sábado, 3 de outubro de 2020

Nikolai Berdiaev - Espírito e Liberdade - Capítulo X: A Igreja e o mundo

 

 

I

 

 

É a Igreja em si uma realidade ontológica? Os catecismos não nos fornecem nenhum ensinamento capaz de explicar sua natureza. A ontologia da Igreja é ainda muito pouco divulgada. Essa é uma tarefa que cabe ao futuro. A essência da Igreja ainda não se encontra suficientemente real e atual, para permitir a elaboração de sua ontologia. De resto, será possível elaborar uma definição da natureza da Igreja em si?

 

 Vista desde fora, a Igreja não tem como ser inteiramente compreendida; não é possível defini-la racionalmente, torná-la acessível a um conceito. É preciso viver na Igreja, pois ela não é perceptível senão pela experiência. Ela não se impõe a nós como uma realidade exterior. O que podemos alcançar exteriormente não constitui sua natureza intrínseca. A Igreja não é um templo construído com pedras; ela não é uma comunidade de crentes, nem uma paróquia composta por homens; tampouco ela é uma instituição regulamentada por normas jurídicas, mesmo que tais elementos façam parte de sua existência. Ela não possui limites e sinais exteriores, que determinariam sua natureza interior e que poderiam diferenciá-la do restante da existência. A Igreja possui um elemento físico, psíquico e social, mas não é por meio desses elementos que podemos definir sua natureza. A Igreja não é tangível, ela não pertence ao mundo das coisas visíveis, ela não é uma realidade empírica análoga à dos minerais, das plantas e dos animais. Ela pertence ao mundo das coisas invisíveis, que não podem ser demonstradas senão pela fé; ela é uma realidade espiritual interior.

 

É verdade que a Igreja existe para todos como uma realidade empírica; é possível definir a atitude desses a seu respeito: seus inimigos, aos que não creem nela, lutam contra ela como se fosse contra uma realidade. Mas eles reconhecem essa realidade da Igreja num sentido completamente diferente daquele que lhe atribuem os que creem e vivem nela. Pois do exterior a percebemos de modo tão tangível quanto as pedras, como um rito, uma instituição, como homens que ocupam cargos dentro de uma hierarquia. Mas a realidade autêntica da Igreja, enquanto ser, é íntima, mística; ela reside para além das pedras, da hierarquia, dos ritos, dos concílios, etc. Sua natureza é espiritual, pois ela própria pertence ao mundo espiritual, e não ao mundo natural.

 

Isso não quer dizer que ela jamais se encarne no mundo natural e histórico, que ela permaneça invisível. Eu percebo a Igreja através de minha experiência; ora, essa experiência começa quando eu consigo superar a limitação, o isolamento de meu mundo psíquico, a ruptura e a divisão, quando eu penetro na unidade do grande mundo espiritual, triunfando sobre o tempo e o espaço. Esse mundo e a experiência espiritual são supraindividuais e supra-psíquicos; eles pertencem virtualmente à Igreja. A vida espiritual é metafisicamente social e não individualista, e a Igreja possui uma natureza espiritualmente social no sentido profundo do termo. A experiência da Igreja é ecumênica, pois ecumenismo é uma de suas qualidades ontológicas. Nessa experiência eu não estou só, mas estou com todos os meus irmãos em espírito, qualquer que sejam o local e a época em que eles vivam ou tenham vivido.

 

Eu mesmo sou limitado em meus conhecimentos; minha experiência é restrita, e sou incapaz de abarcar a plenitude e a diversidade da existência; eu nunca cheguei a ter encontros espirituais determinantes em número suficiente. Eu escrevi essa obra, mas nesse livro não fui capaz de alcançar mais do que raios parciais da luz, não entrevi senão alguns poucos aspectos da verdade. mas eu pude me exteriorizar, eu pude, metafisicamente falando, ultrapassar meus próprios limites, eu pude comungar com a experiências de seres próximos em espírito, com a experiência suprapessoal. Na experiência religiosa da Igreja, no encontro com Cristo, o homem não é solitário, ele não está abandonado à sua limitação, mas está com todos os que tiveram essa mesma experiência, com todo o universo cristão, com os apóstolos, com os santos, como todos os irmãos em Cristo, mortos ou vivos.

 

Não é apenas a geração dos vivos que pertence à Igreja; todas as gerações passadas fazem parte dela também, todas estão vivas na Igreja, e eu estou com todas elas numa união real. Esse é um dos traços essenciais da Igreja; nela, no espírito ecumênico, vibra um coração único; todos os homens encontram aí o mesmo e único Cristo, todos recebem Dele uma força única e unificadora. Cristo está em nós, e nós estamos em Cristo. Formamos a geração única de Cristo, a nova geração humana espiritual, aquela do Novo Adão.

 

Essa nova geração possui a inteligência de Cristo; por meio dessa inteligência é que aprendemos aquilo que não poderíamos conhecer por nossa própria inteligência. O homem que vive na Igreja penetra numa nova ordem de existência, sua natureza sofre uma modificação e se torna mais espiritual. Na Igreja, na nova geração, age não somente a inteligência de Cristo, como  também o amor de Cristo, Sua liberdade, ignorada pelo mundo natural, aquele da geração do velho Adão. A Igreja constitui a ordem do amor e da liberdade, e sintetiza sua união. No mundo natural, o amor e a liberdade estão desunidos; a liberdade recusa a unidade, e se afirma na desunião; a união e a unidade se revestem das formas da obrigação e da arbitrariedade. Mas a ordem da Igreja, seu mundo espiritual, ignora a obrigação; e ignora também a liberdade que se ergue contra a unidade e contra o amor.

 

A Igreja, ao se atualizar e se encarnar no mundo natural e histórico, pode se revestir das formas que são inerentes a esse mundo, e emprestar dele o princípio da obrigação e da violência. Mas esses elementos são estranhos à sua natureza interior, à sua essência. A Igreja é o corpo místico de Cristo; pertencer a ela equivale a ser membro do corpo de Cristo, tornar-se uma célula desse corpo místico, um órgão desse organismo místico. Pertencendo ao corpo místico de Cristo, dele recebemos Sua inteligência, Seu amor, Sua liberdade, coisas que não possuíamos nem conhecíamos no mundo natural, em nosso isolamento psíquico.

 

A vida na Igreja repousa sobre a santa tradição, sobre a sucessão. É pela tradição que penetramos num só e mesmo mundo espiritual, na vida da nova geração. A tradição constitui a experiência suprapessoal, ecumênica, a vida espiritual criativa transmitida de geração em geração, que une os vivos e os mortos, que consiste na vitória sobre a morte. Essa reina sobre o mundo, mas, na Igreja, ela é derrotada. A tradição é a memória que ressuscita, a vitória sobre a corruptibilidade, a afirmação da vida eterna. A tradição da Igreja não consiste numa autoridade exterior e imposta. Ela é uma vitória real, intrínseca, obtida sobre a ruptura do tempo; ela é uma percepção da eternidade no meio da fuga mortal do tempo, uma união entre o passado, o presente e o futuro numa única eternidade. A vida na tradição da Igreja é uma vida na eternidade; ela é a percepção e o reconhecimento das realidades interiores. O passado não pode ser conhecido desde fora, por fragmentos de monumentos conservados, submetido à crítica analítica da história, mas desde dentro, pela memória sagrada, pelos encontros interiores, pela vida espiritual ecumênica, que triunfa sobre as rupturas e as “extraposições”. A tradição não consiste na autoridade, mas na vida criativa do espírito. A autoridade é uma categoria que não é aplicável mais do que ao mundo natural, ao mundo da divisão e da aversão. No mundo espiritual, ela nada significa, ou antes, ela implica uma humildade e uma submissão que procedem da liberdade. A tradição autoritária não passa de uma tradução da linguagem espiritual para a linguagem do mundo natural e histórico, de uma adaptação para a velha geração.

 

A Igreja não é uma realidade que existe paralelamente a outras; ela não é um elemento no todo histórico e universal; ela não é uma realidade objetiva dividida. A Igreja é tudo, ela constitui toda a plenitude do ser, da vida do mundo e da humanidade, mas num estado de cristianização. Ela possui uma natureza cósmica e o esquecimento dessa natureza é o indício de uma decadência de sua consciência. Uma concepção da Igreja que a visse como um instituto médico, ao qual as almas acudiriam para receber um tratamento, seria uma concepção lamentável. Aqueles que não enxergam na Igreja senão uma instituição, negam sua natureza cósmica. Na Igreja cresce a erva e desabrocham as flores, a Igreja é o cosmo cristianizado. Cristo penetra no cosmo, aqui ele foi crucificado e ressuscitou, e a partir daí tudo se modificou e se renovou. Todo o cosmo seguiu Seu caminho de crucificação e de ressurreição.

