sábado, 17 de outubro de 2020

Myrra Lot-Borodine - A Deificação do Homem - Capítulo I: Fundamentos Teológicos

 


A doutrina da Deificação na Igreja Grega até o século XI[1]

 

I

 

Fundamentos Teológicos

 

INTRODUÇÃO

 

A theoria (a contemplação aliada ao estudo) da patrística grega, recolhida, continuada e amplificada pelos Bizantinos, seus herdeiros diretos e legítimos, constitui um mundo à parte, inteiramente fechado às infiltrações de fora. É um mundo no qual a vida íntima do espírito dorme como uma água esquecida no fundo de um poço. Sua doutrina da contemplação, que não podemos dissociar do ensinamento dogmático da Igreja-mãe, forma um todo homogêneo. Sobre mais de um ponto, essa doutrina, platônica até em seus últimos frutos, cristã e oriental desde sua raiz, se distingue do Ocidente latino e permanece ainda hoje desconhecida dele – ou, por ele, mal interpretada.

 

Todo o edifício repousa sobre a pedra angular de um duplo conhecimento: o da teognose apofática, ou conhecimento da natureza divina, incrustrado nas trevas que constituem a franja de sua Luz inacessível, e o da antropologia mística, ou conhecimento da natureza humana, perscrutado nas profundezas de seu destino primeiro, e nas deformações de seu estado presente, que é preciso reerguer antes de revivê-lo plenamente e de uma vez por todas.

 

Inicialmente, Deus é desconhecido, agnostos Theos, Ele está além da existência, do ser, da razão, Ele é absolutamente incognoscível e indizível. Essa agnosia, que começa por levantar uma barreira intransponível entre o incriado e o criado, se encontra na base de toda especulação judaico-cristã[2]. Já Fílon de Alexandria, que apresenta uma síntese tão pessoal da inspiração bíblica, da metafísica helenística e da mística oriental, reconhecia o mysterium tremendum desse Deus, que escapava aos instrumentos da inteligência, porque ultrapassava a própria inteligência. Ele é apoios, sem limites, sem qualidade determinada, ao mesmo tempo em que é infinitamente rico em todas as perfeições. Para concluir: “É preciso ser Deus, declara Fílon, para compreender Deus”. E eis que, pela primeira vez na história, aparece em primeiro plano, fortemente matizado pelo entusiasmo profético, a grande descoberta do espírito humano: a intuição do divino através do êxtase. Semente vinda de longe, lançada sobre um terreno admiravelmente preparado, e que germinará lentamente sob a terra, o caráter gratuito desse êxtase já se desenha no precursor judaico da mística cristã.

 

O Cristianismo dos primeiros séculos, ao proclamar a teofania do Verbo feito carne – que não é o Logos de Fílon, cuja encarnação é impossível – manteve ciumentamente a transcendência do Princípio sem princípios. A palavra do evangelista, “ninguém jamais viu a Deus”, foi retomada, meditada e aprofundada no sentido joanita pelos Padres da Igreja nascente, adversários irredutíveis dos orgulhosos sistemas gnósticos que violavam o mistério depois de havê-lo entronizado. Mas somente a majestade do “Não-gerado” permaneceu insondável aos olhos dos doutores da lei. Para Santo Inácio de Antioquia, fiel ao pensamento do Quarto Evangelho, que em seu tempo já se encontrava fixado por escrito, somente o Verbo revelava o Pai, sempre desconhecido, e cujo atributo primeiro era o “tranquilo silêncio”. Esse Filho, cuja unidade indissolúvel com o Pai foi proclamada pelo bispo mártir, até fazer Dele – em aparência – um só ser divino, era chamado por Inácio em suas epístolas, de palavra ou boca “verídica” pela qual o Pai falara, tanto aos profetas do Antigo, como aos Apóstolos do Novo Testamento: “Ele é o Verbo que saiu do silêncio”.

 

Os apologistas acentuam primeiro o caráter específico do Logos, pré-eterna energia e ideia criadora do Pai. E, com sua teoria da dupla geração-proclamação do Filho, eles especificavam ainda sua atitude diante do Pai: em face do Deus oculto, o Deus revelado. Justino o Mártir emprega, para designar o Pai do universo, o único “não-gerado” e inominável, uma expressão platônica que devemos reter: “além de toda essência[3]”. Sua teologia da filiação divina do Verbo, gerado antes de todas as criaturas e visível apenas a elas, é claramente subordinativa, recuando em relação à cristologia de Santo Inácio, que de resto possuía um caráter mais religioso do que filosófico[4].

 

O grande teólogo do século II, Santo Irineu, bispo de Lyon, embora mais próximo do que Santo Inácio da concepção que, definitivamente, triunfará, afirma com todas as letras a nossa impossibilidade de ver o Pai, a não ser por intermédio do Unigenitus Filius, porque “o homem, por si só, não vê a Deus[5]”; mas, “se o Pai do Filho é invisível, o Filho do Pai é visível[6]”. Ao mesmo tempo, esse último dos Padres apostólicos nos mostra, bem acima de nosso conhecimento natura do Criador pela criação, um outro, mais perfeito: o conhecimento “segundo o amor”, que se opõe ao conhecimento impossível “segundo a imensidão”.

 

No Concílio de Niceia, em 325, impôs-se, como sabemos, com o brilhante campeão da Ortodoxia, Santo Atanásio, a crença na consubstancialidade das duas hipóstases. Daí por diante, o mesmo mistério, no que concerne ao conhecimento último, abarca o Filho, igual e semelhante ao Pai, até que os uma o Espírito Santo, cuja natureza é idêntica. Pareceria então que toda comunicação imediata deveria ser cortada entre a mônada trina e a criatura racional. Mas não foi isso que aconteceu. Pois essa criatura, chamada, conforme a crença cristã, para um destino sobrenatural, invencivelmente atraída por sua causa eficiente e por sua causa final, deveria iniciar, desde aqui de baixo, o itinerarium mentis ad Deum.

