I
É a Igreja em si uma realidade ontológica? Os catecismos não nos
fornecem nenhum ensinamento capaz de explicar sua natureza. A ontologia da
Igreja é ainda muito pouco divulgada. Essa é uma tarefa que cabe ao futuro. A
essência da Igreja ainda não se encontra suficientemente real e atual, para
permitir a elaboração de sua ontologia. De resto, será possível elaborar uma
definição da natureza da Igreja em si?
Vista desde fora, a Igreja não
tem como ser inteiramente compreendida; não é possível defini-la racionalmente,
torná-la acessível a um conceito. É preciso viver na Igreja, pois ela não é
perceptível senão pela experiência. Ela não se impõe a nós como uma realidade
exterior. O que podemos alcançar exteriormente não constitui sua natureza
intrínseca. A Igreja não é um templo construído com pedras; ela não é uma
comunidade de crentes, nem uma paróquia composta por homens; tampouco ela é uma
instituição regulamentada por normas jurídicas, mesmo que tais elementos façam
parte de sua existência. Ela não possui limites e sinais exteriores, que
determinariam sua natureza interior e que poderiam diferenciá-la do restante da
existência. A Igreja possui um elemento físico, psíquico e social, mas não é
por meio desses elementos que podemos definir sua natureza. A Igreja não é
tangível, ela não pertence ao mundo das coisas visíveis, ela não é uma
realidade empírica análoga à dos minerais, das plantas e dos animais. Ela pertence
ao mundo das coisas invisíveis, que não podem ser demonstradas senão pela fé;
ela é uma realidade espiritual interior.
É verdade que a Igreja existe para todos como uma realidade empírica;
é possível definir a atitude desses a seu respeito: seus inimigos, aos que não creem
nela, lutam contra ela como se fosse contra uma realidade. Mas eles reconhecem
essa realidade da Igreja num sentido completamente diferente daquele que lhe
atribuem os que creem e vivem nela. Pois do exterior a percebemos de modo tão tangível
quanto as pedras, como um rito, uma instituição, como homens que ocupam cargos
dentro de uma hierarquia. Mas a realidade autêntica da Igreja, enquanto ser, é
íntima, mística; ela reside para além das pedras, da hierarquia, dos ritos, dos
concílios, etc. Sua natureza é espiritual, pois ela própria pertence ao mundo
espiritual, e não ao mundo natural.
Isso não quer dizer que ela jamais se encarne no mundo natural e
histórico, que ela permaneça invisível. Eu percebo a Igreja através de minha
experiência; ora, essa experiência começa quando eu consigo superar a
limitação, o isolamento de meu mundo psíquico, a ruptura e a divisão, quando eu
penetro na unidade do grande mundo espiritual, triunfando sobre o tempo e o
espaço. Esse mundo e a experiência espiritual são supraindividuais e
supra-psíquicos; eles pertencem virtualmente à Igreja. A vida espiritual é
metafisicamente social e não individualista, e a Igreja possui uma natureza
espiritualmente social no sentido profundo do termo. A experiência da Igreja é
ecumênica, pois ecumenismo é uma de suas qualidades ontológicas. Nessa experiência
eu não estou só, mas estou com todos os meus irmãos em espírito, qualquer que
sejam o local e a época em que eles vivam ou tenham vivido.
Eu mesmo sou limitado em meus conhecimentos; minha experiência é restrita,
e sou incapaz de abarcar a plenitude e a diversidade da existência; eu nunca
cheguei a ter encontros espirituais determinantes em número suficiente. Eu escrevi
essa obra, mas nesse livro não fui capaz de alcançar mais do que raios parciais
da luz, não entrevi senão alguns poucos aspectos da verdade. mas eu pude me
exteriorizar, eu pude, metafisicamente falando, ultrapassar meus próprios
limites, eu pude comungar com a experiências de seres próximos em espírito, com
a experiência suprapessoal. Na experiência religiosa da Igreja, no encontro com
Cristo, o homem não é solitário, ele não está abandonado à sua limitação, mas
está com todos os que tiveram essa mesma experiência, com todo o universo
cristão, com os apóstolos, com os santos, como todos os irmãos em Cristo,
mortos ou vivos.
Essa nova geração possui a
inteligência de Cristo; por meio dessa inteligência é que aprendemos aquilo que
não poderíamos conhecer por nossa própria inteligência. O homem que vive na
Igreja penetra numa nova ordem de existência, sua natureza sofre uma
modificação e se torna mais espiritual. Na Igreja, na nova geração, age não
somente a inteligência de Cristo, como
também o amor de Cristo, Sua liberdade, ignorada pelo mundo natural,
aquele da geração do velho Adão. A Igreja constitui a ordem do amor e da
liberdade, e sintetiza sua união. No mundo natural, o amor e a liberdade estão
desunidos; a liberdade recusa a unidade, e se afirma na desunião; a união e a
unidade se revestem das formas da obrigação e da arbitrariedade. Mas a ordem da
Igreja, seu mundo espiritual, ignora a obrigação; e ignora também a liberdade
que se ergue contra a unidade e contra o amor.
A Igreja, ao se atualizar e se
encarnar no mundo natural e histórico, pode se revestir das formas que são
inerentes a esse mundo, e emprestar dele o princípio da obrigação e da
violência. Mas esses elementos são estranhos à sua natureza interior, à sua essência.
A Igreja é o corpo místico de Cristo; pertencer a ela equivale a ser membro do
corpo de Cristo, tornar-se uma célula desse corpo místico, um órgão desse
organismo místico. Pertencendo ao corpo místico de Cristo, dele recebemos Sua
inteligência, Seu amor, Sua liberdade, coisas que não possuíamos nem
conhecíamos no mundo natural, em nosso isolamento psíquico.
A vida na Igreja repousa sobre a santa tradição, sobre a sucessão. É pela
tradição que penetramos num só e mesmo mundo espiritual, na vida da nova
geração. A tradição constitui a experiência suprapessoal, ecumênica, a vida
espiritual criativa transmitida de geração em geração, que une os vivos e os
mortos, que consiste na vitória sobre a morte. Essa reina sobre o mundo, mas,
na Igreja, ela é derrotada. A tradição é a memória que ressuscita, a vitória sobre
a corruptibilidade, a afirmação da vida eterna. A tradição da Igreja não
consiste numa autoridade exterior e imposta. Ela é uma vitória real, intrínseca,
obtida sobre a ruptura do tempo; ela é uma percepção da eternidade no meio da fuga
mortal do tempo, uma união entre o passado, o presente e o futuro numa única
eternidade. A vida na tradição da Igreja é uma vida na eternidade; ela é a
percepção e o reconhecimento das realidades interiores. O passado não pode ser
conhecido desde fora, por fragmentos de monumentos conservados, submetido à
crítica analítica da história, mas desde dentro, pela memória sagrada, pelos
encontros interiores, pela vida espiritual ecumênica, que triunfa sobre as
rupturas e as “extraposições”. A tradição não consiste na autoridade, mas na
vida criativa do espírito. A autoridade é uma categoria que não é aplicável mais
do que ao mundo natural, ao mundo da divisão e da aversão. No mundo espiritual,
ela nada significa, ou antes, ela implica uma humildade e uma submissão que procedem
da liberdade. A tradição autoritária não passa de uma tradução da linguagem
espiritual para a linguagem do mundo natural e histórico, de uma adaptação para
a velha geração.
A Igreja não é uma realidade que existe paralelamente a outras; ela
não é um elemento no todo histórico e universal; ela não é uma realidade
objetiva dividida. A Igreja é tudo, ela constitui toda a plenitude do ser, da
vida do mundo e da humanidade, mas num estado de cristianização. Ela possui uma
natureza cósmica e o esquecimento dessa natureza é o indício de uma decadência
de sua consciência. Uma concepção da Igreja que a visse como um instituto
médico, ao qual as almas acudiriam para receber um tratamento, seria uma
concepção lamentável. Aqueles que não enxergam na Igreja senão uma instituição,
negam sua natureza cósmica. Na Igreja cresce a erva e desabrocham as flores, a
Igreja é o cosmo cristianizado. Cristo penetra no cosmo, aqui ele foi
crucificado e ressuscitou, e a partir daí tudo se modificou e se renovou. Todo o
cosmo seguiu Seu caminho de crucificação e de ressurreição.
O cosmo cristianizado, no qual o caos é derrotado, constitui a beleza;
é por isso que a Igreja pode ser definida como sendo a beleza autêntica da
existência. E toda aquisição de beleza no mundo constitui, num sentido
profundo, uma cristianização. A beleza é o objetivo da vida universal: ela é a
deificação do mundo. A beleza salvará o mundo, como disse Dostoievsky. A obtenção
da beleza constitui a salvação do mundo. Uma concepção integral da Igreja é uma
concepção na qual esse é encarada como o cosmo cristianizado, como a beleza. Somente
uma concepção diferencial a transforma numa instituição.