 

O cosmo cristianizado, no qual o caos é derrotado, constitui a beleza; é por isso que a Igreja pode ser definida como sendo a beleza autêntica da existência. E toda aquisição de beleza no mundo constitui, num sentido profundo, uma cristianização. A beleza é o objetivo da vida universal: ela é a deificação do mundo. A beleza salvará o mundo, como disse Dostoievsky. A obtenção da beleza constitui a salvação do mundo. Uma concepção integral da Igreja é uma concepção na qual esse é encarada como o cosmo cristianizado, como a beleza. Somente uma concepção diferencial a transforma numa instituição.

 

Mas a Igreja, até a realização do Reino de Deus, também leva a uma existência dividida. Ela deve se elevar acima dos elementos não iluminados do mundo, e não pode se confundir com eles. A Igreja é, antes de tudo, invisível, interior, mística. Ela pertence à ordem espiritual e não à ordem natura. Com essa qualidade, a Igreja se encontra ainda em estado de potência; do ponto de vista místico, ela ainda está incompletamente realizada. Na filosofia de Aristóteles e de São Tomás de Aquino, a potência, considerada em relação ao ato, sempre se identifica com a imperfeição, a matéria, a existência inacabada; a verdadeira e perfeita existência é aquela na qual tudo se encontra em ato. Em Deus, nada existe em potência, tudo está em ato puro. Por isso a consciência católica e tomista é obrigada a reconhecer, como sendo a existência autêntica e perfeita da Igreja, sua atualização, sua encarnação histórica. A Igreja mística parece não existir, porque, estando em estado de potência, ela consiste numa imperfeição, se identifica com a matéria, a existência inacabada. Aristóteles favorece a absolutização das encarnações históricas, a sujeição do infinito ao finito.

 

Mas é possível outra concepção da potência. Ela foi estabelecida pela mística e a filosofia alemãs, em especial por Boehma e Schelling. Nela, a virtualidade é considerada como a profundidade da existência, como sua origem última e misteriosa; presume-se que ela seja sempre mais rica do que aquilo que é atualizado e manifestado. Essa concepção admite a Deus em potência; Ele não está inteiro em ato. Existe também um potencial na Igreja. A Igreja virtual é infinitamente mais ampla do que seus elementos atualizados. A origem autêntica da Igreja é mística; ela está mergulhada no insondável e no infinito. A Igreja histórica não esgota toda a plenitude da Igreja mística e virtual. É somente a partir dessa concepção da potência que se revela a insondabilidade e a infinitude da existência, que podem ser superados os limites opressivos do finito.

 

O Cristianismo consistiu num impulso para além de seus limites, uma descoberta do infinito e do insondável. Na consciência cristã, a matéria predomina sobre a forma, e é nisso que o Cristianismo se distingue essencialmente do Helenismo. A Escolástica se esforça por impor a forma helênica à matéria cristã da vida, ou seja, ela pretende limitar a potência e a criação infinitas; ela se recusa a reconhecer na existência autêntica outra coisa que não seja o ato, que não seja a matéria definitivamente submetida à forma.

 

O Cristianismo do Oriente não conheceu o renascimento de Aristóteles, nem o domínio da forma helênica. Outras perspectivas se abriram para ele, devido à tradição platônica, que sempre existiu no Oriente. Mas mesmo na Ortodoxia, a consciência da Igreja permanece oprimida pelas limitações da forma que se atualiza, e assim também ela teme o estado de potência; sempre existiu no Oriente um conservadorismo inerte. Se compreendermos a relação entre a potência e o ato de forma diferente de Aristóteles ou São Tomás de Aquino, nem por isso estaremos obrigados a rejeitar a necessidade de atualização, de encarnação; o que fazemos é expandir o domínio das atualizações possíveis, admitindo que a esfera da atualidade não esgota a plenitude da existência.

 

A Igreja não é apenas mística e em potência; ela também é visível e atualizada. A Igreja se encarna historicamente, assim como Cristo se encarnou. Mas sua existência interior não pode ser reduzida à sua perceptibilidade histórica e à sua encarnação. A Igreja é visível na vida de Cristo, nas vidas dos santos, nos sacramentos, na hierarquia, nas suas comunidades, nos concílios, etc. A atualização, a forma, ainda que constitua um benefício positivo, um enriquecimento, uma conquista, não implica a negação da infinitude insondável; ela não afirma que o exotérico contenha mais do que o esotérico. O caminho seguindo por Boehme não era suficientemente ortodoxo, e sua doutrina era confusa, mas em todo caso ele era mais cristão do que Aristóteles. O mundo cristão temia o infinito e se esforçava por se proteger contra ele. no mundo cristão o infinito se revelou precisamente, assim como a matéria da vida. Boehme estava inteiramente mergulhado nessa infinitude que desabrochou desde a revelação cristã.

 

Na consciência da Igreja dois princípios se enfrentam: o antigo princípio helênico, aristotélico, da forma que limita, da atualidade acabada, e o princípio cristão, místico, sempre acessível a novas atualizações criativas. Não devemos esquecer que a atualização a própria encarnação da Igreja na história provém de reações da natureza humana, dos limites da consciência móvel e dinâmica, da orientação espiritual do homem. a Igreja visível não é mais do que uma atualização parcial da Igreja invisível, ela não passa de uma forma incompleta de sua matéria, da vida da humanidade e do mundo. A Igreja não se manifesta e não se revela em toda a plenitude de seu ser, ela não realiza todas as possibilidades que contém em si mesma. Sua atualização, sua encarnação e sua eclosão completas representarão a transfiguração do cosmo, o advento de um novo mundo, a instauração do Reino de Deus. O interior encerra riquezas muito maiores do que o exterior.

 

Os católicos fazem uma distinção entre a alma e o corpo da Igreja. A alma é mais vasta do que o corpo. Todos aqueles cuja vontade está orientada para Deus e o divino lhe pertencem, mesmo que sua consciência não seja cristã, mesmo que eles não tomem parte da vida encarnada e visível da Igreja. Pertencem ao corpo da Igreja aqueles que participam dos seus sacramentos e que estão subordinados à sua hierarquia. Essa doutrina é uma correção trazida à concepção católica da Igreja, que condena a maioria da humanidade à danação. Mas essa doutrina deve levar os homens a reconhecer que o círculo da Igreja em potência é mais amplo e mais rico do que o círculo da Igreja atualizada.

 

 Existem dois pontos de vista a esse respeito: ou bem reconhecemos que o absoluto e o infinito penetram n relativo e no finito, santificando-o criando um círculo sagrado e fechado, ou bem admitimos que o finito e o relativo aspiram ao absoluto e ao infinito, gerando um movimento criador. A primeira opinião é exclusivamente conservadora e sacramental, a segunda é criativa e profética. A plenitude do Cristianismo contém a ambas em si.

 

A encarnação é a simbolização: a Igreja visível é a simbolização da Igreja invisível; a hierarquia terrestre é a mesma que a celeste. Mas o símbolo pressupõe necessariamente a infinitude que se situa para além dele. A Igreja, atualizada e encarnada na história, não constitui toda sua profundidade insondável e sua plenitude; pois sua infinitude reside além disso. É impossível encarcerar o infinito no finito. É pelo conhecimento dessa verdade que o realismo simbólico se distingue do realismo ingênuo.

 

A Igreja é o corpo de Cristo, que abarca todo o infinito da vida cósmica, pois ele próprio é cósmico. Os sacramentos e os dogmas da Igreja são a expressão visível da vida misteriosa do corpo cósmico de Cristo. Entretanto, os dogmas, como já assinalamos antes, não passam de fórmulas simbólicas das verdades da experiência espiritual, dos encontros essenciais do homem com Deus e com Cristo. Os sacramentos não são mais do que os pontos principais e visíveis nos quais se concentram os eventos teúrgicos, que se realizam na vida cósmica. Cristo, Filho de Deus, está eternamente crucificado no cosmo e seu sacrifício eucarístico é eternamente oferecido. A Igreja conduz para esses mistérios da vida divina, mas eles permanecem impenetráveis ao seu racionalismo e ao seu espírito jurídico. A Igreja é bilateral por natureza; não é possível considerá-la do ponto de vista monofisita. Ela não tem somente uma origem divina, ela possui também uma origem cósmica, ela traz não apenas a assinatura de Deus, como também o selo do mundo. A Igreja é o Deus-mundo, o Deus-humanidade.

