas o Starets dizia que o asceta experimentado, seguro do amor de seu Senhor, se mantém sabiamente na beira do abismo e não desespera.

Se a exposição do “encontro-oração” do santo Starets é simples, como o foram as palavras do sapateiro de Alexandria, o poder e o mistério desse exercício permanecerão incompreensíveis para aqueles que não viveram de modo parecido, tanto os sofrimentos do inferno, como os grandes dons da graça.

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A partir daquela noite, a prolongada ascese do Starets foi uma busca ardente da humildade. E, se quisermos penetrar no segredo de seu caminho para a humildade, devemos escutar seu “cântico” preferido: “Logo morrerei e minha alma miserável descerá ao inferno; ali, sofrendo sozinho na prisão tenebrosa, chorarei amargamente: minha alma busca ao Senhor e eu o busco com lágrimas. Como não buscá-lo? Foi ele quem primeiro me encontrou e que apareceu a mim, pecador”.

Quando o Starets dizia “minha alma descerá ao inferno”, não era somente uma expressão: os tormentos do inferno, realmente vividos, ficaram gravados em seu coração, de modo que ele podia revivê-los mediante um movimento consciente de seu espírito; e, quando todo pensamento passional era aniquilado, ele opunha ao efeito destruidor desse sofrimento a ação salvadora de Cristo, porque a levava também em seu coração.

Raros são os ascetas capazes desse exercício espiritual. A alma que persevera vai se acostumando a ele e adquire uma resistência especial: a lembrança do inferno se torna tão familiar que quase nunca a abandona. E essa perseverança é necessária, pois o homem “que vive no mundo e suporta a carne” está submetido continuamente às tentações do pecado e deve se defender revestindo-se da couraça da humildade.

O Starets dizia: “Com sua resposta – ‘mantém o espírito no inferno e não desesperes’ – o Senhor me ensinou como é necessário humilhar-se. É assim que vencemos os inimigos. Mas quando permito ao meu espírito que saia do fogo, os pensamentos voltam a recuperar sua força”.

No começo desse exercício, o asceta desce em espírito ao inferno e permanece parcialmente em seu poder como prisioneiro. Mas esse exercício conduz, em seu desenvolvimento posterior, à impassibilidade, e o inferno se transforma em “inferno do amor de Cristo”, algo essencialmente diferente.

O que é a “descida de Cristo ao inferno”? Não devemos conceber o inferno como uma porção do espaço, como uma região física onde os pecadores se encontram detidos, mas como um estado espiritual da criatura que se afastou do amor divino.

Como é possível que aquele que é a Luz inacessível e o Amor sem medidas se rebaixe até o nível das trevas do ódio?

Encontraremos uma explicação em São Paulo quando escreve: “Assim, a morte trabalha em nós e a vida em vós[5]”. Tal é o poder do Amor: mudar as vidas. Aquele que ama vive a existência do amado como sendo sua, até o ponto de lhe transmitir a força e a luz de seu amor, assumindo em troca suas trevas e sua morte.

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Sabemos da necessidade de que nossa vida reproduza em linhas gerais aquilo que o Filho do homem realizou durante sua vida terrestre. Esse caminho é o mesmo para todo cristão, segundo a palavra do Senhor: “Eu sou o Caminho”, e, ademais, não existe outro caminho, pois “ninguém chega ao Pai senão por mim[6]”.

Se o Senhor foi tentado[7], também nós devemos inevitavelmente atravessar o fogo das tentações. Se o Senhor foi perseguido, seremos perseguidos pelos mesmos poderes que perseguiram a Cristo[8]. Se o Senhor foi transfigurado, também nós o seremos, e já desde agora, na terra, desde que as nossas aspirações sejam parecidas com as suas. Se o Senhor foi crucificado, deveremos também sofrer, seremos como ele crucificados, ainda que sobre cruzes invisíveis – se é que o seguimos verdadeiramente. Se o Senhor teve que morrer, todos os que nele creem passarão por uma morte semelhante à sua[9]. Se o Senhor, por sua Ressurreição num corpo glorioso, “subiu aos Céus e sentou-se à direita do Pai[10]”, também nós seremos “filhos da Ressurreição[11]”, subiremos ao Céus pelo poder do Espírito Santo e seremos convertidos em “coerdeiros de Cristo[12]”.

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Ao se condenar ao inferno, aniquilando assim toda paixão, o homem deixa seu coração livre para receber o amor divino[13]. Só quando esse amor houver preenchido totalmente o homem, ser-lhe-á revelado o mistério da descida redentora de Cristo aos infernos, e sua semelhança com Deus estará realizada. Deus o abraça por inteiro, incluindo o inferno, pois não existe domínio algum do universo no qual sua presença esteja excluída. Por isso mesmo, “os Santos vão ao inferno”, dizia o Starets, “mas o inferno não tem poder sobre eles”.

“Mantém teu espírito no inferno e não desesperes”.

Sem essa experiência de descida ao inferno, é impossível conhecer verdadeiramente o que é o amor de Cristo, seu Gólgota e sua ressurreição.

A salvação, entendida como deificação, começa aqui na terra. Onde está, todavia, o critério tangível de que tal deificação nos tenha sido realmente concedida? Ele se encontra na proporção de nossa semelhança para com Deus, tal como ele se manifestou na terra por meio do ato da Encarnação; segundo a mesma medida, nos tornaremos semelhantes a ele na Eternidade.

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Nossa sucinta exposição não permite conhecer esse caminho em toda sua plenitude; sua majestade, no fundo, não pode ser descrita, pois nela se reúnem maravilhosamente o extremo sofrimento e a felicidade extrema, misturando-se um ao outro de maneira estranha. Se não houvesse mais do que sofrimento, seria impossível suportá-lo. Se não houvesse senão felicidade, seria igualmente impossível suportá-la.


[1] João 6: 83.
[2] Filipenses 3: 7-8.
[3] Atos 4: 12-13.
[4] Hebreus 5: 12-14.
[5] II Coríntios 4: 12.
[6] João 14: 6.
[7] Mateus 4: 1; Hebreus 2: 18.
[8] João 15: 21; I Timóteo 3: 12.
[9] Romanos 6: 4-5.
[10] Marcos 16: 19.
[11] Lucas 20: 36.
[12] Romanos 8: 17.
[13] Romanos 9: 1-3.

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