A
doutrina da Deificação na Igreja Grega até o século XI[1]
I
Fundamentos Teológicos
INTRODUÇÃO
A theoria (a contemplação aliada ao estudo) da patrística
grega, recolhida, continuada e amplificada pelos Bizantinos, seus herdeiros
diretos e legítimos, constitui um mundo à parte, inteiramente fechado às
infiltrações de fora. É um mundo no qual a vida íntima do espírito dorme como
uma água esquecida no fundo de um poço. Sua doutrina da contemplação, que não
podemos dissociar do ensinamento dogmático da Igreja-mãe, forma um todo
homogêneo. Sobre mais de um ponto, essa doutrina, platônica até em seus últimos
frutos, cristã e oriental desde sua raiz, se distingue do Ocidente latino e
permanece ainda hoje desconhecida dele – ou, por ele, mal interpretada.
Todo o edifício repousa sobre a pedra angular de um duplo conhecimento:
o da teognose apofática, ou conhecimento da natureza divina, incrustrado nas
trevas que constituem a franja de sua Luz inacessível, e o da antropologia
mística, ou conhecimento da natureza humana, perscrutado nas profundezas de seu
destino primeiro, e nas deformações de seu estado presente, que é preciso
reerguer antes de revivê-lo plenamente e de uma vez por todas.
Inicialmente, Deus é desconhecido, agnostos Theos, Ele está
além da existência, do ser, da razão, Ele é absolutamente incognoscível e
indizível. Essa agnosia, que começa por levantar uma barreira intransponível
entre o incriado e o criado, se encontra na base de toda especulação judaico-cristã[2].
Já Fílon de Alexandria, que apresenta uma síntese tão pessoal da inspiração
bíblica, da metafísica helenística e da mística oriental, reconhecia o mysterium
tremendum desse Deus, que escapava aos instrumentos da inteligência, porque
ultrapassava a própria inteligência. Ele é apoios, sem limites, sem
qualidade determinada, ao mesmo tempo em que é infinitamente rico em todas as
perfeições. Para concluir: “É preciso ser Deus, declara Fílon, para compreender
Deus”. E eis que, pela primeira vez na história, aparece em primeiro plano,
fortemente matizado pelo entusiasmo profético, a grande descoberta do espírito
humano: a intuição do divino através do êxtase. Semente vinda de longe, lançada
sobre um terreno admiravelmente preparado, e que germinará lentamente sob a
terra, o caráter gratuito desse êxtase já se desenha no precursor judaico da
mística cristã.
O Cristianismo dos primeiros séculos, ao proclamar a teofania do Verbo
feito carne – que não é o Logos de Fílon, cuja encarnação é impossível –
manteve ciumentamente a transcendência do Princípio sem princípios. A palavra
do evangelista, “ninguém jamais viu a Deus”, foi retomada, meditada e
aprofundada no sentido joanita pelos Padres da Igreja nascente, adversários
irredutíveis dos orgulhosos sistemas gnósticos que violavam o mistério depois
de havê-lo entronizado. Mas somente a majestade do “Não-gerado” permaneceu
insondável aos olhos dos doutores da lei. Para Santo Inácio de Antioquia, fiel
ao pensamento do Quarto Evangelho, que em seu tempo já se encontrava fixado por
escrito, somente o Verbo revelava o Pai, sempre desconhecido, e cujo atributo
primeiro era o “tranquilo silêncio”. Esse Filho, cuja unidade indissolúvel com
o Pai foi proclamada pelo bispo mártir, até fazer Dele – em aparência – um só
ser divino, era chamado por Inácio em suas epístolas, de palavra ou boca
“verídica” pela qual o Pai falara, tanto aos profetas do Antigo, como aos
Apóstolos do Novo Testamento: “Ele é o Verbo que saiu do silêncio”.
Os apologistas acentuam primeiro o caráter específico do Logos,
pré-eterna energia e ideia criadora do Pai. E, com sua teoria da dupla geração-proclamação
do Filho, eles especificavam ainda sua atitude diante do Pai: em face do Deus
oculto, o Deus revelado. Justino o Mártir emprega, para designar o Pai do
universo, o único “não-gerado” e inominável, uma expressão platônica que
devemos reter: “além de toda essência[3]”.
Sua teologia da filiação divina do Verbo, gerado antes de todas as criaturas e
visível apenas a elas, é claramente subordinativa, recuando em relação à
cristologia de Santo Inácio, que de resto possuía um caráter mais religioso do
que filosófico[4].
O grande teólogo do século II, Santo Irineu, bispo de Lyon, embora
mais próximo do que Santo Inácio da concepção que, definitivamente, triunfará,
afirma com todas as letras a nossa impossibilidade de ver o Pai, a não ser por
intermédio do Unigenitus Filius, porque “o homem, por si só, não vê a
Deus[5]”;
mas, “se o Pai do Filho é invisível, o Filho do Pai é visível[6]”.
Ao mesmo tempo, esse último dos Padres apostólicos nos mostra, bem acima de
nosso conhecimento natura do Criador pela criação, um outro, mais perfeito: o
conhecimento “segundo o amor”, que se opõe ao conhecimento impossível “segundo
a imensidão”.
No Concílio de Niceia, em 325, impôs-se, como sabemos, com o brilhante
campeão da Ortodoxia, Santo Atanásio, a crença na consubstancialidade das duas
hipóstases. Daí por diante, o mesmo mistério, no que concerne ao conhecimento
último, abarca o Filho, igual e semelhante ao Pai, até que os uma o Espírito
Santo, cuja natureza é idêntica. Pareceria então que toda comunicação imediata
deveria ser cortada entre a mônada trina e a criatura racional. Mas não foi
isso que aconteceu. Pois essa criatura, chamada, conforme a crença cristã, para
um destino sobrenatural, invencivelmente atraída por sua causa eficiente e por
sua causa final, deveria iniciar, desde aqui de baixo, o itinerarium mentis
ad Deum.
Para compreender como a antinomia foi resolvida na espiritualidade
grega, é preciso primeiro analisar sua noção apofática da deidade, a única
adequada ao seu objeto, infinito e absolutamente simples, único exaustivo,
devido à sua própria indeterminação. Estudar a seguir a estrutura íntima do
homem, tal como teria sido antes do pecado, tal como se tornou por causa do
pecado e tal como deverá ser novamente, para conhecer plenamente, para poder
amar e contemplar santamente na união transformadora. Compreender enfim, por
qual movimento duplo convergente, de inclinação divina e ascensão humana, pode
se efetuar o encontro supremo: o encontro do homem com Deus, a união que
deifica pela graça.
A TEOGNOSIA APOFÁTICA
O leito da teologia negativa havia sido cavado e a ponte de arco-íris
havia sido lançada sobre o abismo entre Deus e o homem, antes ainda do
Pseudo-Dionísio, desde os umbrais do século III, na gnose alexandrina.
Inspirada pelo neoplatonismo e o estoicismo enquanto pensamento, por Fílon,
enquanto experiência extática, oriental por sua terminologia emprestada aos
Mistérios, essa gnose, entretanto, é profundamente cristã. Impossível negar
suas ligações com o Quarto Evangelho, o da Luz-Verdade e da adoção divina,
assim como impossível é recusar a grande novidade de sua mensagem. Foi Clemente
de Alexandria que, entreabrindo a porta secreta, primeiro declarou que “não
conhecemos a Deus, senão naquilo que Ele não é”, e que esse conhecimento
intuitivo constitui uma revelação imediata. Ele assim estabeleceu o próprio
princípio da doutrina apofática da qual se encontra suspensa, como por um fio
de ouro, toda a mística grega. Um conhecimento das coisas divinas, ou seja, do
incognoscível, não pode ser racional. Ele não pode ser obtido, com efeito,
senão por uma iluminação carismática de todo o ser, e precedida por diversos
graus de iniciação. Se Clemente se serve de bom grado da linguagem dos
mistérios pagãos, e nos fala em hierofantia (ostentação dos objetos
sacros) e de epoptia (o mais alto grau de contemplação dos mistérios),
ele sempre subentende com isso a iniciação cristã, na qual o Verbo encarnado é
o centro irradiante, “Filho único que é a marca da glória do Pai”. Trata-se de
uma adesão direta da alma crente, elevada pela graça, uma tomada de posse de um
bem, impossível de se conquistar apenas pelo esforço da vontade, ou mesmo de um
pensamento purificado. E nós veremos que alguma coisa do mistério abissal
permanecerá inacessível para todo o sempre, não por sua imperfeição, ou por uma
impotência sua em se tornar sensível, nem por causa da fraqueza de sua
inteligência. A razão está em outro lugar, na própria natureza do objeto.
Orígenes, que abriu um largo caminho para as teologias positivas do
futuro, e que, com olhos de água, pretendeu perfurar todas as brumas, conservou
sempre a esperança de atingir a essência da Mônada una: expurgando o espírito,
preservando-o de todo contato material, ao estilo de Plotino. Seu mestre,
Clemente, era mais consequente consigo mesmo, mais obediente às severas lições
que vinham do fundo da tradição. Uma vez que “Deus não pode ser alcançado nem
por imagens, nem por ideias, estando fora de toda e qualquer propriedade
inerente às coisas”, não é possível mais do que tocar a periferia de seu ser
sobre os cumes da gnose. Essa gnose inspirada dos eleitos e dos perfeitos era,
para Clemente, muito superior à fé (pistis) dos simples fieis, no que
ele se separa do judeu Fílon, cuja influência sofreu, e do ponto de vista da
exegese alegórica das Escrituras. Mas Clemente jamais se fechou na torre de
marfim da alta aristocracia, como tantas vezes o acusam. Pois, para ele, todo
crente é um gnóstico ou um sábio em potência, e essa sabedoria implica, junto
com a ascese purificadora, a fé, mãe de todas as virtudes cristãs. Ademais, a
gnose pneumática é sempre “uma graça que ilumina o espírito”. Trata-se do dom
da ágape, onde caridade, inspiração e ciência sagrada são inseparáveis[7].
Essas coisas permanecerão em toda a teologia mística dos gregos, que vêm em
linha direta da gnose ortodoxa de Alexandria. Enfim, o Deus de Clemente,
planando acima do inteligível e acima do sensível, oculta em si uma vontade de
benevolência pessoal – a filantropia, expressão cara à patrística. E
nosso Doutor compara o divino “Filantropo” à ancora invisível que atrai para a
margem aqueles que a ela se agarram. Bela imagem da graça previdente cuja noção
mesma era estranha à soberba dos filósofos e à embriaguez dos iniciados de
Eleusis da antiguidade pagã[8].
Em boa hora canonizado por sua Igreja, o mestre de Orígenes, mais
seguro para se seguir do que seu genial aluno, exerceu uma influência decisiva
sobre os pneumatikoi do monaquismo no Oriente e em Bizâncio. O Stromates
parece ter sido um dos livros de cabeceira de São Macário (ou Pseudo-Macário),
de São Nilo, de Evagro o Pôntico, de São Máximo o Confessor enfim, o que faz
justiça ao “mais filosófico dos filósofos”. Encontraremos muitas vezes o nome e
a marca espiritual desse nobre mistagogo, escondido sob o amplo manto platônico
ou estoico. Na via real que conduz à contemplação-união, ele será o primeiro,
embora longínquo, condutor do rebanho eleito. Caberá a outros o cuidado piedoso
de refundar a mística abstrata do Logos didaskalos, como mística viva de
Jesus Cristo. Essa será a obra dos séculos IV e V, dos construtores do dogma e
da Ecclesia.