 

Na base cósmica e terrestre da Igreja devem repousar a pureza, a inocência, a castidades adquiridas na vida cósmica, no mundo. Se essa aquisição da pureza e da castidade não tivessem existido, então o nascimento, a encarnação de Deus, a vinda do Filho sobre a terra teria sido impossível. A força capaz de acolher em si a Deus, e capaz de introduzi-lo no mundo, não teria existido. A vinda de Deus não poderia resultar de uma imposição exterior exercida sobre o mundo; esse deveria abrir-se a Deus; era preciso que ele se encaminhasse para o nascimento e a encarnação do Filho, e que ele criasse uma natureza suficientemente pura e casta para receber a Deus nela. A Virgem Maria é precisamente essa natureza do mundo, sua deificação natural que constitui a base cósmica da Igreja. A Igreja não repousa apenas em Cristo, sobre a graça divina, mas também sobre a Virgem Maria, mãe de Deus, sobre a alma do cosmo que, tendo alcançado a pureza e a castidade, gerou no espírito, e não na natureza pecadora.

 

Na Virgem Maria o mundo e a humanidade atingem a deificação livre, não por uma ação especial da graça que os isentaria do pecado original, como ensina o dogma católico da Imaculada Concepção, mas pela livre sabedoria da própria criatura. Deus poderia tornar castos todos os homens, por um ato de sua vontade onipotente. Mas ele deseja a livre aquisição da castidade, da integridade da natureza humana, que não havia sido atingida de modo absoluto senão na Virgem Maria. Nela, o mundo e a humanidade responderam ao chamado divino. a Igreja possui uma natureza única e ecumênica, não apenas em seu elemento divino, como também em seu elemento cósmico e humano. A Virgem Maria é a alma cósmica feminina da humanidade.

 

A Igreja ecumênica não está inteiramente atualizada na Igreja visível e histórica; de outro modo, a pluralidade das igrejas e das confissões seria inexplicável. A Igreja universal permanece além de todas as divisões. Se, de um lado, a atualização da igreja na história constitui um processo de enriquecimento, a saber, de realização do papel universal e histórico que o Cristianismo deveria desempenhar, de outro ela implica um processo de diminuição, uma adaptação inevitável ao nível médio das massas populares. Na Igreja, a economia desempenha um papel preponderante. Todos os corpos históricos foram criados para servir aos interesses das coletividades, e por isso trazem em sai suas marcas. A religião no mundo é uma criação para a qual colaboram o povo e os doutores religiosos, os profetas. É por isso que a vida religiosa comporta ao mesmo tempo estratificações populares e estratificações espiritualmente aristocráticas.

 

A Igreja visível não pode existir apenas para uma minoria eleita; ela se dirige a toda humanidade e a todo o universo. Daí advém todo seu aspecto negativo, toda a tragédia contundente de seu destino, toda a sedução repulsiva de sua história. A Igreja deve descer aos baixios da vida universal, ela não pode permanecer nos cumes, como gostariam os gnósticos, os montanistas e os discípulos de diversas seitas.

 

O mundo humano, no qual a Igreja deve agir, está esmagado pelo naturalismo pagão, pela dissensão e pela limitação. A verdade ecumênica da Igreja, que age no mundo e na humanidade, se refrata em seu particularismo pagão e em sua limitação. A grande aberração histórica residiu no fato de que o homem muitas vezes tomou suas próprias limitações como sendo uma palavra divina, que ele deu um valor absoluto e sagrado à carne histórica. A Igreja é uma realidade ontológica, um organismo espiritual. Nesse ser real, que reside não apenas na terra, como também no céu, não somente no tempo, mas também na eternidade, estão agregadas duas naturezas: Deus e o mundo, Deus e a humanidade. Essa é a razão pela qual a Igreja, enquanto organismo e ser real, partilha do destino do mundo e da humanidade, sofre e se desenvolve. A Igreja pertence à ordem do amor e da liberdade, mas ela tem que agir no mundo natural da discórdia e da imposição. A Igreja pertence à ordem espiritual, mas está inserida na ordem natural, que ela é chamada a transfigurar.

 

Os sacramentos da Igreja constituem os protótipos da transfiguração de todo o universo. É somente pelos sacramentos, pela liturgia, pela eucaristia, que o povo comunga da profundeza da vida espiritual, os sacramentos se cumprem nos confins da vida cósmica; é lá que se produz o sacrifício de Cristo. Ele se efetua em cada fenômeno da vida, mas os sacramentos são visíveis e concentrados nos mistérios da Igreja, e aí eles se revelam a toda a humanidade. A religião popular é litúrgica e simbólica.

 

Eu não posso aderir à Igreja, colocando como condição não aceitar senão a Igreja celeste, ou a Igreja que tenha realizado a perfeição sobre a terra. Eu não posso acolher exteriormente a Igreja, eu só posso recebê-la interiormente. Por isso não podem existir condições contratuais entre ela e eu. Eu desejo um desenvolvimento criativo, e não posso admitir a estagnação, a imobilidade e a inércia; mas isso não pode ser objeto de uma convenção exterior com a Igreja. Somente uma concepção integral da Igreja, que a veja como o cosmo cristianizado, como Igreja celeste e eterna – e não unicamente como temporal e histórica – pode me libertar de sua opressão exterior e me impedir de exercer minha crítica a seu respeito. Entrar para a Igreja equivale a penetrar na ordem eterna e divina do mundo. Esse ato não implica uma ruptura com a terra e com a história, um abandono do mundo, mas antes uma participação em sua transfiguração.

 

A Igreja é dinâmica, ela constitui um processo criador; a detenção desse processo constitui uma fraqueza e um pecado humano. Na Igreja não existe apenas o princípio de Pedro, mas também o de Joao e o de Paulo. A tradição esotérica de João não morre jamais na Igreja; nela vive são somente o Evangelho temporal e histórico, como também o Evangelho eterno. Cristo ensinava o advento do Reino de Deus e nos chamava a buscá-lo acima de tudo; ele não instituiu desde logo uma Igreja histórica com sua organização terrestre. A comunidade cristã primitiva vivia numa atmosfera escatológica, na expectativa da Segunda Vinda de Cristo, do advento do Reino de Deus; a organização de uma igreja, no sentido histórico do termo, não lhe era necessária. A fundação da Igreja para a vida terrestre não se tornou indispensável senão quando surgiu a consciência do longo trajeto histórico que haveria ainda a percorrer, pois o momento da instauração do Reino de Deus ainda não havia chegado. Isso necessitou da elaboração de órgãos, tendo em vista uma existência histórica. Os dons carismáticos se enfraqueceram, e cânones foram promulgados, segundo os quais reconheceu-se que a graça do sacerdócio seria transmitida pela sucessão apostólica. Em lugar do Reino de Deus, foi a Igreja que se instituiu sobre a terra. Mas a Igreja terrestre jamais deve ser confundida com o Reino de Deus, nem ser identificada com ele, porque ela não passa do caminho que conduz a ele. a ideia do Reino de Deus permanece sendo uma ideia escatológica e não histórica. O Reino de Deus está ligado à Igreja invisível, celeste e mística.

 

 

II

 

Cristo foi a manifestação do Deus-homem, do Deus perfeito e do homem perfeito, das duas naturezas unidas em uma pessoa. Por esse motivo, o Cristianismo se afirma como a religião do Deus-humanidade, como uma religião não-monista. Também na Igreja se unem num mesmo organismo as duas naturezas: Deus e a humanidade. A Igreja é um organismo, um processo teândrico; nela atua não apenas a graça Divina, com também a liberdade e a atividade humana. A concepção monofisita da Igreja nega a ação recíproca de Deus e da humanidade; essa concepção impede sobretudo compreender a comunhão dos homens no amor, que é precisamente o conteúdo positivo da vida cristã. Ela conduz ao sufocamento do princípio humano pelo princípio angélico, e desemboca no reino exclusivo da hierarquia eclesiástica, no predomínio do sacerdócio na vida da Igreja. O clericalismo, a hierocracia, constituem um monofisismo, uma diminuição do valor da humanidade. Consideramos que na Igreja deve dominar a hierarquia do sacerdócio, vale dizer, a ordem angélica, e não a ordem humana. Por isso a criação humana se torna impossível nela, e acaba por ser relegada para fora de seus muros. De fato, a atividade e a criatividade humana existiram na vida da Igreja, e não existe possibilidade alguma de lhes impedir o caminho; mas elas foram dissimuladas devido ao predomínio das formas do sacerdotalismo. O papado representa uma intensa atividade humana, mas ele jamais quis se afirmar como um princípio humano.

 

A compreensão monofisita, unilateral, da Igreja, é refutada pelo fato de que Deus se revelou no Cristianismo por intermédio de Seu Filho, o Deus-homem, vale dizer, que a própria revelação pressupõe a atividade e a liberdade humanas manifestadas na natureza de Cristo. A Igreja cristã possui uma fonte que é não somente divina, mas também teândrica; ela não pode existir sem a humanidade, sem a natureza humana; e essa humanidade não está submetida apenas à ação da g raça divina, mas ela é também o sujeito ativo, livre, criativo, que responde ao chamado divino.

