Em nossa introdução, insistimos sobre a ligação íntima, indissolúvel,
entre a teologia e a mística, entre a tradição doutrinal e a espiritualidade.
Não podemos interpretar a espiritualidade de outra forma que não dogmática,
sendo os dogmas sua expressão exterior, o único testemunho objetivo de uma
experiência afirmada pela Igreja. As experiências pessoais e a experiência
comum da Igreja são idênticas, em virtude da catolicidade da tradição cristã.
Ora, a tradição não é apenas o conjunto dos dogmas, das instituições sagradas e
dos ritos conservados pela Igreja, mas, antes de tudo, ela é o que se expressa
nessas determinações exteriores, uma tradição viva, a revelação incessante do
Espírito Santo na Igreja, a vida da qual cada um de seus membros pode
participar segundo sua medida. Estar na tradição significa ter sua parte na
experiência dos mistérios revelados à Igreja. A tradição doutrinal – marcos
fixados pela Igreja sobre o caminho do conhecimento de Deus e da tradição
mística – e a experiência adquirida dos mistérios da fé, não podem ser
separados ou opostos: não se compreende os dogmas fora da experiência, e não
existe a plenitude da experiência fora do verdadeiro ensinamento. É por isso
que, nessas páginas, quisemos apresentar a tradição da Igreja do Oriente como
uma teologia mística, em que doutrina e experiência se condicionam
reciprocamente.
Examinamos sucessivamente os elementos fundamentais da teologia
ortodoxa, sem jamais perder de vista o objetivo final, o da união com Deus.
Orientada para esse fim, invariavelmente soteriológico em sua intenção, essa
tradição doutrinal nos aparece como sendo muito homogênea, apesar da riqueza de
suas experiências, apesar da diversidade das culturas e das épocas que ela
abarca. Trata-se de uma única família espiritual na qual reconhecemos
facilmente o parentesco, embora seus membros estejam afastados uns dos outros
no tempo e no espeço. Para dar testemunho da mesma espiritualidade, pudemos nos
referir, no decurso desses estudos, a Dionísio o Areopagita e a Gregório
Palamas, a Macário do Egito e a Serafim de Sarov, a Gregório de Nissa e a
Filarete de Moscou, a Máximo o Confessor e aos teólogos russos modernos, sem
nunca ter a impressão de uma mudança de clima espiritual ao passarmos de uma
época para outra. É porque a Igreja na qual as pessoas humanas realizam sua
vocação, onde se realiza sua união com Deus, é sempre a mesma, embora sua
“economia” em relação ao mundo exterior deva mudar segundo as épocas ou os
meios diferentes nos quais a Igreja cumpre sua missão. Os Padres e os Doutores
que tiveram que defender e formular, no decurso de sua história, os diferentes
dogmas, não pertenciam menos a uma só e mesma tradição; eles foram o testemunho
de uma mesma experiência. Essa tradição permanece comum ao Oriente e ao
Ocidente, na medida em que a Igreja dá seu testemunho claro às verdades que se
referem à Encarnação. Mas os dogmas mais interiores por assim dizer, os mais
misteriosos, os que dizem respeito ao Pentecostes, os ensinamentos sobre o
Espírito Santo, sobre a graça, sobre a Igreja, já não são comuns à Igreja de
Roma e às Igrejas do Oriente. Duas tradições separadas se opõem uma à outra.
Mesmo aquilo que foi comum às duas até um determinado momento recebe
retrospectivamente uma ênfase diferente, aparece presentemente sob outra luz,
como realidades espirituais que pertencem a duas experiências distintas.
Doravante, São Basílio ou Santo Agostinho serão interpretados diferentemente,
segundo sejam considerados dentro da tradição católica romana ou ortodoxa. Isso
é inevitável, pois não se pode admitir a autoridade de um autor eclesiástico,
senão no espírito da tradição que o reclama para si. Em nossa exposição,
tentamos colocar em relevo os caracteres próprios à tradição da Igreja
ortodoxa, inclinando-nos exclusivamente sobre os testemunhos dos Padres
orientais, a fim de evitar toda confusão ou mal-entendido possíveis.