Uma questão precisa, que já tocamos de leve, se coloca agora: o que
pode o espírito criado conhecer de Deus, o que pode ver Nele? A resposta para
essa questão, em geral pouco estudada, é, a nossos olhos, de uma importância
capital, tanto para a especulação pura como para a experiência mística ligada a
ela. Com efeito, ela traça uma linha de separação clara entre as duas
teologias, a grega e a latina, uma linha de separação das águas que remonta a
Santo Agostinho, quem, nesse ponto em especial, rompeu com a tradição
patrística grega, em geral pouco conhecida por ele. seu último representante no
Ocidente fôra Santo Ambrósio de Milão, canal principal, mas não único, por onde
essa tradição passou até chegar ao bispo de Hipona.
Os Padres gregos, partindo da ideia do ser, sempre distinguiram em
Deus a essência e as forças (“energias”), fossem potenciais, fossem
atualizadas, distinção que remonta, sob sua forma geral, à filosofia antiga[9].
Já Plotino, depois de Aristóteles, afirmava a incognoscibilidade de toda
essência, pois, sendo simples, sem acidentes e indivisível, ela não pode ser
apreendida pelo pensamento, que é múltiplo e limitado. Como sonhar assim em
conhecer a essência divina, abraçar o Infinito com um espírito finito? Não
somente esse é impensável por definição, como ainda a própria força – que é
distinta da essência, na medida em que não é exteriorizada e não se torna
energia – aparece como “treva” aos seres criados no tempo ex nihilo.
A razão, iluminada pela fé, pode certamente emitir algumas verdades
positivas sobre Deus. A teologia catafática, explicitando essas verdades
positivas, chega a construir, peça por peça, todo o dogma: mas esse não passa
da refração do mistério través do prisma do pensamento, uma ilhota que emerge
do oceano do incognoscível. O último mistério permanece impenetrável, revelado
unicamente pelas energias incriadas e criadoras que derivam diretamente da
essência incognoscível do Deus trino[10].
Elas manifestam a perfeição da divindade – ao mesmo tempo em que velam seu
brilho – tantno pela beleza do Cosmo, como pela sabedoria das leis que o
governam. Assim é que as forças atualizadas do Ser único formam a base da
pirâmide que sobe, estreitando-se cada vez mais, até a essência incognoscível;
elas são o único aspecto visível do Deus invisível. Pontos de partida de nossa
teognosia humana, que é ao mesmo tempo uma teodiceia, essas atividades – ou
teofanias – trarão sempre os nomes divinos de Onipotência, de Bondade, de
Inteligência ou de Providência, simples atributos que não podem, senão de modo
imperfeito, qualificar o Inqualificável, e menos ainda esgotar o conteúdo do Princípio
infinito.
Essa concepção já era familiar a Fílon, com uma nuance: ao isolar Deus
numa solidão imutável, Fílon o fazia comunicar-se com o mundo por intermédio do
Logos, a um tempo Inteligência e Força criadora, Theia dynamis (potência
divina), distinto das Potências que sustentavam sua criação. O dogma trinitário
ortodoxo não podia admitir semelhante degradação do divino em suas hipóstases,
igualmente incriadas, idênticas como natureza e inseparáveis. Mesmo a tríade de
Plotino, substancial de outro modo, mas assim mesmo emanatista, do “Um, do Nous
e da Alma do mundo”, pode ser considerada análoga, mas nunca o protótipo, da
Trindade cristã, que nada tem, nem pode ter, de uma hierarquia, qualquer que
seja[11].
É verdade que podemos constatar algumas flutuações, que já mostramos
mais acima, no dogma trinitário da teologia ante-nicênica. Em Atenágoras, por
exemplo, o Logos, que é consubstancial ao Pai apenas em potência, não é outra
coisa do que o conjunto das Ideias que agem no universo. Quando toda pretensão
à subordinação desaparece, a incognoscibilidade se torna apanágio de toda a
Trindade, e as energias, irradiando de um centro único, pertencem, sem
distinção possível, às Três Pessoas, cuja essência é uma[12].
E essa essência, repetimos, jamais pode ser plenamente percebida, mesmo no
êxtase, por ser um estado teopático, vale dizer, um estado no qual o homem está
submetido diretamente à ação de Deus. A união do criado com o incriado não se
dá senão por intermédio dos raios-forças que deificam. Daí procede a absoluta
impossibilidade da visão dita intuitiva. Nada seria capaz de preencher esse
abismo ontológico, uma vez que os próprios Anjos, que se banham na “luz
tri-solar”, não são capazes de penetrar no coração do inviolável mistério
derradeiro. Mas os espíritos puros sabem que nada sabem, e esse é o ápice do
conhecimento apofático. Assim é descartada toda suspeita de panteísmo.
O mérito da escola capadócia, caminhando sobre as pegadas dos
primeiros Padres, foi o de ter lançado uma luz sobre essa discriminação
verdadeiramente fundamental. Sempre subentendida por Clemente o Gnóstico, ela é
às vezes esquecida pelo intelectualismo gnosticizante de Orígenes, o qual,
devido a esse desvio, não pode nos servir de guia aqui.
O bispo de Cesareia, São Basílio, lutando contra o arianista Eunomo,
proclamou abertamente, em nome da Tradição autêntica da Igreja, que a única
revelação de Deus se dá através de suas teofanias. E ele especificou: de um
lado, a essência incomunicável, de outro, as energias que dela emanam. Os dois
Gregórios, e em especial Gregório de Nissa, primeiro metafísico da vida
contemplativa grega, deslindaram à perfeição o intrincado problema. Esse último
doutor, discípulo ortodoxo de Orígenes, a quem deu continuidade, corrigindo-o
em mais de um ponto doutrinário, ensinou que o próprio Verbo não revelou mais
do que uma parte da força teúrgica latente. Quanto à natureza divina, ele não
pôde dá-la a conhecer, porque ela não tem nome, sendo assim indizível. E essa
ausência de nome é simbolizada pela “treva divina” na qual entrou, no Sinai,
Moisés, o primeiro homem vivo arrebatado em êxtase[13].
Essa treva não é outra coisa do que o ofuscamento provocado pela Luz divina.
Com Gregório de Nazianze, o bispo de Nissa nos mostra, em sua Vida de Moisés,
que lhe foi inspirada pelo modelo de Fílon, aquilo que, em Deus, pode ser
comunicado de modo imediato: o aspecto de seu ser que está voltado para o mundo,
que não subsiste senão por essa ação da energia divina, estável. “Tu me verás
pelas costas”, foi dito ao chefe do povo eleito, e a mão de Javé, que passava,
lhe escondeu Sua Face, “que ninguém pode ver sem morrer[14]”.
Entretanto, a gnose, sabedoria iluminada pela graça do amor santificante,
permite ao espírito deiforme contemplar os raios-reflexos dessa Face, e se unir
a eles.
O ensaio de uma síntese harmoniosa, que delimitasse as duas teologias,
catafática e apofática, foi tentada pelo enigmático autor das Areopagíticas,
provavelmente no final do século V, cerca de cinquenta anos após a morte de
Santo Agostinho. Talvez essa data, desconhecida pela história, marque o evento
mais considerável para a mística cristã, mesmo para o Ocidente latino, que só
adotou Dionísio com certa reserva, como que perturbado pela estranha intensidade
de sua vertigem metafísica. Pois não é por citá-lo com frequência, que isso
implique inspirar-se verdadeiramente nele, como podemos ver pela gnose prudente
de São Tomás de Aquino. Somente Maître Eckart (e talvez Tauler e Ruysbroeck),
tão próximo como afinado com a especulação transmitida por Scottus Erigena,
parece possuir uma alma dionisíaca. Mas a sombra do Areopagita plaina sobre
toda a Idade Média contemplativa. O que a experiência afetiva medieval sempre
acrescentou a esse pensamento, elevado e diáfano, mas sem calor, foi a centelha
de uma emoção, nascida do distante braseiro agostiniano, e que se tornou ainda
mais ardente depois de São Bernardo.
Quanto aos gregos, eles devem à fonte dionisíaca, filtrada para eles
por São Máximo o Confessor, uma cristalização perfeita das ideias que lhes eram
congênitas. Entre essa fonte e a de Santo Agostinho, eles não precisaram nem
hesitar nem escolher, pois da segunda, que escoa tão longe da outra, nossos
Espirituais jamais se saciaram. E, não esqueçamos que, desde o século IV, no Egito,
berço da vida contemplativa, a ascese mística desabrochou sobre o próprio ramo
da gnose cristã alexandrina e dionisíaca.
Apenas algumas palavras, a respeito da especulação apofática do
Pseudo-Dionísio, muito mais cristão e muito menos dependente de Proclus, do que
em geral se afirma até hoje. Um crítico russo, Vladimir Lossky, a apresenta sob
uma nova luz. Dele emprestamos, em grande parte, a exposição que se segue, e
que resume os pensamentos diretores do tratado dos Nomes Divinos. O
principal é: Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente.
O autor dos Livros areopagíticos nos mostra em primeiro lugar que as
duas vias, a afirmativa e a negativa, embora irredutíveis uma em relação à
outra, conduzem ao mesmo fim: o conhecimento da Trindade santa. Essa Trindade
contém em si as hénoseis, uniões, “residências secretas de Deus que não
se manifestam”, e as diakriseis, separações que se produzem
primeiramente no seio da vida intradivina. Saindo da divindade, por toda a
eternidade elas se revelam em múltiplas aparições às criaturas. Luzes divinas, filtradas
pelo sensível, essas proodoi ou “processões” não são outra coisa do que
as ideias ou energias incriadas: por meio delas, Deus governa a tudo, e, por
sua vontade, delas participam os seres. Toda existência e toda substância
procedem assim dessas dynameis, a que chamamos de “nomes divinos”.
Sabedoria, Vida, Ser, Existência, essas coisas significam forças
conferidas pelos dons que são assim denominados. Em suas incessantes teofanias,
as energias criadoras em nada alteram a simplicidade perfeita da natureza
divina, ainda que elas próprias sejam a Divindade, que em absoluto é diminuída.
Assim sendo, não há perda alguma da essência divina, nenhuma degradação da Luz primeira,
nenhum “emanatismo” no sentido próprio, nenhuma identidade de natureza entre o
Princípio livremente criador e as criaturas, arrastadas nas ondas teúrgicas
pelo efeito da graça. Os “raios supra-essenciais”, ao descer até as criaturas,
as fazem participar da vida divina, por maneiras prescritas por Deus. E essas
maneiras, analogiai, que nada têm em comum com as “analogias” de São
Tomás de Aquino, são as Ideias das coisas, pré-existentes nas virtudes de Deus.
Elas vêm até nós emergindo das trevas da Essência desconhecida. Princípios e
fins das coisas criadas, essas Ideias platônicas contêm as causas de todos os
seres, e se comunicam ao mundo incansavelmente. “Deus confere a todos Sua visão
(theoria), participação (koinonia) e semelhança (homoiosis),
segundo a ideia divina de cada ser”. O conhecimento perfeito de todas as participações,
declara Dionísio, une aos raios que iluminam a insondável Sabedoria; ao mesmo
tempo em que elas nos deslumbram, elas nos mergulham na “novem do
desconhecido”. Ali se esconde, no fundo da hesychia – o repouso, a Paz
silenciosa – o mistério da Causa primeira, do Deus uni e trino, que está para
além do ser. Mistério supremo que se coloca na intersecção do duplo eixo das
teologias, negativa e positiva. Pois as três hipóstases são a um tempo tanto as
henoseis, uniões, como as diakriseis, separações, no interior da
Trindade santa, que se revelam exteriormente. Ora, somente as últimas
permanecem acessíveis ao olhar humano. Deus criou o mundo para manifestar Sua
aparição às criaturas e atraí-las para Si pelo desejo ou o amor, Eros. O
objetivo da criatura é a deificação pela graça: a theosis[15].