Mas a Igreja, até a realização do Reino de Deus, também leva a uma
existência dividida. Ela deve se elevar acima dos elementos não iluminados do
mundo, e não pode se confundir com eles. A Igreja é, antes de tudo, invisível,
interior, mística. Ela pertence à ordem espiritual e não à ordem natura. Com essa
qualidade, a Igreja se encontra ainda em estado de potência; do ponto de vista
místico, ela ainda está incompletamente realizada. Na filosofia de Aristóteles
e de São Tomás de Aquino, a potência, considerada em relação ao ato, sempre se
identifica com a imperfeição, a matéria, a existência inacabada; a verdadeira e
perfeita existência é aquela na qual tudo se encontra em ato. Em Deus, nada
existe em potência, tudo está em ato puro. Por isso a consciência católica e
tomista é obrigada a reconhecer, como sendo a existência autêntica e perfeita
da Igreja, sua atualização, sua encarnação histórica. A Igreja mística parece não
existir, porque, estando em estado de potência, ela consiste numa imperfeição,
se identifica com a matéria, a existência inacabada. Aristóteles favorece a
absolutização das encarnações históricas, a sujeição do infinito ao finito.
Mas é possível outra concepção da potência. Ela foi estabelecida pela
mística e a filosofia alemãs, em especial por Boehma e Schelling. Nela, a
virtualidade é considerada como a profundidade da existência, como sua origem
última e misteriosa; presume-se que ela seja sempre mais rica do que aquilo que
é atualizado e manifestado. Essa concepção admite a Deus em potência; Ele não
está inteiro em ato. Existe também um potencial na Igreja. A Igreja virtual é
infinitamente mais ampla do que seus elementos atualizados. A origem autêntica
da Igreja é mística; ela está mergulhada no insondável e no infinito. A Igreja
histórica não esgota toda a plenitude da Igreja mística e virtual. É somente a
partir dessa concepção da potência que se revela a insondabilidade e a
infinitude da existência, que podem ser superados os limites opressivos do
finito.
O Cristianismo consistiu num impulso para além de seus limites, uma
descoberta do infinito e do insondável. Na consciência cristã, a matéria
predomina sobre a forma, e é nisso que o Cristianismo se distingue
essencialmente do Helenismo. A Escolástica se esforça por impor a forma
helênica à matéria cristã da vida, ou seja, ela pretende limitar a potência e a
criação infinitas; ela se recusa a reconhecer na existência autêntica outra
coisa que não seja o ato, que não seja a matéria definitivamente submetida à
forma.
O Cristianismo do Oriente não conheceu o renascimento de Aristóteles,
nem o domínio da forma helênica. Outras perspectivas se abriram para ele, devido
à tradição platônica, que sempre existiu no Oriente. Mas mesmo na Ortodoxia, a consciência
da Igreja permanece oprimida pelas limitações da forma que se atualiza, e assim
também ela teme o estado de potência; sempre existiu no Oriente um
conservadorismo inerte. Se compreendermos a relação entre a potência e o ato de
forma diferente de Aristóteles ou São Tomás de Aquino, nem por isso estaremos
obrigados a rejeitar a necessidade de atualização, de encarnação; o que fazemos
é expandir o domínio das atualizações possíveis, admitindo que a esfera da
atualidade não esgota a plenitude da existência.
A Igreja não é apenas mística e em potência; ela também é visível e
atualizada. A Igreja se encarna historicamente, assim como Cristo se encarnou. Mas
sua existência interior não pode ser reduzida à sua perceptibilidade histórica
e à sua encarnação. A Igreja é visível na vida de Cristo, nas vidas dos santos,
nos sacramentos, na hierarquia, nas suas comunidades, nos concílios, etc. A
atualização, a forma, ainda que constitua um benefício positivo, um enriquecimento,
uma conquista, não implica a negação da infinitude insondável; ela não afirma
que o exotérico contenha mais do que o esotérico. O caminho seguindo por Boehme
não era suficientemente ortodoxo, e sua doutrina era confusa, mas em todo caso
ele era mais cristão do que Aristóteles. O mundo cristão temia o infinito e se
esforçava por se proteger contra ele. no mundo cristão o infinito se revelou
precisamente, assim como a matéria da vida. Boehme estava inteiramente mergulhado
nessa infinitude que desabrochou desde a revelação cristã.
Na consciência da Igreja dois princípios se enfrentam: o antigo
princípio helênico, aristotélico, da forma que limita, da atualidade acabada, e
o princípio cristão, místico, sempre acessível a novas atualizações criativas. Não
devemos esquecer que a atualização a própria encarnação da Igreja na história
provém de reações da natureza humana, dos limites da consciência móvel e dinâmica,
da orientação espiritual do homem. a Igreja visível não é mais do que uma atualização
parcial da Igreja invisível, ela não passa de uma forma incompleta de sua matéria,
da vida da humanidade e do mundo. A Igreja não se manifesta e não se revela em
toda a plenitude de seu ser, ela não realiza todas as possibilidades que contém
em si mesma. Sua atualização, sua encarnação e sua eclosão completas
representarão a transfiguração do cosmo, o advento de um novo mundo, a
instauração do Reino de Deus. O interior encerra riquezas muito maiores do que
o exterior.
Os católicos fazem uma distinção entre a alma e o corpo da Igreja. A alma
é mais vasta do que o corpo. Todos aqueles cuja vontade está orientada para Deus
e o divino lhe pertencem, mesmo que sua consciência não seja cristã, mesmo que
eles não tomem parte da vida encarnada e visível da Igreja. Pertencem ao corpo
da Igreja aqueles que participam dos seus sacramentos e que estão subordinados
à sua hierarquia. Essa doutrina é uma correção trazida à concepção católica da
Igreja, que condena a maioria da humanidade à danação. Mas essa doutrina deve
levar os homens a reconhecer que o círculo da Igreja em potência é mais amplo e
mais rico do que o círculo da Igreja atualizada.
Existem dois pontos de vista a
esse respeito: ou bem reconhecemos que o absoluto e o infinito penetram n
relativo e no finito, santificando-o criando um círculo sagrado e fechado, ou
bem admitimos que o finito e o relativo aspiram ao absoluto e ao infinito, gerando
um movimento criador. A primeira opinião é exclusivamente conservadora e
sacramental, a segunda é criativa e profética. A plenitude do Cristianismo
contém a ambas em si.
A encarnação é a simbolização: a Igreja visível é a simbolização da
Igreja invisível; a hierarquia terrestre é a mesma que a celeste. Mas o símbolo
pressupõe necessariamente a infinitude que se situa para além dele. A Igreja,
atualizada e encarnada na história, não constitui toda sua profundidade
insondável e sua plenitude; pois sua infinitude reside além disso. É impossível
encarcerar o infinito no finito. É pelo conhecimento dessa verdade que o
realismo simbólico se distingue do realismo ingênuo.
A Igreja é o corpo de Cristo, que abarca todo o infinito da vida cósmica,
pois ele próprio é cósmico. Os sacramentos e os dogmas da Igreja são a expressão
visível da vida misteriosa do corpo cósmico de Cristo. Entretanto, os dogmas,
como já assinalamos antes, não passam de fórmulas simbólicas das verdades da
experiência espiritual, dos encontros essenciais do homem com Deus e com Cristo.
Os sacramentos não são mais do que os pontos principais e visíveis nos quais se
concentram os eventos teúrgicos, que se realizam na vida cósmica. Cristo, Filho
de Deus, está eternamente crucificado no cosmo e seu sacrifício eucarístico é
eternamente oferecido. A Igreja conduz para esses mistérios da vida divina, mas
eles permanecem impenetráveis ao seu racionalismo e ao seu espírito jurídico. A
Igreja é bilateral por natureza; não é possível considerá-la do ponto de vista
monofisita. Ela não tem somente uma origem divina, ela possui também uma origem
cósmica, ela traz não apenas a assinatura de Deus, como também o selo do mundo.
A Igreja é o Deus-mundo, o Deus-humanidade.
Na base cósmica e terrestre da Igreja devem repousar a pureza, a
inocência, a castidades adquiridas na vida cósmica, no mundo. Se essa aquisição
da pureza e da castidade não tivessem existido, então o nascimento, a
encarnação de Deus, a vinda do Filho sobre a terra teria sido impossível. A força
capaz de acolher em si a Deus, e capaz de introduzi-lo no mundo, não teria
existido. A vinda de Deus não poderia resultar de uma imposição exterior exercida
sobre o mundo; esse deveria abrir-se a Deus; era preciso que ele se
encaminhasse para o nascimento e a encarnação do Filho, e que ele criasse uma
natureza suficientemente pura e casta para receber a Deus nela. A Virgem Maria
é precisamente essa natureza do mundo, sua deificação natural que constitui a
base cósmica da Igreja. A Igreja não repousa apenas em Cristo, sobre a graça
divina, mas também sobre a Virgem Maria, mãe de Deus, sobre a alma do cosmo
que, tendo alcançado a pureza e a castidade, gerou no espírito, e não na
natureza pecadora.