***
Pudemos constatar em muitas ocasiões, no decurso de nossos estudos
sobre a teologia mística da Igreja do Oriente, a atitude apofática própria a
cada pensamento religioso. Como vimos, as negações que assinalam a incognoscibilidade
divina não são proibições de conhecer; longe de ser uma limitação, o apofatismo
permite ultrapassar todos os conceitos, todo o domínio da especulação
filosófica. É uma tendência a uma plenitude sempre maior, que transforma o
conhecimento em ignorância, a teologia dos conceitos em contemplação, os dogmas
em experiência dos mistérios inefáveis. É também uma teologia existencial que
engaja todo o ser, colocando-o sobre a via da união, obrigando-o a mudar, a
transformar sua natureza para chegar à verdadeira “gnose”, que é a contemplação
da Santa trindade. Ora, a “mudança do espírito”, a metanoia, significa arrependimento. A via apofática da teologia
oriental é o arrependimento da pessoa diante da face do Deus vivo. É a mudança
incessante do ser que tende para sua plenitude, para a união com Deus que se
efetua pela graça divina e a liberdade humana. Mas a plenitude da divindade, a
realização última para a qual tendem as pessoas criadas, se abre no Espírito
Santo. É Ele o Mistagogo[1]
da via apofática cujas negações assinalam a presença do Inominável, do
Ilimitado, da Plenitude absoluta. É a tradição secreta na tradição manifestada
a todos, pregada sobre os telhados. É o mistério que permanece oculto nos
ensinamentos da Igreja, ao mesmo tempo em que lhe confere um caráter de
certeza, de evidência interior, de vida, de calor, de luz, próprias à verdade
cristã. Sem Ele os dogmas seriam verdades abstratas, autoridades exteriores
impostas desde fora a uma fé cega, razões contrárias à razão, recebidas por obediência
e a seguir adaptadas ao nosso modo de entendimento, em lugar de serem mistérios
revelados, princípios de um conhecimento novo que se abrem em nós e adaptam
nossa natureza à contemplação das realidades que ultrapassam todo entendimento
humano. A atitude apofática, na qual podemos ver o caráter básico de todo o
pensamento teológico da tradição oriental, é um testemunho incessante prestado
ao Espírito Santo, que supre todas as insuficiências, que permite ultrapassar
todas as limitações, que confere ao conhecimento do Incognoscível a plenitude
da experiência, que transformas as trevas divinas em Luz na qual nós comungamos
com Deus.
***
Se o Deus incognoscível se revela como a Santa Trindade, se sua
incognoscibilidade aparece como o mistério das Três Pessoas e da Natureza una,
é porque o Espírito Santo abre à nossa contemplação a plenitude do Ser divino.
É por isso que, no rito oriental, o dia de Pentecostes é chamado de festa da
Trindade. É a estabilidade absoluta, termo de toda contemplação, de toda elevação
e, ao mesmo tempo, princípio de toda teologia, verdade primeira, dado inicial a
partir do qual todo pensamento, todo ser recebe seu começo. São Gregório de
Nazianze, Evagro o Pôntico, São Máximo o Confessor e outros Padres identificam
o conhecimento perfeito da Trindade com o Reino de Deus, perfeição última para
a qual são chamados os seres criados. A teologia mística da Igreja do Oriente
sempre irá se afirmar como triadocêntrica. O conhecimento de Deus será para ela
um conhecimento da Trindade; a união mística, uma unidade de vida com as Três
Pessoas divinas. A antinomia do dogma trinitário, a identidade misteriosa da
Mônada-Tríade, será ciosamente salvaguardada no espírito de apofatismo oriental
que se oporá à fórmula ocidental da processão ab utroque[2],
para não colocar a ênfase sobre a unidade de natureza em detrimento da
plenitude pessoal das “Três Santidades reunidas em uma só Dominação e Divindade[3]”.
A monarquia do Pai será sempre afirmada – fonte das três pessoas, nas quais
existe a riqueza infinita da natureza una.
***
Tendendo sempre a conceber uma plenitude maior, a ultrapassar todas as
limitações conceituais que determinariam racionalmente o Ser divino, a teologia
oriental se recusa a emprestar à natureza divina o caráter de uma essência fechada
em si mesma. Deus, essência una em três pessoas, é mais do que uma essência:
Ele transborda Sua essência, se manifesta fora dela, se comunica ao mesmo tempo
em que é incomunicável por natureza. Essas processões da divindade fora da
essência, esses transbordamentos da plenitude divina são as energias, o modo de
existência próprio a Deus na medida em que Ele derrama a plenitude de Sua
divindade pelo Espírito Santo sobre todos aqueles que são capazes de a receber.