Após essa brevíssima análise, vemos a partir daí que a união
deificante não pode ser outra coisa do que o fruto de um conhecimento negativo
último. O fundo, sobre o qual se projetam como faíscas luminosas, as energias
do Ser, permanece sempre obscuro. E existe ainda outra particularidade, não
menos importante, e que desenvolveremos mais adiante: a deificação que participa
apofaticamente se dá para cada criatura de modo individual, que é determinado
pelo grau de sua perfeição e por sua natureza própria; isso, ao contrário da
via comum catafática, é sempre estritamente objetivo. Daí provém a
imutabilidade do dogma ecumênico, espinha dorsal de toda a consciência
eclesial, e a superabundância de graças, que se adapta às almas em suas
hierarquias, iluminadas e purificadas cada qual a seu modo. Graças que são,
também elas, incriadas – não nos esqueçamos disso[16].
Tudo é diferente dessa mistagogia hermética, no sistema simples de
Santo Agostinho, que foi chamado, não sem razão, de primeira filosofia cristã,
embora, de fato, a experiência vivida tenha sido do coração. Platônica, porque
acima dela se desdobra o céu das ideias-mãe, o pensamento agostiniano
inunda o universo de luz inteligível[17].
Mais do que isso, a noçãode unidade aí predomina, tanto na metafísica quanto do
ponto de vista do dogma[18].
A simplicidade e absoluta “ipseidade” do Princípio sem começo nem fim, definido
como Bem Supremo, parece obrigar o bispo de Hipona a não separar, ao contrário
dos Padres gregos, a essência divina das Forças ou Energias, que mais tarde o Tomismo
irá chamar de “operações”, transformando-as em criações. Para Santo Agostinho –
e sobre esse ponto todo o Ocidente o seguiu – existe em Deus uma identidade de
substância e de existência, do quo est e do quod est, ou dito de
outra maneira: Deus é o que existe.
Logo caíram as sutis distinções implicitamente reconhecidas pelos
Padres gregos, fixadas de uma vez por todas pelo Areopagita, e que teceram a
trama viva da mística grega e bizantina[19].
E então, malgrado a extrema circunspecção de Santo Agostinho, abriu-se de um
golpe à contemplação o perigoso caminho do ontologismo, da visio Dei per
essentiam. Ele próprio manteve erguida a barreira entre o Criador e a
criatura, sempre prisioneiro da matéria, sempre engajado na massa do sensível.
Somente o rapto – o arrebatamento – reservado a pouco eleitos, como Moisés ou
São Paulo, podem lançar essa criatura, pelo espaço de um raio, na plena luz dos
céus, na face-a-face dos bem-aventurados[20].
Aqui em baixo, a alma, embora iluminada pelas ideias divinas, não pode ver as
coisas diretamente em Deus. Daí a visão imperfeita, mediata[21].
O espírito, purificado pela vontade, desfruta apenas do raio
“vesperal”, como dirão mais tarde os místicos medievais, e é ainda a visão “em
espelho e em enigma”, sob o véu das sombras[22].
Sempre atraído pelo peso de seu desejo – amor meus, pondus meum – o
espírito agostiniano tende com toda a força de suas asas para a graça da visão
beatífica, a única que pode lhe conceder a “luz de glória”. Ele se sente e se
sabe ordenado à beatitude – mas não à deificação; pois essa lhe é
proibida, uma vez que não pode haver, no entendimento de Santo Agostinho, consubstancialidade,
portanto interpenetração, da natureza divina com a natureza humana. Tudo se
reduz a uma participação íntima ao Bem Supremo.
Ora, a deificação, antecipada primeiro e como que preparada in via,
completada a seguir in pátria, constitui para a patrística grega, que
separa as energias essenciais da essência, o princípio mesmo do
plano da criação, o objetivo supremo da Encarnação do Verbo e da vida criada. Por
isso, as pontes foram bruscamente cortadas entre os dois mundos, o Oriental e o
Ocidental, da teologia cristã. E cada um, muito antes da ruptura oficial, mais
profunda do que se costuma crer, seguirá a curva de seu próprio destino. Somente
as linhas unitivas, em ondas infinitas, mais de uma vez se entrecruzaram sob as
estrelas...
A diferença transparece, ainda mais significativa do que nas duas
teognosias, na dupla antropologia, para a qual devemos agora dirigir nossa
atenção.
A ANTROPOLOGIA MÍSTICA
Começando por Santo Irineu, todos os teólogos gregos, do século II ao
XIV (inclusive) relataram e repetiram, com toda a precisão devida, a mesma
história dramática em três tempos: a do homem, nascido em beatitude, na athanasie
(imortalidade) da filiação divina, morto pelo pecado, revivido pela graça e
reunido pelo Espírito Santo, no seio do Cristo-Logos, sob a Luz trina. Todos concordaram
em proclamar que, feito à imagem e similitude (homoiosis) – e não à
simples semelhança – de Deus, Adão deveria ser um participante, por direito de
nascimento, da glória[23].
Dito de outra maneira, a verdadeira natureza do homem no paraíso terrestre
seria sobrenatural. Esse homem, criado livre e imortal, em estado de perfeição
progressiva ou dinâmica, colocado assim no futuro, era o centro do universo, um
microcosmo, pertencendo simultaneamente, por sua própria composição, tanto ao
mundo inteligível como ao mundo sensível. Órgão, e não instrumento passivo, da
vontade do Criador, Adão tinha uma missão a cumprir. Desde seu primeiro dia,
Deus lhe havia assinalado como objetivo, conforme diz Santo Irineu, “a absorção
da carne pelo espírito”. Pois esse deveria ser o fim de todo o sensível, destinado
a amadurecer como inteligível[24].
Nesse plano da criação está inserida a ideia-mestra do Logos, imagem
perfeita do Pai e marca de Sua glória, princípio da ordem cósmica, protótipo
ideal da criatura inteligente. Segundo Santo Atanásio, seguido pelos Capadócios
e por São Máximo o Confessor, o nous, esse olho da alma, era logikos,
vale dizer, conforme ao pensamento criador, à palavra proferida por Deus Pai. Pois
aquilo que o Pai concebe, se realiza pelo Logos e se termina em perfeição pelo
Espírito.
Eis então o homem estabelecido ab initio nessa comunhão
estreita com a divindade, à qual Santo Irineu chamou de Koinonia, e que
as gerações patrísticas seguintes confirmarão com toda sua autoridade, com toda
a força de sua convicção inquebrantável: ele é, por adoção, filho do “dia
divino”.
O grande dialético da mística bizantina do século VI, São Máximo o Confessor,
apôs um carimbo pessoal, muito particular, à teoria dos logoi,
embrionária em Santo Atanásio, tornando-a sua. Tricotomista, como todos os
Padres gregos, que distinguiam no composto humano o corpo, a alma e o espírito,
Máximo considerava o nous (que é o spiritus agostiniano, a mens
ou a apex mentis dos medievais, o homem interior de Eckart
e de Tauloer) – esse “norte” da alma intelectual – como sendo naturalmente deiforme.
A antropologia e a cosmogonia, unidas indissoluvelmente em São Máximo, giram
ambas em torno de um pivô central: o Verbo pré-eterno, o logos spermatikos
dos estoicos. Dividido em logoi ou ideias-princípios que realizam o Universo,
o Verbo governa inteiramente esse último: 1) pelas leis naturais, 2) pelas obras
de Sua Providência, e 3) pelos caminhos do Julgamento. Mas o universo, o ideal
em sua essência, divino pela energia que nele se encarna, não é nem simples,
nem imutável, como somente Deus é. Ele se compõe de dois mundos, o inteligível –
os anjos e as almas humanas – e o sensível, o da matéria. Mais complexo e
sempre instável, esse último é formado por quatro elementos, em perpétua luta. Daí
provém o perpétuo escoamento das coisas. Embora de aparência enganosa, por
causa de sua própria mobilidade, o mundo sensível pensado pelo Criador existe
realmente e mantém, por intermédio do outro mundo, um contato permanente com
seu Princípio, o Logos. O laço que o une ao mundo inteligível, do qual ele é um
sinal visível, é o homem, criatura a um tempo sensível e racional, lugar de encontro
de todas as energias encarnadas.
Poderíamos quase afirmar que esse microcosmo humano é o decalque do
Deus-Verbo, o que lhe confere uma dignidade excepcional, e o eleva acima dos
anjos[25].
São Máximo, assim como outros Padres da Igreja do Oriente, não hesita em chamar
o homem de “deus criado”, com toda a força da expressão, sem nada atenuar. O homem
é, como dirá um eminente representante da doutrina russa sobre a Sophia,
Boulgakoff, uma verdadeira “hipóstase terrestre de Deus”; segundo São Máximo,
do Verbo, “por quem tudo foi feito”. Com efeito, o corpo que envolve a alma
humana apresenta uma analogia com o Cosmo que recobre o Logos, como se fosse
uma vestimenta. Seu espírito é a imagem de Deus, do Deus que se revela no mundo
por intermédio de suas Forças. Eis porque, pelo conhecimento do homem, é
possível chegar ao primeiro, embora incompleto, conhecimento de seu modelo
incriado. E ainda podemos conhecer a esse modelo, admirando-o na sabedoria e na
beleza de sua obra visível: essa é a contemplação natural adquirida.
O Logos se manifesta no homem sob a forma de uma Inteligência soberana,
que une a razão e o ser, o nous, “olho do entendimento”, é o depositário
na alma do eikon (o ícone, a imagem) de Deus, o repouso de sua imagem
trina: a efígie do Filho impressa pelo selo do Espírito Santo, ungido pelo Pai.
A iluminação pelas Ideias chega ao espírito diretamente do princípio divino
(que é o “intelecto agente”, como diriam os escolásticos, e como afirmava Roger
Bacon, de acordo com Avicena). Trata-se de uma intelecção divino modo. Podemos
então dizer que o nous é o órgão de apreensão do conhecimento-intuição
carismático; não um simples prolongamento da razão discursiva, como, por exemplo,
é para a escola tomista, que não reconhece na alma nenhuma faculdade distinta
da inteligência una[26].
Toda essa teoria do conhecimento é irracional em sua raiz, embora ela não
recuse, para expressar as verdades do dogma, servir-se de conceitos da ratio,
da lógica aristotélica, sempre provisória e precária. Trata-se de uma doutrina inatista,
que, reformulando todas as categorias psicológicas, coloca Deus no próprio
centro da ontogênese, como realidade única: o Deus trino que a um tempo se
decompõe e se unifica nas “profundezas” da alma. Pois o Logos é, segundo a Igreja
ecumênica, a imagem do Pai e o centro irradiante da Trindade[27],
que, através dele, o homem alcança.
A missão de Adão teria sido,
como dissemos, a plena realização do plano providencial da economia divina. Ao assumir
o papel do Logos sobre a terra, substituindo-o de certo modo, o homem deveria
harmonizar todos os contrários da criação em devir, da criação que por ele
seria continuada e terminada. São Máximo traça esse caminho de perspectivas
ilimitadas, caminho que o homem deveria seguir sem se desviar. Ao mesmo tempo
em que mantinha sua humanidade integral, ele deveria se elevar acima das
distinções transitórias – a começar pelo sexo[28]
– e alcançar, pela virtude e pela intelecção, a espiritualização de tudo o que
existe. Ele deveria transformar a terra no paraíso, fazer dela uma coisa única
com o céu, e por fim unir a si mesmo, unir-se plenamente, semelhante a Ele em
tudo, salvo em sua natureza: “Pela natureza, o homem, corpo e alma, é menos do
que um homem; pela graça, ele se torna inteiro Deus, em sua alma e em seu corpo”
(Ambigua, XXVIII, 64). Última metamorfose, inteiramente submetida à ação
carismática do Espírito.
