terça-feira, 6 de outubro de 2020

Maria Skobtsova (Santa Maria de Paris) - O sofrimento e a cruz

 


 

O sofrimento é inevitável na vida. Toda religião tem que lidar com isso. A máxima intensidade do sofrimento é a morte.

 A atitude pré-cristã diante do sofrimento e da morte tentava superá-los a partir de uma perspectiva exterior, e, numa certa medida, ela podia ignorá-los, operando com uma resistência estoica e indiferente ao sofrimento, afastando-os de si e considerando-os como algo externo, tanto quanto possível, e não permitindo que penetrassem na vida interior. Tal foi a atitude dos místicos hindus em relação ao sofrimento, assim como a dos estoicos.

No Cristianismo a atitude em relação ao sofrimento e a morte é praticamente básica e definitiva.

O sofrimento é resultante do pecado. Também a morte resulta do pecado. Fora do pecado, a morte seria uma transfiguração. O homem carrega o resultado do pecado – e, necessariamente, o resultado do sofrimento. É impossível dizer que Deus pune o homem fazendo-o sofrer; ao contrário, o mal é sua própria punição, através das leis irreversíveis de sua lógica interna. Isso está expresso da seguinte maneira, na epístola de Tiago: “Assim como o próprio Deus não é tentado pelo mal, da mesma forma Ele não tenta ninguém[1]”. E também: “Abençoado é o homem que suporta a tentação[2]”.

 Deus não apenas não pude com o sofrimento, como ainda refina o poder do sofrimento por Sua misericórdia. E a manifestação suprema da misericórdia Divina é o sacrifício voluntário de Cristo pelos pecados do mundo, que aconteceu para a sua redenção, para afastar o sofrimento inevitável e eterno. A morte de Cristo na cruz, do Único sem pecado, constituiu o julgamento de Cristo a partir da lógica inexorável do edifício do mundo. Somente Ele foi abandonado pela misericórdia de Deus, a fim de que ninguém mais pudesse ser abandonado em meio às murmurações. Submetido ao sofrimento e à morte, Ele constituiu-se como um julgamento de condenação dessa lógica, tornando-a injusta em relação aos homens em geral. Essa foi a história da vitória de Cristo sobre o sofrimento da morte.

 A morte foi derrotada em sua projeção eterna, mas ela permaneceu como uma experiência na vida humana. Aqui, ela não apenas não foi negada, como ainda o Evangelho insiste em falar sobre seu poder salvífico e purificador: “Entrem pela porta estreita, porque é larga a porta e espaçoso o caminho que levam para a perdição, e são muitos os que entram por ela! Como é estreita a porta e apertado o caminho que levam para a vida, e são poucos os que a encontram[3]”.

“Aquele que não tomar sua cruz e seguir atrás de Mim, não é digno de Mim. Quem quiser salvar sua alma a perderá, e aquele que perder sua alma por minha causa a salvará[4]”. E também: “Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve[5]”.

 Ao aprender a verdade de Cristo, o homem não se liberta do sofrimento. O significado do sofrimento na vida do cristão é bem expressado pelo apóstolo Paulo: “Para que eu não me inchasse de soberba por causa dessas revelações extraordinárias, foi me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás para me espancar, a fim de que eu não me encha de soberba. Por esse motivo, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Ele, porém, me respondeu: ‘Para você basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder’. Portanto, com muito gosto, prefiro gabar-me de minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim. E é por isso que eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias, por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte[6]”.

 Gostaria de citar outro texto, que define a atitude apropriada do cristão diante do sofrimento: “Jesus disse a eles: ‘Minha alma está numa tristeza de morte. Fiquem aqui e vigiem comigo’. Jesus foi um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto por terra, e rezou: ‘Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. Contudo, não seja feito como eu quero, e sim como tu queres’[7]”.

 É dessa maneira que o Cristianismo ensina a transformação do sofrimento no homem, através de sua aceitação, uma vez que Deus permite esse sofrimento. É necessário relacionar-se com ele com humildade e sobriedade. É completamente inaceitável exultar com o próprio sofrimento, orgulhar-se vaidosamente dele. E Deus não ensina apenas com a dor, mas também com a alegria. A tristeza não é preferível ao regozijo. “Aqueles que não comeram e não agradeceram a Deus, enquanto outros comeram e agradeceram – a nisso ambos estão certos”.

 O estaroste de Optina, Barsanulfo, disse: “Alguns jejuaram, mas outros irmãos comeram, então não se gloriem disso. Em tudo existe apenas a cura da alma. Alguns precisam jejuar, para que com esse tratamento obtenham a saúde, enquanto que outros irmãos não necessitam desse remédio”. A humildade e a sobriedade na aceitação do sofrimento, e mesmo da morte – que Deus dá e Deus tira – essa é, indubitavelmente, a visão caraterística dos ascetas Ortodoxos.

 Os Católicos têm uma atitude diferente diante do sofrimento. Existe aí um culto do sofrimento. Santa Tereza deve sofrer ou morrer. Assim é que eles contam os tapas que Cristo recebeu, anotam todos as ferramentas de tortura empregadas pelos executores, e meditam sobre sua refinada crueldade.

 Angele de Foligno disse: “Eu contemplei o Deus-homem, quando o baixaram da cruz. Seu sangue estava espesso, fresco, vermelho, e escorria de suas feridas abertas. Entre a carne dilacerada eu pude ver os nervos e os ossos nus”. Na prece de Santa Gertrudes, temos: “ó Senhor misericordioso, marca com Teu sangue os traços de Tuas sagradas feridas sobre meu coração, para que a memória de Teus sofrimentos nele viva eternamente, para que eu possa sempre sofrer Contigo. Pelo poder de Teu coração trespassado, trespassa o coração de Gertrudes com as flechas de Teu amor”. Esse é o culto do sangue sagrado. Ainda Angele de Foligno: “Eu não dormi. Cristo chamou-me e concedeu-me tocar com os lábios Seu flanco ferido. Eu encostei ali meus lábios e bebi o sangue, e naquele sangue ainda quente eu percebi que havia uma purificação”.

A partir desses estados mentais se desenvolve a sede pelos estigmas, uma forma material de partilhar os sofrimentos de Cristo.

É difícil entender a correlação dessas atitudes sensoriais e exultantes em relação aos sofrimentos de Cristo, diante de Sua carne e sangue, para demonstrar a fé no mistério da Eucaristia.

 Ao final, uma coisa exclui a outra. Ou bem existe uma comunhão genuína do Corpo de Cristo, tal como a encontrou Angele de Foligno, que bebeu Seu sangue – e então, para ela a Eucaristia se torna desnecessária – ou bem existe nessa atitude uma tentadora distorção do mistério sacrificial de Cristo, que distorce o significado autêntico da Eucaristia.

 Em qualquer caso, essa emotividade especial dos santos Católicos dificilmente seria concebível no Oriente Ortodoxo.



[1] Tiago 1: 13.

[2] Tiago 1: 12.

[3] Mateus 7: 13-14.

[4] Mateus 16: 24-25.

[5] Mateus 11: 28-30.

[6] II Coríntios 12: 7-10.

[7] Mateus 28: 38-39.

Nenhum comentário:

Postar um comentário