É por isso que o cântico do Pentecostes chama o Espírito Santo de “rio de
divindade que escoa do Pai para o Filho”.
***
A mesma aspiração à plenitude se manifesta nas doutrinas relativas à
criação. Se a existência do mundo não possui nenhum caráter de necessidade, se
a criação é contingente, é justamente nessa liberdade absoluta do querer divino
que o universo criado encontra sua perfeição. Pois Deus criou do nada um objeto
absolutamente novo, um cosmo que não é uma cópia imperfeita de Deus, mas uma
obra desejada, “excogitada” pelo “conselho divino”. Com efeito, na teologia
oriental, as ideias divinas, como vimos, se apresentam sob o aspecto dinâmico
das forças, das vontades, das palavras criadoras. Elas determinam os seres
criados como suas causas exteriores, mas, ao mesmo tempo, elas os chamam à
perfeição ao “ser perfeito” em união com Deus. Assim, o universo criado aparece
como uma realidade dinâmica, tendendo a uma plenitude futura, sempre presenta
para Deus. O fundamento inquebrantável do mundo criado do nada reside em sua
realização, que é o termo de seu devir. Ora, Aquele que realiza, que confere a
plenitude a todo ser criado, é o Espírito Santo. Considerado em si, o ser
criado será sempre uma “implenitude”; considerado no Espírito Santo, ele
aparecerá como uma plenitude da criatura deificada. No curso de sua história, o
mundo criado será colocado entre esses dois termos, sem que jamais se possa
conceber a “natureza pura” e a graça como duas realidades justapostas que se
acrescentariam uma à outra. A tradição da Igreja do Oriente conhece a criatura
que tende para a deificação, ultrapassando a si mesma continuamente na graça;
ela conhece também a criatura decaída, que se separa de Deus para entrar num
novo plano existencial, o do pecado e da morte; mas ela evitará atribuir uma
perfeição estática à natureza criada considerada em si mesma. Com efeito, isso
equivaleria a atribuir uma plenitude limitada, uma suficiência natural aos
seres que foram criados para encontrar sua plenitude na união com Deus.
***
Na antropologia e no ascetismo que dela decorre, a limitação que deve
ser ultrapassada é a do indivíduo, do ser particular, resultado de uma confusão
entre a pessoa e a natureza. A plenitude da natureza exige a unidade perfeita
da humanidade, um corpo único que se realiza na Igreja; a plenitude virtual das
pessoas se exprime em sua liberdade em relação a toda qualificação natural, a
todo caráter individual, liberdade que faz de cada um dentre eles um ser único,
que não tem símile, uma multiplicidade de hipóstases humanas que possuem uma só
natureza. Na unidade da natureza comum, as pessoas não são partes, mas cada uma
é um todo que encontra a realização de sua plenitude na união com Deus. A
pessoa, imagem indestrutível de Deus, tende sempre para uma certa plenitude,
embora às vezes a busque fora de Deus, pois ela conhece, deseja e age pela
natureza que o pecado obscureceu, uma natureza que já não possui a semelhança
divina. Assim, o mistério do Ser divino, que é a distinção entre a natureza uma
e as pessoas, está inscrito na humanidade chamada a participar da vida da Santa
Trindade. Os dois polos do ser humano, a natureza e a pessoa, encontram sua
plenitude, uma na unidade, outra na diversidade absoluta, pois cada pessoa se
une a Deus segundo seu modo, que lhe é próprio e único. A unidade da natureza
purificada é recriada e “recapitulada” por Cristo; a multiplicidade das pessoas
é confirmada pelo Espírito Santo que se comunica a cada membro do corpo de
Cristo. A nova plenitude, o novo plano existencial introduzido no universo
depois do Gólgota, da Ressurreição e do Pentecostes, se chama Igreja.
***
É unicamente na Igreja, pelos olhos da Igreja, que a espiritualidade
oriental verá a Cristo. Dito de outro modo, ela O conhecerá no Espírito Santo.