Como meio sobrenatural para chegar a esse fim, sobrenaturalmente
natural, o homem, cuja vida perfeita é a glória de Deus, possuía esse dom
inato, a caridade: fruto da vontade e da inteligência, desejo imanente
de perfeição, ciência infusa da Luz. No
Éden, nenhuma paixão o perturbava o espírito humano, mestre de todas as suas faculdades,
e cuja orientação, tal como uma agulha imantada, estava voltada para Deus. Nada
obscurecia a onda límpida na qual se mirava, em todo seu esplendor, a Glória
incriada. Essa era a aurora sem crepúsculo, da “luz sem declínio”.
Mas o homem, assim dotado de plena liberdade de escolha, sem a qual
não passaria de um vil escravo, caiu. Ele caiu, porque preferiu o amor vão de
si mesmo ao amor verdadeiro de Deus. Voluntariamente, por orgulho e cupidez, de
início confundido pela falsa ciência do bem e do mal, ele mergulhou na noite do
não-ser. A desobediência de Adão “esse germe vivo que trazia em si todo o
futuro de nossa raça”, representou uma queda imediata na vida dos sentidos e,
através dela, na morte. Aqui nos encontramos plenamente na tradição agostiniana,
universal na Igreja, pois Santo Agostinho diz expressamente que “o homem optou
pela avara posse dos bens privados”. Foi esse ato de prevaricação que desencadeou
tudo[29].
Somente os gregos insistirão primeiramente sobre o caráter intelectual da
falta, ou hamartia. Para eles, todo o mal provém da agnoia (ignorância),
tendo o nous cessado de ser o regulador perfeito[30].
Daí a ruptura do equilíbrio interior, a desorganização da psique como um todo. Mas
não se diz aqui, como com Santo Anselmo, que o primeiro efeito do pecado
original tenha sido a privação da justiça ou retidão, arrastando consigo o despertar
da concupiscência, que estava latente. Aqui, a ordem dos termos é inversa: não privatio-vulneratio,
mas vulneratio-privatio, como a lesão inicial que desagrega toda a
natureza adâmica.
As consequências disso foram infinitamente dolorosas. Primeiro para a
carne, condenada à concupiscência e, através dela, à enfermidade, a murchar e
se dissolver. A seguir, para a alma, privada de sua seiva natural, sacudida até
suas profundezas e como que desagregada. A vontade, não inteiramente corrompida
e esmagada – como em Agostinho – mas encurvada, distorcida em suas energias. Sobretudo
a inteligência, antes um reino de luz, agora obnubilada pela ilusão e dominada
pela tirania da irascibilidade e da concupiscência, as partes inferiores da
psique humana. Por fim, última e fatal consequência do pecado de Adão, todo o
macrocosmo, ferido com seu líder, toda criatura, chamada a louvar o Senhor alegremente,
foi condenado a sofrer e a gemer até o final dos tempos.
Esse quadro, de imensa desolação, onde os tons sombrios recobrem e
extinguem a radiosa claridade da aurora terrestre, se encontra também sob a
pluma de Santo Agostinho. Falta a ele, porém, senão a visão grandiosa da catástrofe
final, o impulso audacioso de um mesmo sonho escatológico[31].
Psicólogo admirável e mestre da introspecção, o grande Africano, guiado por uma
aguda experiência pessoal, se agarrou quase que exclusivamente às realidades de
nosso estado presente empírico, de nossa decadência marcada a ferro e fogo na
espécie humana. Quanto ao primeiro Adão, em estado de inocência preternatural,
ele é, antes de tudo, para Santo Agostinho, uma criatura extraída do nada. E esse
nada que, no neoplatonismo, não passa da ausência ou vazio metafísico, aos
olhos de Santo Agostinho (sem dúvida, última reminiscência maniqueísta) possui um
caráter deficiente que é, por assim dizer, positivo: trata-se já de uma
predisposição à imperfeição, senão ao pecado mesmo. M. Gilson expressa essa
tendência com clareza, dizendo que, “segundo Agostinho, existe na criatura uma
espécie de falta inicial que gera a necessidade de mudança”. Ora, a necessidade
de “mudança”, acrescentamos nós, implica necessariamente uma ideia de
decadência, porque a beatitude de Adão e Eva não poderia aumentar, sendo
estática; isso é contrário ao dinamismo do estado paradisíaco, segundo os
gregos, desde de Irineu até Máximo, e ainda antes.
Ademais, o estado de “justiça” em que se encontravam nossos ancestrais
no paraíso, segundo o sistema agostiniano, não lhes era natural, mas sim algo
como um “dom acrescentado”, um privilégio gratuito de Deus, e não a maestria
radical sobre seu ser. A diferença não é pequena[32].
Aquilo que, para o Doutor da graça, aparece como uma pura liberalidade da parte
de Deus, será para São Máximo e a tradição que ele representa, a vontade mais
profunda do Criador. Pois Deus deseja se encontrar no homem, criado imortal por
seu sopro, e martelado à sua efigie. A imagem divina, apenas virtual na alma,
reflexo longínquo segundo o agostinismo, é entre os gregos uma cópia ideal,
incrustrada na pesandez do tecido humano. Num caso, o homem posterior ao pecado
retorna abaixo de seu status naturae, que aliás é vagamente
representado, e privado apenas daquilo que lhe havia sido concedido por
acréscimo. No outro, ele perde sua verdadeira natureza, seu direito de
progenitura e de adoção divina, premissas da deificação. Por causa dessa ferida profunda aberta no
flanco da criação, o homem, esvaziando-se da vida gloriosa que um dia fôra sua,
se tornou parte do Cosmo, que antes ele governava por meio de sua própria
felicidade, e que a partir de agora se desagrega. A raça de Adão, se já não
pode cair mais baixo, caiu de mais alto, e arrastou com ela todo o universo para
o abismo. Tudo está aí.
De resto, a queda prevista, quase desejada no sistema de Agostinho,
por causa da Encarnação que ela demanda, e que seria inútil sem ela, jamais
foi, para a Igreja do Oriente, a felix culpa. Tanto mais que a
Encarnação nunca foi concebida aí como sendo uma função da Redenção[33].
Encontramos essa crença na Idade Média, entre alguns Beneditinos do século XII,
injustamente negligenciados, como Rupert de Deutz, Honorius de Augsbourg e os
irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg, bem como em todo o franciscanismo, com
Duns Scot à frente[34].
Seu ciumento cristocentrismo exige que a criação seja levada à perfeição pelo
Verbo, que, definitivamente, glorificará a humanidade. Para os scotistas, ademais,
tudo é determinado pela vontade do amor de Deus, que deseja ser amado
infinitamente.
Aceitando o fato consumado da decadência do ser humano, a patrística
grega não sentirá mais do que uma nostalgia, uma amargura; não apenas é preciso
refazer o espelho fiel a partir do espelho deformado, como ainda levar a obra
até o final, ela que foi interrompida antes de começar. A saber, em primeiro
lugar, reanimar, sob o impulso do Espírito Santo, a “similitude” que foi
apagada, depois recolocar o mundo transfigurado na glória divina. Essa é a obra
da recapitulatio, da restauração da humanidade, na qual o Deus encarnado
precede o homem; na qual, tendo lhe concedido a vida eterna, lhe comunica a
força deificante pelo Espírito que o santifica e o eleva, doravante, ao seio do
Pai, na “nuvem luminosa” do Deus trino.
O “THEOS ANTHROPOS” E A RECAPITULATIO
A encarnação (ensarkosis), que, segundo Inácio de Antioquia, é um
dos três mistérios ocultos ao próprio Satanás – qual terá sido seu sentido
profundo? Cur Deus homo? A essa questão, da qual depende todo o futuro
da esperança cristã, a primeira resposta foi dada por Santo Irineu de Lyon, na
segunda metade do século II, com uma amplitude e uma audácia verdadeiramente surpreendentes
para esse teólogo prudente, que era acima de tudo um homem da Igreja e do
governo. Na resposta que ele deu se encontra o germe de toda a doutrina do recapitulatio
ou da anakephalaiosis, que foi “esfumada” e praticamente apagada dentre
a maior parte dos críticos católicos no começo do século XX, que pouco a mencionam.
E, no entanto, ela é o sistema nervoso do pensamento patrístico e o selo que
esse imprimirá a toda a teologia prática e a teologia mística dos Bizantinos. Essa
doutrina se apoia sobre a koinonia, a adoção divina, conduzindo
diretamente à deificação, e que se baseia nessas palavras: “Deus se fez homem,
para que os homens se fizessem deuses”. Santo Irineu indica a justificação
escriturária dessa verdade no célebre versículo do Salmo 81: “Eu disse: vós
sois deuses”, retomado pelo próprio Salvador em João 10: 34: “Por acaso, não é
na Lei de vocês que está escrito: ‘Eu disse: vocês são deuses?”. E a rocha
sobre a qual o bispo de Lyon fundamenta sua magnífica profissão de fé, é para
ele o dogma intangível de Cristo, simultaneamente verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Trata-se de uma unidade orgânica que se opôs desde o início, como um
dique que se ergue contra o assalto dos ventos, ao docetismo do século II de
todos os gnósticos, e ao racionalismo das heresias cristológicas que viriam
depois. A mística dupla, paulina e joanina, soube-a Irineu harmonizar com
grande felicidade, e dela extrair o sentido profundo: a identidade da carne de “nosso
Senhor e Deus”, promessa de vida eterna, pois Cristo é o “Príncipe da Vida”.
A resposta triunfante a essa questão obsedante retorna sem cessar sob
sua pluma: como poderia o homem se tornar Deus, se Deus não tivesse se tornado
homem? Essa resposta, retomada pela patrística dos séculos seguintes, será:
Jesus Cristo se tornou aquilo que somos, a fim de que possamos nos tornar
aquilo que Ele é. Daí provém a necessidade absoluta do Verbo feito carne e que
veio a nós propter nostram salutem. E essa salvação, repetimos, não é
outra coisa do que a incorporação, à natureza humana lesada, do fermento da
incorruptibilidade, por meio de sua união íntima com o Deus encarnado. Restauração
– em potência – da herança perdida e garantia de imortalidade, é isso que nos
concede o fato único e simples da Encarnação. Grito de alegria, cujas
ressonâncias repercutem ao infinito em todas as almas cristãs, regeneradas pela
enanthropesis (a entrada na humanidade) do Deus Salvador.
Sobre os efeitos, imediatos e distantes, dessa graça primeira que
reintegra nossa espécie à linhagem divina, os Padres gregos, com absoluta unanimidade,
são inesgotáveis. O tom é dado pelo grande Atanásio, já precedido por Clemente
e Orígenes. Em seu tratado clássico, De Incarnatione Verbi, assim como
em suas Orationes, o vencedor do concílio de Nicéia retoma e reforça o
termo temerário de deificação, mais de um século depois de Santo Irineu.
Ele afirma: “Jesus Cristo se fez homem, a fim de nos divinizar”. Ora, isso só é
possível porque o Logos foi nosso modelo desde o começo dos tempos, ideia que
já encontramos antes, e à qual Santo Atanásio, o Doutor do Logos
consubstancial, retorna com frequência. “O homem, repete ele, não poderia ser
divinizado se Aquele que se encarnou não fosse o Verbo de Deus”, e
inversamente: “Não seríamos libertados do pecado se a carne da qual se revestiu
o Logos não fosse nossa própria carne humana”. Daí vem a homoiosis como
condição prévia de nossa filiação divina, de nossa participação futura à Sua
glória: união real da carne do Verbo com a nossa. Sempre, na Soteriologia, a
ênfase recai sobre o sentimento de libertação pelo princípio de regeneração,
e não, como no Ocidente, sobre a reconciliação. Antes de tudo, sermos
justificados, libertados da lei dos membros; ou então ser glorificados,
imersos vivos na luz. Duas tendências profundas que respondem a tendências
secretas diferentes. Cristo veio para destruir a morte e para nos renovar à Sua
imagem, essa é a nota dominante no Oriente[35].