 

Na Igreja existe um movimento permanente que vai de Deus para a humanidade e dessa para Deus; é assim que se determina a vida dinâmica da Igreja, sua historicidade. Ela deve ter uma base divina inabalável, à qual se liga o sacerdócio; ela não pode estar fundamentada sobre a natureza humana instável. Mas como ela deve constituir também um processo dinâmico e criativo, ela se apoia necessariamente sobre um fundamento humano e pressupõe a atividade da humanidade sobre si. A experiência do conhecimento, a experiência moral, toda a plenitude da experiência da vida não é possível a menos que se partilhe os destinos da humanidade e do mundo. A Igreja não é um princípio extrínseco em relação à humanidade e ao mundo; ela é uma experiência; se ela é a vida do Deus-humanidade, ela é a experiência, a participação nos destinos do mundo que estão submetidos à tragédia da vida. Nisso existe uma verdade elementar e indiscutível. Essa verdade é reconhecida por todos os homens da Igreja e pelos teólogos de todas as confissões cristãs, mas as deduções sistemáticas e radicais que daí decorrem escapam à maior parte deles e lhes parecem problemáticas.

 

O movimento que vai do homem para Deus, a eclosão da liberdade e da criação humana, se reveste de formas que não são visivelmente admitidas no recinto da Igreja. Um grande número de processos criativos não pertence senão à Igreja invisível, à alma da Igreja. A vida do Deus-humanidade é singularmente complexa, e muitos dos aspectos desse processo teândrico não são assimilados pela Igreja, não são considerados como fazendo parte dela; sua consciência permanece sendo diferencial por excelência, e não integrativa. Somente o elemento “sagrado” do Cristianismo é oficialmente reconhecido; quanto ao elemento “profético”, ele parece ter sido relegado para fora da Igreja visível. A maior parte de nossa vida é rejeitada, e estamos condenados, por causa disso, a uma existência dualista e dividida, na qual passamos de um ritmo a outro, da Igreja ao mundo e do mundo à Igreja. Toda nossa vida criativa se desenrola no mundo e não na Igreja. Será nela que alcançamos o conhecimento, que criamos obras de arte, que contemplamos a beleza do cosmo, que efetuamos avaliações morais, que fazemos descobertas? Será nela que desabrocha e floresce o amor romântico, que se adquire a verdadeira liberdade, que se realizam a justiça e a verdadeira fraternidade?

 

E, no entanto, somos obrigados a admitir que tudo o que constitui a existência autêntica, sua plenitude, faz parte da Igreja, e que somente o não-ser permanece fora dela. Toda criação autêntica do homem penetra na Igreja, compreendida no sentido integral e cósmico. O problema consiste em saber se o homem é chamado unicamente à salvação, ou se ele o é também para uma missão criadora. Para a salvação da alma, o processo criativo da vida não é indispensável; a liberdade criativa do homem é necessária, não para a salvação, mas para o Reino de Deus; ela é necessária para a transfiguração do mundo. É difícil perceber os limites da Igreja, porque na realidade sua doutrina não é exposta, ela não vem à luz no Cristianismo. A divulgação de sua natureza pressupõe um desenvolvimento da antropologia religiosa, uma revelação da doutrina religiosa relativa ao homem. O problema se complica ainda mais pelo fato de que, na criação e na atividade humanas, o ser e o não-ser se acham confundidos, e nossa tarefa consiste em discernir e em separar, no processo teândrico, aquilo que procede do ser e o que resulta do não-ser. Essa confusão é a causa da dificuldade que a consciência da Igreja experimenta em reconhecer o processo criativo humano, e ela é gerada pela liberdade do homem.

 

A descoberta da vida do Deus-humanidade na Igreja provém da doutrina cristã do Novo Adão, da nova geração espiritual que procede de Cristo. As formas dominantes da consciência da Igreja não reconhecem senão o velho Adão, a geração natural da humanidade; parece que elas não têm consciência de que em Cristo e por Cristo o homem é já uma nova criatura, na qual se revela uma nova liberdade e uma nova força. A partir de Cristo, o pecado original não tem mais domínio absoluto sobre o homem; pois esse, assim como o cosmo, já não pertence exclusivamente à ordem natural, pois a ruptura entre o natural e o sobrenatural foi superada. Daqui em diante uma vida e uma criação espirituais podem desabrochar neles, e essa vida e essa criação pertencem à vida teândrica da Igreja.

 

Todos os processos da vida se desenrolam na Igreja; nela desabrocha a Beleza da vida cósmica. É nela que criaram Shakespeare, Goethe, Pushkin, que o homem teve consciência de sua liberdade original, que Boehme atingiu o sumo da gnose, que Nietzsche viveu a tragédia de Dionísio crucificado; é nela que desabrochou a criação humana, quando ela procedia da existência e quando a ela se destinava. Em Cristo o homem recebeu, ao mesmo tempo, uma força divina e humana; ele se tornou inteiramente homem, ser espiritual, novo e eterno Adão. O homem não se revela a não ser no Deus-humanidade, vale dizer, na Igreja, mesmo q eu ele não tenha consciência disso, Goethe podia não conceber que  tudo o que constituía o ser autêntico de sua criação se desenrolava no seio da Igreja, e dela era uma manifestação.

 

Conceber no Cristianismo exclusivamente como a religião da salvação pessoal equivale a diminuir e restringir a consciência da Igreja, a esconder a vida do Deus-humanidade e o processo teândrico criador do mundo. A bem dizer, essa concepção do Cristianismo consiste num puro nominalismo que contradiz a própria ideia da Igreja, e que, de fato rejeita sua realidade ontológica, a da humanidade, do Deus-humanidade e do cosmo. Somente o Cristianismo, entendido como religião que ilumina e transfigura o mundo, permite reconhecer que a vida criativa da humanidade pertence à Igreja. Nosso problema não consiste em perguntar se podemos, do ponto de vista da Igreja, admitir e justificar a vida criativa da humanidade, mas sim se essa vida criativa é a vida da própria Igreja, ainda que não tenhamos realmente consciência disso.

 

Nossa época gerou um dualismo sem precedentes entre a Igreja e o mundo, entre o sagrado e o profano, entre a religião e a vida; ela rachou o antigo agregado histórico, no qual se encontravam reunidos o Cristianismo e a vida social. Essa situação é insustentável para a consciência religiosa; a vida foi ateizada, e agora permanece sem justificação e sem santificação, enquanto a religião foi relegada aos confins da alma. Mas esse processo doloroso abriu novas possibilidades; graças a ele, o Cristianismo se livrou dos costumes pagãos e da antiga tradição natural, de modo que ele contribuiu para a espiritualização do Cristianismo, para o nascimento de uma nova espiritualidade no mundo. Na Igreja visível e perceptível, atuava a antiga natureza pecadora do homem e muitas vezes ela deformou e diminuiu o Cristianismo; mas até o presente, nem todas as consequências do dogma cristológico foram inteiramente deduzidas. Tudo o que a Igreja comportou de corruptível, de funesto em sua vida histórica provém do fato que a natureza humana não estava nem iluminada, nem cristianizada. Ora, na história de sua vida, assim como na do mundo, a maioria reina sobre a minoria, ou seja, a parte menos espiritual da humanidade reina sobre a mais espiritual. E essa má influência da atividade do homem na vida da Igreja foi um enorme obstáculo à percepção de sua natureza teândrica, à santificação interior do processo criativo que se realizou nela.

 

 

III

 

São Tomás de Aquino situava o homem e sua inteligência na hierarquia inferior dos espíritos. De acordo com ele, o conhecimento puramente intelectual é inacessível ao homem, pois esse requer uma experiência sensível. O conhecimento angélico é puramente intelectual; assim, a hierarquia angélica está situada acima do homem. segundo essa concepção, o ser humano não ocupa um lugar central na hierarquia cósmica, e não se explica porque Cristo tenha sido um Deus-homem, e não um Deus-anjo. Numa metafísica do Cristianismo está colocada a questão perturbadora das relações entre a hierarquia angélica e a hierarquia humana. Deve o princípio humano ser subordinado ao principio angélico, como se esse lhe fosse superior?

 

Os destinos históricos da humanidade estão intimamente ligados à resposta que dermos a essa questão. A doutrina clerical e hierocrática referente à Igreja, ao Estado, à vida social e cultural da humanidade é uma doutrina na qual se afirma o primado do princípio angélico sobre o princípio humano. A hierocracia, em sua forma extrema, se choca com a ideia do Deus-homem, substituindo-a pela do Deus-anjo. A hierocracia da Igreja católica contradiz a noção do lugar central e supremo ocupado pelo homem na hierarquia do ser, noção cuja verdade foi manifestada pelo advento do Deus-homem; essa doutrina impede a vida da Igreja se de realizar como vida do Deus-humanidade. O “papocesarismo”, assim como o “cesaropapismo”, submete o princípio humano à autoridade do princípio angélico, e esse sistema só poderia se justificar se Cristo tivesse sido um Deus-anjo e não o Deus-homem; mas a humanidade de Cristo o contradiz e nos obriga a rejeitá-lo como uma tentação.

