quinta-feira, 16 de maio de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Conclusão: O Festim do Reino






Em nossa introdução, insistimos sobre a ligação íntima, indissolúvel, entre a teologia e a mística, entre a tradição doutrinal e a espiritualidade. Não podemos interpretar a espiritualidade de outra forma que não dogmática, sendo os dogmas sua expressão exterior, o único testemunho objetivo de uma experiência afirmada pela Igreja. As experiências pessoais e a experiência comum da Igreja são idênticas, em virtude da catolicidade da tradição cristã. Ora, a tradição não é apenas o conjunto dos dogmas, das instituições sagradas e dos ritos conservados pela Igreja, mas, antes de tudo, ela é o que se expressa nessas determinações exteriores, uma tradição viva, a revelação incessante do Espírito Santo na Igreja, a vida da qual cada um de seus membros pode participar segundo sua medida. Estar na tradição significa ter sua parte na experiência dos mistérios revelados à Igreja. A tradição doutrinal – marcos fixados pela Igreja sobre o caminho do conhecimento de Deus e da tradição mística – e a experiência adquirida dos mistérios da fé, não podem ser separados ou opostos: não se compreende os dogmas fora da experiência, e não existe a plenitude da experiência fora do verdadeiro ensinamento. É por isso que, nessas páginas, quisemos apresentar a tradição da Igreja do Oriente como uma teologia mística, em que doutrina e experiência se condicionam reciprocamente.

Examinamos sucessivamente os elementos fundamentais da teologia ortodoxa, sem jamais perder de vista o objetivo final, o da união com Deus. Orientada para esse fim, invariavelmente soteriológico em sua intenção, essa tradição doutrinal nos aparece como sendo muito homogênea, apesar da riqueza de suas experiências, apesar da diversidade das culturas e das épocas que ela abarca. Trata-se de uma única família espiritual na qual reconhecemos facilmente o parentesco, embora seus membros estejam afastados uns dos outros no tempo e no espeço. Para dar testemunho da mesma espiritualidade, pudemos nos referir, no decurso desses estudos, a Dionísio o Areopagita e a Gregório Palamas, a Macário do Egito e a Serafim de Sarov, a Gregório de Nissa e a Filarete de Moscou, a Máximo o Confessor e aos teólogos russos modernos, sem nunca ter a impressão de uma mudança de clima espiritual ao passarmos de uma época para outra. É porque a Igreja na qual as pessoas humanas realizam sua vocação, onde se realiza sua união com Deus, é sempre a mesma, embora sua “economia” em relação ao mundo exterior deva mudar segundo as épocas ou os meios diferentes nos quais a Igreja cumpre sua missão. Os Padres e os Doutores que tiveram que defender e formular, no decurso de sua história, os diferentes dogmas, não pertenciam menos a uma só e mesma tradição; eles foram o testemunho de uma mesma experiência. Essa tradição permanece comum ao Oriente e ao Ocidente, na medida em que a Igreja dá seu testemunho claro às verdades que se referem à Encarnação. Mas os dogmas mais interiores por assim dizer, os mais misteriosos, os que dizem respeito ao Pentecostes, os ensinamentos sobre o Espírito Santo, sobre a graça, sobre a Igreja, já não são comuns à Igreja de Roma e às Igrejas do Oriente. Duas tradições separadas se opõem uma à outra. Mesmo aquilo que foi comum às duas até um determinado momento recebe retrospectivamente uma ênfase diferente, aparece presentemente sob outra luz, como realidades espirituais que pertencem a duas experiências distintas. Doravante, São Basílio ou Santo Agostinho serão interpretados diferentemente, segundo sejam considerados dentro da tradição católica romana ou ortodoxa. Isso é inevitável, pois não se pode admitir a autoridade de um autor eclesiástico, senão no espírito da tradição que o reclama para si. Em nossa exposição, tentamos colocar em relevo os caracteres próprios à tradição da Igreja ortodoxa, inclinando-nos exclusivamente sobre os testemunhos dos Padres orientais, a fim de evitar toda confusão ou mal-entendido possíveis.