Podemos notar seus ecos vibrantes em todos os seus Padres.
São Basílio de Cesareia insiste e enfatiza: “Foi por nossa causa que o
Logos se fez mortal, para nos libertar da mortalidade[36]”.
Ele deificou o gênero humano. E São Gregório de Nazianze, apelidado na Igreja
de ‘o Teólogo”: “Jesus representa em figura (no sentido platônico do arquétipo)
aquilo que nós somos. Assim, “por intermédio Dele, a integridade de nossa
natureza foi restituída”. E ainda, “Nós nos tornamos divinos através Dele[37]”.
O santo Teólogo desenvolve com delicadeza esse elevado pensamento de que o
homem, sendo a obra prima da criação, recebeu a intervenção direta de Deus para
lhe dar aquilo que, por sua miserável culpa, havia perdido: sua dignidade de
filho divino[38].
E São Gregório reporta as palavras de seu falecido amigo, o grande São Basílio:
“O homem é uma criatura, mas ele recebeu a ordem de se tornar Deus”.
O mesmo grito de reunião encontramos em São Cirilo de Alexandria, que
declara com força ímpar: “Se Deus se tornou homem, o homem se tornou Deus[39]”.
São João Crisóstomo, chefe da escola realista de Antioquia, dirá, sob uma forma
mais atenuada: “Nós precisávamos da vida e da morte de um Deus, para que
vivêssemos”. Enfim, São João Damasceno, em sua Suma De Fide Orthodoxa,
resume assim, já no final da era patrística, a economia de nossa salvação: “Cristo,
cuja natureza é idêntica à nossa, recriou em nós a imagem divina, para nos
libertar da corrupção. Ele nos tornou imortais em espírito e na carne”. Mais
uma vez, trata-se do antídoto do veneno mortal do pecado, o princípio imanente
do renascimento espiritual.
Toda obra messiânica, trazida à luz e vista por esse ângulo, recua no
tempo e no espaço, alarga seus horizontes até o infinito, se multiplica com uma
prodigalidade real. Conhecemos bem o abundante paralelismo, modelado por São
Paulo, amplificado pelos Padres, dos dois Adão, de Cristo, chefe místico do
novo corpo, do qual nós somos os membros. Esse paralelismo sem fim foi
completado, desde Santo Irineu, pelo das duas Eva. A mãe cresceu
misteriosamente com o Filho e o concebeu.... ora, isso que o segundo Adão
recebeu no seio virginal de Maria nos entregou, é a natureza humana integral.
Para ele, a “túnica de pele” de que falam com tanta dor Orígenes e Gregório de
Nissa – nossa própria carne pecadora – renasce de sua deterioração. Aqui, a
Encarnação é, desde logo, uma Redenção, pois aquilo que Cristo assumiu, ele
redimiu. É a reparação, condição primeira para a glorificação, e ao mesmo tempo
uma prova inequívoca de amor e de perdão.
Mas, por que a Paixão? Tanto par5a a expiação pela virtude do sangue
divino, como para a imortalidade; as duas coisas, inseparáveis, levam à
perfeição a obra da recapitulação. Clemente de Alexandria escreveu: “Ó divina
maravilha! Um Deus sucumbiu, e o homem foi levantado””. A morte foi vencida
pela morte, e a vida, como objetivo último, finalidade da Redenção – eis o
motivo primordial, a coluna dorsal de todas as meditações soteriológicas. O caráter
propiciatório dessa morte única também não escapou aos nossos doutores. Justino
o Mártir, em seu célebre Diálogo, já indicava a seu adversário Trifon
que essa consistia numa expiação penal. Para São Cirilo de Jerusalém, a morte
de Cristo representa a reconciliação entre a terra e o céu[40]:
uma expansão do humano até o cósmico. Santo Atanásio insistirá sobre a
ab-rogação do decreto divino pela morte de um único representante de toda a
humanidade, “pois, com Ele, todos morrem e ressuscitam[41]”.
Mais uma vez, a ênfase recai sobre a vitória final: a atanasia renovada
pela anastasis (ressurreição). São Basílio repete também, dando-lhe
novos matizes, essa afirmação de que somente o Logos poderia, por sua obediência
voluntária, oferecer a Deus uma expiação suficiente.
Os dois Gregório retomam a questão, a perscrutam e aprofundam,
sobretudo o bispo de Nazianze, numa cristologia plena e límpida. Não é apenas
em relação ao dogma trinitário que ele foi considerado como o teólogo da
Ortodoxia, por excelência. A imolação sobre a Cruz comoveu profundamente a alma
desse Doutor, que foi um dos corações mais sensíveis de sua Igreja. Ele colocou
em nítido relevo o caráter de penitência voluntária, de oblação gratuita dessa
morte, triunfo sobrenatural, não suplício heroico e apoteose póstuma do Justo,
conceito que nada tem de cristão. Em seu belo Discurso pascal, São
Gregório nos lembra que o Sacrifício verdadeiro já havia sido figurado pelos
ritos do Antigo Testamento. Para o ilustre Teólogo, o Cristo-hóstia
verdadeiramente se apropriou de nossos pecados, se fez “pecado e maldição por
nós”, como o afirma São Paulo, a fim de nos libertar dessa maldição. A ideia,
que encontramos igualmente em germe na Grande Catequese de Gregório de
Nissa, a ideia do Novo Adão que nos resgata com seu sangue, energia da Cruz, se
aproxima, antecipando-a, da substituição vicária de Santo Anselmo; mas lhe
falta a noção jurídica da “satisfação”. Quanto ao lytron, o tributo pago
ao demônio, ele jamais teve senão um lugar secundário na doutrina dos Padres e,
salvo para o mais jovem dos Capadócios, esses a rejeitam ou a negligenciam. O que
importa, é a morte do Deus feito homem, que salva a humanidade pecadora,
comunicando a ela a virtude luminosa de sua vida imortal. Aqui estamos
plenamente no ambiente espiritual do Quarto Evangelho e das glórias
apocalípticas que o cercam com seus raios fulgurantes. Encarnação, Redenção,
tudo tende para o acordo final: a Ressurreição.
A própria Paixão jamais consiste, para os Gregos, a de Jesus-homem,
apenas a da humanidade do Deus encarnado; ela provém da hipóstase do Filho, na
qual, pelo “privilégio da unidade”, a divindade e a humanidade se encontram
inteiras. Sobre essa “comunicação dos idiomas”, tudo está fundamentado na
cristologia ortodoxa, e o Anthropos não aparece senão sob a auréola do Theos.
Assim é que São Gregório de Nazianze verá na imagem do Cordeiro imolado o pathon
Theos, o Deus sofredor. Com singular insistência, ele nos falará da Paixão
do Ser, impassível por definição. São Cirilo de Alexandria irá ainda mais longe:
ele só deseja ver e saudar essa hipóstase una, com suas duas naturezas
completas, até no despojamento do ultimo abandono humano, até esse último espasmo
de agonia mortal: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. E, de fato, esse clamor de
profundis não termina, já no Salmista, por um vibrante apelo ao louvor da
eterna glória? A mesma concepção do sofrimento divino encontramos em São
Máximo.
Na teologia grega, mais especificamente na tradição alexandrina que
domina sempre entre nossos contemplativos, o elemento humano está a tal ponto
penetrado, saturado – mas não reabsorvido – pelo divino, que ele parece já
coroado de glória. Não há nisso nenhum monofisismo – porque os mais eminentes
doutores de Alexandria e Bizâncio, Cirilo, Leôncio, Máximo, o combateram sem tréguas
– mas uma crença essencialmente teocêntrica[42].
O Cristo dos sinóticos, o “Cristo segundo a carne”, se eclipsa diante do Cristo
pneumático de São Paulo, de São João sobretudo, cujos pés tocam a terra, sem pesar
sobre ela. Isso se revela, tanto na especulação, quanto na sensibilidade, tanto
na natureza íntima da piedade, quanto no culto oficial cujo dogma é a alma, e
na arte sacra que penetra esse culto. Com que munificência a Igreja grega
celebra a Epifania, no batismo de Jesus pelo precursor, e na Transfiguração na
luz sobrenatural do Tabor! Quanta poesia litúrgica, hinos de alegria sem par,
se derramam em ondas sobre a noite clara como o “dia sem declínio”, a noite de
Páscoa, desta das festas, triunfo dos triunfos!
O Oriente cristão se prosterna, também ele, diante da vítima sem culpa,
ele beija, não a madeira do suplício, mas, sobre o epitáfio, o Corpo sagrado
velado pelos Serafins, o lençol Daquele que “amou até a morte”, e que, com
isso, arrancou para sempre o aguilhão dessa morte. O Oriente não separa todas
as estações do caminho da Cruz, que ela abarca num só olhar: no próprio sono da
morte, ela pressente a incorruptível vida divina, e não se demora pranteando-a
humanamente. Através das sombras trágicas do Getsêmani e do Calvário, ele espia
a aproximação do radiante milagre no sepulcro selado. Do Gólgota, onde tudo se
consumou, ele volta seu olhar para o jardim de Arimatéia, jardim da
Ressurreição, protótipo mesmo da Transfiguração final, que revela ante seus
olhos fascinados a Jerusalém celeste[43].
Num só coro, ela lembra de suas promessas e adora o Deus-homem, mais do que o Homem-Deus,
do que o Ecce Homo. E aqui renasce o espírito do Quarto Evangelho, que é
não apenas o do amor infinito, como também o da majestade, infinitamente
glorioso. Do alto de Sua Cruz, o Cristo-Rei não deixa cair nenhuma lágrima
humana, e não parece contemplar, ao longe, senão a colheita da vida eterna que
se levanta, ao confiar sua Mãe e filha, a Ecclesia, ao discípulo
bem-amado. O mesmo acontece com os cristãos gregos que seguem esse rastro
luminoso. Para eles, a esperança é mais forte do que a compaixão. Em alguns
crucifixos bizantinos, sobre os quais antes brilhava em glória, Cristo voou
para onde está entronizado à direita do Pai, e a Cruz nua basta no santuário
para eternizar a divina lembrança.
*
Duas oferendas do gênio cristão, dois olhares de um só e único amor
Dei. À Idade Média ocidental, tomada por um sofrimento amoroso, pertence
todo o tesouro inesgotável da sensibilidade patética, da fruitio Dei na
prece, em todas as formas da piedade; o fervor de joelhos, o culto da
humanidade que sangra do dulcíssimo Mestre e Amigo. Sentimento feito de perdida
gratidão, desenrolando-se num longo estremecimento de ternura, sentimento do
qual nascerá a pura devoção ao Coração imaculado, ao Sagrado Coração de Jesus[44].
Todas as lágrimas de infinita piedade sobre o Homem das dores que traz a
salvação, sobre a Virgem mãe, cujo coração foi trespassado por sete espadas; e
todos os sorrisos à maternidade da divina Infância, sob a estrela de Belém, a
estrela da Redenção. Todos os raios partem de nosso coração de carne; mel
roubado da colmeia da dileção bernardina, cântico ensolarado do Poverello de
Assis, laudes inflamadas de Jacopone da Todi, litanias suaves do Jesu
dulcis memoria...