 

A esse respeito, o “cesaropapismo” oriental está sobre o mesmo plano que o “papocesarismo” ocidental. O imperador, que pertence à ordem sacerdotal, e que recebe os carismas específicos que lhe conferem o poder, não se liga à ordem humana, mas à ordem angélica. Nele, o elemento humano não tem mais importância do que o tem o sacerdote; pois não é a ele que os carismas são outorgados; eles simplesmente são simbolizados no mundo, enquanto que, na realidade, eles são concedidos à ordem angelical. O papa e o imperador são mediadores, cujo poder não é humano, pois os encaramos do ponto de vista de uma teofania; neles, o homem não passa de um fenômeno acidental. Assim, sua atividade provém do princípio angélico e mediador, enquanto que o homem deve permanecer passivo.

 

Mas, na realidade, a hierarquia estabelecida por Cristo possui um sentido que é o contrário disso. No centro da existência se encontra o homem, e não o anjo, e é o homem que se eleva ao seio da Trindade. Cristo é o homem celeste absoluto, que não pode ser submetido a nenhuma hierarquia angélica. O princípio angélico é passivo, translativo, mediador, enquanto que o princípio humano é, ao contrário, ativo e criador. A hierarquia angélica do sacerdócio é necessária à vida da Igreja, precisamente por ser passivo e não depender de uma atividade livre, inerente ao princípio humano; é por isso que o poder de administrar os sacramentos cabe a ele. por intermédio dessa hierarquia angélica, o homem recebe a ação da graça e da energia divina.

 

Mas se a hierarquia angélica sacerdotal possui uma missão a cumprir, essa não pode, entretanto, se estendera toda a vida ativa e criativa do homem na sociedade e na cultura. A bem dizer, a ordem angélica, no sentido próprio e restrito do termo, designa o estado monástico, na medida em que esse confina com a extinção da natureza humana. Isso projeta uma luz sobre a natureza do princípio hierárquico. Na vida espiritual e religiosa, o simbolismo substitui o realismo. A hierocracia que gera o “papocesarismo” e o “cesaropapismo” é sempre um simbolismo, no qual a elevação autêntica do espírito humano não se manifesta. O papel predominante na vida não é concedido à santidade, que é uma aquisição real da perfeição humana, mas é atribuído ao sacerdote que não faz mais do que simbolizar a humanidade na hierarquia celeste. Assim, o imperador, enquanto membro de uma ordem sagrada, enquanto “bispo exterior” da Igreja, não é um grande homem, nem um guia poderoso, cujo valor seria determinado por suas qualidades humanas; ele não passa de um reflexo simbólico da hierarquia angélica.

 

Esses fenômenos da história se devem à união da Igreja com o Estado, à confusão entre o Reino de Deus e o reino de César; eles decorrem da inserção, no Cristianismo, de um falso princípio de monarquia, que lhe é estranho e que remonta ao paganismo, ao totemismo primitivo. Tanto o “papocesarismo” como o “cesaropapismo” oferecem uma solução errônea para o problema antropológico, uma doutrina do homem na qual seu valor, sua missão ativa e criativa, são rejeitados, na qual o princípio angélico substitui o princípio humano. O entorpecimento e a degeneração do Cristianismo resultam de uma hierocracia exclusiva e de um simbolismo que entrava o triunfo do realismo. O domínio hierocrático resulta ainda do fato que o Cristianismo foi acolhido por um elemento racial, desenvolvendo-se nele e se refratando sob a forma de uma religião gregária.

 

O que mantém esse caráter racial do Cristianismo é o princípio hierocrático, o simbolismo da hierarquia angélica, mas esse caráter sofre atualmente de uma crise metafísica, sendo abalado em seus fundamentos. Doravante, o Cristianismo não poderá ser mais uma religião de raça, a fé deixará de ser hereditária e se tornará pessoal. O Cristianismo deixará de ser uma religião popular, na antiga acepção da palavra, e se tornará por toda parte a religião dos intelectuais. Isso modificará o caráter do Cristianismo e abalará a consciência simbólica hierocrática.

 

A última noção escatológica do Cristianismo, a última esperança do mundo cristão, é de um sacerdócio universal, não uma hierocracia, nem uma teocracia papal ou imperial, nem um reflexo simbólico do mundo celeste, mas uma transfiguração religiosa da humanidade e do mundo. A humanidade se encaminha pela via hierárquica para o reino universal da liberdade, para a transfiguração religiosa; ela está submetida à ação da força divina e recebe os dons da graça por intermédio do sacerdócio. O sacerdócio real, de que nos falam o apóstolo Pedro e São Macário o Egípcio[1], é um reino hierárquico, mas é o reino da hierarquia humana, e não da hierarquia angélica, e isso não implica a negação do papel que o princípio hierárquico deve desempenhar na história. De fato, a humanidade lhe é infinitamente devedora, pois sem ele ela não teria saído do caos e da barbárie espiritual.

 

 

IV

 

Por sua própria natureza, a Igreja é una e única; ela constitui uma realidade única, da mesma forma que a personalidade. Ela tem consciência de si mesma enquanto Igreja universal, pois o universalismo é seu princípio constitutivo. A igreja não pode ser determinada por limites geográficos e etnográficos; ela não é nacional, assim como não é oriental ou ocidental.

 

Mas o próprio universalismo é difícil de ser compreendido. Podemos concebê-lo no sentido de uma propagação quantitativa sobre a superfície da terra, e exigir que ela tenha uma unidade exterior organizada. Essa é uma concepção “horizontal”, particularmente cara ao catolicismo, mas existe uma outra que é mais inerente à ortodoxia. O ecumenismo é uma qualidade, não uma quantidade; trata-se de uma dimensão em profundidade; a Igreja universal não exige que uma unidade de organização exterior seja estabelecida. O ecumenismo pode existir na dimensão interior de cada diocese. A concepção vertical do universalismo é aquela que pode afirmar melhor a unidade e o ecumenismo da Igreja, malgrado as divisões exteriores.

 

No elemento humano, no mundo natural, o Cristianismo não faz mais do que se individualizar, o que é bom; mas ele também se encontra num estado de fracionamento e dissensão, o que é um pecado, e é mal. A Igreja se cindiu, mas nem na sua natureza ontológica, que é sempre ecumênica, nem na sua verdade divina, mas na humanidade, que era incapaz de acolher a plenitude do Cristianismo, e que não assimilava mais do que fragmentos da verdade. a divisão se produziu no reino de César, pois o Reino de Deus não pode ser senão um. A hostilidade das confissões entre si constitui uma inimizade típica do reino de César, da humanidade mergulhada nesse mundo natural. O mundo espiritual ignora essa animosidade e essa divisão; mas ele próprio se encontra enfraquecido no mundo natural.

 

Nesse mundo natural, não existe a unidade exterior da Igreja, pois seu ecumenismo não está inteiramente realizado. Não somente a divisão entre as Igrejas e a pluralidade das confissões não-cristãs, mas o próprio fato de que existam confissões não-cristãs no mundo, prova que a Igreja está ainda em estado de potência e que sua atualização permanece incompleta. Um ecumenismo expresso exteriormente, inteiramente realizado, equivaleria à cristianização de toda a humanidade e de todo o cosmo. Na realidade, essa cristianização não se realizou mais do que parcialmente até hoje. O ecumenismo da Igreja continua invisível; somente as divisões são aparentes. Somente assimilando e identificando a parte ao todo será possível afirmar a unidade visível da Igreja ecumênica; porém, ainda que a unidade não transpareça, isso não significa que o princípio ecumênico não esteja agindo invisivelmente.

 

Não é a Igreja que está provada da unidade, mas o reino desse mundo. No destino histórico, o que pertence a Deus e o que pertence a César se confundem. A divisão da Igreja foi determinada por instigações “de César”, e certos movimentos buscam sua unidade partindo de princípios análogos. Mas a carne e o sangue dividem, somente o espírito une. Até o presente a maior parte dos projetos de união das Igrejas são “cesaristas”, e, por conseguinte, ineficazes e nocivos[2]. Não é nessa esfera que se dará a união; ela não se cumprirá, a menos que seja em espírito e pela ação do Espírito Santo.