 

Para compreender como a antinomia foi resolvida na espiritualidade grega, é preciso primeiro analisar sua noção apofática da deidade, a única adequada ao seu objeto, infinito e absolutamente simples, único exaustivo, devido à sua própria indeterminação. Estudar a seguir a estrutura íntima do homem, tal como teria sido antes do pecado, tal como se tornou por causa do pecado e tal como deverá ser novamente, para conhecer plenamente, para poder amar e contemplar santamente na união transformadora. Compreender enfim, por qual movimento duplo convergente, de inclinação divina e ascensão humana, pode se efetuar o encontro supremo: o encontro do homem com Deus, a união que deifica pela graça.

 

 

A TEOGNOSIA APOFÁTICA

 

O leito da teologia negativa havia sido cavado e a ponte de arco-íris havia sido lançada sobre o abismo entre Deus e o homem, antes ainda do Pseudo-Dionísio, desde os umbrais do século III, na gnose alexandrina. Inspirada pelo neoplatonismo e o estoicismo enquanto pensamento, por Fílon, enquanto experiência extática, oriental por sua terminologia emprestada aos Mistérios, essa gnose, entretanto, é profundamente cristã. Impossível negar suas ligações com o Quarto Evangelho, o da Luz-Verdade e da adoção divina, assim como impossível é recusar a grande novidade de sua mensagem. Foi Clemente de Alexandria que, entreabrindo a porta secreta, primeiro declarou que “não conhecemos a Deus, senão naquilo que Ele não é”, e que esse conhecimento intuitivo constitui uma revelação imediata. Ele assim estabeleceu o próprio princípio da doutrina apofática da qual se encontra suspensa, como por um fio de ouro, toda a mística grega. Um conhecimento das coisas divinas, ou seja, do incognoscível, não pode ser racional. Ele não pode ser obtido, com efeito, senão por uma iluminação carismática de todo o ser, e precedida por diversos graus de iniciação. Se Clemente se serve de bom grado da linguagem dos mistérios pagãos, e nos fala em hierofantia (ostentação dos objetos sacros) e de epoptia (o mais alto grau de contemplação dos mistérios), ele sempre subentende com isso a iniciação cristã, na qual o Verbo encarnado é o centro irradiante, “Filho único que é a marca da glória do Pai”. Trata-se de uma adesão direta da alma crente, elevada pela graça, uma tomada de posse de um bem, impossível de se conquistar apenas pelo esforço da vontade, ou mesmo de um pensamento purificado. E nós veremos que alguma coisa do mistério abissal permanecerá inacessível para todo o sempre, não por sua imperfeição, ou por uma impotência sua em se tornar sensível, nem por causa da fraqueza de sua inteligência. A razão está em outro lugar, na própria natureza do objeto.

 

Orígenes, que abriu um largo caminho para as teologias positivas do futuro, e que, com olhos de água, pretendeu perfurar todas as brumas, conservou sempre a esperança de atingir a essência da Mônada una: expurgando o espírito, preservando-o de todo contato material, ao estilo de Plotino. Seu mestre, Clemente, era mais consequente consigo mesmo, mais obediente às severas lições que vinham do fundo da tradição. Uma vez que “Deus não pode ser alcançado nem por imagens, nem por ideias, estando fora de toda e qualquer propriedade inerente às coisas”, não é possível mais do que tocar a periferia de seu ser sobre os cumes da gnose. Essa gnose inspirada dos eleitos e dos perfeitos era, para Clemente, muito superior à fé (pistis) dos simples fieis, no que ele se separa do judeu Fílon, cuja influência sofreu, e do ponto de vista da exegese alegórica das Escrituras. Mas Clemente jamais se fechou na torre de marfim da alta aristocracia, como tantas vezes o acusam. Pois, para ele, todo crente é um gnóstico ou um sábio em potência, e essa sabedoria implica, junto com a ascese purificadora, a fé, mãe de todas as virtudes cristãs. Ademais, a gnose pneumática é sempre “uma graça que ilumina o espírito”. Trata-se do dom da ágape, onde caridade, inspiração e ciência sagrada são inseparáveis[7]. Essas coisas permanecerão em toda a teologia mística dos gregos, que vêm em linha direta da gnose ortodoxa de Alexandria. Enfim, o Deus de Clemente, planando acima do inteligível e acima do sensível, oculta em si uma vontade de benevolência pessoal – a filantropia, expressão cara à patrística. E nosso Doutor compara o divino “Filantropo” à ancora invisível que atrai para a margem aqueles que a ela se agarram. Bela imagem da graça previdente cuja noção mesma era estranha à soberba dos filósofos e à embriaguez dos iniciados de Eleusis da antiguidade pagã[8].

 

Em boa hora canonizado por sua Igreja, o mestre de Orígenes, mais seguro para se seguir do que seu genial aluno, exerceu uma influência decisiva sobre os pneumatikoi do monaquismo no Oriente e em Bizâncio. O Stromates parece ter sido um dos livros de cabeceira de São Macário (ou Pseudo-Macário), de São Nilo, de Evagro o Pôntico, de São Máximo o Confessor enfim, o que faz justiça ao “mais filosófico dos filósofos”. Encontraremos muitas vezes o nome e a marca espiritual desse nobre mistagogo, escondido sob o amplo manto platônico ou estoico. Na via real que conduz à contemplação-união, ele será o primeiro, embora longínquo, condutor do rebanho eleito. Caberá a outros o cuidado piedoso de refundar a mística abstrata do Logos didaskalos, como mística viva de Jesus Cristo. Essa será a obra dos séculos IV e V, dos construtores do dogma e da Ecclesia.

 

Uma questão precisa, que já tocamos de leve, se coloca agora: o que pode o espírito criado conhecer de Deus, o que pode ver Nele? A resposta para essa questão, em geral pouco estudada, é, a nossos olhos, de uma importância capital, tanto para a especulação pura como para a experiência mística ligada a ela. Com efeito, ela traça uma linha de separação clara entre as duas teologias, a grega e a latina, uma linha de separação das águas que remonta a Santo Agostinho, quem, nesse ponto em especial, rompeu com a tradição patrística grega, em geral pouco conhecida por ele. seu último representante no Ocidente fôra Santo Ambrósio de Milão, canal principal, mas não único, por onde essa tradição passou até chegar ao bispo de Hipona.