Na Virgem Maria o mundo e a humanidade atingem a deificação livre, não
por uma ação especial da graça que os isentaria do pecado original, como ensina
o dogma católico da Imaculada Concepção, mas pela livre sabedoria da própria
criatura. Deus poderia tornar castos todos os homens, por um ato de sua vontade
onipotente. Mas ele deseja a livre aquisição da castidade, da integridade da natureza
humana, que não havia sido atingida de modo absoluto senão na Virgem Maria. Nela,
o mundo e a humanidade responderam ao chamado divino. a Igreja possui uma
natureza única e ecumênica, não apenas em seu elemento divino, como também em
seu elemento cósmico e humano. A Virgem Maria é a alma cósmica feminina da
humanidade.
A Igreja ecumênica não está inteiramente atualizada na Igreja visível
e histórica; de outro modo, a pluralidade das igrejas e das confissões seria
inexplicável. A Igreja universal permanece além de todas as divisões. Se, de um
lado, a atualização da igreja na história constitui um processo de
enriquecimento, a saber, de realização do papel universal e histórico que o Cristianismo
deveria desempenhar, de outro ela implica um processo de diminuição, uma
adaptação inevitável ao nível médio das massas populares. Na Igreja, a economia
desempenha um papel preponderante. Todos os corpos históricos foram criados
para servir aos interesses das coletividades, e por isso trazem em sai suas
marcas. A religião no mundo é uma criação para a qual colaboram o povo e os
doutores religiosos, os profetas. É por isso que a vida religiosa comporta ao
mesmo tempo estratificações populares e estratificações espiritualmente
aristocráticas.
A Igreja visível não pode existir apenas para uma minoria eleita; ela
se dirige a toda humanidade e a todo o universo. Daí advém todo seu aspecto negativo,
toda a tragédia contundente de seu destino, toda a sedução repulsiva de sua
história. A Igreja deve descer aos baixios da vida universal, ela não pode
permanecer nos cumes, como gostariam os gnósticos, os montanistas e os
discípulos de diversas seitas.
O mundo humano, no qual a Igreja deve agir, está esmagado pelo
naturalismo pagão, pela dissensão e pela limitação. A verdade ecumênica da
Igreja, que age no mundo e na humanidade, se refrata em seu particularismo
pagão e em sua limitação. A grande aberração histórica residiu no fato de que o
homem muitas vezes tomou suas próprias limitações como sendo uma palavra
divina, que ele deu um valor absoluto e sagrado à carne histórica. A Igreja é
uma realidade ontológica, um organismo espiritual. Nesse ser real, que reside
não apenas na terra, como também no céu, não somente no tempo, mas também na
eternidade, estão agregadas duas naturezas: Deus e o mundo, Deus e a humanidade.
Essa é a razão pela qual a Igreja, enquanto organismo e ser real, partilha do
destino do mundo e da humanidade, sofre e se desenvolve. A Igreja pertence à
ordem do amor e da liberdade, mas ela tem que agir no mundo natural da
discórdia e da imposição. A Igreja pertence à ordem espiritual, mas está
inserida na ordem natural, que ela é chamada a transfigurar.
Os sacramentos da Igreja constituem os protótipos da transfiguração de
todo o universo. É somente pelos sacramentos, pela liturgia, pela eucaristia,
que o povo comunga da profundeza da vida espiritual, os sacramentos se cumprem
nos confins da vida cósmica; é lá que se produz o sacrifício de Cristo. Ele se
efetua em cada fenômeno da vida, mas os sacramentos são visíveis e concentrados
nos mistérios da Igreja, e aí eles se revelam a toda a humanidade. A religião
popular é litúrgica e simbólica.
Eu não posso aderir à Igreja, colocando como condição não aceitar
senão a Igreja celeste, ou a Igreja que tenha realizado a perfeição sobre a
terra. Eu não posso acolher exteriormente a Igreja, eu só posso recebê-la
interiormente. Por isso não podem existir condições contratuais entre ela e eu.
Eu desejo um desenvolvimento criativo, e não posso admitir a estagnação, a imobilidade
e a inércia; mas isso não pode ser objeto de uma convenção exterior com a
Igreja. Somente uma concepção integral da Igreja, que a veja como o cosmo
cristianizado, como Igreja celeste e eterna – e não unicamente como temporal e
histórica – pode me libertar de sua opressão exterior e me impedir de exercer
minha crítica a seu respeito. Entrar para a Igreja equivale a penetrar na ordem
eterna e divina do mundo. Esse ato não implica uma ruptura com a terra e com a
história, um abandono do mundo, mas antes uma participação em sua
transfiguração.
A Igreja é dinâmica, ela constitui um processo criador; a detenção
desse processo constitui uma fraqueza e um pecado humano. Na Igreja não existe
apenas o princípio de Pedro, mas também o de Joao e o de Paulo. A tradição esotérica
de João não morre jamais na Igreja; nela vive são somente o Evangelho temporal
e histórico, como também o Evangelho eterno. Cristo ensinava o advento do Reino
de Deus e nos chamava a buscá-lo acima de tudo; ele não instituiu desde logo
uma Igreja histórica com sua organização terrestre. A comunidade cristã
primitiva vivia numa atmosfera escatológica, na expectativa da Segunda Vinda de
Cristo, do advento do Reino de Deus; a organização de uma igreja, no sentido
histórico do termo, não lhe era necessária. A fundação da Igreja para a vida
terrestre não se tornou indispensável senão quando surgiu a consciência do
longo trajeto histórico que haveria ainda a percorrer, pois o momento da
instauração do Reino de Deus ainda não havia chegado. Isso necessitou da
elaboração de órgãos, tendo em vista uma existência histórica. Os dons
carismáticos se enfraqueceram, e cânones foram promulgados, segundo os quais
reconheceu-se que a graça do sacerdócio seria transmitida pela sucessão
apostólica. Em lugar do Reino de Deus, foi a Igreja que se instituiu sobre a
terra. Mas a Igreja terrestre jamais deve ser confundida com o Reino de Deus,
nem ser identificada com ele, porque ela não passa do caminho que conduz a ele.
a ideia do Reino de Deus permanece sendo uma ideia escatológica e não histórica.
O Reino de Deus está ligado à Igreja invisível, celeste e mística.
II
Cristo foi a manifestação do Deus-homem, do Deus perfeito e do homem
perfeito, das duas naturezas unidas em uma pessoa. Por esse motivo, o Cristianismo
se afirma como a religião do Deus-humanidade, como uma religião não-monista. Também
na Igreja se unem num mesmo organismo as duas naturezas: Deus e a humanidade. A
Igreja é um organismo, um processo teândrico; nela atua não apenas a graça Divina,
com também a liberdade e a atividade humana. A concepção monofisita da Igreja
nega a ação recíproca de Deus e da humanidade; essa concepção impede sobretudo compreender
a comunhão dos homens no amor, que é precisamente o conteúdo positivo da vida
cristã. Ela conduz ao sufocamento do princípio humano pelo princípio angélico, e
desemboca no reino exclusivo da hierarquia eclesiástica, no predomínio do sacerdócio
na vida da Igreja. O clericalismo, a hierocracia, constituem um monofisismo,
uma diminuição do valor da humanidade. Consideramos que na Igreja deve dominar
a hierarquia do sacerdócio, vale dizer, a ordem angélica, e não a ordem humana.
Por isso a criação humana se torna impossível nela, e acaba por ser relegada para
fora de seus muros. De fato, a atividade e a criatividade humana existiram na
vida da Igreja, e não existe possibilidade alguma de lhes impedir o caminho;
mas elas foram dissimuladas devido ao predomínio das formas do sacerdotalismo. O
papado representa uma intensa atividade humana, mas ele jamais quis se afirmar
como um princípio humano.
A compreensão monofisita, unilateral, da Igreja, é refutada pelo fato
de que Deus se revelou no Cristianismo por intermédio de Seu Filho, o Deus-homem,
vale dizer, que a própria revelação pressupõe a atividade e a liberdade humanas
manifestadas na natureza de Cristo. A Igreja cristã possui uma fonte que é não
somente divina, mas também teândrica; ela não pode existir sem a humanidade,
sem a natureza humana; e essa humanidade não está submetida apenas à ação da g
raça divina, mas ela é também o sujeito ativo, livre, criativo, que responde ao
chamado divino.