Cristo se apresentará a ela sempre na plenitude de Sua divindade, glorificado e
triunfante, mesmo em sua paixão, mesmo no sepulcro. A kenwsis será sempre substituída pelo brilho da divindade. Morto
e repousando no sepulcro, Ele desceu aos infernos como um vencedor e destruiu
para sempre o poder do inimigo. Ressuscitado e tendo subido ao céu, Ele não
pode ser conhecido pela Igreja sob outra forma que não a de uma pessoa da Santa
Trindade, assentando-se à direita do Pai depois de haver derrotado a morte. O
Cristo “histórico”, “Jesus de Nazaré”, tal como aparecia aos olhos dos
testemunhos estrangeiros, o Cristo exterior à Igreja é sempre ultrapassado na
plenitude da revelação concedida aos verdadeiros testemunhos, aos filhos da
Igreja iluminados pelo Espírito Santo. O culto da humanidade de Cristo é
estranho à tradição oriental, ou antes, essa humanidade deificada se reveste
aqui da mesma forma gloriosa que aquela que os discípulos viram sobre o Monte
Tabor, a humanidade do Filho que torna visível a divindade comum com o Pai e o
Espírito Santo. O caminho da imitação de Cristo jamais é praticado na vida
espiritual da Igreja do Oriente. Com efeito, ela pareceria ter aqui um certo
caráter de implenitude, ser uma atitude exterior em relação a Cristo. Para a
espiritualidade oriental, a única via que nos torna conformes a Cristo é a da
aquisição da graça conferida pelo Espírito Santo. Os santos da Igreja do
Oriente jamais tiveram estigmas, marcas exteriores que os tornaram semelhantes
ao Cristo sofredor alguns grandes santos e místicos do Ocidente. Mas, por outro
lado, frequentemente os santos orientais foram transfigurados pela lua interior
da graça incriada e apareceram resplendentes como Cristo no momento de Sua
Transfiguração.
***
A fonte dessa plenitude, que permite ultrapassar toda limitação rígida
da doutrina, a experiência e a vida da Igreja, a origem dessa riqueza e dessa
liberdade, é o Espírito Santo. Plenamente Pessoa, Ele jamais é considerado como
um “laço de amor” entre o Pai e o Filho, como uma função de unidade dentro da
Trindade, na qual não existe lugar para determinações funcionais. Ao confessar
a processão do Espírito Santo do Pai, Sua independência hipostática em relação
ao Filho, a tradição da Igreja Oriental afirma a plenitude pessoal da obra do
Paráclito que veio ao mundo. O Espírito Santo não constitui uma força unitiva
pela qual o Filho se imporia aos membros de Seu corpo místico. Se Ele dá
testemunho do Filho, é em sua qualidade de pessoa divina independente do Filho,
pessoa divina que comunica a cada hipóstase humana, a cada membro da Igreja,
uma nova plenitude na qual as pessoas criadas desabrocham e confessam livre e
espontaneamente a divindade de Cristo tornada evidente no Espírito. “Onde está
o Espírito de Deus, ali está a liberdade”, a verdadeira liberdade das pessoas
que não são membros cegos na unidade do corpo de Cristo, que não são apagadas
na união, mas que aí adquirem sua plenitude pessoal; cada uma se torna um todo
dentro da Igreja, pois o Espírito Santo desce separadamente sobre cada
hipóstase humana. Se o Filho empresta Sua hipóstase à natureza humana renovada,
se Ele se torna Chefe de um corpo novo, o Espírito Santo, vindo em nome de
Cristo, confere a cada membro desse corpo, a cada pessoa humana, a divindade.
Na kenwsis do Filho que desceu à terra,
a pessoa se manifestava claramente, mas a natureza permanecia dissimulada sob a
“figura de escravo”. No advento do Espírito Santo, a divindade se revela como
um Dom, enquanto que a pessoa do Doador permanece abscôndita. Ao se humilhar,
por assim dizer, ao se dissimular enquanto pessoa, o Espírito Santo adequa a
graça incriada às pessoas humanas. O homem se une a Deus, adaptando-se à
plenitude de ser que se abre nas profundezas de sua própria pessoa. Mediante os
esforços incessantes de uma via de ascensão, de cooperação com a vontade
divina, a natureza criada será cada vez mais modificada pela graça, até a
deificação final que se revelará plenamente no Reino de Deus.
***
A mesma plenitude do Espírito Santo, o mesmo impulso para a realização
final, ultrapassando tudo o que se estabiliza e de limita, de dá a conhecer na
eclesiologia oriental. A Igreja histórica, concreta, bem delimitada no tempo e
no espaço, reúne em si a terra e o céu, os homens e os anjos, os vivos e os mortos,
os pecadores e os santos, o criado e o incriado. Como reconhecer, debaixo de
seus defeitos e enfermidades exteriores de sua existência histórica a Esposa
gloriosa de Cristo, “sem mancha, nem ruga, nem nada semelhante[4]”?