 

Os tipos oriental e ocidental do Cristianismo se distinguem, não por diferenças de dogmas ou das organizações eclesiásticas, mas pela estrutura de sua experiência espiritual, devido à divergência dos elementos humanos, que receberam e refrataram em si o Cristianismo. A experiência espiritual é mais profunda do que os dogmas, e lhes é anterior; a organização da Igreja é determinada pela orientação espiritual da vida dos povos; são, portanto, diferenças de ordem primordial e vital, as que determinaram os caminhos do Oriente e do Ocidente; existem duas orientações espirituais do mundo cristão, cuja existência é predeterminada pelo desígnio divino da história universal. As diferenças espirituais, vitais e experimentais se manifestaram muito antes da divisão das Igrejas, e não deveria necessariamente provocá-la. O Cristianismo poderia existir sob formas variadas dentro de uma mesma Igreja ecumênica.

 

A patrística oriental sempre se distinguiu claramente da patrística ocidental. Nela, a tradição do platonismo permaneceu forte, mais mística, com interesses mais ontológicos e especulativos. Os dogmas foram elaborados sobretudo pelos doutores da Igreja oriental. Foi no Oriente que apareceram todos os gnósticos e os heréticos, o que testemunha o intenso interesse que se tinha pela gnose e pelas questões dogmáticas e de metafísica religiosa. Um Orígenes, um São Gregório de Nissa, jamais poderiam surgir no Ocidente, onde predominavam as tradições do estoicismo e do Direito romano. No Ocidente, o interesse estava voltado para a organização da Igreja, e o lugar central era ocupado pelas questões da liberdade, da graça e da redenção. A patrística ocidental não forneceu sequer um grande pensador, à exceção de Santo Agostinho; ela não teve mais do que escritores notáveis, tais como Tertuliano e São Jerônimo.

 

No Cristianismo de tipo oriental, é a questão da transfiguração da natureza humana e da natureza do mundo, a “Theosis”, que foi fundamental. Essa é a ligação com o caráter muito mais cósmico da ortodoxia, com sua orientação mais específica para a segunda Vinda de Cristo, para a Ressurreição. Os doutores da Igreja oriental, Clemente de Alexandria, Orígenes, São Gregório de Nissa, São Gregório de Nazianze e outros, não elaboraram por si próprios uma concepção do Cristianismo que fizesse dele uma religião de salvação pessoal, nem desembocaram numa doutrina da beatitude dos eleitos no paraíso e na danação eterna do resto do gênero humano. O pensamento oriental é menos ligado à justificação e à salvação, do que à transfiguração e à deificação; daí provém sua doutrina da apocatástase.

 

No Ocidente, em primeiro lugar no catolicismo, depois no protestantismo, as questões primordiais são as da justificação, da salvação pelas obras ou pela fé, a avaliação da parte da liberdade ou da graça na obra da salvação. É por isso que a questão do critério da autoridade adquire tal importância; existe como que uma noção jurídica, social e organizadora da salvação. Essa questão jamais inspirou um interesse particular no pensamento religioso do Oriente. Quando nos conformamos ao critério da autoridade, pressupomos que a natureza não pode ser transfigurada, que ela está separada de Deus e oposta a Deus; o natural permanece separado do sobrenatural, não-transfigurado, não cristianizado, e ele resta disciplinado desde o exterior.

 

Na realidade, o natural, enquanto esfera independente da existência, não existe; ele não passa de um estado de pecado, de uma separação em relação a Deus. A existência autêntica do homem e do mundo está enraizada em Deus. É assim que pensava a ortodoxia e nisso ela está mais próxima da verdade do que o catolicismo. Esse último conhece um dinamismo intenso, mas que não pressupõe a transfiguração da natureza, sua deificação; ele parece não buscar a cristianização do gênero humano e do cosmo. Eis porque o catolicismo sempre foi mais jurídico do que a ortodoxia.

 

Os ortodoxos e os católicos possuem uma noção diferente da graça. Na ortodoxia, a graça é o dom do Espirito Santo. No catolicismo, a ação da graça é limitada pela organização legal da Igreja; a doutrina do Espírito Santo e a da graça são praticamente identificadas uma à outra. A natureza do Espírito Santo, enquanto Hipóstase independente da Trindade, não é trazida à luz. A consciência ortodoxa, ao contrário, em sua profundidade, é essencialmente a religião do Espírito Santo; as ideias do sacrifício e do resgate, tão caras ao catolicismo, são estranhas para ela. Daí decorre também toda uma outra concepção da ação do Espírito Santo, que é considerada como a transfiguração da natureza humana, como a iluminação, o nascimento de uma nova criatura, e não como uma reconciliação com Deus, nem como uma justificação do homem perante Deus.

 

Na realidade, a graça pode modificar o homem, mas não pode justificá-lo, porque ela é uma ação gratuita da energia divina que se exerce sobre a natureza humana. De resto, será a justificação humana necessária a Deus? Parece haver aí uma noção jurídica criada pelo pensamento humano limitado e incapaz de acolher em si a verdade divina do Cristianismo. Mesmo na ortodoxia, a teologia escolar está contaminada pela ideia da justificação, ainda que num grau menor do que no catolicismo. A doutrina teológica acredita que o homem se salva por meio de Cristo, que ele se reconcilia com Deus pelo sacrifício de Cristo.

 

Mas, numa profundidade maior, revela-se a nós que o homem se salva, NÃO POR CRISTO, MAS EM CRISTO, na nova geração espiritual nascida de Cristo, na nova natureza e na nova vida espiritual. Cristo é, antes de tudo, a revelação dessa nova vida, do Reino de Deus. A justificação e a salvação não passam de momentos secundários da via espiritual. É mais fácil para a consciência ortodoxa perceber isso, do que para a consciência católica. O Ocidente tende mais do que o Oriente a separar Deus da humanidade, afirmando e expressando em primeiro lugar a missão da humanidade isolada. É daí que procede a intensa atividade original do princípio antropológico na instituição do papado. É também daí que procede o humanismo, que separa definitivamente o homem de Deus. Existe aqui um nestorianismo de um tipo especial. É fácil criticar o sistema dogmático do papismo, mas esquece-se habitualmente de que ele é um mito criado na história da humanidade cristã do Ocidente, e que esse mito se tornou a força poderosa de um processo histórico, força essa que nem sempre foi negativa.

 

Os cristãos do Oriente são platônicos pela estrutura de seu espírito, enquanto que os do Ocidente são aristotélicos. E o que existe aqui não é uma diferença de doutrinas ou de teorias, mas uma diferença de vida e de experiência. A ordem natural, segundo a concepção aristotélica e tomista, não é penetrada pelas energias divinas; ela vive segundo sua lei e não está submetida à ação organizada da graça exterior. Nós já demonstramos que todo o caminho do Ocidente, não apenas o do Cristianismo, mas o de toda a cultura ocidental, se funda sobre a concepção aristotélica da relação entre forma e matéria, entre potência e ato. A importância da matéria e da potência do ser fica aí diminuída. A matéria (no sentido grego do termo), ou a potência, constitui o não-ser. O ser verdadeiro é somente a matéria submetida à forma. A vida perfeita é somente ato; a vida em potência é uma imperfeição. Daí a atualização, o acabamento, a organização do catolicismo e de toda a cultura ocidental.

 

No Oriente, na ortodoxia, todas as forças espirituais não se encontram atualizadas, acabadas; elas ainda não possuem essa ou aquela forma determinada; elas estão ainda em estado de potência, não realizadas, ocultas e interiores. E nós não consideramos isso como uma imperfeição ou como o não-ser. O Oriente está de fato inclinado a crer que aquilo que é interior, íntimo, escondido, constitui o ser, em maior medida do que o que está manifestado e disperso. Existe aqui uma grande diferença. O caminho espiritual do Oriente não pode ser pensado sob a categoria do aristotelismo. Para a consciência religiosa oriental, o natural está enraizado no sobrenatural; a energia divina penetra o mundo e o torna divino. O mundo empírico está enraizado no mundo das ideias, e o mundo das ideias repousa em Deus. É por isso que existe um cosmo celeste, uma humanidade e uma Igreja celestes, um mundo de essências inteligíveis, um mundo de ideias que une o Criador e a criação, que une Deus e o mundo.

 

O caráter militante do catolicismo representa a vitória da forma finita, do ato acabado; trata-se da organização da existência pela submissão da matéria à forma, pela atualização da potência. A vida da humanidade é encarada como a matéria que deve adquirir uma forma determinada. A Igreja católica, em sua hierarquia, se vê como um princípio da forma, forma essa à qual devem se submeter a matéria e o caos da vida. Todas as forças que a vida possui virtualmente devem ser atualizadas; somente então surgira a existência autêntica; toda a missão da vida reside nessa incessante atualização. O Ocidente compreende a vida enquanto ato, enquanto realidade, e daí advém o valor que o catolicismo e a cultura ocidental atribuem à organização. A organização é o triunfo da forma, ela representa a atualização das forças potenciais. A hierarquia é considerada como um exército, a Igreja é compreendida como uma fortaleza e a alma humana deve se organizar em conformidade com o que fica estabelecido aí. Essa armada e essa fortaleza devem preservar do caos da matéria, devem submeter a vida à forma. Esse é o espírito do catolicismo latino. O Ocidente possui uma variedade infinita, e, no entanto, esse é o espírito que predomina nele.