Na Igreja existe um movimento permanente que vai de Deus para a
humanidade e dessa para Deus; é assim que se determina a vida dinâmica da
Igreja, sua historicidade. Ela deve ter uma base divina inabalável, à qual se
liga o sacerdócio; ela não pode estar fundamentada sobre a natureza humana
instável. Mas como ela deve constituir também um processo dinâmico e criativo,
ela se apoia necessariamente sobre um fundamento humano e pressupõe a atividade
da humanidade sobre si. A experiência do conhecimento, a experiência moral,
toda a plenitude da experiência da vida não é possível a menos que se partilhe
os destinos da humanidade e do mundo. A Igreja não é um princípio extrínseco em
relação à humanidade e ao mundo; ela é uma experiência; se ela é a vida do
Deus-humanidade, ela é a experiência, a participação nos destinos do mundo que estão
submetidos à tragédia da vida. Nisso existe uma verdade elementar e
indiscutível. Essa verdade é reconhecida por todos os homens da Igreja e pelos
teólogos de todas as confissões cristãs, mas as deduções sistemáticas e radicais
que daí decorrem escapam à maior parte deles e lhes parecem problemáticas.
O movimento que vai do homem para Deus, a eclosão da liberdade e da criação
humana, se reveste de formas que não são visivelmente admitidas no recinto da
Igreja. Um grande número de processos criativos não pertence senão à Igreja
invisível, à alma da Igreja. A vida do Deus-humanidade é singularmente
complexa, e muitos dos aspectos desse processo teândrico não são assimilados
pela Igreja, não são considerados como fazendo parte dela; sua consciência permanece
sendo diferencial por excelência, e não integrativa. Somente o elemento “sagrado”
do Cristianismo é oficialmente reconhecido; quanto ao elemento “profético”, ele
parece ter sido relegado para fora da Igreja visível. A maior parte de nossa
vida é rejeitada, e estamos condenados, por causa disso, a uma existência
dualista e dividida, na qual passamos de um ritmo a outro, da Igreja ao mundo e
do mundo à Igreja. Toda nossa vida criativa se desenrola no mundo e não na
Igreja. Será nela que alcançamos o conhecimento, que criamos obras de arte, que
contemplamos a beleza do cosmo, que efetuamos avaliações morais, que fazemos
descobertas? Será nela que desabrocha e floresce o amor romântico, que se
adquire a verdadeira liberdade, que se realizam a justiça e a verdadeira
fraternidade?
E, no entanto, somos obrigados a admitir que tudo o que constitui a
existência autêntica, sua plenitude, faz parte da Igreja, e que somente o
não-ser permanece fora dela. Toda criação autêntica do homem penetra na Igreja,
compreendida no sentido integral e cósmico. O problema consiste em saber se o
homem é chamado unicamente à salvação, ou se ele o é também para uma missão
criadora. Para a salvação da alma, o processo criativo da vida não é indispensável;
a liberdade criativa do homem é necessária, não para a salvação, mas para o
Reino de Deus; ela é necessária para a transfiguração do mundo. É difícil perceber
os limites da Igreja, porque na realidade sua doutrina não é exposta, ela não
vem à luz no Cristianismo. A divulgação de sua natureza pressupõe um
desenvolvimento da antropologia religiosa, uma revelação da doutrina religiosa
relativa ao homem. O problema se complica ainda mais pelo fato de que, na
criação e na atividade humanas, o ser e o não-ser se acham confundidos, e nossa
tarefa consiste em discernir e em separar, no processo teândrico, aquilo que
procede do ser e o que resulta do não-ser. Essa confusão é a causa da
dificuldade que a consciência da Igreja experimenta em reconhecer o processo
criativo humano, e ela é gerada pela liberdade do homem.
A descoberta da vida do Deus-humanidade na Igreja provém da doutrina
cristã do Novo Adão, da nova geração espiritual que procede de Cristo. As formas
dominantes da consciência da Igreja não reconhecem senão o velho Adão, a
geração natural da humanidade; parece que elas não têm consciência de que em
Cristo e por Cristo o homem é já uma nova criatura, na qual se revela uma nova
liberdade e uma nova força. A partir de Cristo, o pecado original não tem mais domínio
absoluto sobre o homem; pois esse, assim como o cosmo, já não pertence
exclusivamente à ordem natural, pois a ruptura entre o natural e o sobrenatural
foi superada. Daqui em diante uma vida e uma criação espirituais podem
desabrochar neles, e essa vida e essa criação pertencem à vida teândrica da
Igreja.
Todos os processos da vida se desenrolam na Igreja; nela desabrocha a
Beleza da vida cósmica. É nela que criaram Shakespeare, Goethe, Pushkin, que o
homem teve consciência de sua liberdade original, que Boehme atingiu o sumo da
gnose, que Nietzsche viveu a tragédia de Dionísio crucificado; é nela que desabrochou
a criação humana, quando ela procedia da existência e quando a ela se
destinava. Em Cristo o homem recebeu, ao mesmo tempo, uma força divina e
humana; ele se tornou inteiramente homem, ser espiritual, novo e eterno Adão. O
homem não se revela a não ser no Deus-humanidade, vale dizer, na Igreja, mesmo
q eu ele não tenha consciência disso, Goethe podia não conceber que tudo o que constituía o ser autêntico de sua
criação se desenrolava no seio da Igreja, e dela era uma manifestação.
Conceber no Cristianismo exclusivamente como a religião da salvação
pessoal equivale a diminuir e restringir a consciência da Igreja, a esconder a
vida do Deus-humanidade e o processo teândrico criador do mundo. A bem dizer,
essa concepção do Cristianismo consiste num puro nominalismo que contradiz a própria
ideia da Igreja, e que, de fato rejeita sua realidade ontológica, a da
humanidade, do Deus-humanidade e do cosmo. Somente o Cristianismo, entendido
como religião que ilumina e transfigura o mundo, permite reconhecer que a vida
criativa da humanidade pertence à Igreja. Nosso problema não consiste em perguntar
se podemos, do ponto de vista da Igreja, admitir e justificar a vida criativa
da humanidade, mas sim se essa vida criativa é a vida da própria Igreja, ainda
que não tenhamos realmente consciência disso.
Nossa época gerou um dualismo sem precedentes entre a Igreja e o
mundo, entre o sagrado e o profano, entre a religião e a vida; ela rachou o
antigo agregado histórico, no qual se encontravam reunidos o Cristianismo e a
vida social. Essa situação é insustentável para a consciência religiosa; a vida
foi ateizada, e agora permanece sem justificação e sem santificação, enquanto a
religião foi relegada aos confins da alma. Mas esse processo doloroso abriu
novas possibilidades; graças a ele, o Cristianismo se livrou dos costumes
pagãos e da antiga tradição natural, de modo que ele contribuiu para a
espiritualização do Cristianismo, para o nascimento de uma nova espiritualidade
no mundo. Na Igreja visível e perceptível, atuava a antiga natureza pecadora do
homem e muitas vezes ela deformou e diminuiu o Cristianismo; mas até o
presente, nem todas as consequências do dogma cristológico foram inteiramente
deduzidas. Tudo o que a Igreja comportou de corruptível, de funesto em sua vida
histórica provém do fato que a natureza humana não estava nem iluminada, nem
cristianizada. Ora, na história de sua vida, assim como na do mundo, a maioria
reina sobre a minoria, ou seja, a parte menos espiritual da humanidade reina sobre
a mais espiritual. E essa má influência da atividade do homem na vida da Igreja
foi um enorme obstáculo à percepção de sua natureza teândrica, à santificação
interior do processo criativo que se realizou nela.
III
São Tomás de Aquino situava o homem e sua inteligência na hierarquia
inferior dos espíritos. De acordo com ele, o conhecimento puramente intelectual
é inacessível ao homem, pois esse requer uma experiência sensível. O conhecimento
angélico é puramente intelectual; assim, a hierarquia angélica está situada
acima do homem. segundo essa concepção, o ser humano não ocupa um lugar central
na hierarquia cósmica, e não se explica porque Cristo tenha sido um Deus-homem,
e não um Deus-anjo. Numa metafísica do Cristianismo está colocada a questão
perturbadora das relações entre a hierarquia angélica e a hierarquia humana. Deve
o princípio humano ser subordinado ao principio angélico, como se esse lhe
fosse superior?
Os destinos históricos da humanidade estão intimamente ligados à
resposta que dermos a essa questão. A doutrina clerical e hierocrática
referente à Igreja, ao Estado, à vida social e cultural da humanidade é uma
doutrina na qual se afirma o primado do princípio angélico sobre o princípio
humano. A hierocracia, em sua forma extrema, se choca com a ideia do
Deus-homem, substituindo-a pela do Deus-anjo. A hierocracia da Igreja católica
contradiz a noção do lugar central e supremo ocupado pelo homem na hierarquia
do ser, noção cuja verdade foi manifestada pelo advento do Deus-homem; essa
doutrina impede a vida da Igreja se de realizar como vida do Deus-humanidade. O
“papocesarismo”, assim como o “cesaropapismo”, submete o princípio humano à
autoridade do princípio angélico, e esse sistema só poderia se justificar se Cristo
tivesse sido um Deus-anjo e não o Deus-homem; mas a humanidade de Cristo o
contradiz e nos obriga a rejeitá-lo como uma tentação.