 

Os Padres gregos, partindo da ideia do ser, sempre distinguiram em Deus a essência e as forças (“energias”), fossem potenciais, fossem atualizadas, distinção que remonta, sob sua forma geral, à filosofia antiga[9]. Já Plotino, depois de Aristóteles, afirmava a incognoscibilidade de toda essência, pois, sendo simples, sem acidentes e indivisível, ela não pode ser apreendida pelo pensamento, que é múltiplo e limitado. Como sonhar assim em conhecer a essência divina, abraçar o Infinito com um espírito finito? Não somente esse é impensável por definição, como ainda a própria força – que é distinta da essência, na medida em que não é exteriorizada e não se torna energia – aparece como “treva” aos seres criados no tempo ex nihilo.

 

A razão, iluminada pela fé, pode certamente emitir algumas verdades positivas sobre Deus. A teologia catafática, explicitando essas verdades positivas, chega a construir, peça por peça, todo o dogma: mas esse não passa da refração do mistério través do prisma do pensamento, uma ilhota que emerge do oceano do incognoscível. O último mistério permanece impenetrável, revelado unicamente pelas energias incriadas e criadoras que derivam diretamente da essência incognoscível do Deus trino[10]. Elas manifestam a perfeição da divindade – ao mesmo tempo em que velam seu brilho – tantno pela beleza do Cosmo, como pela sabedoria das leis que o governam. Assim é que as forças atualizadas do Ser único formam a base da pirâmide que sobe, estreitando-se cada vez mais, até a essência incognoscível; elas são o único aspecto visível do Deus invisível. Pontos de partida de nossa teognosia humana, que é ao mesmo tempo uma teodiceia, essas atividades – ou teofanias – trarão sempre os nomes divinos de Onipotência, de Bondade, de Inteligência ou de Providência, simples atributos que não podem, senão de modo imperfeito, qualificar o Inqualificável, e menos ainda esgotar o conteúdo do Princípio infinito.

 

Essa concepção já era familiar a Fílon, com uma nuance: ao isolar Deus numa solidão imutável, Fílon o fazia comunicar-se com o mundo por intermédio do Logos, a um tempo Inteligência e Força criadora, Theia dynamis (potência divina), distinto das Potências que sustentavam sua criação. O dogma trinitário ortodoxo não podia admitir semelhante degradação do divino em suas hipóstases, igualmente incriadas, idênticas como natureza e inseparáveis. Mesmo a tríade de Plotino, substancial de outro modo, mas assim mesmo emanatista, do “Um, do Nous e da Alma do mundo”, pode ser considerada análoga, mas nunca o protótipo, da Trindade cristã, que nada tem, nem pode ter, de uma hierarquia, qualquer que seja[11].

 

É verdade que podemos constatar algumas flutuações, que já mostramos mais acima, no dogma trinitário da teologia ante-nicênica. Em Atenágoras, por exemplo, o Logos, que é consubstancial ao Pai apenas em potência, não é outra coisa do que o conjunto das Ideias que agem no universo. Quando toda pretensão à subordinação desaparece, a incognoscibilidade se torna apanágio de toda a Trindade, e as energias, irradiando de um centro único, pertencem, sem distinção possível, às Três Pessoas, cuja essência é uma[12]. E essa essência, repetimos, jamais pode ser plenamente percebida, mesmo no êxtase, por ser um estado teopático, vale dizer, um estado no qual o homem está submetido diretamente à ação de Deus. A união do criado com o incriado não se dá senão por intermédio dos raios-forças que deificam. Daí procede a absoluta impossibilidade da visão dita intuitiva. Nada seria capaz de preencher esse abismo ontológico, uma vez que os próprios Anjos, que se banham na “luz tri-solar”, não são capazes de penetrar no coração do inviolável mistério derradeiro. Mas os espíritos puros sabem que nada sabem, e esse é o ápice do conhecimento apofático. Assim é descartada toda suspeita de panteísmo.

 

O mérito da escola capadócia, caminhando sobre as pegadas dos primeiros Padres, foi o de ter lançado uma luz sobre essa discriminação verdadeiramente fundamental. Sempre subentendida por Clemente o Gnóstico, ela é às vezes esquecida pelo intelectualismo gnosticizante de Orígenes, o qual, devido a esse desvio, não pode nos servir de guia aqui.

 

O bispo de Cesareia, São Basílio, lutando contra o arianista Eunomo, proclamou abertamente, em nome da Tradição autêntica da Igreja, que a única revelação de Deus se dá através de suas teofanias. E ele especificou: de um lado, a essência incomunicável, de outro, as energias que dela emanam. Os dois Gregórios, e em especial Gregório de Nissa, primeiro metafísico da vida contemplativa grega, deslindaram à perfeição o intrincado problema. Esse último doutor, discípulo ortodoxo de Orígenes, a quem deu continuidade, corrigindo-o em mais de um ponto doutrinário, ensinou que o próprio Verbo não revelou mais do que uma parte da força teúrgica latente. Quanto à natureza divina, ele não pôde dá-la a conhecer, porque ela não tem nome, sendo assim indizível. E essa ausência de nome é simbolizada pela “treva divina” na qual entrou, no Sinai, Moisés, o primeiro homem vivo arrebatado em êxtase[13]. Essa treva não é outra coisa do que o ofuscamento provocado pela Luz divina. Com Gregório de Nazianze, o bispo de Nissa nos mostra, em sua Vida de Moisés, que lhe foi inspirada pelo modelo de Fílon, aquilo que, em Deus, pode ser comunicado de modo imediato: o aspecto de seu ser que está voltado para o mundo, que não subsiste senão por essa ação da energia divina, estável. “Tu me verás pelas costas”, foi dito ao chefe do povo eleito, e a mão de Javé, que passava, lhe escondeu Sua Face, “que ninguém pode ver sem morrer[14]”. Entretanto, a gnose, sabedoria iluminada pela graça do amor santificante, permite ao espírito deiforme contemplar os raios-reflexos dessa Face, e se unir a eles.