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Pudemos constatar em muitas ocasiões, no decurso de nossos estudos sobre a teologia mística da Igreja do Oriente, a atitude apofática própria a cada pensamento religioso. Como vimos, as negações que assinalam a incognoscibilidade divina não são proibições de conhecer; longe de ser uma limitação, o apofatismo permite ultrapassar todos os conceitos, todo o domínio da especulação filosófica. É uma tendência a uma plenitude sempre maior, que transforma o conhecimento em ignorância, a teologia dos conceitos em contemplação, os dogmas em experiência dos mistérios inefáveis. É também uma teologia existencial que engaja todo o ser, colocando-o sobre a via da união, obrigando-o a mudar, a transformar sua natureza para chegar à verdadeira “gnose”, que é a contemplação da Santa trindade. Ora, a “mudança do espírito”, a metanoia, significa arrependimento. A via apofática da teologia oriental é o arrependimento da pessoa diante da face do Deus vivo. É a mudança incessante do ser que tende para sua plenitude, para a união com Deus que se efetua pela graça divina e a liberdade humana. Mas a plenitude da divindade, a realização última para a qual tendem as pessoas criadas, se abre no Espírito Santo. É Ele o Mistagogo[1] da via apofática cujas negações assinalam a presença do Inominável, do Ilimitado, da Plenitude absoluta. É a tradição secreta na tradição manifestada a todos, pregada sobre os telhados. É o mistério que permanece oculto nos ensinamentos da Igreja, ao mesmo tempo em que lhe confere um caráter de certeza, de evidência interior, de vida, de calor, de luz, próprias à verdade cristã. Sem Ele os dogmas seriam verdades abstratas, autoridades exteriores impostas desde fora a uma fé cega, razões contrárias à razão, recebidas por obediência e a seguir adaptadas ao nosso modo de entendimento, em lugar de serem mistérios revelados, princípios de um conhecimento novo que se abrem em nós e adaptam nossa natureza à contemplação das realidades que ultrapassam todo entendimento humano. A atitude apofática, na qual podemos ver o caráter básico de todo o pensamento teológico da tradição oriental, é um testemunho incessante prestado ao Espírito Santo, que supre todas as insuficiências, que permite ultrapassar todas as limitações, que confere ao conhecimento do Incognoscível a plenitude da experiência, que transformas as trevas divinas em Luz na qual nós comungamos com Deus.

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Se o Deus incognoscível se revela como a Santa Trindade, se sua incognoscibilidade aparece como o mistério das Três Pessoas e da Natureza una, é porque o Espírito Santo abre à nossa contemplação a plenitude do Ser divino. É por isso que, no rito oriental, o dia de Pentecostes é chamado de festa da Trindade. É a estabilidade absoluta, termo de toda contemplação, de toda elevação e, ao mesmo tempo, princípio de toda teologia, verdade primeira, dado inicial a partir do qual todo pensamento, todo ser recebe seu começo. São Gregório de Nazianze, Evagro o Pôntico, São Máximo o Confessor e outros Padres identificam o conhecimento perfeito da Trindade com o Reino de Deus, perfeição última para a qual são chamados os seres criados. A teologia mística da Igreja do Oriente sempre irá se afirmar como triadocêntrica. O conhecimento de Deus será para ela um conhecimento da Trindade; a união mística, uma unidade de vida com as Três Pessoas divinas. A antinomia do dogma trinitário, a identidade misteriosa da Mônada-Tríade, será ciosamente salvaguardada no espírito de apofatismo oriental que se oporá à fórmula ocidental da processão ab utroque[2], para não colocar a ênfase sobre a unidade de natureza em detrimento da plenitude pessoal das “Três Santidades reunidas em uma só Dominação e Divindade[3]”. A monarquia do Pai será sempre afirmada – fonte das três pessoas, nas quais existe a riqueza infinita da natureza una.

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Tendendo sempre a conceber uma plenitude maior, a ultrapassar todas as limitações conceituais que determinariam racionalmente o Ser divino, a teologia oriental se recusa a emprestar à natureza divina o caráter de uma essência fechada em si mesma. Deus, essência una em três pessoas, é mais do que uma essência: Ele transborda Sua essência, se manifesta fora dela, se comunica ao mesmo tempo em que é incomunicável por natureza. Essas processões da divindade fora da essência, esses transbordamentos da plenitude divina são as energias, o modo de existência próprio a Deus na medida em que Ele derrama a plenitude de Sua divindade pelo Espírito Santo sobre todos aqueles que são capazes de a receber. É por isso que o cântico do Pentecostes chama o Espírito Santo de “rio de divindade que escoa do Pai para o Filho”.