A esse respeito, o “cesaropapismo” oriental está sobre o mesmo plano
que o “papocesarismo” ocidental. O imperador, que pertence à ordem sacerdotal,
e que recebe os carismas específicos que lhe conferem o poder, não se liga à
ordem humana, mas à ordem angélica. Nele, o elemento humano não tem mais
importância do que o tem o sacerdote; pois não é a ele que os carismas são
outorgados; eles simplesmente são simbolizados no mundo, enquanto que, na
realidade, eles são concedidos à ordem angelical. O papa e o imperador são mediadores,
cujo poder não é humano, pois os encaramos do ponto de vista de uma teofania;
neles, o homem não passa de um fenômeno acidental. Assim, sua atividade provém
do princípio angélico e mediador, enquanto que o homem deve permanecer passivo.
Mas, na realidade, a hierarquia estabelecida por Cristo possui um
sentido que é o contrário disso. No centro da existência se encontra o homem, e
não o anjo, e é o homem que se eleva ao seio da Trindade. Cristo é o homem
celeste absoluto, que não pode ser submetido a nenhuma hierarquia angélica. O princípio
angélico é passivo, translativo, mediador, enquanto que o princípio humano é,
ao contrário, ativo e criador. A hierarquia angélica do sacerdócio é necessária
à vida da Igreja, precisamente por ser passivo e não depender de uma atividade
livre, inerente ao princípio humano; é por isso que o poder de administrar os
sacramentos cabe a ele. por intermédio dessa hierarquia angélica, o homem
recebe a ação da graça e da energia divina.
Mas se a hierarquia angélica sacerdotal possui uma missão a cumprir,
essa não pode, entretanto, se estendera toda a vida ativa e criativa do homem
na sociedade e na cultura. A bem dizer, a ordem angélica, no sentido próprio e
restrito do termo, designa o estado monástico, na medida em que esse confina
com a extinção da natureza humana. Isso projeta uma luz sobre a natureza do
princípio hierárquico. Na vida espiritual e religiosa, o simbolismo substitui o
realismo. A hierocracia que gera o “papocesarismo” e o “cesaropapismo” é sempre
um simbolismo, no qual a elevação autêntica do espírito humano não se manifesta.
O papel predominante na vida não é concedido à santidade, que é uma aquisição
real da perfeição humana, mas é atribuído ao sacerdote que não faz mais do que
simbolizar a humanidade na hierarquia celeste. Assim, o imperador, enquanto
membro de uma ordem sagrada, enquanto “bispo exterior” da Igreja, não é um
grande homem, nem um guia poderoso, cujo valor seria determinado por suas qualidades
humanas; ele não passa de um reflexo simbólico da hierarquia angélica.
Esses fenômenos da história se devem à união da Igreja com o Estado, à
confusão entre o Reino de Deus e o reino de César; eles decorrem da inserção,
no Cristianismo, de um falso princípio de monarquia, que lhe é estranho e que
remonta ao paganismo, ao totemismo primitivo. Tanto o “papocesarismo” como o “cesaropapismo”
oferecem uma solução errônea para o problema antropológico, uma doutrina do
homem na qual seu valor, sua missão ativa e criativa, são rejeitados, na qual o
princípio angélico substitui o princípio humano. O entorpecimento e a degeneração
do Cristianismo resultam de uma hierocracia exclusiva e de um simbolismo que
entrava o triunfo do realismo. O domínio hierocrático resulta ainda do fato que
o Cristianismo foi acolhido por um elemento racial, desenvolvendo-se nele e se
refratando sob a forma de uma religião gregária.
O que mantém esse caráter racial do Cristianismo é o princípio
hierocrático, o simbolismo da hierarquia angélica, mas esse caráter sofre
atualmente de uma crise metafísica, sendo abalado em seus fundamentos.
Doravante, o Cristianismo não poderá ser mais uma religião de raça, a fé
deixará de ser hereditária e se tornará pessoal. O Cristianismo deixará de ser
uma religião popular, na antiga acepção da palavra, e se tornará por toda parte
a religião dos intelectuais. Isso modificará o caráter do Cristianismo e
abalará a consciência simbólica hierocrática.
A última noção escatológica do Cristianismo, a última esperança do
mundo cristão, é de um sacerdócio universal, não uma hierocracia, nem uma
teocracia papal ou imperial, nem um reflexo simbólico do mundo celeste, mas uma
transfiguração religiosa da humanidade e do mundo. A humanidade se encaminha
pela via hierárquica para o reino universal da liberdade, para a transfiguração
religiosa; ela está submetida à ação da força divina e recebe os dons da graça
por intermédio do sacerdócio. O sacerdócio real, de que nos falam o apóstolo
Pedro e São Macário o Egípcio[1],
é um reino hierárquico, mas é o reino da hierarquia humana, e não da hierarquia
angélica, e isso não implica a negação do papel que o princípio hierárquico deve
desempenhar na história. De fato, a humanidade lhe é infinitamente devedora,
pois sem ele ela não teria saído do caos e da barbárie espiritual.
IV
Por sua própria natureza, a Igreja é una e única; ela constitui uma
realidade única, da mesma forma que a personalidade. Ela tem consciência de si
mesma enquanto Igreja universal, pois o universalismo é seu princípio
constitutivo. A igreja não pode ser determinada por limites geográficos e
etnográficos; ela não é nacional, assim como não é oriental ou ocidental.
Mas o próprio universalismo é difícil de ser compreendido. Podemos concebê-lo
no sentido de uma propagação quantitativa sobre a superfície da terra, e exigir
que ela tenha uma unidade exterior organizada. Essa é uma concepção “horizontal”,
particularmente cara ao catolicismo, mas existe uma outra que é mais inerente à
ortodoxia. O ecumenismo é uma qualidade, não uma quantidade; trata-se de uma
dimensão em profundidade; a Igreja universal não exige que uma unidade de
organização exterior seja estabelecida. O ecumenismo pode existir na dimensão interior
de cada diocese. A concepção vertical do universalismo é aquela que pode
afirmar melhor a unidade e o ecumenismo da Igreja, malgrado as divisões
exteriores.
No elemento humano, no mundo natural, o Cristianismo não faz mais do
que se individualizar, o que é bom; mas ele também se encontra num estado de
fracionamento e dissensão, o que é um pecado, e é mal. A Igreja se cindiu, mas nem
na sua natureza ontológica, que é sempre ecumênica, nem na sua verdade divina,
mas na humanidade, que era incapaz de acolher a plenitude do Cristianismo, e
que não assimilava mais do que fragmentos da verdade. a divisão se produziu no
reino de César, pois o Reino de Deus não pode ser senão um. A hostilidade das
confissões entre si constitui uma inimizade típica do reino de César, da
humanidade mergulhada nesse mundo natural. O mundo espiritual ignora essa
animosidade e essa divisão; mas ele próprio se encontra enfraquecido no mundo
natural.
Nesse mundo natural, não existe a unidade exterior da Igreja, pois seu
ecumenismo não está inteiramente realizado. Não somente a divisão entre as Igrejas
e a pluralidade das confissões não-cristãs, mas o próprio fato de que existam
confissões não-cristãs no mundo, prova que a Igreja está ainda em estado de
potência e que sua atualização permanece incompleta. Um ecumenismo expresso
exteriormente, inteiramente realizado, equivaleria à cristianização de toda a
humanidade e de todo o cosmo. Na realidade, essa cristianização não se realizou
mais do que parcialmente até hoje. O ecumenismo da Igreja continua invisível;
somente as divisões são aparentes. Somente assimilando e identificando a parte
ao todo será possível afirmar a unidade visível da Igreja ecumênica; porém,
ainda que a unidade não transpareça, isso não significa que o princípio
ecumênico não esteja agindo invisivelmente.
Não é a Igreja que está provada da unidade, mas o reino desse mundo. No
destino histórico, o que pertence a Deus e o que pertence a César se confundem.
A divisão da Igreja foi determinada por instigações “de César”, e certos
movimentos buscam sua unidade partindo de princípios análogos. Mas a carne e o
sangue dividem, somente o espírito une. Até o presente a maior parte dos
projetos de união das Igrejas são “cesaristas”, e, por conseguinte, ineficazes
e nocivos[2].
Não é nessa esfera que se dará a união; ela não se cumprirá, a menos que seja
em espírito e pela ação do Espírito Santo.
Os tipos oriental e ocidental do Cristianismo se distinguem, não por diferenças
de dogmas ou das organizações eclesiásticas, mas pela estrutura de sua
experiência espiritual, devido à divergência dos elementos humanos, que
receberam e refrataram em si o Cristianismo. A experiência espiritual é mais
profunda do que os dogmas, e lhes é anterior; a organização da Igreja é
determinada pela orientação espiritual da vida dos povos; são, portanto,
diferenças de ordem primordial e vital, as que determinaram os caminhos do
Oriente e do Ocidente; existem duas orientações espirituais do mundo cristão,
cuja existência é predeterminada pelo desígnio divino da história universal. As
diferenças espirituais, vitais e experimentais se manifestaram muito antes da
divisão das Igrejas, e não deveria necessariamente provocá-la. O Cristianismo poderia
existir sob formas variadas dentro de uma mesma Igreja ecumênica.