 

O ensaio de uma síntese harmoniosa, que delimitasse as duas teologias, catafática e apofática, foi tentada pelo enigmático autor das Areopagíticas, provavelmente no final do século V, cerca de cinquenta anos após a morte de Santo Agostinho. Talvez essa data, desconhecida pela história, marque o evento mais considerável para a mística cristã, mesmo para o Ocidente latino, que só adotou Dionísio com certa reserva, como que perturbado pela estranha intensidade de sua vertigem metafísica. Pois não é por citá-lo com frequência, que isso implique inspirar-se verdadeiramente nele, como podemos ver pela gnose prudente de São Tomás de Aquino. Somente Maître Eckart (e talvez Tauler e Ruysbroeck), tão próximo como afinado com a especulação transmitida por Scottus Erigena, parece possuir uma alma dionisíaca. Mas a sombra do Areopagita plaina sobre toda a Idade Média contemplativa. O que a experiência afetiva medieval sempre acrescentou a esse pensamento, elevado e diáfano, mas sem calor, foi a centelha de uma emoção, nascida do distante braseiro agostiniano, e que se tornou ainda mais ardente depois de São Bernardo.

 

Quanto aos gregos, eles devem à fonte dionisíaca, filtrada para eles por São Máximo o Confessor, uma cristalização perfeita das ideias que lhes eram congênitas. Entre essa fonte e a de Santo Agostinho, eles não precisaram nem hesitar nem escolher, pois da segunda, que escoa tão longe da outra, nossos Espirituais jamais se saciaram. E, não esqueçamos que, desde o século IV, no Egito, berço da vida contemplativa, a ascese mística desabrochou sobre o próprio ramo da gnose cristã alexandrina e dionisíaca.

 

Apenas algumas palavras, a respeito da especulação apofática do Pseudo-Dionísio, muito mais cristão e muito menos dependente de Proclus, do que em geral se afirma até hoje. Um crítico russo, Vladimir Lossky, a apresenta sob uma nova luz. Dele emprestamos, em grande parte, a exposição que se segue, e que resume os pensamentos diretores do tratado dos Nomes Divinos. O principal é: Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente.

 

O autor dos Livros areopagíticos nos mostra em primeiro lugar que as duas vias, a afirmativa e a negativa, embora irredutíveis uma em relação à outra, conduzem ao mesmo fim: o conhecimento da Trindade santa. Essa Trindade contém em si as hénoseis, uniões, “residências secretas de Deus que não se manifestam”, e as diakriseis, separações que se produzem primeiramente no seio da vida intradivina. Saindo da divindade, por toda a eternidade elas se revelam em múltiplas aparições às criaturas. Luzes divinas, filtradas pelo sensível, essas proodoi ou “processões” não são outra coisa do que as ideias ou energias incriadas: por meio delas, Deus governa a tudo, e, por sua vontade, delas participam os seres. Toda existência e toda substância procedem assim dessas dynameis, a que chamamos de “nomes divinos”. Sabedoria, Vida, Ser, Existência, essas coisas significam forças conferidas pelos dons que são assim denominados. Em suas incessantes teofanias, as energias criadoras em nada alteram a simplicidade perfeita da natureza divina, ainda que elas próprias sejam a Divindade, que em absoluto é diminuída. Assim sendo, não há perda alguma da essência divina, nenhuma degradação da Luz primeira, nenhum “emanatismo” no sentido próprio, nenhuma identidade de natureza entre o Princípio livremente criador e as criaturas, arrastadas nas ondas teúrgicas pelo efeito da graça. Os “raios supra-essenciais”, ao descer até as criaturas, as fazem participar da vida divina, por maneiras prescritas por Deus. E essas maneiras, analogiai, que nada têm em comum com as “analogias” de São Tomás de Aquino, são as Ideias das coisas, pré-existentes nas virtudes de Deus. Elas vêm até nós emergindo das trevas da Essência desconhecida. Princípios e fins das coisas criadas, essas Ideias platônicas contêm as causas de todos os seres, e se comunicam ao mundo incansavelmente. “Deus confere a todos Sua visão (theoria), participação (koinonia) e semelhança (homoiosis), segundo a ideia divina de cada ser”. O conhecimento perfeito de todas as participações, declara Dionísio, une aos raios que iluminam a insondável Sabedoria; ao mesmo tempo em que elas nos deslumbram, elas nos mergulham na “novem do desconhecido”. Ali se esconde, no fundo da hesychia – o repouso, a Paz silenciosa – o mistério da Causa primeira, do Deus uni e trino, que está para além do ser. Mistério supremo que se coloca na intersecção do duplo eixo das teologias, negativa e positiva. Pois as três hipóstases são a um tempo tanto as henoseis, uniões, como as diakriseis, separações, no interior da Trindade santa, que se revelam exteriormente. Ora, somente as últimas permanecem acessíveis ao olhar humano. Deus criou o mundo para manifestar Sua aparição às criaturas e atraí-las para Si pelo desejo ou o amor, Eros. O objetivo da criatura é a deificação pela graça: a theosis[15].

 

Após essa brevíssima análise, vemos a partir daí que a união deificante não pode ser outra coisa do que o fruto de um conhecimento negativo último. O fundo, sobre o qual se projetam como faíscas luminosas, as energias do Ser, permanece sempre obscuro. E existe ainda outra particularidade, não menos importante, e que desenvolveremos mais adiante: a deificação que participa apofaticamente se dá para cada criatura de modo individual, que é determinado pelo grau de sua perfeição e por sua natureza própria; isso, ao contrário da via comum catafática, é sempre estritamente objetivo. Daí provém a imutabilidade do dogma ecumênico, espinha dorsal de toda a consciência eclesial, e a superabundância de graças, que se adapta às almas em suas hierarquias, iluminadas e purificadas cada qual a seu modo. Graças que são, também elas, incriadas – não nos esqueçamos disso[16].