Como poderemos escapar à tentação, à dúvida, se o Espírito Santo não suprisse
constantemente as falhas humanas, se as limitações históricas não fossem sempre
ultrapassadas, a implenitude sempre transformada em plenitude, como a água foi
transformada em vinho nas bodas de Caná?
Quantas pessoas não passaram ao largo da Igreja, sem reconhecer a
irradiação de sua glória eterna sob o aspecto da humilhação e do rebaixamento!
Mas quantas reconheceram o Filho de Deus no “homem das dores”? É preciso ter
olhos para ver e os sentidos abertos para o Espírito Santo para reconhecer a
plenitude onde o olho exterior não percebe senão limitações e deficiências. Não
temos necessidade de “grandes épocas” para poder afirmar essa plenitude de vida
divina sempre presente na Igreja. No tempo dos apóstolos, na época das
perseguições, nos séculos dos grandes concílios, sempre houve “espíritos
leigos” que permaneceram cegos diante da evidência das manifestações do
Espírito de Deus na Igreja. Podemos citar um exemplo mais recente: a Igreja
russa produziu, há poucas décadas[5],
milhares de mártires e de confessores que nada ficam a dever àqueles dos
primeiros séculos. As abundantes efusões da graça, os milagres mais espantosos
tiveram lugar ali, onde a fé era posta à prova; os ícones de renovavam diante
dos olhos dos espectadores maravilhados, as cúpulas das igrejas resplandeciam
com uma luz que não era desse mundo. E, maior milagre de todos, a Igreja soube
triunfar sobre todas as dificuldades e sair das provações renovada e
reafirmada. No entanto, tudo isso quase não foi notado; o lado glorioso de tudo
o que se passava na Rússia permaneceu quase sem interesse para a maioria:
protestou-se sobretudo contra as perseguições, lamentou-se que a Igreja russa
não tenha se comportado como uma potência temporal e política; perdoou-se sua
“fraqueza humana”. O Cristo crucificado e sepultado não teria sido julgado
diferentemente por aqueles que são cegos para a luz da Ressurreição. Para saber
reconhecer a vitória sob as aparências do fracasso, a força de Deus sendo
cumprida na enfermidade, a verdadeira Igreja na realidade histórica, é preciso
receber, segundo as palavras de São Paulo, “não o espírito desse mundo, mas o
Espírito que vem de Deus, a fim de que possamos conhecer as coisas que Deus nos
deu por Sua graça[6]”.
***
O apofatismo próprio à teologia mística da Igreja do Oriente nos
aparece finalmente como um testemunho prestado à plenitude do Espírito Santo,
Pessoa que permanece desconhecida, embora preencha todas as coisas fazendo-as
tender para sua realização final. Tudo se torna plenitude no Espírito Santo, o
mundo que foi criado para ser deificado, as pessoas humanas chamadas à união
com Deus, a Igreja na qual essa união se realiza; enfim, Deus se dá a conhecer
pelo Espírito Santo na plenitude de seu Ser, que é a Santa Trindade. A fé, que
é um sentido apofático dessa plenitude, não pode ficar cega nas pessoas que se
encaminham à união com Deus. O Espírito Santo se torna nelas o próprio
princípio de sua consciência que se abre mais e mais à percepção das realidades
divinas. A vida espiritual, segundo os autores ascéticos orientais, jamais é
inconsciente, como vimos nos dois últimos capítulos. Essa consciência da graça,
de Deus presente em nós, se chama habitualmente “gnose”, ou conhecimento
espiritual (gnwsis pneumatikh), que Santo Isaac o Sírio definiu
como “o sentido da vida eterna”, ou “o sentido das realidades secretas[7]”.
A gnose afasta toda limitação da consciência, toda agnoia, cujo termo extremo é o inferno tenebroso. A perfeição da
gnose é a contemplação da luz divina da Santa Trindade, consciência plena que é
a parúsia, o julgamento e a entrada na vida eterna, que se realiza, segundo São
Simeão o Novo Teólogo, desde aqui em baixo, antes da morte e da ressurreição,
nos santos que vivem em comunhão constante com Deus.