A patrística oriental sempre se distinguiu claramente da patrística
ocidental. Nela, a tradição do platonismo permaneceu forte, mais mística, com
interesses mais ontológicos e especulativos. Os dogmas foram elaborados
sobretudo pelos doutores da Igreja oriental. Foi no Oriente que apareceram todos
os gnósticos e os heréticos, o que testemunha o intenso interesse que se tinha
pela gnose e pelas questões dogmáticas e de metafísica religiosa. Um Orígenes,
um São Gregório de Nissa, jamais poderiam surgir no Ocidente, onde predominavam
as tradições do estoicismo e do Direito romano. No Ocidente, o interesse estava
voltado para a organização da Igreja, e o lugar central era ocupado pelas
questões da liberdade, da graça e da redenção. A patrística ocidental não
forneceu sequer um grande pensador, à exceção de Santo Agostinho; ela não teve
mais do que escritores notáveis, tais como Tertuliano e São Jerônimo.
No Cristianismo de tipo oriental, é a questão da transfiguração da
natureza humana e da natureza do mundo, a “Theosis”, que foi
fundamental. Essa é a ligação com o caráter muito mais cósmico da ortodoxia,
com sua orientação mais específica para a segunda Vinda de Cristo, para a
Ressurreição. Os doutores da Igreja oriental, Clemente de Alexandria, Orígenes,
São Gregório de Nissa, São Gregório de Nazianze e outros, não elaboraram por si
próprios uma concepção do Cristianismo que fizesse dele uma religião de
salvação pessoal, nem desembocaram numa doutrina da beatitude dos eleitos no
paraíso e na danação eterna do resto do gênero humano. O pensamento oriental é
menos ligado à justificação e à salvação, do que à transfiguração e à
deificação; daí provém sua doutrina da apocatástase.
No Ocidente, em primeiro lugar no catolicismo, depois no
protestantismo, as questões primordiais são as da justificação, da salvação
pelas obras ou pela fé, a avaliação da parte da liberdade ou da graça na obra da
salvação. É por isso que a questão do critério da autoridade adquire tal
importância; existe como que uma noção jurídica, social e organizadora da
salvação. Essa questão jamais inspirou um interesse particular no pensamento
religioso do Oriente. Quando nos conformamos ao critério da autoridade,
pressupomos que a natureza não pode ser transfigurada, que ela está separada de
Deus e oposta a Deus; o natural permanece separado do sobrenatural,
não-transfigurado, não cristianizado, e ele resta disciplinado desde o
exterior.
Na realidade, o natural, enquanto esfera independente da existência,
não existe; ele não passa de um estado de pecado, de uma separação em relação a
Deus. A existência autêntica do homem e do mundo está enraizada em Deus. É assim
que pensava a ortodoxia e nisso ela está mais próxima da verdade do que o
catolicismo. Esse último conhece um dinamismo intenso, mas que não pressupõe a
transfiguração da natureza, sua deificação; ele parece não buscar a cristianização
do gênero humano e do cosmo. Eis porque o catolicismo sempre foi mais jurídico
do que a ortodoxia.
Os ortodoxos e os católicos possuem uma noção diferente da graça. Na ortodoxia,
a graça é o dom do Espirito Santo. No catolicismo, a ação da graça é limitada
pela organização legal da Igreja; a doutrina do Espírito Santo e a da graça são
praticamente identificadas uma à outra. A natureza do Espírito Santo, enquanto
Hipóstase independente da Trindade, não é trazida à luz. A consciência
ortodoxa, ao contrário, em sua profundidade, é essencialmente a religião do
Espírito Santo; as ideias do sacrifício e do resgate, tão caras ao catolicismo,
são estranhas para ela. Daí decorre também toda uma outra concepção da ação do
Espírito Santo, que é considerada como a transfiguração da natureza humana,
como a iluminação, o nascimento de uma nova criatura, e não como uma
reconciliação com Deus, nem como uma justificação do homem perante Deus.
Na realidade, a graça pode modificar o homem, mas não pode justificá-lo,
porque ela é uma ação gratuita da energia divina que se exerce sobre a natureza
humana. De resto, será a justificação humana necessária a Deus? Parece haver aí
uma noção jurídica criada pelo pensamento humano limitado e incapaz de acolher
em si a verdade divina do Cristianismo. Mesmo na ortodoxia, a teologia escolar
está contaminada pela ideia da justificação, ainda que num grau menor do que no
catolicismo. A doutrina teológica acredita que o homem se salva por meio de Cristo,
que ele se reconcilia com Deus pelo sacrifício de Cristo.
Mas, numa profundidade maior, revela-se a nós que o homem se salva,
NÃO POR CRISTO, MAS EM CRISTO, na nova geração espiritual nascida de Cristo, na
nova natureza e na nova vida espiritual. Cristo é, antes de tudo, a revelação
dessa nova vida, do Reino de Deus. A justificação e a salvação não passam de
momentos secundários da via espiritual. É mais fácil para a consciência
ortodoxa perceber isso, do que para a consciência católica. O Ocidente tende
mais do que o Oriente a separar Deus da humanidade, afirmando e expressando em
primeiro lugar a missão da humanidade isolada. É daí que procede a intensa
atividade original do princípio antropológico na instituição do papado. É também
daí que procede o humanismo, que separa definitivamente o homem de Deus. Existe
aqui um nestorianismo de um tipo especial. É fácil criticar o sistema dogmático
do papismo, mas esquece-se habitualmente de que ele é um mito criado na
história da humanidade cristã do Ocidente, e que esse mito se tornou a força
poderosa de um processo histórico, força essa que nem sempre foi negativa.
Os cristãos do Oriente são platônicos pela estrutura de seu espírito,
enquanto que os do Ocidente são aristotélicos. E o que existe aqui não é uma
diferença de doutrinas ou de teorias, mas uma diferença de vida e de
experiência. A ordem natural, segundo a concepção aristotélica e tomista, não é
penetrada pelas energias divinas; ela vive segundo sua lei e não está submetida
à ação organizada da graça exterior. Nós já demonstramos que todo o caminho do
Ocidente, não apenas o do Cristianismo, mas o de toda a cultura ocidental, se
funda sobre a concepção aristotélica da relação entre forma e matéria, entre
potência e ato. A importância da matéria e da potência do ser fica aí diminuída.
A matéria (no sentido grego do termo), ou a potência, constitui o não-ser. O ser
verdadeiro é somente a matéria submetida à forma. A vida perfeita é somente
ato; a vida em potência é uma imperfeição. Daí a atualização, o acabamento, a
organização do catolicismo e de toda a cultura ocidental.
No Oriente, na ortodoxia, todas as forças espirituais não se encontram
atualizadas, acabadas; elas ainda não possuem essa ou aquela forma determinada;
elas estão ainda em estado de potência, não realizadas, ocultas e interiores. E
nós não consideramos isso como uma imperfeição ou como o não-ser. O Oriente
está de fato inclinado a crer que aquilo que é interior, íntimo, escondido,
constitui o ser, em maior medida do que o que está manifestado e disperso. Existe
aqui uma grande diferença. O caminho espiritual do Oriente não pode ser pensado
sob a categoria do aristotelismo. Para a consciência religiosa oriental, o
natural está enraizado no sobrenatural; a energia divina penetra o mundo e o
torna divino. O mundo empírico está enraizado no mundo das ideias, e o mundo
das ideias repousa em Deus. É por isso que existe um cosmo celeste, uma
humanidade e uma Igreja celestes, um mundo de essências inteligíveis, um mundo
de ideias que une o Criador e a criação, que une Deus e o mundo.
O caráter militante do catolicismo representa a vitória da forma
finita, do ato acabado; trata-se da organização da existência pela submissão da
matéria à forma, pela atualização da potência. A vida da humanidade é encarada
como a matéria que deve adquirir uma forma determinada. A Igreja católica, em
sua hierarquia, se vê como um princípio da forma, forma essa à qual devem se submeter
a matéria e o caos da vida. Todas as forças que a vida possui virtualmente
devem ser atualizadas; somente então surgira a existência autêntica; toda a
missão da vida reside nessa incessante atualização. O Ocidente compreende a
vida enquanto ato, enquanto realidade, e daí advém o valor que o catolicismo e
a cultura ocidental atribuem à organização. A organização é o triunfo da forma,
ela representa a atualização das forças potenciais. A hierarquia é considerada
como um exército, a Igreja é compreendida como uma fortaleza e a alma humana
deve se organizar em conformidade com o que fica estabelecido aí. Essa armada e
essa fortaleza devem preservar do caos da matéria, devem submeter a vida à
forma. Esse é o espírito do catolicismo latino. O Ocidente possui uma variedade
infinita, e, no entanto, esse é o espírito que predomina nele.