 

Tudo é diferente dessa mistagogia hermética, no sistema simples de Santo Agostinho, que foi chamado, não sem razão, de primeira filosofia cristã, embora, de fato, a experiência vivida tenha sido do coração. Platônica, porque acima dela se desdobra o céu das ideias-mãe, o pensamento agostiniano inunda o universo de luz inteligível[17]. Mais do que isso, a noçãode unidade aí predomina, tanto na metafísica quanto do ponto de vista do dogma[18]. A simplicidade e absoluta “ipseidade” do Princípio sem começo nem fim, definido como Bem Supremo, parece obrigar o bispo de Hipona a não separar, ao contrário dos Padres gregos, a essência divina das Forças ou Energias, que mais tarde o Tomismo irá chamar de “operações”, transformando-as em criações. Para Santo Agostinho – e sobre esse ponto todo o Ocidente o seguiu – existe em Deus uma identidade de substância e de existência, do quo est e do quod est, ou dito de outra maneira: Deus é o que existe.

 

Logo caíram as sutis distinções implicitamente reconhecidas pelos Padres gregos, fixadas de uma vez por todas pelo Areopagita, e que teceram a trama viva da mística grega e bizantina[19]. E então, malgrado a extrema circunspecção de Santo Agostinho, abriu-se de um golpe à contemplação o perigoso caminho do ontologismo, da visio Dei per essentiam. Ele próprio manteve erguida a barreira entre o Criador e a criatura, sempre prisioneiro da matéria, sempre engajado na massa do sensível. Somente o rapto – o arrebatamento – reservado a pouco eleitos, como Moisés ou São Paulo, podem lançar essa criatura, pelo espaço de um raio, na plena luz dos céus, na face-a-face dos bem-aventurados[20]. Aqui em baixo, a alma, embora iluminada pelas ideias divinas, não pode ver as coisas diretamente em Deus. Daí a visão imperfeita, mediata[21].

 

O espírito, purificado pela vontade, desfruta apenas do raio “vesperal”, como dirão mais tarde os místicos medievais, e é ainda a visão “em espelho e em enigma”, sob o véu das sombras[22]. Sempre atraído pelo peso de seu desejo – amor meus, pondus meum – o espírito agostiniano tende com toda a força de suas asas para a graça da visão beatífica, a única que pode lhe conceder a “luz de glória”. Ele se sente e se sabe ordenado à beatitude – mas não à deificação; pois essa lhe é proibida, uma vez que não pode haver, no entendimento de Santo Agostinho, consubstancialidade, portanto interpenetração, da natureza divina com a natureza humana. Tudo se reduz a uma participação íntima ao Bem Supremo.

 

Ora, a deificação, antecipada primeiro e como que preparada in via, completada a seguir in pátria, constitui para a patrística grega, que separa as energias essenciais da essência, o princípio mesmo do plano da criação, o objetivo supremo da Encarnação do Verbo e da vida criada. Por isso, as pontes foram bruscamente cortadas entre os dois mundos, o Oriental e o Ocidental, da teologia cristã. E cada um, muito antes da ruptura oficial, mais profunda do que se costuma crer, seguirá a curva de seu próprio destino. Somente as linhas unitivas, em ondas infinitas, mais de uma vez se entrecruzaram sob as estrelas...

 

A diferença transparece, ainda mais significativa do que nas duas teognosias, na dupla antropologia, para a qual devemos agora dirigir nossa atenção.

 

 

A ANTROPOLOGIA MÍSTICA

 

Começando por Santo Irineu, todos os teólogos gregos, do século II ao XIV (inclusive) relataram e repetiram, com toda a precisão devida, a mesma história dramática em três tempos: a do homem, nascido em beatitude, na athanasie (imortalidade) da filiação divina, morto pelo pecado, revivido pela graça e reunido pelo Espírito Santo, no seio do Cristo-Logos, sob a Luz trina. Todos concordaram em proclamar que, feito à imagem e similitude (homoiosis) – e não à simples semelhança – de Deus, Adão deveria ser um participante, por direito de nascimento, da glória[23]. Dito de outra maneira, a verdadeira natureza do homem no paraíso terrestre seria sobrenatural. Esse homem, criado livre e imortal, em estado de perfeição progressiva ou dinâmica, colocado assim no futuro, era o centro do universo, um microcosmo, pertencendo simultaneamente, por sua própria composição, tanto ao mundo inteligível como ao mundo sensível. Órgão, e não instrumento passivo, da vontade do Criador, Adão tinha uma missão a cumprir. Desde seu primeiro dia, Deus lhe havia assinalado como objetivo, conforme diz Santo Irineu, “a absorção da carne pelo espírito”. Pois esse deveria ser o fim de todo o sensível, destinado a amadurecer como inteligível[24].

 

Nesse plano da criação está inserida a ideia-mestra do Logos, imagem perfeita do Pai e marca de Sua glória, princípio da ordem cósmica, protótipo ideal da criatura inteligente. Segundo Santo Atanásio, seguido pelos Capadócios e por São Máximo o Confessor, o nous, esse olho da alma, era logikos, vale dizer, conforme ao pensamento criador, à palavra proferida por Deus Pai. Pois aquilo que o Pai concebe, se realiza pelo Logos e se termina em perfeição pelo Espírito.

 

Eis então o homem estabelecido ab initio nessa comunhão estreita com a divindade, à qual Santo Irineu chamou de Koinonia, e que as gerações patrísticas seguintes confirmarão com toda sua autoridade, com toda a força de sua convicção inquebrantável: ele é, por adoção, filho do “dia divino”.

