Para muitas pessoas, eventualmente a promessa da Beatitude dos “pobres
em espírito” pode parecer incompreensível. E o que parece incompreensível, é
aquilo que deve ser entendido pela expressão “pobreza em espírito”. Alguns
fanáticos veem isso, como consistindo num empobrecimento do espírito, numa
libertação de todo tipo de pensamento, para que não se afirme a pecaminosidade
de qualquer pensamento, de qualquer vida intelectual. Outros, que discordam
dessa explicação, veem na palavra “espírito” uma interpolação tardia que não
teria existido no texto original do Evangelho.
Podemos perceber como é necessário entender essa expressão.
No momento da tonsura monástica, a pessoa tonsurada faz, dentre outros
votos, o de nada adquirir para si, vale dizer, o voto de pobreza, que pode ser
entendido no sentido material, ou seja, na renúncia a toda e qualquer
acumulação de riqueza em bens materiais. O cumprimento estrito desse voto deve levar
à bênção da pobreza, mas esse sentido materialista e estrito ainda não é capaz
de revelar a totalidade do conceito: “abençoados são os pobres em espírito”.
O voto de nada adquirir para si pode e deve ser ampliado ainda para a
esfera espiritual, e a pessoa que o abraça, renunciando assim à aquisição
espiritual, receberia a pobreza espiritual e suas correspondentes bênçãos. Mas no
que consiste essa não-aquisição espiritual?
Em oposição à não-aquisição existem, em geral, dois vícios, que na
vida monástica cotidiana pouco se diferenciam: os vícios da mesquinharia e da ganância.
Ao analisá-los, podemos ver que a pessoa mesquinha pode não ser gananciosa, e
que o ganancioso pode mesmo ser pródigo. Podemos apresentar esses dois vícios
segundo a seguinte fórmula. O mesquinho diz: “o que é meu, é meu”, mas em geral
ele não completa com: “o que é seu, é meu também”. Por sua vez, o ganancioso diz:
“o que é seu, é meu”, mas nem sempre fala: “o que é meu, é também meu”. Em especial,
ele pode querer tomar de um estranho, ao mesmo tempo em que não se preocupa em
guardar o que é seu, nesse mesmo caso. Isso pode acontecer, certamente, num
estágio de ganância que se combina com a mesquinhez, e vice-versa. É quando se
fala: “o que é meu, é meu, e o que é seu, é meu também”.
A pessoa que busca a não-aquisitividade, deve ser livre, tanto da
mesquinhez, como da ganância, e deve dizer: “o que é meu, é seu, e o que é seu,
é seu também”. Mas seria simplista pensar que isso se relaciona apenas aos bens
materiais. A não-aquisição, a ausência de mesquinhez e ganância devem estar
relacionadas com todo o mundo interior da pessoa. Sabemos que Cristo nos disse
para entregarmos nossa vida, nossa alma, pelos outros – e aqui, essa entrega da
alma, essa renúncia, essa capitulação, é também aquilo que torna a pessoa pobre
em espírito. Porém, na vida monástica de cada dia, ao contrário, mesmo havendo
uma atitude negativa em relação às aquisições materiais, estamos acostumadas a
considerar a guarda espiritual pessoal como algo positivo. Isso é terrível,
porque se trata, não de um pecado material, mas de um pecado espiritual. Sendo
assim, uma virtude de não-aquisitividade, entendida espiritualmente, deve
tornar a pessoa aberta para o mundo e para os demais. A vida fora da Igreja, e também
com frequência um entendimento distorcido do Cristianismo, nos habituou a uma
acumulação de riquezas interiores, e a um amor exterior à curiosidade bisbilhoteira
– isso é, uma ganância em relação ao mundo espiritual daqueles próximos a nós. Muitas
vezes ouvimos que a pessoa, em seu amor, deve conhecer uma medida, limitar a si
mesma – e isso significa vigiar-se, para seu próprio benefício espiritual, para
seu próprio caminho de salvação.
Mas Cristo não tinha limites em Seu amor pelas pessoas – e, em Seu
amor, Ele rebaixou a Si próprio em Sua Divindade, a ponto de se encarnar como Homem
e tomar sobre Si os sofrimentos de todos. Nesse sentido, Ele nos ensinou por
Seu exemplo a amar, não com medidas e limites, mas de uma forma absoluta e com
uma incomensurável renúncia a nós mesmos, a ponto de entregarmos nossa alma
pelos demais.
Sem um esforço no sentido dessa renúncia de si, não existe
Cristianismo, não existe seguimento ao caminho de Cristo.
E não foi Cristo, mas sim um ideal externo ao Cristianismo, que nos
disse para cumularmos riquezas internas e externas. Sabemos ao que conduz esse
ideal, conhecemos o egoísmo e o egocentrismo que reina no mundo, sabemos o quão
concentrados somos sobre nós mesmos, sobre nossa paz de alma, sobre nossos múltiplos
interesses. Sabemos muito bem disso. A guarda de nosso próprio mundo
espiritual, o fecharmos os olhos, nos conduzem a isso: nós como que nos
envenenamos, começamos a apodrecer, perdemos a alegria, tornamo-nos
intolerantes, caímos na indiferença. Paradoxalmente, empobrecemo-nos quando
fugimos do processo de nos vigiarmos, porque degeneramos num eterno amor
próprio e egocentrismo. Os mendigos, os pobres, cuidam dos seus farrapos e não
sabem que o único sentido disso consiste em não guardá-los, mas em transformar
esse trapos em riquezas, o que signific, dá-los com alegria e amor, para
qualquer um que necessite.
E por que?
Esses farrapos são as riquezas corruptíveis do reino desse mundo. Dá-los,
dar-se inteiramente, entregar sua alma, isso faz com que a pessoa se torne
pobre em espírito, abençoada, porque dela é o Reino dos Céus, conforme a
promessa do Salvador, porque a partir daí ela se torna possuidora de uma
riqueza incorruptível e eterna desse Reino – e isso começa já nessa terra, ao
encontrar uma alegria desmedida, a entrega de si num amor sacrificial, com o
alívio e a liberdade da não-aquisitividade.
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