A ortodoxia não é militante, ela não é atualizada. Ela crê
primeiramente nas forças espirituais interiores e não-organizadas. A predominância
da forma e do ato sobre a matéria e a potência, que é metade existência, metade
não-ser, é um pathos antigo. Os Gregos temiam o infinito enquanto matéria
e caos; o mundo católico e toda a cultura ocidental o temem igualmente.
Encontramos aqui a explicação para a identificação do Reino de Deus com
a vida da Igreja, em seu destino terrestre e histórico. O Reino de Deus toma
uma forma, se organiza e se atualiza na vida da Igreja. A consciência histórica
sufoca a consciência escatológica. O Reino de Deus já não é procurado nem
esperado como a transfiguração maravilhosa do mundo, que deverá se cumprir no
final dos tempos. A ortodoxia conservou antes de tudo o sentimento escatológico
do Reino de Deus; para ela, a Igreja não é ainda o Reino de Deus, pois o Reino
não deverá se instaurar senão no final dos tempos, pois ele está ligado ao Segundo
Advento de Cristo. É por isso que encontramos no centro da ortodoxia a fé na
Ressurreição, na festa da Páscoa, na espera pela transfiguração do mundo. A Igreja
católica espera menos a vinda de Cristo em força e glória, enquanto afirma a
força e a glória de Cristo na Igreja, sem a transfiguração do mundo.
Tanto a ortodoxia quanto o catolicismo afirmam a realidade ontológica
de Deus, do cosmo, do homem e da Igreja. Quando a consciência ortodoxa ou a católica
pronunciam a circunlocução “fé em Deus”, a ênfase cai menos da palavra “fé” do
que na palavra “Deus”. Deus é anterior e mais real do que minha fé Nele. A Igreja
é uma realidade ontológica, e não uma comunidade de crentes. Esse realismo e
essa objetividade começaram a degenerar no catolicismo, na forma de um
formalismo e de um autoritarismo exteriores que tendem a substituir a ontologia
viva.
O protestantismo constituiu uma revolta do mundo subjetivo do homem
contra a autoridade impositiva e imposta desde fora; o centro de gravidade da
vida religiosa foi transposto para a fé, para a atitude interior do homem em
relação a Deus. Havia nisso uma verdade incontestável. Mas o protesto não teve
como se elevar acima da oposição entre sujeito e objeto. Encontramos em Lutero
a predominância do nominalismo e do individualismo. A energia religiosa foi
secularizada e orientada para a criação da cultura. As consequências culturais
da Reforma foram singularmente importantes, mas nos séculos XVIII e XIX essas
consequências já não correspondiam mais à energia e ao gênio religioso de
Lutero. Manifestaram-se processos de desagregação na vida religiosa. No
protestantismo liberal, a religião cristã se deforma e se transforma em ciência
da religião. O protestantismo se levantou contra o autoritarismo e a
heteronomia na religião; ele afirmou a verdade da liberdade de espírito e da liberdade
de consciência; mas em seguida ele se engajou na direção de uma ruptura com a
tradição da Igreja; o elemento protestantista predominou sobre a reforma criativa.
De resto, é preciso notar que o individualismo é inerente, não apenas
ao protestantismo, como a todo o Cristianismo ocidental. A ideia da salvação
individual da alma, assim como a ideia da predestinação de um pequeno número de
pessoas à salvação, constitui um individualismo celeste e metafísico. A esse
individualismo se opõe o espírito do ecumenismo, a ideia do caráter coletivo
dos caminhos da salvação. Na Igreja, somos salvos juntamente com nossos irmãos,
e todos juntos. Aspiramos à salvação universal, vale dizer, à transfiguração de
todo o cosmo. O espírito do ecumenismo se encontra melhor expresso na ortodoxia
do que no catolicismo. A ortodoxia é resolutamente anti-individualista, coisa
que os católicos não compreendem. Mas esse ecumenismo cósmico não encontrou uma
expressão conforme, nem na teologia acadêmica, nem na literatura ascética. Ela a
obteve apenas no pensamento religioso do século XIX, em Khomiakoff,
Dostoievsky, Boukhareff, Solovieff e Feodoroff.
V
É impossível que nossa vontade religiosa não esteja orientada para uma
união das Igrejas, quando a divisão pecaminosa da humanidade cristã será superada.
Significará isso que devemos deixar nossa confissão e passar a um estado de
interconfessionalismo? Semelhante estado seria uma abstração, tão desprovido de
significado quanto o internacionalismo. O termo “inter” não faz nenhum sentido,
não designa nenhuma esfera da existência. O estado de espírito
interconfessional é desprovido de toda energia religiosa criativa. Somente permanecendo
em seu próprio tipo confessional, aprofundando-o e expandindo-o, é possível se
dirigir para o universalismo, para o supraconfessionalismo. Isso significa que
só podemos nos mover em altura e profundidade, e não sobre a periferia.
É por isso que o problema torturante da unidade do mundo cristão deve
ser colocado, não de forma exterior e superficial, mas interiormente. As Igreja
jamais serão unidas por tratados assinados por seus governantes, por convenções
mútuas e acordos. Para que aconteça a união verdadeira das Igrejas, talvez
fosse necessário não a colocar como um objetivo. Na verdade, o ponto de vista
de Solovieff envelheceu, e, de resto, ele jamais viveu a experiência espiritual
do catolicismo. As tentativas de união não fizeram senão envenenar os conflitos
e os antagonismos. Somente o Espírito Santo pode unir as Igrejas; esse evento
não pode ser outra coisa do que o resultado da graça, e ele é inacessível aos
simples esforços humanos. Os governantes da Igreja são os menos capacitados
para unir a Cristandade, pois eles sempre foram a fonte de todas as suas
divisões.
Mas outro caminho se apresenta, e é o da união interior e espiritual
dos cristãos, de todas as confissões, numa atitude animada pelo amor, que permita
com que se reconheçam mutuamente, que possam viver no mundo espiritual das outras
confissões. Somente o caminho interior da união espiritual, e não a via exterior
da organização e do dogma, pode conduzir à reunião do mundo cristão; é preciso,
antes de tudo, um esforço no sentido de modificar as relações recíprocas de ortodoxos,
católicos e protestantes, e não as de suas Igrejas.
É assim que se formará uma trama de Cristianismo universal. Para além
das confissões cristãs se afirma a Igreja única e ecumênica; é possível ter
consciência dela, e permanecer fiel à sua confissão. Os limites da Igreja
ecumênica não coincidem com os das Igrejas visíveis na história; a alma da
Igreja é única, e nela habitam não apenas aqueles que pertencem aos diversos
corpos da Igreja, como também os que se encontram fora da Igreja visível. Existe
uma grande confraria espiritual composta de cristãos, à qual estão ligadas as
Igrejas do Oriente e do Ocidente, e todos aqueles cuja vontade se dirige para
Deus e o divino, todos os que aspiram a uma elevação espiritual.
Eu quero me unir a Joana D’Arc, mas não quero me unir ao bispo
Cauchon, que a mandou queimar; quero me unir a Francisco de Assis, mas não aos
eclesiásticos que o perseguiram. Quero me unir a Jacob Boehme, ao grande místico
que possuía uma simplicidade de coração infantil, mas não quero me unir ao
clero luterano que o condenou. Assim é, em tudo e em toda parte. Na obra de
reunião do mundo cristão, o aprofundamento místico do Cristianismo, no qual o
positivismo e o materialismo da Igreja serão superados, será chamado a
desempenhar um papel preponderante.
VI
A vida religiosa da humanidade possui duas fontes: a massa religiosa
do povo e os grandes inovadores religiosos, os profetas. É por meio dessas duas
vias que a força e a energia divina se transmitem à humanidade. É o que nos
atesta toda a história religiosa. A vida religiosa começa por um estágio social,
ela possui uma natureza social, depois ela se desenvolve no clã e na
nacionalidade, é enxertada na vida das raças e dos povos, na vida do mundo
natural. Mas o destino histórico da vida religiosa sobrevém uma época subjetiva,
na qual a personalidade religiosa aparece e se separa da consciência social,
opondo-se a ela. Então, pela primeira vez se manifestam as religiões do
espírito, por distinção em relação às religiões da natureza.
Os grandes doutores religiosos e os profetas foram os promotores da
religião do espírito. Essa religião, de fato, nasceu das individualidades
religiosas proféticas, e não da massa do povo religioso. Essa última tende sempre
a manter a religião num estado objetivo e naturalista. O gênio profético libera
a vida religiosa de sua base natural e coletiva, ele rompe os laços que ligam a
religião ao Estado; nele se manifestam sempre um individualismo e um
universalismo religioso, indissoluvelmente ligados. Uma das grandes
individualidades proféticas, um dos primeiros doutores religiosos, foi
Zoroastro; na sua religião, o espírito começou a dominar a natureza. Mas as
maiores individualidades proféticas foram, sem dúvida alguma, os visionários da
Antiga Aliança, que marcaram um novo estágio na revelação bíblica.