E, no Bizâncio porfirogeneta, tão austero em sua púrpura, nem efusões,
nem unção, nem langores, nem delírio. Mas, com os dons simbólicos dos reis
Magos, o ouro, o incenso e a mirra, no seio de uma Liturgia onde tudo é luxo,
majestade e repouso, a reverência-adoração, prosternada sobre as pedras nuas da
alma, aos pés do Pantocrator. Um arrepio sagrado nos percorre e nos envolve
numa mesma atmosfera irreal, quase irrespirável, como uma obra prima da arte
bizantina, ícone milagroso, “não feito pela mão do homem” (acheiropoiete),
que ilumina, sem jamais se extinguir, a lâmpada da prece perpétua. E, no
lirismo hierático dos hinos de Simeão o Novo Teólogo, o mais abençoado pelo
Eros divino desse Oriente grego, eis o vinho, destilado gota a gota, vinho de
uvas densas, como que pisado pelo próprio invisível Vinhateiro.
Em nenhum lugar podemos perceber melhor esse vivo contraste, em suas
nuances, como na dupla orientação da imitação de Cristo: seguir o Crucificado ou
reviver com o Transfigurado. A Cristandade medieval quis imitar antes de tudo a
santa humanidade, fiel à antiga divisa agostiniana, “Per Christum hominem ad
Christum Deum”. Para São Bernardo, que tanto amou os “dias de carne” de
Jesus, é no “cálice bebido pelo Senhor” que começa a lenta espiritualização de
nosso amor ainda carnal. E, ainda muito longe do Doutor melífluo, Suso, o
servidor-amante da Eterna Sabedoria, lhe fará eco, designando à alma “que ama a
Deus ao pé da Cruz” a meditação deleitosa de todas as etapas da Paixão, com a ardente
crucificação de si mesma. Entre as duas se desenrola toda a teoria das vítimas
oferecidas em holocausto.
Imitar a Cristo será, para todo o Ocidente medieval, e para além dele,
colocar seus passos nos passos do Senhor, sem retirar nem por um instante os
olhos da Face coroada de espinhos, subir com Ele ao Jardim das Oliveiras e ao
Calvário, e prosseguir, prolongar indefinidamente sua obra de expiação, sua obra
de misericórdia. Daí provém a invasão das Ordens mendicantes, com sua ascese
crucificadora, penetrando no século para evangelizá-lo ou fustigá-lo, rompendo
com o ideal exclusivamente orante dos Beneditinos. Daí também o rio
transbordante da adoração reparadora e da caridade, amor ao próximo, derivado
do outro; a alegria dos méritos reversíveis, aureolando a comunhão dos Santos
católicos, e, na intimidade dos colóquios inefáveis, no brilho das visões
imaginativas sem sombra, tantos dons, tantas graças sensíveis.
Também o Oriente bizantino seguiu seu Kyrios, dobrado aos pés
da Cruz, pela via estreita da renúncia total, mas sempre buscando ver, mesmo no
abismo do rebaixamento, da kenosis, os brilhantes vestígios divinos. A ideia
da Basileia (Realeza) jamais o abandona. Ao mesmo tempo, semelhante à alma platônica
caída, ele se lembra eternamente de sua própria origem sobrenatural, vela
solitária queimando diante do Senhor das Beatitudes. Não o primado do
sofrimento[45],
necessário apenas como discípulo catártico, a teleosis (acabamento) de
São Paulo (“Eu perfecciono minha carne...”), ou mesmo a prova aceita com
serenidade; a sede do cervo sedento, que corre para a fonte, a sede da
Contemplação que já não parece ser desse mundo, a apatheia ou “santa
indiferença”, que prepara a alma para a união deificante. Uma intensa
concentração interior que refunda a alma sensível, que remodela o espírito e a
metamorfose; menos irradiação visível, sem dúvida, menos obras apostólicas
próprias. Marta sacrificada a Maria, a Maria que primeiro viu, no orvalho da
graça matinal, a Cristo ressuscitado, que ouviu sua voz e exclamou tremendo: “Rabbi!”.
A santidade ortodoxa jamais conheceu, nem poderia conhecer, as
delícias e as loucuras da Cruz, ela não sentiu, impressos em sua carne, os
estigmas das benditas feridas. Ela tampouco escutou o apelo do Sagrado Coração
que parece rasgar a unidade orgânica do Salvador, pela qual tanto lutaram os Doutores.
Mas, segundo a firme crença dessa Igreja, seus Santos desfrutaram também, em
vida, dos mais preciosos carismas físicos: levitação, luminosidade e outros
sinais precursores da “carne espiritual” anunciada solenemente pelo Apóstolo. Pouco
a pouco, o envelope carnal, tornando-se permeável à ação do espirito, deixa
transparecer a incorruptível chama, quantas hagiografias orientais, começando
pela Vita Antonii (lendária ou não, pouco importa aqui), tratam desses seres
sem desejos nem necessidades, como que desencarnados, falam de seu poder sobrenatural,
cativando com sua doçura seráfica os animais selvagens dos desertos, comandando
as forças da natureza, que retorna, parece, à suave obediência do paraíso terrestre.
Nota cósmica, em prelúdio à “nova terra” do Apocalipse, e que não é a mesma da
comunhão fraternal de São Francisco com tudo o que vive, tudo o que respira,
tudo pelo que “laudato si il Nostro Signore”.
Mas há mais.
Conhecemos o culto dedicado pela Igreja grega aos restos mortais, ou
antes aos corpos defuntos, aos quais o sepulcro não infligiu corrupção. Apoiando-se
sobre as palavras do Salmista: “Eu não deixarei que se corrompa o corpo de Meu
Justo”, a Igreja ortodoxa considera o estado de conservação desses despojos,
com seu poder taumatúrgico acrescentado, como o indicio mais certo de sua
justificação[46].
Carne já glorificada, que aguarda a próxima reunião com a alma imortal, na hora
da Parúsia, e sua glorificação plena no soma pneumatikon (corpo espiritual)
incorruptível que cantará a Deus (cf. Santo Irineu).
Caminho dos espirituais-ascetas, que é o mesmo caminho do Cristo “impassível”:
a subida do Filho para o Pai. Primeiramente, Deus misteriosamente concebido
na fé, depois encarnado nas virtudes, crucificado nos trabalhos
da teologia prática, ressuscitado em glória na “visão mental”,
que subiu aos céus na teologia mística consumada, a theosis[47].
E o acorde final ainda retine: “A partir de agora somos filhos de Deus[48]”.
Os Padres do antigo monaquismo, nascido no Oriente, berço das
religiões de dos Mistérios, representam essa humanidade militante que deseja se
tornar triunfante, provando-se para alcançar a nova vida maravilhosa, a vida em
Cristo[49].
[1]
O tema do presente estudo, que não passa de um ensaio dividido em duas partes,
está duplamente limitado. Primeiro, pelo tempo. Nós nos detivemos em meados do
século XI, com São Simeão o Jovem, o maior místico Grego, e com Nicetas
Stethatos, um dos artífices da separação das Igrejas. Esse último acontecimento
encerrou todo um milênio de pensamento religioso criativo e de experiências
vividas. Uma nova era irá se abrir em Bizâncio no século XIV com o movimento
hesiquiasta do Monte Athos, que trouxe grande problemas, até hoje não
completamente resolvidos. Nós os apresentaremos eventualmente. Da mesma forma,
no que diz respeito à doutrina da graça deificante nos sacramentos, ou à
mística ritual da Igreja. Somente iremos nos ocupar da busca solitária da alma,
que sobre para Deus, sem jamais nos afastarmos da teologia dos Padres, nem da
ascese tradicional. Trataremos exclusivamente dessa teologia nessas páginas, um
pouco ligeiras, que se seguem. Uma última observação: convencida do caráter
sintético – e não sincrético – do Cristianismo original, a autora não tentou
esgotar esse bloco errático.
[2]
Para os Gregos como para os judeus, Deus é igualmente inacessível, mas por
razões diferentes, filosóficas ou religiosas: os Gregos consideravam o primeiro
Princípio como incognoscível em si, por causa da ausência, nele, de toda e
qualquer qualidade definível, por ser ele uma substância simples. Para os
judeus, a arrasadora majestade Daquele que não se ousava nomear, não permitia à
imperfeita natureza humana aproximar-se Dele, ou de conhecê-lo fora da
Revelação. Os rabinos viam no carro-trono, sustentado pelos quatro animais
alegóricos da visão de Ezequiel, a imagem do insondável mistério divino. E Jó
diz: “Deus é tão grande, que triunfa sobre nossa ciência”.
[3]
Ver Apologia, I, 10 e II, 12: somente o Pai é inominável, porque é o
único “não-gerado”.
[4]
João Damasceno vê uma distinção semântica entre agenêtos, não produzido,
e agennêtos, não gerado.
[5] Adv.
Haer. IV, 20, 5.
[6]
No capítulo V de seu tratado Adversus Haereses, Irineu interpreta todas
as teofanias do Antigo Testamento como aparições do Verbo. Já os apologistas
haviam expressado a mesma opinião, que parece advir de Fílon.
[7]
Devemos buscar o ponto de partida dessa ideia-mãe de Clemente, que
encontraremos em todos os “Espirituais” Gregos depois dele, nos meios judaicos
da época helenística; essa é a teoria da identidade entre o sábio e o extático,
teoria desenvolvida, sob influência judaica, por Fílon de Alexandria.
[8]
R. Arnou, em seu estudo Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin,
1921, escreve: “Deus não se entrega no êxtase, Ele se deixa acontecer”. E
também: “Deus é o Primeiro, sem jamais se tornar o Amigo, um Deus cuja bondade
é sem amor”. Isso é verdadeiro para todo o misticismo pagão, embora nos seus
graus superiores a contemplação seja inseparável do amor. Para Plotino, o Bem
da alma é a soma da Virtude com a Inteligência, que resulta na Beleza.
[9]
Para Platão, Deus é um Princípio imutável, um ontologismo estático; para
Aristóteles ele é o ato puro e o primeiro Motor. Toda a Idade Média escolástica
adotara, como sabemos, essa definição, que se estenderá aos anjos, enquanto
espíritos puros. Já o homem, é um composto: uma matéria conformada pelo
espírito, que atualiza toda potência, considerada como uma imperfeição. O
pensamento de Plotino, ao qual o neoplatonismo será fiel – o areopagitismo
cristão – distingue em cada objeto sua essência, as potências pertencentes a
essas, e as forças atualizadas. Para essa escola, a potência, ao contrário do
aristotelismo, não constitui uma inferioridade em si, mas a força criadora por
antecipação. De resto, sendo a essência inatingível, ela não pode ser objeto do
conhecimento. É o que repetem os Padres Gregos, como São Basílio e São Gregório
de Nazianze; para conhecer plenamente, o sujeito deve se tornar um com o objeto
do conhecimento, na identidade entre essência e conhecimento.
[10] A
especulação cristã platonizante considera o mundo criado como uma série de
teofanias da essência divina. É o que pensa, por exemplo, o irlandês João
Scotus Erigena, embora católico latino.
[11]
Na concepção cristã, o princípio hierárquico só vem a surgir com as criaturas.
No interior da vida divina, só existe, na unidade metafísica e na igualdade
consubstancial, a multiplicidade das Pessoas co-eternas.
[12]
Para sermos exatos, devemos dizer: uma essência (ousia), três
substâncias, a pessoa, propsopon são, segundo Aristóteles, “a substância
individual de uma natureza racional”. Mas essa linguagem não é admitida pela
Igreja romana, que teme criar uma confusão de termos. De resto, sabemos que as
expressões de persona e hypostasis não se superpõem inteiramente,
pois o vocabulário latino tem menos nuances do que o Grego.