 

O grande dialético da mística bizantina do século VI, São Máximo o Confessor, apôs um carimbo pessoal, muito particular, à teoria dos logoi, embrionária em Santo Atanásio, tornando-a sua. Tricotomista, como todos os Padres gregos, que distinguiam no composto humano o corpo, a alma e o espírito, Máximo considerava o nous (que é o spiritus agostiniano, a mens ou a apex mentis dos medievais, o homem interior de Eckart e de Tauloer) – esse “norte” da alma intelectual – como sendo naturalmente deiforme. A antropologia e a cosmogonia, unidas indissoluvelmente em São Máximo, giram ambas em torno de um pivô central: o Verbo pré-eterno, o logos spermatikos dos estoicos. Dividido em logoi ou ideias-princípios que realizam o Universo, o Verbo governa inteiramente esse último: 1) pelas leis naturais, 2) pelas obras de Sua Providência, e 3) pelos caminhos do Julgamento. Mas o universo, o ideal em sua essência, divino pela energia que nele se encarna, não é nem simples, nem imutável, como somente Deus é. Ele se compõe de dois mundos, o inteligível – os anjos e as almas humanas – e o sensível, o da matéria. Mais complexo e sempre instável, esse último é formado por quatro elementos, em perpétua luta. Daí provém o perpétuo escoamento das coisas. Embora de aparência enganosa, por causa de sua própria mobilidade, o mundo sensível pensado pelo Criador existe realmente e mantém, por intermédio do outro mundo, um contato permanente com seu Princípio, o Logos. O laço que o une ao mundo inteligível, do qual ele é um sinal visível, é o homem, criatura a um tempo sensível e racional, lugar de encontro de todas as energias encarnadas.

 

Poderíamos quase afirmar que esse microcosmo humano é o decalque do Deus-Verbo, o que lhe confere uma dignidade excepcional, e o eleva acima dos anjos[25]. São Máximo, assim como outros Padres da Igreja do Oriente, não hesita em chamar o homem de “deus criado”, com toda a força da expressão, sem nada atenuar. O homem é, como dirá um eminente representante da doutrina russa sobre a Sophia, Boulgakoff, uma verdadeira “hipóstase terrestre de Deus”; segundo São Máximo, do Verbo, “por quem tudo foi feito”. Com efeito, o corpo que envolve a alma humana apresenta uma analogia com o Cosmo que recobre o Logos, como se fosse uma vestimenta. Seu espírito é a imagem de Deus, do Deus que se revela no mundo por intermédio de suas Forças. Eis porque, pelo conhecimento do homem, é possível chegar ao primeiro, embora incompleto, conhecimento de seu modelo incriado. E ainda podemos conhecer a esse modelo, admirando-o na sabedoria e na beleza de sua obra visível: essa é a contemplação natural adquirida.

 

O Logos se manifesta no homem sob a forma de uma Inteligência soberana, que une a razão e o ser, o nous, “olho do entendimento”, é o depositário na alma do eikon (o ícone, a imagem) de Deus, o repouso de sua imagem trina: a efígie do Filho impressa pelo selo do Espírito Santo, ungido pelo Pai. A iluminação pelas Ideias chega ao espírito diretamente do princípio divino (que é o “intelecto agente”, como diriam os escolásticos, e como afirmava Roger Bacon, de acordo com Avicena). Trata-se de uma intelecção divino modo. Podemos então dizer que o nous é o órgão de apreensão do conhecimento-intuição carismático; não um simples prolongamento da razão discursiva, como, por exemplo, é para a escola tomista, que não reconhece na alma nenhuma faculdade distinta da inteligência una[26]. Toda essa teoria do conhecimento é irracional em sua raiz, embora ela não recuse, para expressar as verdades do dogma, servir-se de conceitos da ratio, da lógica aristotélica, sempre provisória e precária. Trata-se de uma doutrina inatista, que, reformulando todas as categorias psicológicas, coloca Deus no próprio centro da ontogênese, como realidade única: o Deus trino que a um tempo se decompõe e se unifica nas “profundezas” da alma. Pois o Logos é, segundo a Igreja ecumênica, a imagem do Pai e o centro irradiante da Trindade[27], que, através dele, o homem alcança.

 

 A missão de Adão teria sido, como dissemos, a plena realização do plano providencial da economia divina. Ao assumir o papel do Logos sobre a terra, substituindo-o de certo modo, o homem deveria harmonizar todos os contrários da criação em devir, da criação que por ele seria continuada e terminada. São Máximo traça esse caminho de perspectivas ilimitadas, caminho que o homem deveria seguir sem se desviar. Ao mesmo tempo em que mantinha sua humanidade integral, ele deveria se elevar acima das distinções transitórias – a começar pelo sexo[28] – e alcançar, pela virtude e pela intelecção, a espiritualização de tudo o que existe. Ele deveria transformar a terra no paraíso, fazer dela uma coisa única com o céu, e por fim unir a si mesmo, unir-se plenamente, semelhante a Ele em tudo, salvo em sua natureza: “Pela natureza, o homem, corpo e alma, é menos do que um homem; pela graça, ele se torna inteiro Deus, em sua alma e em seu corpo” (Ambigua, XXVIII, 64). Última metamorfose, inteiramente submetida à ação carismática do Espírito.

 

Como meio sobrenatural para chegar a esse fim, sobrenaturalmente natural, o homem, cuja vida perfeita é a glória de Deus, possuía esse dom inato, a caridade: fruto da vontade e da inteligência, desejo imanente de perfeição, ciência infusa da Luz.  No Éden, nenhuma paixão o perturbava o espírito humano, mestre de todas as suas faculdades, e cuja orientação, tal como uma agulha imantada, estava voltada para Deus. Nada obscurecia a onda límpida na qual se mirava, em todo seu esplendor, a Glória incriada. Essa era a aurora sem crepúsculo, da “luz sem declínio”.