O profeta, que nisso se distingue do sacrificador, do sacerdote, é
sempre um solitário; ele passa necessariamente por uma dolorosa ruptura com a
religião da massa. O profeta, conforme seu tipo espiritual, se afirma como
portador do princípio subjetivo na vida religiosa, enquanto que a coletividade
aparece como detentora do princípio objetivo. Somente mais tarde os princípios
espirituais, expressos originalmente pela individualidade profética, adquirem
seu valor objetivo, e a vida religiosa penetra num estágio objetivo. Enquanto
que a vida religiosa gera o profetismo, no sacerdócio ela se rebaixa. A individualidade
profética está orientada por sua natureza, não para o passado, nem para o
presente, mas para o futuro. Aquele que vê está sempre descontente com o presente,
ele divulga o mal na realidade que o cerca e espera do futuro o triunfo dos
princípios espirituais superiores, que se revelam a ele na visão profética.
Existe sempre um certo milenarismo no espírito profético, uma
esperança no advento do Reino de Deus no mundo. O profeta espera o dia do juízo
e o triunfo da justiça. O elemento profético é o elemento eterno da vida
espiritual do mundo; ele é a fonte do movimento criativo, que não admite a
ossificação, nem o entorpecimento da vida religiosa. O profeta não respira senão
numa atmosfera de liberdade, ele sufoca no mundo endurecido que o cerca, ele visualiza
sempre o mundo espiritual que deve penetrar esse mundo de baixo, cuja atmosfera
é sufocante. O profeta percebe os destinos do homem e do mundo, ele entrevê os
eventos do mundo empírico pela contemplação do mundo espiritual. A gnose
profética é sempre uma filosofia da história, e essa não é possível a não ser
na medida em que constitua um livre profetismo.
O profeta, ao contrário do santo, está mergulhado na vida do mundo e
de seu povo, ele partilha de seus destinos, mas ele recusa essa vida do mundo,
ele a condena e prediz para ela um fim fatal. Nisso reside a tragédia da vida
do profeta. Ele está condenado a sofrer, ele está sempre infeliz e muitas vezes
é apedrejado. Ele se distingue do sacerdote na medida em que ele vive na
tempestade e na revolta, ignorando o repouso.
O profetismo é muitas vezes hostil ao sacerdócio; ele não constitui
uma religião ritual, nem uma religião sacerdotal. O profeta se distingue do
sacerdote na medida em que ele pertence à ordem humana, à hierarquia humana;
ele é um homem inspirado por Deus. O profeta não aspira à perfeição, à
santidade e à salvação pessoal, ainda que tenha atingido os graus mais elevados
da perfeição espiritual; ele pode ser um santo, como pode não ser. Ele não
abandona o mundo para a salvação de sua alma, mas ele deseja a perfeição da humanidade,
e não apenas a do indivíduo.
No profetismo existe sempre um espírito revolucionário, que não existe
no sacerdócio. O profeta não traz a paz às almas. Na psicologia profética entra
necessariamente uma ruptura. Mas o elemento profético não pode ser o único e
preponderante na vida religiosa. O mundo não teria sido capaz de suportar o profetismo
incandescente que abrasa a alma; ele deve se proteger contra sua dominação
exclusiva. Mas sem esse espírito a vida espiritual teria sido extinta definitivamente
do mundo. Lutero teve uma natureza profética e seu espírito era mais vasto do
que sua concepção religiosa, no sentido limitado do termo. No século XIX,
encontramos o elemento profético em Dostoievsky, Solovieff, Feodoroff, J. de
Maïstre, Carlyle, Nietzsche, Léon Bloy, Kierkegaard. Sem essa categoria de homens,
todo movimento espiritual teria sido detido.
Existe um profetismo no mundo, não penetra no recinto da Igreja. Aqui se
apresenta um dos problemas mais torturantes da consciência da Igreja. Como justificar
a missão profética? Talvez seja preciso, para os objetivos da Providência na
vida do mundo, que essa missão não seja reconhecida como algo realizado dentro
da Igreja; mas, na verdade, ela é uma função sua, tanto quanto o sacerdócio. É só
na superfície que o profeta está em conflito com a religião da coletividade,
com a consciência ecumênica da Igreja, pois, na profundidade, ele se revela
como sendo um órgão dela. Isso costuma permanecer oculto, e não é fácil de se
ver.
O gênio está intimamente ligado ao espírito profético. Seu destino é
tão trágico e doloroso quanto o do profeta, e ambos estão condenados à solidão;
mas neles age um espírito universal. A solidão profética nada tem em comum com
o individualismo. O profeta é a um tempo solitário e social.
Todo o Cristianismo futuro, toda possibilidade de renascimento depende
de que o profetismo seja ou não seja reconhecido e divulgado dentro do
Cristianismo. O renascimento cristão pressupõe não apenas um espírito sacerdotal
de santificação da vida, como também um espírito profético de transfiguração
real. O movimento cristão teve sua origem não só na coletividade popular, mas
igualmente nas individualidades proféticas de todos os graus hierárquicos. A hierarquia
sacerdotal é o elemento indispensável do Cristianismo, mas ela não pode dominá-lo
às expensas do profetismo. A orientação para a Segunda Vinda de Cristo é o
elemento profético do Cristianismo, inseparável dessa religião. O Cristianismo,
ao longo de séculos de objetivação, se endureceu de tal maneira numa religião hereditária,
nacional e coletiva, dirigida exclusivamente pelo sacerdócio, que o espírito
profético se calou nele e chegou mesmo a ser considerado herético. No Cristianismo,
o espírito do profetismo foi representado exclusivamente por mulheres: santa Hildegarde,
Maria do Vale, Catherine Emmerich.
Elementos naturalistas, elementos de religiões naturais e não
espirituais subsistiram no Cristianismo; e o profetismo, orientado para a religião
do espírito, sempre se levantou contra eles, encontramos homens que, ainda que
participando de uma confissão cristã, são pouco cristãos, porque não o são interior
e espiritualmente; eles acolheram sua fé ao modo de uma natureza exterior. São esses
homens que mais temem o espírito profético, pois esse ameaça sua religião
naturalista e tradicional, exterior e autoritária. O próprio Apocalipse, o livro
profético do Novo Testamento, pode ser interpretado de modo não interior, como
um símbolo do espírito, mas desde uma perspectiva naturalista, vale dizer,
materialista. A partir daí já não se distingue o espírito profético e criativo
das visões apocalípticas e acabam por triunfar a superstição e a negação da
vida.
Duas figuras se elevam aos cumes da vida espiritual da humanidade: a
do santo e a do profeta. O homem jamais os ultrapassou. Todos os dois são
necessários à obra divina no mundo, à Vinda do Reino de Deus. Esses dois
caminhos espirituais, o da santidade e o do profetismo, fazem parte da vinda
definitiva do Deus-humanidade, eles entram na vida integral da Igreja e
participam de seu acabamento e de sua realização. Durante um tempo, segundo o
impenetrável desígnio divino, o profetismo pôde agir fora do corpo visível da
Igreja; mas chegou a hora em que o espírito será reconhecido como pertencendo a
ela, como algo que procede de sua profundidade. É pela tragédia, pela
dilaceração visível, pela luta torturante, que se cumpriu o destino religioso
da humanidade. Mas a humanidade se encaminha para o pleroma, para a deificação,
para o Reino de Deus.
Dois desígnios se enfrentam e lutam aqui em baixo: o Reino de Deus e o
reino desse mundo, e é indispensável estabelecer uma distinção espiritual entre
eles. O milenarismo pode ser entendido de uma maneira tangível e materialista,
e assim ele se torna um engano e uma utopia terrestre. Assim foi a construção
da Torre de Babel; trata-se na realidade do reino do Anti-Cristo, o
pseudo-milenarismo, que encontramos atualmente no comunismo[3].
Mas na esperança milenarista existe também uma espera real da Nova Jerusalém,
uma espera pelo resultado positivo do processo universal, pela realização do
Reino de Deus.
As profecias cristãs não são otimistas, elas não justificam a teoria
do progresso, elas condenam amargamente o mal que deve vir sobre o mundo. Mas elas
não são pessimistas, porque estão acima do pessimismo e do otimismo humanos,
pois elas estão voltadas pera o advento de Cristo em toda sua força e toda sua
glória.
***
[1] “Assim
como no tempo dos profetas a simples unção era suficiente, porque os ungidos eram
reis e profetas, também agora os homens espirituais, consagrados pela unção
celeste, se tornam cristãos pela graça, a fim de se tornarem os reis e os
profetas dos mistérios celestes”. (São Macário o Egípcio)
[2]
Refiro-me aqui aos movimentos “Uniatas”, contemporâneos, exteriores e sociais.
[3] E,
mais recentemente, no neopentecostalismo capitalista neoliberal. (N.T.)
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