 

A ortodoxia não é militante, ela não é atualizada. Ela crê primeiramente nas forças espirituais interiores e não-organizadas. A predominância da forma e do ato sobre a matéria e a potência, que é metade existência, metade não-ser, é um pathos antigo. Os Gregos temiam o infinito enquanto matéria e caos; o mundo católico e toda a cultura ocidental o temem igualmente.

 

Encontramos aqui a explicação para a identificação do Reino de Deus com a vida da Igreja, em seu destino terrestre e histórico. O Reino de Deus toma uma forma, se organiza e se atualiza na vida da Igreja. A consciência histórica sufoca a consciência escatológica. O Reino de Deus já não é procurado nem esperado como a transfiguração maravilhosa do mundo, que deverá se cumprir no final dos tempos. A ortodoxia conservou antes de tudo o sentimento escatológico do Reino de Deus; para ela, a Igreja não é ainda o Reino de Deus, pois o Reino não deverá se instaurar senão no final dos tempos, pois ele está ligado ao Segundo Advento de Cristo. É por isso que encontramos no centro da ortodoxia a fé na Ressurreição, na festa da Páscoa, na espera pela transfiguração do mundo. A Igreja católica espera menos a vinda de Cristo em força e glória, enquanto afirma a força e a glória de Cristo na Igreja, sem a transfiguração do mundo.

 

Tanto a ortodoxia quanto o catolicismo afirmam a realidade ontológica de Deus, do cosmo, do homem e da Igreja. Quando a consciência ortodoxa ou a católica pronunciam a circunlocução “fé em Deus”, a ênfase cai menos da palavra “fé” do que na palavra “Deus”. Deus é anterior e mais real do que minha fé Nele. A Igreja é uma realidade ontológica, e não uma comunidade de crentes. Esse realismo e essa objetividade começaram a degenerar no catolicismo, na forma de um formalismo e de um autoritarismo exteriores que tendem a substituir a ontologia viva.

 

O protestantismo constituiu uma revolta do mundo subjetivo do homem contra a autoridade impositiva e imposta desde fora; o centro de gravidade da vida religiosa foi transposto para a fé, para a atitude interior do homem em relação a Deus. Havia nisso uma verdade incontestável. Mas o protesto não teve como se elevar acima da oposição entre sujeito e objeto. Encontramos em Lutero a predominância do nominalismo e do individualismo. A energia religiosa foi secularizada e orientada para a criação da cultura. As consequências culturais da Reforma foram singularmente importantes, mas nos séculos XVIII e XIX essas consequências já não correspondiam mais à energia e ao gênio religioso de Lutero. Manifestaram-se processos de desagregação na vida religiosa. No protestantismo liberal, a religião cristã se deforma e se transforma em ciência da religião. O protestantismo se levantou contra o autoritarismo e a heteronomia na religião; ele afirmou a verdade da liberdade de espírito e da liberdade de consciência; mas em seguida ele se engajou na direção de uma ruptura com a tradição da Igreja; o elemento protestantista predominou sobre a reforma criativa.

 

De resto, é preciso notar que o individualismo é inerente, não apenas ao protestantismo, como a todo o Cristianismo ocidental. A ideia da salvação individual da alma, assim como a ideia da predestinação de um pequeno número de pessoas à salvação, constitui um individualismo celeste e metafísico. A esse individualismo se opõe o espírito do ecumenismo, a ideia do caráter coletivo dos caminhos da salvação. Na Igreja, somos salvos juntamente com nossos irmãos, e todos juntos. Aspiramos à salvação universal, vale dizer, à transfiguração de todo o cosmo. O espírito do ecumenismo se encontra melhor expresso na ortodoxia do que no catolicismo. A ortodoxia é resolutamente anti-individualista, coisa que os católicos não compreendem. Mas esse ecumenismo cósmico não encontrou uma expressão conforme, nem na teologia acadêmica, nem na literatura ascética. Ela a obteve apenas no pensamento religioso do século XIX, em Khomiakoff, Dostoievsky, Boukhareff, Solovieff e Feodoroff.

 

 

V

 

É impossível que nossa vontade religiosa não esteja orientada para uma união das Igrejas, quando a divisão pecaminosa da humanidade cristã será superada. Significará isso que devemos deixar nossa confissão e passar a um estado de interconfessionalismo? Semelhante estado seria uma abstração, tão desprovido de significado quanto o internacionalismo. O termo “inter” não faz nenhum sentido, não designa nenhuma esfera da existência. O estado de espírito interconfessional é desprovido de toda energia religiosa criativa. Somente permanecendo em seu próprio tipo confessional, aprofundando-o e expandindo-o, é possível se dirigir para o universalismo, para o supraconfessionalismo. Isso significa que só podemos nos mover em altura e profundidade, e não sobre a periferia.

 

É por isso que o problema torturante da unidade do mundo cristão deve ser colocado, não de forma exterior e superficial, mas interiormente. As Igreja jamais serão unidas por tratados assinados por seus governantes, por convenções mútuas e acordos. Para que aconteça a união verdadeira das Igrejas, talvez fosse necessário não a colocar como um objetivo. Na verdade, o ponto de vista de Solovieff envelheceu, e, de resto, ele jamais viveu a experiência espiritual do catolicismo. As tentativas de união não fizeram senão envenenar os conflitos e os antagonismos. Somente o Espírito Santo pode unir as Igrejas; esse evento não pode ser outra coisa do que o resultado da graça, e ele é inacessível aos simples esforços humanos. Os governantes da Igreja são os menos capacitados para unir a Cristandade, pois eles sempre foram a fonte de todas as suas divisões.

 

Mas outro caminho se apresenta, e é o da união interior e espiritual dos cristãos, de todas as confissões, numa atitude animada pelo amor, que permita com que se reconheçam mutuamente, que possam viver no mundo espiritual das outras confissões. Somente o caminho interior da união espiritual, e não a via exterior da organização e do dogma, pode conduzir à reunião do mundo cristão; é preciso, antes de tudo, um esforço no sentido de modificar as relações recíprocas de ortodoxos, católicos e protestantes, e não as de suas Igrejas.

 

É assim que se formará uma trama de Cristianismo universal. Para além das confissões cristãs se afirma a Igreja única e ecumênica; é possível ter consciência dela, e permanecer fiel à sua confissão. Os limites da Igreja ecumênica não coincidem com os das Igrejas visíveis na história; a alma da Igreja é única, e nela habitam não apenas aqueles que pertencem aos diversos corpos da Igreja, como também os que se encontram fora da Igreja visível. Existe uma grande confraria espiritual composta de cristãos, à qual estão ligadas as Igrejas do Oriente e do Ocidente, e todos aqueles cuja vontade se dirige para Deus e o divino, todos os que aspiram a uma elevação espiritual.

 

Eu quero me unir a Joana D’Arc, mas não quero me unir ao bispo Cauchon, que a mandou queimar; quero me unir a Francisco de Assis, mas não aos eclesiásticos que o perseguiram. Quero me unir a Jacob Boehme, ao grande místico que possuía uma simplicidade de coração infantil, mas não quero me unir ao clero luterano que o condenou. Assim é, em tudo e em toda parte. Na obra de reunião do mundo cristão, o aprofundamento místico do Cristianismo, no qual o positivismo e o materialismo da Igreja serão superados, será chamado a desempenhar um papel preponderante.

 

 

VI

 

A vida religiosa da humanidade possui duas fontes: a massa religiosa do povo e os grandes inovadores religiosos, os profetas. É por meio dessas duas vias que a força e a energia divina se transmitem à humanidade. É o que nos atesta toda a história religiosa. A vida religiosa começa por um estágio social, ela possui uma natureza social, depois ela se desenvolve no clã e na nacionalidade, é enxertada na vida das raças e dos povos, na vida do mundo natural. Mas o destino histórico da vida religiosa sobrevém uma época subjetiva, na qual a personalidade religiosa aparece e se separa da consciência social, opondo-se a ela. Então, pela primeira vez se manifestam as religiões do espírito, por distinção em relação às religiões da natureza.

 

Os grandes doutores religiosos e os profetas foram os promotores da religião do espírito. Essa religião, de fato, nasceu das individualidades religiosas proféticas, e não da massa do povo religioso. Essa última tende sempre a manter a religião num estado objetivo e naturalista. O gênio profético libera a vida religiosa de sua base natural e coletiva, ele rompe os laços que ligam a religião ao Estado; nele se manifestam sempre um individualismo e um universalismo religioso, indissoluvelmente ligados. Uma das grandes individualidades proféticas, um dos primeiros doutores religiosos, foi Zoroastro; na sua religião, o espírito começou a dominar a natureza. Mas as maiores individualidades proféticas foram, sem dúvida alguma, os visionários da Antiga Aliança, que marcaram um novo estágio na revelação bíblica.