[13]
Aos olhos de Fílon, todos os justos do Antigo Testamente teriam sido profetas, inspirados
pelo Espírito. Mas ele distinguia entre o êxtase-visão de Deus – ou aparição,
teofania – e o êxtase-ascensão da alma para Deus, o qual, modificado no
contexto da mística cristã, receberá o nome de rapto ou arrebatamento. Seu
primeiro representante será sempre Moisés, no Sinai, e, no Novo Testamento, São
Paulo.
[14]
Êxodo 32: 33. Os místicos medievais empregavam correntemente a expressão “ver a
Deus pelas costas”, vale dizer, contemplar suas ações, mas não sua essência.
[15]
O Oriente Grego assimilou o pensamento dionisíaco, sobretudo por intermédio das
Scholias de São Máximo o Confessor, que adaptou os Areopagíticos à estrita
ortodoxia, corrigindo em especial das tendências monofisitas secretas na
cristologia de seu autor.
[16]
A Igreja do Oriente não elaborou uma doutrina tão precisa e exaustiva da graça,
como aquela que desenvolveu o Ocidente sob o impulso de Santo Agostinho. Mas,
contrariamente a essa, ela sempre manteve, junto com a diversidade dos carismas
ou dons do Espírito – modos de participação dos humanos na vida divina – sua
natureza incriada. O mesmo acontece com a Sabedoria, Sophia, identificada tanto
com o Logos (era patrística em seu conjunto), como com o Espírito Santo,
identificação que encontramos em alguns Padres Gregos, em especial sob a
influência das Escrituras, e também de Fílon.
[17]
A teologia apofática de Santo Agostinho se aplica a Deus, enquanto Ser
suprassensível, que transcende toda matéria, que não possui nenhum caráter
antropológico, mas não enquanto estando acima de todo ser. Seu mistério não jaz
em sua natureza própria, mas na imperfeição da natureza humana, que não pode se
elevar até a inteligência pura. Sobre esse ponto, existe uma coincidência, o
que é raro, entre o grande Africano e Orígenes. De resto, foi Agostinho quem,
em primeiro lugar, atacou a fundo o argumento preferido dos origenistas em
favor da consubstancialidade: a saber, que o Pai não teria podido ser sábio
pré-eternamente, se não houvesse gerado o Verbo-Sabedoria antes dos séculos. A
forte crítica de Agostinho sobre esse argumento, da qual ser serviu ainda seu
mestre, Ambrósio de Milão, contra os arianos, se baseia na impossibilidade de
atribuir a Sabedoria apenas ao Filho, pois ela é um apanágio da Trindade como
um todo, e não uma função do ato gerador divino: tudo o que pertence ao Filho,
pertence, desde sempre, ao Pai, e inversamente, com exceção das relações de
paternidade e filiação. Isso é mais do que justo. Mas, a partir dessa premissa,
podemos deduzir que o Pai é cognoscível, tanto quanto o Filho (isso é
agostiniano), como podemos deduzir pela incognoscibilidade do Filho, igual à do
Pai, como os Padres Gregos. Somente esse último caminho conduz à verdadeira
posição apofática.
[18]
Toda a concepção trinitária de Santo Agostinho aceita pela Igreja do Ocidente
com ligeiros retoques, repousa sobre a ideia de unidade. Ela parte do um para
desembocar no três: amans, amatus, amor, eis a definição favorita da
divindade trina (cf, De Trinitatis, VIII, 10). Pode-se dizer com razão que
Agostinho nos mostrou antes uma Trindade em Deus do que um Deus que seja uma
Trindade. O perigo de tal princípio unitário será sempre uma inclinação para o
modalismo (Abelardo e Pierre Lombard). Ao contrário, os Gregos remontam à
unidade primeira, partindo de hipóstases distintas. Sua dificuldade está numa
tendência trinitarista que foi inclusive reprovada em Basílio o Grande. A mesma
tendência iremos encontrar, com mais clareza, na Idade Média, com Roscelin,
Gilbert de la POrré e sua escola, Joachim de Flore. É de se notar que a
revelação cristã, assim como o Símbolo de Niceia e como todo símbolo batismal,
implica em primeiro lugar a ideia das três Pessoas Divinas separadas.
[19]
Único dentre os filósofos medievais, caminhando sempre nas pegadas do
Areopagita, Scottus Erigena manteve, em seu De Divis Naturae, a
distinção entre a essência e as energias divinas. Somente ele ensinou que,
mesmo na visão beatífica dos santos – tanto quanto dos anjos – não é possível
contemplar a essência de Deus. É um erro acusá-lo de panteísmo, embora ele
tenha passado perto disso nas suas teorias sobre a criação da alma. Parece que
a reprovação feita no século XIV a Maïtre Eckart, discípulo longínquo do
Areopagita – e através dele a toda a teologia Grega – se deve à mesma confusão.
Quanto aos místicos do Oriente cristão, suas revelações serão julgadas pela
Igreja Grega segundo um critério bem diferente, fundamentado na rejeição às
“imaginações” sensíveis.
[20]
São Tomás, por respeito à autoridade agostiniana, manterá ainda essa distinção,
que dominou a Idade Média latina.
[21]
“A anamnese platônica não tem relação com o papel, bem diferente e muito mais
restrito, atribuído pelo bispo de Hipona a essa peça mestra de seu sistema, a
memória. De modo geral, o puro platonismo de Santo Agostinho, que já foi um
axioma, já não é mais aceito por nenhum de seus historiadores...” (R. Carton, L’illumination
divine chez saint Augustin, 1931)
[22]
Desde Santo Agostinho, a linguagem dos místicos emprega de bom grado as
expressões imagéticas de “conhecimento matinal” e de “conhecimento vesperal”;
elas designam dois conhecimentos de Deus, um incerto, outro perfeito. A última
parece reservadas pelos espíritos ortodoxos àquilo que está além dos
Bem-aventurados. Esse é, ao menos, o sentimento expresso muitas vezes por São
Bernardo: o conhecimento e o amor perfeito – que são uma coisa só na mística
afetiva cisterciense – não são desse mundo, para o abade de Clairvaux. E o
“pleno Meio-dia” será, para toda a escola de Eckart, a apreensão ou a intuição
do próprio ser de Deus. A bem dizer, o caráter verdadeiro da “Visão da essência
divina” em Eckart ainda não foi elucidado, pois sua obre mística ainda não foi
suficientemente estudada até hoje.
[23]
Esse ponto de partida, que determina a atitude de Deus em relação à criatura
inteligente, e a natureza íntima de suas relações, dá ao pensamento patrístico
seu tom particular, e lhe confere sua originalidade. Pois é daí que decorre a
própria teoria da Encarnação-Redenção dos Padres Gregos, transmitida por eles e
recebida tradicionalmente de todos os Bizantinos. Essa similitude entre o homem
e Deus, sobre a qual se apoiou Clemente de Alexandria, já se encontrava em
Fílon. É a ideia do Anthropos celeste, a respeito da qual voltaremos
mais adiante.
[24]
A primeira doutrina ortodoxa completa sobre a criação do homem, sua natureza
própria e seu objetivo sobrenatural se encontra no tratado de Gregório de
Nissa, conhecido e citado por Scottus Erigena com o nome de Sermo de Imagine
(P.G. t.144), traduzido no século VI para o latim, e seguido por todos os Bizantinos.
[25]
Embora a angelologia de Dionísio, com
suas hierarquias purificadora decrescentes, tenha sido adotada pela
Igreja Grega (e pela católica, desde a Idade Média), essa sempre distinguiu
entre, de um lado, a preeminência espiritual da natureza angélica, mais próxima
da fonte divina, sendo o anjo uma luz segunda, e, de outro, seu lugar
no universo, inferior em importância ao posto do homem-microcosmo. Ora, a
Encarnação, que revestiu a carne humana de tal esplendor, acabou por elevar o
homem, imagem do Logos, a um altura única na escala dos seres criados. Com que
audácia o autor da Fé Ortodoxa, João Damasceno, declara: “Deus não se uniu à
natureza angélica, mas à humana, e se tornou homem em hipóstase” (De Imaginibus,
orat. III, c. 26). E, falando da Eucaristia, ele dirá ainda que os anjos não
participaram – como os homens – da natureza, mas apenas da energia
divina, pois eles não participaram da carne e do sangue de Cristo. O germe
desse pensamento pode ser encontrado na epístola aos Hebreus, que diz a
respeito do Filho do Homem: “Ele não está encarregado dos anjos, mas da
descendência de Abrahão” (Hebreus 2: 16).
[26]
Esse é um ponto de litígio entre o tomismo e a escola de Eckart, que separa o
conhecimento de consciência do conhecimento racional.
[27]
Os Bizantinos talvez tenham especulado menos e antes insistido mais que os teólogos
latinos sobre a imagem do Deus trino, impressa na alma humana. Uma comparação
rápida se impõe. O que domina, em Santo Agostinho e nos medievais, é a ideia de
analogia, de semelhança longínqua. E sempre se afirma a tendência unitária; a mens,
substância una da alma e, no interior, o pensamento puro, seu próprio
conhecimento e sua vontade. Sobre o conceito trinitário divino, da Inteligência
que se conhece e deseja – conceito que tem uma origem puramente psicológica e
humana – teria se formado, por analogia, o ser espiritual do homem. Nessa teoria
da imagem encontramos a seguinte tríade: inteligência, memória, vontade, ou
ainda, transpondo-a: ser, compreender, viver. Aqui não existe distinção real entre
a alma e suas faculdades, “para nos oferecer nela uma imagem racional da Trindade”.
Mas “Agostinho consagra o último capítulo de sua I a descrever as diferenças
radicais que separam a Trindade criadora de suas imagens reais. É a análise de
São Boaventura que ilumina melhor a economia trinitária da criatura racional, segundo
o pensamento medieval. O triplo princípio espiritual é aí composto de substantia,
virtus, operatio.
O homem, efígie real do Deus
trino, se encontra no Ocidente antes da escola de Eckart, em Erigena, pois,
para esse, como para os Gregos, a Trindade da qual se deve partir sempre se reflete
inteira na criação, da qual o homem representa o cume e a síntese: per
essentiam Pater, per sapientiam Filius, per vitam Spiritus Sanctus; ou intellectus,
ratio (no sentido da contemplação das ideias, e não da razão discursiva), e sensus,
o sentido interior.
Os Bizantinos distinguiam
no homem, verdadeira imagem divina: a Inteligência pura, princípio de todo o
ser, seu pensamento expresso ou Verbo, e o pneuma, a respiração da Vida,
sopro ígneo do amor.
[28] Desde
Orígenes e Gregório de Nissa, os Gregos se inclinam a ver no primeiro homem
criado à imagem de Deus (Gênesis 1: 26) um ser ideal andrógino, que deverá
ressuscitar no Juízo Final, como o Cristo “glorificado”. Essa androginia
primitiva aparece em Fílon. Encontramos o mito do Anthropos celeste num
tratado de Hipólito sobre os Naassenios. Qualquer que seja a origem “gnóstica”
dessa crença, o Ocidente agostiniano rompeu com ela. Somente Erigena partilha
dela, contra Agostinho que afirma em sua Cidade de Deus que ela é
contrária ao Evangelho de Mateus (Mateus 22: 29-30).