 

Mas o homem, assim dotado de plena liberdade de escolha, sem a qual não passaria de um vil escravo, caiu. Ele caiu, porque preferiu o amor vão de si mesmo ao amor verdadeiro de Deus. Voluntariamente, por orgulho e cupidez, de início confundido pela falsa ciência do bem e do mal, ele mergulhou na noite do não-ser. A desobediência de Adão “esse germe vivo que trazia em si todo o futuro de nossa raça”, representou uma queda imediata na vida dos sentidos e, através dela, na morte. Aqui nos encontramos plenamente na tradição agostiniana, universal na Igreja, pois Santo Agostinho diz expressamente que “o homem optou pela avara posse dos bens privados”. Foi esse ato de prevaricação que desencadeou tudo[29]. Somente os gregos insistirão primeiramente sobre o caráter intelectual da falta, ou hamartia. Para eles, todo o mal provém da agnoia (ignorância), tendo o nous cessado de ser o regulador perfeito[30]. Daí a ruptura do equilíbrio interior, a desorganização da psique como um todo. Mas não se diz aqui, como com Santo Anselmo, que o primeiro efeito do pecado original tenha sido a privação da justiça ou retidão, arrastando consigo o despertar da concupiscência, que estava latente. Aqui, a ordem dos termos é inversa: não privatio-vulneratio, mas vulneratio-privatio, como a lesão inicial que desagrega toda a natureza adâmica.

 

As consequências disso foram infinitamente dolorosas. Primeiro para a carne, condenada à concupiscência e, através dela, à enfermidade, a murchar e se dissolver. A seguir, para a alma, privada de sua seiva natural, sacudida até suas profundezas e como que desagregada. A vontade, não inteiramente corrompida e esmagada – como em Agostinho – mas encurvada, distorcida em suas energias. Sobretudo a inteligência, antes um reino de luz, agora obnubilada pela ilusão e dominada pela tirania da irascibilidade e da concupiscência, as partes inferiores da psique humana. Por fim, última e fatal consequência do pecado de Adão, todo o macrocosmo, ferido com seu líder, toda criatura, chamada a louvar o Senhor alegremente, foi condenado a sofrer e a gemer até o final dos tempos.

 

Esse quadro, de imensa desolação, onde os tons sombrios recobrem e extinguem a radiosa claridade da aurora terrestre, se encontra também sob a pluma de Santo Agostinho. Falta a ele, porém, senão a visão grandiosa da catástrofe final, o impulso audacioso de um mesmo sonho escatológico[31]. Psicólogo admirável e mestre da introspecção, o grande Africano, guiado por uma aguda experiência pessoal, se agarrou quase que exclusivamente às realidades de nosso estado presente empírico, de nossa decadência marcada a ferro e fogo na espécie humana. Quanto ao primeiro Adão, em estado de inocência preternatural, ele é, antes de tudo, para Santo Agostinho, uma criatura extraída do nada. E esse nada que, no neoplatonismo, não passa da ausência ou vazio metafísico, aos olhos de Santo Agostinho (sem dúvida, última reminiscência maniqueísta) possui um caráter deficiente que é, por assim dizer, positivo: trata-se já de uma predisposição à imperfeição, senão ao pecado mesmo. M. Gilson expressa essa tendência com clareza, dizendo que, “segundo Agostinho, existe na criatura uma espécie de falta inicial que gera a necessidade de mudança”. Ora, a necessidade de “mudança”, acrescentamos nós, implica necessariamente uma ideia de decadência, porque a beatitude de Adão e Eva não poderia aumentar, sendo estática; isso é contrário ao dinamismo do estado paradisíaco, segundo os gregos, desde de Irineu até Máximo, e ainda antes.

 

Ademais, o estado de “justiça” em que se encontravam nossos ancestrais no paraíso, segundo o sistema agostiniano, não lhes era natural, mas sim algo como um “dom acrescentado”, um privilégio gratuito de Deus, e não a maestria radical sobre seu ser. A diferença não é pequena[32]. Aquilo que, para o Doutor da graça, aparece como uma pura liberalidade da parte de Deus, será para São Máximo e a tradição que ele representa, a vontade mais profunda do Criador. Pois Deus deseja se encontrar no homem, criado imortal por seu sopro, e martelado à sua efigie. A imagem divina, apenas virtual na alma, reflexo longínquo segundo o agostinismo, é entre os gregos uma cópia ideal, incrustrada na pesandez do tecido humano. Num caso, o homem posterior ao pecado retorna abaixo de seu status naturae, que aliás é vagamente representado, e privado apenas daquilo que lhe havia sido concedido por acréscimo. No outro, ele perde sua verdadeira natureza, seu direito de progenitura e de adoção divina, premissas da deificação.  Por causa dessa ferida profunda aberta no flanco da criação, o homem, esvaziando-se da vida gloriosa que um dia fôra sua, se tornou parte do Cosmo, que antes ele governava por meio de sua própria felicidade, e que a partir de agora se desagrega. A raça de Adão, se já não pode cair mais baixo, caiu de mais alto, e arrastou com ela todo o universo para o abismo. Tudo está aí.

 

De resto, a queda prevista, quase desejada no sistema de Agostinho, por causa da Encarnação que ela demanda, e que seria inútil sem ela, jamais foi, para a Igreja do Oriente, a felix culpa. Tanto mais que a Encarnação nunca foi concebida aí como sendo uma função da Redenção[33]. Encontramos essa crença na Idade Média, entre alguns Beneditinos do século XII, injustamente negligenciados, como Rupert de Deutz, Honorius de Augsbourg e os irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg, bem como em todo o franciscanismo, com Duns Scot à frente[34]. Seu ciumento cristocentrismo exige que a criação seja levada à perfeição pelo Verbo, que, definitivamente, glorificará a humanidade. Para os scotistas, ademais, tudo é determinado pela vontade do amor de Deus, que deseja ser amado infinitamente.

 

Aceitando o fato consumado da decadência do ser humano, a patrística grega não sentirá mais do que uma nostalgia, uma amargura; não apenas é preciso refazer o espelho fiel a partir do espelho deformado, como ainda levar a obra até o final, ela que foi interrompida antes de começar. A saber, em primeiro lugar, reanimar, sob o impulso do Espírito Santo, a “similitude” que foi apagada, depois recolocar o mundo transfigurado na glória divina. Essa é a obra da recapitulatio, da restauração da humanidade, na qual o Deus encarnado precede o homem; na qual, tendo lhe concedido a vida eterna, lhe comunica a força deificante pelo Espírito que o santifica e o eleva, doravante, ao seio do Pai, na “nuvem luminosa” do Deus trino.