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A mesma aspiração à plenitude se manifesta nas doutrinas relativas à criação. Se a existência do mundo não possui nenhum caráter de necessidade, se a criação é contingente, é justamente nessa liberdade absoluta do querer divino que o universo criado encontra sua perfeição. Pois Deus criou do nada um objeto absolutamente novo, um cosmo que não é uma cópia imperfeita de Deus, mas uma obra desejada, “excogitada” pelo “conselho divino”. Com efeito, na teologia oriental, as ideias divinas, como vimos, se apresentam sob o aspecto dinâmico das forças, das vontades, das palavras criadoras. Elas determinam os seres criados como suas causas exteriores, mas, ao mesmo tempo, elas os chamam à perfeição ao “ser perfeito” em união com Deus. Assim, o universo criado aparece como uma realidade dinâmica, tendendo a uma plenitude futura, sempre presenta para Deus. O fundamento inquebrantável do mundo criado do nada reside em sua realização, que é o termo de seu devir. Ora, Aquele que realiza, que confere a plenitude a todo ser criado, é o Espírito Santo. Considerado em si, o ser criado será sempre uma “implenitude”; considerado no Espírito Santo, ele aparecerá como uma plenitude da criatura deificada. No curso de sua história, o mundo criado será colocado entre esses dois termos, sem que jamais se possa conceber a “natureza pura” e a graça como duas realidades justapostas que se acrescentariam uma à outra. A tradição da Igreja do Oriente conhece a criatura que tende para a deificação, ultrapassando a si mesma continuamente na graça; ela conhece também a criatura decaída, que se separa de Deus para entrar num novo plano existencial, o do pecado e da morte; mas ela evitará atribuir uma perfeição estática à natureza criada considerada em si mesma. Com efeito, isso equivaleria a atribuir uma plenitude limitada, uma suficiência natural aos seres que foram criados para encontrar sua plenitude na união com Deus.

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Na antropologia e no ascetismo que dela decorre, a limitação que deve ser ultrapassada é a do indivíduo, do ser particular, resultado de uma confusão entre a pessoa e a natureza. A plenitude da natureza exige a unidade perfeita da humanidade, um corpo único que se realiza na Igreja; a plenitude virtual das pessoas se exprime em sua liberdade em relação a toda qualificação natural, a todo caráter individual, liberdade que faz de cada um dentre eles um ser único, que não tem símile, uma multiplicidade de hipóstases humanas que possuem uma só natureza. Na unidade da natureza comum, as pessoas não são partes, mas cada uma é um todo que encontra a realização de sua plenitude na união com Deus. A pessoa, imagem indestrutível de Deus, tende sempre para uma certa plenitude, embora às vezes a busque fora de Deus, pois ela conhece, deseja e age pela natureza que o pecado obscureceu, uma natureza que já não possui a semelhança divina. Assim, o mistério do Ser divino, que é a distinção entre a natureza uma e as pessoas, está inscrito na humanidade chamada a participar da vida da Santa Trindade. Os dois polos do ser humano, a natureza e a pessoa, encontram sua plenitude, uma na unidade, outra na diversidade absoluta, pois cada pessoa se une a Deus segundo seu modo, que lhe é próprio e único. A unidade da natureza purificada é recriada e “recapitulada” por Cristo; a multiplicidade das pessoas é confirmada pelo Espírito Santo que se comunica a cada membro do corpo de Cristo. A nova plenitude, o novo plano existencial introduzido no universo depois do Gólgota, da Ressurreição e do Pentecostes, se chama Igreja.