***
A consciência da plenitude do Espírito Santo dada a cada membro da
Igreja segundo a medida da elevação pessoal de cada qual faz com que
desapareçam as trevas da morte, o medo do Juízo, a garganta do inferno,
dirigindo o olhar unicamente para o Senhor que vem em sua glória. Essa alegria
da ressurreição e da vida eterna faz da noite pascal um “festim da fé”, do qual
cada um participa, mesmo que seja em pequena medida e por alguns momentos, da
plenitude do “oitavo dia” que não terá fim. Uma homilia atribuída a São João Crisóstomo[8],
lida ano após ano durante as matinas da Páscoa, expressa perfeitamente o
sentido dessa plenitude escatológica à qual aspira a cristandade oriental. Não poderíamos
encontrar palavras mais eloquentes para terminar nossos estudos sobre a
teologia mística da Igreja do Oriente.
Que aqueles que são piedosos,
aqueles que amam a Deus, venham se deleitar com essa festa bela e luminosa.
Que o servidor fiel entre com
alegria no regozijo de seu Mestre.
Que aquele que suportou as
fadigas do jejum receba agora sua paga.
Que aqueles que trabalhou desde
a primeira hora receba hoje seu justo salário; que o que chegou na terceira hora
se alegre dando graças; que o que chegou na sexta hora não tenha nenhuma
dúvida, pois ele nada perderá; que o que se demorou até a nona hora se aproxime
sem hesitação ou temor; e o que não apareceu senão na décima-primeira hora não
tema pelo seu atraso.
Pois o Senhor é generoso, Ele
recebe o último como o primeiro, Ele admite ao repouso o trabalhador da décima-primeira
hora, tanto quanto o que trabalhou desde a primeira hora; Ele concede graça ao
último e cuida do primeiro; Ele dá a este e concede àquele; Ele recebe a obra e
acolhe a intenção; Ele honra o trabalho e louva o bom propósito.
Entrem, portanto, na alegria de
seu Mestre: recebam a recompensa, os primeiros como os segundos; ricos e
pobres, rejubilem-se juntos; os abstinentes, os preguiçosos, glorifiquem esse
dia; os que jejuaram, os que não jejuaram, regozijem-se todos hoje.
O festim está pronto; participem
dele todos. O boi gordo está servido; que ninguém saia faminto.
Que todos se deleitem no banquete
da fé; recebam todos as riquezas da bondade,
Que ninguém se lamente de sua
pobreza, pois o reino comum apareceu.
Que ninguém chore por suas faltas,
pois o perdão resplendeu do Sepulcro.
Que ninguém tema a morte, pois a
morte do Senhor nos libertou.
Ele extinguiu a morte, Aquele
que havia sido feito seu prisioneiro.
Ele aprisionou o inferno, Aquele
que desceu até lá.
Ele se amargurou, quando Aquele o
fez provar de Sua carne.
Sabendo de tudo isso
previamente, Isaías clamou:
O inferno se amargurou, disse
ele, quando O encontrou sob a terra. Ele se amargurou, porque foi anulado; ele
se amargurou, porque foi humilhado; ele se amargurou, porque foi levado à
morte; ele se amargurou, porque foi arrasado; ele se amargurou, porque foi
acorrentado.
O inferno se apoderou de um
corpo, e se viu diante de Deus; ele agarrou a terra, e encontrou o céu; ele
capturou o visível, e caiu diante do que é invisível.
Onde está seu aguilhão, ó morte?
Inferno, onde está sua vitória? Cristo ressuscitou e você foi arrasado.
Cristo ressuscitou, e os
demônios tombaram.
Cristo ressuscitou, e os anjos
se regozijaram.
Cristo ressuscitou, e a vida
triunfou.
Cristo ressuscitou, e já não
existem mortos nos sepulcros.
Pois Cristo se tornou as
primícias daqueles que dormem, ressuscitando dos mortos.
A Ele a glória e a honra pelos
séculos dos séculos. Amém.
*******
[1]
Aquele que conduz ou inicia nos mistérios.
[2]
Modo no qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.
[3]
São Gregório de Nazianze, In Theophaniam,
Or. XXXVII, 9, P.G., t. 36, col. 320BC.
[4]
Efésios 5: 27.
[5] A
primeira edição desse estudo de Lossky sobre a Teologia Mística da Igreja do
Oriente é de 1944.
[6] I
Coríntios 2: 12.
[7]
Ed. Theotoki, XLIII e LXIX; Wensinck, Hom.
LXII, pg. 289 e Hom. LXVII, pg.
316ss.
[8] Homilia Pascal de São João Crisóstomo,
P.G., t. 59, col. 721-724 (spuria).
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