[29]
Discute-se muito para saber se a concupiscência era, para Agostinho, a raiz,
ou, como para Santo Anselmo, e para toda a Igreja do Ocidente depois dele,
apenas a consequência do pecado. A mesma questão poderia ser colocada para os Gregos,
cujo pensamento poderia parecer flutuante à primeira vista. Para Gregório de
NIssa, a queda dos Anjos teria sido causada pelo orgulho, por Lúcifer ter se
ofendido pelo fato de o homem ter sido criado à imagem divina. Coisa curiosa,
encontramos essa crença, de forma mais cativante, nas imagens islâmicas que
remontam à Vila Adae, de origem judaica: a desobediência de Satanás,
recusando-se a se prosternar diante de Adão, sob a ordem de Deus. No que se
refere à queda do homem (no sentido da criatura humana), ela parece ter sido
provocada, segundo o jovem Capadócio, por um movimento de atração pelo falso nem
e a falsa ciência. À primeira vista, um erro de julgamento, mas um erro que já
mostrava uma preferência sensível. É por isso que – segundo o doutor de Nissa
que seguia a seu mestre, Orígenes – Adão e Eva, tendo perdido seus corpos
etéreos, tomaram um corpo material que encarnava o apelo aos sentidos; somente
com esse corpo nasceria a vida sexual, desconhecida no paraíso terrestre. Os Bizantinos
permaneceram fieis a essa lembrança da longínqua espiritualidade origenista
(com exceção da doutrina gnóstica da pré-existência das almas). Encontramos a
mesma ideia da destruição de nossa natureza divina primitiva em Scottus Erigena,
cuja antropologia é essencialmente Grega. O mesmo podemos dizer de alguns
beneditinos do século XII, perdidos no Ocidente, como Rupert de Deutz, Honorius
de Augsbourg e os irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg.
[30]
Para São Gregório de Nissa, a dignidade do homem está na sua inteligência,
imagem ou espelho que reflete a Inteligência de Deus. Essa é a parte divina de
seu ser (De Imagine, XII, C. 164). A mesma concepção intelectualista
está em São Máximo, que, em sua antropologia, segue de perto o bispo de Nissa,
e também nos Bizantinos; mas a inteligência aqui e sempre suprarracional, não
nos esqueçamos disso.
[31]
Não que a escatologia da Cidade de Deus, da qual bebeu toda a Idade
Média, tenha sido menos rica do que a dos Bizantinos. Mas o homem agostiniano
ressuscitado mantém ainda seu aspecto terrestre (De Civitas Dei, XXII,
1). Sua carne ainda não se encontra transfigurada, como na patrística Grega. Essa
é o erro que lhe aponta Erigena (De Divis. Natur., V, 37). A esse
respeito, é interessante comparar o bispo de Hipona com seu mestre, Santo Ambrósio
de Milão, que manteve intacto o pensamento tradicional: veja-se seu Comentário
sobre São Lucas, no qual a espiritualização da natureza humana é completa.
[32]
O ponto de vista ne varietur de Agostinho é sempre assim: Deus nada deve
à sua criatura. Mesmo a imortalidade do primeiro homem consistia unicamente em
não dever, e não a não poder, morrer; a retidão e o amor
imperturbatus de Adão tampouco pertenciam à natureza própria do homem, que
permanece sendo um enigma. A esse respeito, como em outros pontos, a doutrina
agostiniana foi modificada por São Tomás, para o qual existe uma essência
incorruptível na natureza humana. Acrescentemos que, segundo ele, perdemos, com
o pecado original, não apenas os dons sobrenaturais – cuja visão intuitiva, que
não passa de uma graça (isso, ao encontro do pensamento fundamental Grego) –
fomos feridos ainda in naturalibus. Mas, no agostinismo, trata-se de uma
verdadeira corrupção da natureza, enquanto que seus princípios essenciais subsistirão,
segundo São Tomás. Quanto aos Gregos, somente a Encarnação poderia, por um
milagre sem precedentes, recriar a divindade ideal de nossa espécie, cuja
imortalidade era a principal característica, e que João Damasceno chama de “sua
verdadeira natureza”.
[33]
Segundo São Máximo e alguns Bizantinos, o Verbo teria se encarnado de qualquer
maneira, mas não teria sido enviado à morte. Somente a Cruz foi demandada pelo
pecado original, coisa que nenhum Grego jamais negou, diga-se o que se disser.
[34]
O esquecimento em que caiu a escola de teologia inspirada pelos Padres
platônicos se explica pelo triunfo, no século XIII, da escolástica
aristotélica, e sobretudo pela desconfiança crescente da Igreja contra Scottus
Erigema.
[35]
É um engano chamar a essa concepção patrística do “renascimento” do homem em Cristo,
de teoria física da Redenção, desconhecendo assim todo seu valor
religioso. Ao contrário, ela é uma teoria orgânica de um realismo integral, na qual
se afirma a unidade primeira da natureza humana, incorruptível e divina.
Harnack – que jamais compreendeu os Gregos – chega a falar em recapitulação
como sendo um “sistema físico-farmacológico”. O Abade Rivière não vê aí mais do
que um esboço, uma série de tentativas, e nada mais. De fato, estamos aqui em
presença de uma doutrina coerente, elevada e forte, doutrina que permaneceu na
tradição ininterrupta da Igreja ortodoxa, cuja validade ninguém enfraqueceu, e
que alimentou toda a experiência mística do Oriente cristão. Acrescentemos que
ela nos parece diferir por natureza de toda divinização dos mistérios pagãos,
onde alguns buscaram sua fonte, e que não passavam de “imitações antecipadas”
do Cristianismo.
[36] Epist.,
VIII, 5.
[37] Orat.
I, 7, XXXVII, 2.
[38]
Para Santo Anselmo e os teólogos de sua linha, o Verbo não interveio senão
porque a criatura era impotente para reparar a desordem, o que constitui uma
ofensa contra o próprio Deus.
[39] Rom.,
Hom. IX, 3.
[40] Orat.
XII, 1, 8 e XIII, 4.
[41] Orat.
II, 56 e 66.
[42]
Salientemos aqui esse traço significativo: o silêncio quase completo sobre o
Jesus histórico nas homilias dos mestres espirituais de Bizâncio, ou a
interpretação alegórica, na tradição alexandrina, de todas as palavras do
Mestre. Mesmo um São João Crisóstomo, o maior moralista Grego antes de Teodoro
o Studita, não tenta nos comover, nem apela diretamente à nossa humanidade. Que
diferença para com os medievais, em particular São Bernardo, que em cada sermão
– Natividade, Infância, Paixão – respira ternura humana, verdadeiramente
abundante! As homilias Gregas, como as epístolas Paulinas, não veem no homem
senão o Salvador. Da mesma forma, a iconografia Orienta ignora o tema do
Presépio, o da Sagrada Família, tão amado no Ocidente, sobretudo na Itália, que
acabará por penetrar no recinto das igrejas, e até mesmo no Calendário
litúrgico. A Igreja ortodoxa tampouco conhece a devoção ao esposo da Virgem,
São José, que de resto é considerado como viúvo e pai dos “irmãos” de Jesus. Ele
jamais aparece nos ícones, ao lado de Maria: a Theotokos, só ou com seu Filho divino,
é rodeada pelos coros celestes que cantam sua glória, e às vezes ela plana
acima da humanidade terrestre. Às vezes ela está próxima de São João Batista,
com Cristo no centro, e essa configuração recebe o nome de Deisis
(imploração); ela possui um sentido teológico muito preciso: o Segundo Adão,
que traz a vida nova, seu Precursor e – traço de união entre as duas Leis – a Virgem-Mãe.
[43]
É o serviço litúrgico das duas Igrejas que nos fornece a melhor prova-ilustração
disso. A missa romana, dobrando-se sobre si mesma numa concisão estilizada,
culmina e termina no sacrifício pacífico do altar que renova o sacrifício
sangrento do Calvário. A liturgia Grega reproduz, ritualmente, todos os
momentos essenciais da vida do Senhor. Ela não se fixa unicamente no ato de
imolação do Agnus Dei, mas o prepara e o ultrapassa. Seu ponto
culminante é a comunhão dos fiéis – que jamais é distribuída fora da Liturgia,
bem entendido – que simboliza o milagre da Ressurreição. Primeiro os comungantes,
como as santas Mulheres junto ao sepulcro, se reúnem diante do iconostase,
barreira móvel que separa a terra do céu; depois a porte real é aberta de par
em par em silêncio pelo diácono, que representa, seja o Precursor, seja o
arcanjo Gabriel; é a pedra do sepulcro que foi rolada pelo mensageiro celeste. Então
aparece o Senhor vivo, oculto nos Santos Dons, para distribuir a seus filhos
sua carne glorificada, dom da vida imortal. Vem então a oração final, que encerra
o ofício, ação de graças cantada pelo coro, anunciando a Ascensão, epílogo
sobre a terra, prólogo nos céus, onde tudo se consuma.
[44]
A base evangélica dessa devoção está no gesto do apóstolo bem-amado que, no
final da Ceia, prelúdio do sacrifício supremo do Amor, repousa a cabeça sobre o
peito do Mestre. Foi como órgão do amor que Santa Gertrude de Helfta inaugurou,
no final do século XIII, o culto ao Sagrado Coração de Jesus, culto
revivificado nos tempos modernos pelas visões de Paray-le-Monial.
[45]
Um simples olhar sobre as duas iconografias basta para nos convencer da
diferença essencial sobre esse ponto entre o Oriente e o Ocidente. Na Idade
Média, e além dela, em primeiro plano, a representação, cada vez mais patética,
do sofrimento humano de Cristo; flagelação, caminho da cruz, instrumentos da
Paixão, agonia do Calvário, sem falar das inumeráveis cenas de martírios que
recomeçam e prolongam ao infinito o sacrifício voluntário do Mestre. Essa arte,
que acabará por ter algo de mórbido, com seu gosto dolorido pelo sangue e os suplícios,
atinge seu paroxismo na Espanha do século XVI. Entre os Gregos, cuja arte
religiosa é objeto de um culto, ou antes de uma veneração – a proskynese
– uma idealização procurada, uma separação das realidades terrestres, vem à
luz: a dor é sempre transfigurada. Mesmo o maior realismo, e mais marcantemente
patético, do oriente cristão (Síria, Mesopotâmia) permanece até sóbrio,
discreto e contido na representação do sofrimento.
[46]
Essa crença se funda sobre a teologia de uma certa identificação da impassibilidade,
a apatheia, com a aphtharsia ou incorruptibilidade. Por meio dela
se explica em grande parte das disciplinas de ascese no monaquismo oriental e
seu caráter específico, em relação com a própria noção do pecado que destrói a
vida. A esperança na athanasia está intimamente ligada à catharsis,
verdadeiro princípio de conservação para a criatura. Eis porque o corpo de Cristo
não estava submetido à morte, porque ser perfeitamente puro, e, tendo assumido
essa morte voluntariamente, livremente, ele não poderia ser considerado – nem sobre
a Cruz, nem na descida, nem no sepulcro – como um cadáver; nele, a vida se
encontrava suspensa, mas não abolida. Estamos aqui na grande tradição
cristológica que teve suas repercussões imediatas entre os Gregos, sobre a imitação
do divino modelo pelos ascetas místicos. Segundo os Bizantinos, a alma do “espiritual”
tampouco deixa por completo seus despojos, e o preserva da corrupção. Daí decorre
também seu dom de milagres, que não é outra coisa do que o sinal dessa presença
real do espírito purificado.
[47] Esse
é o esquema traçado por São Máximo, em pleno acordo com toda a tradição mística
Grega.
[48] I
João 3: 2.
[49]
Peri tes em Christo zoes: é o título do tratado, em sete discursos, de Nicolas
Cabasilas, o célebre liturgista-mistagogo do século XV, no qual a imitação de Cristo
é concebida como a deificação do homem por Cristo, na graça dos sacramentos,
viático da imortalidade.
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