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É unicamente na Igreja, pelos olhos da Igreja, que a espiritualidade oriental verá a Cristo. Dito de outro modo, ela O conhecerá no Espírito Santo. Cristo se apresentará a ela sempre na plenitude de Sua divindade, glorificado e triunfante, mesmo em sua paixão, mesmo no sepulcro. A kenwsis será sempre substituída pelo brilho da divindade. Morto e repousando no sepulcro, Ele desceu aos infernos como um vencedor e destruiu para sempre o poder do inimigo. Ressuscitado e tendo subido ao céu, Ele não pode ser conhecido pela Igreja sob outra forma que não a de uma pessoa da Santa Trindade, assentando-se à direita do Pai depois de haver derrotado a morte. O Cristo “histórico”, “Jesus de Nazaré”, tal como aparecia aos olhos dos testemunhos estrangeiros, o Cristo exterior à Igreja é sempre ultrapassado na plenitude da revelação concedida aos verdadeiros testemunhos, aos filhos da Igreja iluminados pelo Espírito Santo. O culto da humanidade de Cristo é estranho à tradição oriental, ou antes, essa humanidade deificada se reveste aqui da mesma forma gloriosa que aquela que os discípulos viram sobre o Monte Tabor, a humanidade do Filho que torna visível a divindade comum com o Pai e o Espírito Santo. O caminho da imitação de Cristo jamais é praticado na vida espiritual da Igreja do Oriente. Com efeito, ela pareceria ter aqui um certo caráter de implenitude, ser uma atitude exterior em relação a Cristo. Para a espiritualidade oriental, a única via que nos torna conformes a Cristo é a da aquisição da graça conferida pelo Espírito Santo. Os santos da Igreja do Oriente jamais tiveram estigmas, marcas exteriores que os tornaram semelhantes ao Cristo sofredor alguns grandes santos e místicos do Ocidente. Mas, por outro lado, frequentemente os santos orientais foram transfigurados pela lua interior da graça incriada e apareceram resplendentes como Cristo no momento de Sua Transfiguração.

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A fonte dessa plenitude, que permite ultrapassar toda limitação rígida da doutrina, a experiência e a vida da Igreja, a origem dessa riqueza e dessa liberdade, é o Espírito Santo. Plenamente Pessoa, Ele jamais é considerado como um “laço de amor” entre o Pai e o Filho, como uma função de unidade dentro da Trindade, na qual não existe lugar para determinações funcionais. Ao confessar a processão do Espírito Santo do Pai, Sua independência hipostática em relação ao Filho, a tradição da Igreja Oriental afirma a plenitude pessoal da obra do Paráclito que veio ao mundo. O Espírito Santo não constitui uma força unitiva pela qual o Filho se imporia aos membros de Seu corpo místico. Se Ele dá testemunho do Filho, é em sua qualidade de pessoa divina independente do Filho, pessoa divina que comunica a cada hipóstase humana, a cada membro da Igreja, uma nova plenitude na qual as pessoas criadas desabrocham e confessam livre e espontaneamente a divindade de Cristo tornada evidente no Espírito. “Onde está o Espírito de Deus, ali está a liberdade”, a verdadeira liberdade das pessoas que não são membros cegos na unidade do corpo de Cristo, que não são apagadas na união, mas que aí adquirem sua plenitude pessoal; cada uma se torna um todo dentro da Igreja, pois o Espírito Santo desce separadamente sobre cada hipóstase humana. Se o Filho empresta Sua hipóstase à natureza humana renovada, se Ele se torna Chefe de um corpo novo, o Espírito Santo, vindo em nome de Cristo, confere a cada membro desse corpo, a cada pessoa humana, a divindade. Na kenwsis do Filho que desceu à terra, a pessoa se manifestava claramente, mas a natureza permanecia dissimulada sob a “figura de escravo”. No advento do Espírito Santo, a divindade se revela como um Dom, enquanto que a pessoa do Doador permanece abscôndita. Ao se humilhar, por assim dizer, ao se dissimular enquanto pessoa, o Espírito Santo adequa a graça incriada às pessoas humanas. O homem se une a Deus, adaptando-se à plenitude de ser que se abre nas profundezas de sua própria pessoa. Mediante os esforços incessantes de uma via de ascensão, de cooperação com a vontade divina, a natureza criada será cada vez mais modificada pela graça, até a deificação final que se revelará plenamente no Reino de Deus.