 

O profeta, que nisso se distingue do sacrificador, do sacerdote, é sempre um solitário; ele passa necessariamente por uma dolorosa ruptura com a religião da massa. O profeta, conforme seu tipo espiritual, se afirma como portador do princípio subjetivo na vida religiosa, enquanto que a coletividade aparece como detentora do princípio objetivo. Somente mais tarde os princípios espirituais, expressos originalmente pela individualidade profética, adquirem seu valor objetivo, e a vida religiosa penetra num estágio objetivo. Enquanto que a vida religiosa gera o profetismo, no sacerdócio ela se rebaixa. A individualidade profética está orientada por sua natureza, não para o passado, nem para o presente, mas para o futuro. Aquele que vê está sempre descontente com o presente, ele divulga o mal na realidade que o cerca e espera do futuro o triunfo dos princípios espirituais superiores, que se revelam a ele na visão profética.

 

Existe sempre um certo milenarismo no espírito profético, uma esperança no advento do Reino de Deus no mundo. O profeta espera o dia do juízo e o triunfo da justiça. O elemento profético é o elemento eterno da vida espiritual do mundo; ele é a fonte do movimento criativo, que não admite a ossificação, nem o entorpecimento da vida religiosa. O profeta não respira senão numa atmosfera de liberdade, ele sufoca no mundo endurecido que o cerca, ele visualiza sempre o mundo espiritual que deve penetrar esse mundo de baixo, cuja atmosfera é sufocante. O profeta percebe os destinos do homem e do mundo, ele entrevê os eventos do mundo empírico pela contemplação do mundo espiritual. A gnose profética é sempre uma filosofia da história, e essa não é possível a não ser na medida em que constitua um livre profetismo.

 

O profeta, ao contrário do santo, está mergulhado na vida do mundo e de seu povo, ele partilha de seus destinos, mas ele recusa essa vida do mundo, ele a condena e prediz para ela um fim fatal. Nisso reside a tragédia da vida do profeta. Ele está condenado a sofrer, ele está sempre infeliz e muitas vezes é apedrejado. Ele se distingue do sacerdote na medida em que ele vive na tempestade e na revolta, ignorando o repouso.

 

O profetismo é muitas vezes hostil ao sacerdócio; ele não constitui uma religião ritual, nem uma religião sacerdotal. O profeta se distingue do sacerdote na medida em que ele pertence à ordem humana, à hierarquia humana; ele é um homem inspirado por Deus. O profeta não aspira à perfeição, à santidade e à salvação pessoal, ainda que tenha atingido os graus mais elevados da perfeição espiritual; ele pode ser um santo, como pode não ser. Ele não abandona o mundo para a salvação de sua alma, mas ele deseja a perfeição da humanidade, e não apenas a do indivíduo.

 

No profetismo existe sempre um espírito revolucionário, que não existe no sacerdócio. O profeta não traz a paz às almas. Na psicologia profética entra necessariamente uma ruptura. Mas o elemento profético não pode ser o único e preponderante na vida religiosa. O mundo não teria sido capaz de suportar o profetismo incandescente que abrasa a alma; ele deve se proteger contra sua dominação exclusiva. Mas sem esse espírito a vida espiritual teria sido extinta definitivamente do mundo. Lutero teve uma natureza profética e seu espírito era mais vasto do que sua concepção religiosa, no sentido limitado do termo. No século XIX, encontramos o elemento profético em Dostoievsky, Solovieff, Feodoroff, J. de Maïstre, Carlyle, Nietzsche, Léon Bloy, Kierkegaard. Sem essa categoria de homens, todo movimento espiritual teria sido detido.

 

Existe um profetismo no mundo, não penetra no recinto da Igreja. Aqui se apresenta um dos problemas mais torturantes da consciência da Igreja. Como justificar a missão profética? Talvez seja preciso, para os objetivos da Providência na vida do mundo, que essa missão não seja reconhecida como algo realizado dentro da Igreja; mas, na verdade, ela é uma função sua, tanto quanto o sacerdócio. É só na superfície que o profeta está em conflito com a religião da coletividade, com a consciência ecumênica da Igreja, pois, na profundidade, ele se revela como sendo um órgão dela. Isso costuma permanecer oculto, e não é fácil de se ver.

 

O gênio está intimamente ligado ao espírito profético. Seu destino é tão trágico e doloroso quanto o do profeta, e ambos estão condenados à solidão; mas neles age um espírito universal. A solidão profética nada tem em comum com o individualismo. O profeta é a um tempo solitário e social.

 

Todo o Cristianismo futuro, toda possibilidade de renascimento depende de que o profetismo seja ou não seja reconhecido e divulgado dentro do Cristianismo. O renascimento cristão pressupõe não apenas um espírito sacerdotal de santificação da vida, como também um espírito profético de transfiguração real. O movimento cristão teve sua origem não só na coletividade popular, mas igualmente nas individualidades proféticas de todos os graus hierárquicos. A hierarquia sacerdotal é o elemento indispensável do Cristianismo, mas ela não pode dominá-lo às expensas do profetismo. A orientação para a Segunda Vinda de Cristo é o elemento profético do Cristianismo, inseparável dessa religião. O Cristianismo, ao longo de séculos de objetivação, se endureceu de tal maneira numa religião hereditária, nacional e coletiva, dirigida exclusivamente pelo sacerdócio, que o espírito profético se calou nele e chegou mesmo a ser considerado herético. No Cristianismo, o espírito do profetismo foi representado exclusivamente por mulheres: santa Hildegarde, Maria do Vale, Catherine Emmerich.

 

Elementos naturalistas, elementos de religiões naturais e não espirituais subsistiram no Cristianismo; e o profetismo, orientado para a religião do espírito, sempre se levantou contra eles, encontramos homens que, ainda que participando de uma confissão cristã, são pouco cristãos, porque não o são interior e espiritualmente; eles acolheram sua fé ao modo de uma natureza exterior. São esses homens que mais temem o espírito profético, pois esse ameaça sua religião naturalista e tradicional, exterior e autoritária. O próprio Apocalipse, o livro profético do Novo Testamento, pode ser interpretado de modo não interior, como um símbolo do espírito, mas desde uma perspectiva naturalista, vale dizer, materialista. A partir daí já não se distingue o espírito profético e criativo das visões apocalípticas e acabam por triunfar a superstição e a negação da vida.

 

 

Duas figuras se elevam aos cumes da vida espiritual da humanidade: a do santo e a do profeta. O homem jamais os ultrapassou. Todos os dois são necessários à obra divina no mundo, à Vinda do Reino de Deus. Esses dois caminhos espirituais, o da santidade e o do profetismo, fazem parte da vinda definitiva do Deus-humanidade, eles entram na vida integral da Igreja e participam de seu acabamento e de sua realização. Durante um tempo, segundo o impenetrável desígnio divino, o profetismo pôde agir fora do corpo visível da Igreja; mas chegou a hora em que o espírito será reconhecido como pertencendo a ela, como algo que procede de sua profundidade. É pela tragédia, pela dilaceração visível, pela luta torturante, que se cumpriu o destino religioso da humanidade. Mas a humanidade se encaminha para o pleroma, para a deificação, para o Reino de Deus.

 

Dois desígnios se enfrentam e lutam aqui em baixo: o Reino de Deus e o reino desse mundo, e é indispensável estabelecer uma distinção espiritual entre eles. O milenarismo pode ser entendido de uma maneira tangível e materialista, e assim ele se torna um engano e uma utopia terrestre. Assim foi a construção da Torre de Babel; trata-se na realidade do reino do Anti-Cristo, o pseudo-milenarismo, que encontramos atualmente no comunismo[3]. Mas na esperança milenarista existe também uma espera real da Nova Jerusalém, uma espera pelo resultado positivo do processo universal, pela realização do Reino de Deus.

 

As profecias cristãs não são otimistas, elas não justificam a teoria do progresso, elas condenam amargamente o mal que deve vir sobre o mundo. Mas elas não são pessimistas, porque estão acima do pessimismo e do otimismo humanos, pois elas estão voltadas pera o advento de Cristo em toda sua força e toda sua glória.

 

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[1] “Assim como no tempo dos profetas a simples unção era suficiente, porque os ungidos eram reis e profetas, também agora os homens espirituais, consagrados pela unção celeste, se tornam cristãos pela graça, a fim de se tornarem os reis e os profetas dos mistérios celestes”. (São Macário o Egípcio)

[2] Refiro-me aqui aos movimentos “Uniatas”, contemporâneos, exteriores e sociais.

[3] E, mais recentemente, no neopentecostalismo capitalista neoliberal. (N.T.)

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