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A mesma plenitude do Espírito Santo, o mesmo impulso para a realização final, ultrapassando tudo o que se estabiliza e de limita, de dá a conhecer na eclesiologia oriental. A Igreja histórica, concreta, bem delimitada no tempo e no espaço, reúne em si a terra e o céu, os homens e os anjos, os vivos e os mortos, os pecadores e os santos, o criado e o incriado. Como reconhecer, debaixo de seus defeitos e enfermidades exteriores de sua existência histórica a Esposa gloriosa de Cristo, “sem mancha, nem ruga, nem nada semelhante[4]”? Como poderemos escapar à tentação, à dúvida, se o Espírito Santo não suprisse constantemente as falhas humanas, se as limitações históricas não fossem sempre ultrapassadas, a implenitude sempre transformada em plenitude, como a água foi transformada em vinho nas bodas de Caná?  Quantas pessoas não passaram ao largo da Igreja, sem reconhecer a irradiação de sua glória eterna sob o aspecto da humilhação e do rebaixamento! Mas quantas reconheceram o Filho de Deus no “homem das dores”? É preciso ter olhos para ver e os sentidos abertos para o Espírito Santo para reconhecer a plenitude onde o olho exterior não percebe senão limitações e deficiências. Não temos necessidade de “grandes épocas” para poder afirmar essa plenitude de vida divina sempre presente na Igreja. No tempo dos apóstolos, na época das perseguições, nos séculos dos grandes concílios, sempre houve “espíritos leigos” que permaneceram cegos diante da evidência das manifestações do Espírito de Deus na Igreja. Podemos citar um exemplo mais recente: a Igreja russa produziu, há poucas décadas[5], milhares de mártires e de confessores que nada ficam a dever àqueles dos primeiros séculos. As abundantes efusões da graça, os milagres mais espantosos tiveram lugar ali, onde a fé era posta à prova; os ícones de renovavam diante dos olhos dos espectadores maravilhados, as cúpulas das igrejas resplandeciam com uma luz que não era desse mundo. E, maior milagre de todos, a Igreja soube triunfar sobre todas as dificuldades e sair das provações renovada e reafirmada. No entanto, tudo isso quase não foi notado; o lado glorioso de tudo o que se passava na Rússia permaneceu quase sem interesse para a maioria: protestou-se sobretudo contra as perseguições, lamentou-se que a Igreja russa não tenha se comportado como uma potência temporal e política; perdoou-se sua “fraqueza humana”. O Cristo crucificado e sepultado não teria sido julgado diferentemente por aqueles que são cegos para a luz da Ressurreição. Para saber reconhecer a vitória sob as aparências do fracasso, a força de Deus sendo cumprida na enfermidade, a verdadeira Igreja na realidade histórica, é preciso receber, segundo as palavras de São Paulo, “não o espírito desse mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que possamos conhecer as coisas que Deus nos deu por Sua graça[6]”.

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O apofatismo próprio à teologia mística da Igreja do Oriente nos aparece finalmente como um testemunho prestado à plenitude do Espírito Santo, Pessoa que permanece desconhecida, embora preencha todas as coisas fazendo-as tender para sua realização final. Tudo se torna plenitude no Espírito Santo, o mundo que foi criado para ser deificado, as pessoas humanas chamadas à união com Deus, a Igreja na qual essa união se realiza; enfim, Deus se dá a conhecer pelo Espírito Santo na plenitude de seu Ser, que é a Santa Trindade. A fé, que é um sentido apofático dessa plenitude, não pode ficar cega nas pessoas que se encaminham à união com Deus. O Espírito Santo se torna nelas o próprio princípio de sua consciência que se abre mais e mais à percepção das realidades divinas. A vida espiritual, segundo os autores ascéticos orientais, jamais é inconsciente, como vimos nos dois últimos capítulos. Essa consciência da graça, de Deus presente em nós, se chama habitualmente “gnose”, ou conhecimento espiritual (gnwsis pneumatikh), que Santo Isaac o Sírio definiu como “o sentido da vida eterna”, ou “o sentido das realidades secretas[7]”. A gnose afasta toda limitação da consciência, toda agnoia, cujo termo extremo é o inferno tenebroso. A perfeição da gnose é a contemplação da luz divina da Santa Trindade, consciência plena que é a parúsia, o julgamento e a entrada na vida eterna, que se realiza, segundo São Simeão o Novo Teólogo, desde aqui em baixo, antes da morte e da ressurreição, nos santos que vivem em comunhão constante com Deus.

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A consciência da plenitude do Espírito Santo dada a cada membro da Igreja segundo a medida da elevação pessoal de cada qual faz com que desapareçam as trevas da morte, o medo do Juízo, a garganta do inferno, dirigindo o olhar unicamente para o Senhor que vem em sua glória. Essa alegria da ressurreição e da vida eterna faz da noite pascal um “festim da fé”, do qual cada um participa, mesmo que seja em pequena medida e por alguns momentos, da plenitude do “oitavo dia” que não terá fim. Uma homilia atribuída a São João Crisóstomo[8], lida ano após ano durante as matinas da Páscoa, expressa perfeitamente o sentido dessa plenitude escatológica à qual aspira a cristandade oriental. Não poderíamos encontrar palavras mais eloquentes para terminar nossos estudos sobre a teologia mística da Igreja do Oriente.

Que aqueles que são piedosos, aqueles que amam a Deus, venham se deleitar com essa festa bela e luminosa.
Que o servidor fiel entre com alegria no regozijo de seu Mestre.
Que aquele que suportou as fadigas do jejum receba agora sua paga.
Que aqueles que trabalhou desde a primeira hora receba hoje seu justo salário; que o que chegou na terceira hora se alegre dando graças; que o que chegou na sexta hora não tenha nenhuma dúvida, pois ele nada perderá; que o que se demorou até a nona hora se aproxime sem hesitação ou temor; e o que não apareceu senão na décima-primeira hora não tema pelo seu atraso.
Pois o Senhor é generoso, Ele recebe o último como o primeiro, Ele admite ao repouso o trabalhador da décima-primeira hora, tanto quanto o que trabalhou desde a primeira hora; Ele concede graça ao último e cuida do primeiro; Ele dá a este e concede àquele; Ele recebe a obra e acolhe a intenção; Ele honra o trabalho e louva o bom propósito.
Entrem, portanto, na alegria de seu Mestre: recebam a recompensa, os primeiros como os segundos; ricos e pobres, rejubilem-se juntos; os abstinentes, os preguiçosos, glorifiquem esse dia; os que jejuaram, os que não jejuaram, regozijem-se todos hoje.
O festim está pronto; participem dele todos. O boi gordo está servido; que ninguém saia faminto.
Que todos se deleitem no banquete da fé; recebam todos as riquezas da bondade,
Que ninguém se lamente de sua pobreza, pois o reino comum apareceu.
Que ninguém chore por suas faltas, pois o perdão resplendeu do Sepulcro.
Que ninguém tema a morte, pois a morte do Senhor nos libertou.
Ele extinguiu a morte, Aquele que havia sido feito seu prisioneiro.
Ele aprisionou o inferno, Aquele que desceu até lá.
Ele se amargurou, quando Aquele o fez provar de Sua carne.
Sabendo de tudo isso previamente, Isaías clamou:
O inferno se amargurou, disse ele, quando O encontrou sob a terra. Ele se amargurou, porque foi anulado; ele se amargurou, porque foi humilhado; ele se amargurou, porque foi levado à morte; ele se amargurou, porque foi arrasado; ele se amargurou, porque foi acorrentado.
O inferno se apoderou de um corpo, e se viu diante de Deus; ele agarrou a terra, e encontrou o céu; ele capturou o visível, e caiu diante do que é invisível.
Onde está seu aguilhão, ó morte? Inferno, onde está sua vitória? Cristo ressuscitou e você foi arrasado.
Cristo ressuscitou, e os demônios tombaram.
Cristo ressuscitou, e os anjos se regozijaram.
Cristo ressuscitou, e a vida triunfou.
Cristo ressuscitou, e já não existem mortos nos sepulcros.
Pois Cristo se tornou as primícias daqueles que dormem, ressuscitando dos mortos.
A Ele a glória e a honra pelos séculos dos séculos. Amém.

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[1] Aquele que conduz ou inicia nos mistérios.
[2] Modo no qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.
[3] São Gregório de Nazianze, In Theophaniam, Or. XXXVII, 9, P.G., t. 36, col. 320BC.
[4] Efésios 5: 27.
[5] A primeira edição desse estudo de Lossky sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente é de 1944.
[6] I Coríntios 2: 12.
[7] Ed. Theotoki, XLIII e LXIX; Wensinck, Hom. LXII, pg. 289 e Hom. LXVII, pg. 316ss.
[8] Homilia Pascal de São João Crisóstomo, P.G., t. 59, col. 721-724 (spuria).

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