 

 

O “THEOS ANTHROPOS” E A RECAPITULATIO

 

A encarnação (ensarkosis), que, segundo Inácio de Antioquia, é um dos três mistérios ocultos ao próprio Satanás – qual terá sido seu sentido profundo? Cur Deus homo? A essa questão, da qual depende todo o futuro da esperança cristã, a primeira resposta foi dada por Santo Irineu de Lyon, na segunda metade do século II, com uma amplitude e uma audácia verdadeiramente surpreendentes para esse teólogo prudente, que era acima de tudo um homem da Igreja e do governo. Na resposta que ele deu se encontra o germe de toda a doutrina do recapitulatio ou da anakephalaiosis, que foi “esfumada” e praticamente apagada dentre a maior parte dos críticos católicos no começo do século XX, que pouco a mencionam. E, no entanto, ela é o sistema nervoso do pensamento patrístico e o selo que esse imprimirá a toda a teologia prática e a teologia mística dos Bizantinos. Essa doutrina se apoia sobre a koinonia, a adoção divina, conduzindo diretamente à deificação, e que se baseia nessas palavras: “Deus se fez homem, para que os homens se fizessem deuses”. Santo Irineu indica a justificação escriturária dessa verdade no célebre versículo do Salmo 81: “Eu disse: vós sois deuses”, retomado pelo próprio Salvador em João 10: 34: “Por acaso, não é na Lei de vocês que está escrito: ‘Eu disse: vocês são deuses?”. E a rocha sobre a qual o bispo de Lyon fundamenta sua magnífica profissão de fé, é para ele o dogma intangível de Cristo, simultaneamente verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Trata-se de uma unidade orgânica que se opôs desde o início, como um dique que se ergue contra o assalto dos ventos, ao docetismo do século II de todos os gnósticos, e ao racionalismo das heresias cristológicas que viriam depois. A mística dupla, paulina e joanina, soube-a Irineu harmonizar com grande felicidade, e dela extrair o sentido profundo: a identidade da carne de “nosso Senhor e Deus”, promessa de vida eterna, pois Cristo é o “Príncipe da Vida”.

 

A resposta triunfante a essa questão obsedante retorna sem cessar sob sua pluma: como poderia o homem se tornar Deus, se Deus não tivesse se tornado homem? Essa resposta, retomada pela patrística dos séculos seguintes, será: Jesus Cristo se tornou aquilo que somos, a fim de que possamos nos tornar aquilo que Ele é. Daí provém a necessidade absoluta do Verbo feito carne e que veio a nós propter nostram salutem. E essa salvação, repetimos, não é outra coisa do que a incorporação, à natureza humana lesada, do fermento da incorruptibilidade, por meio de sua união íntima com o Deus encarnado. Restauração – em potência – da herança perdida e garantia de imortalidade, é isso que nos concede o fato único e simples da Encarnação. Grito de alegria, cujas ressonâncias repercutem ao infinito em todas as almas cristãs, regeneradas pela enanthropesis (a entrada na humanidade) do Deus Salvador.

 

Sobre os efeitos, imediatos e distantes, dessa graça primeira que reintegra nossa espécie à linhagem divina, os Padres gregos, com absoluta unanimidade, são inesgotáveis. O tom é dado pelo grande Atanásio, já precedido por Clemente e Orígenes. Em seu tratado clássico, De Incarnatione Verbi, assim como em suas Orationes, o vencedor do concílio de Nicéia retoma e reforça o termo temerário de deificação, mais de um século depois de Santo Irineu. Ele afirma: “Jesus Cristo se fez homem, a fim de nos divinizar”. Ora, isso só é possível porque o Logos foi nosso modelo desde o começo dos tempos, ideia que já encontramos antes, e à qual Santo Atanásio, o Doutor do Logos consubstancial, retorna com frequência. “O homem, repete ele, não poderia ser divinizado se Aquele que se encarnou não fosse o Verbo de Deus”, e inversamente: “Não seríamos libertados do pecado se a carne da qual se revestiu o Logos não fosse nossa própria carne humana”. Daí vem a homoiosis como condição prévia de nossa filiação divina, de nossa participação futura à Sua glória: união real da carne do Verbo com a nossa. Sempre, na Soteriologia, a ênfase recai sobre o sentimento de libertação pelo princípio de regeneração, e não, como no Ocidente, sobre a reconciliação. Antes de tudo, sermos justificados, libertados da lei dos membros; ou então ser glorificados, imersos vivos na luz. Duas tendências profundas que respondem a tendências secretas diferentes. Cristo veio para destruir a morte e para nos renovar à Sua imagem, essa é a nota dominante no Oriente[35]. Podemos notar seus ecos vibrantes em todos os seus Padres.

 

São Basílio de Cesareia insiste e enfatiza: “Foi por nossa causa que o Logos se fez mortal, para nos libertar da mortalidade[36]”. Ele deificou o gênero humano. E São Gregório de Nazianze, apelidado na Igreja de ‘o Teólogo”: “Jesus representa em figura (no sentido platônico do arquétipo) aquilo que nós somos. Assim, “por intermédio Dele, a integridade de nossa natureza foi restituída”. E ainda, “Nós nos tornamos divinos através Dele[37]”. O santo Teólogo desenvolve com delicadeza esse elevado pensamento de que o homem, sendo a obra prima da criação, recebeu a intervenção direta de Deus para lhe dar aquilo que, por sua miserável culpa, havia perdido: sua dignidade de filho divino[38]. E São Gregório reporta as palavras de seu falecido amigo, o grande São Basílio: “O homem é uma criatura, mas ele recebeu a ordem de se tornar Deus”.

 

O mesmo grito de reunião encontramos em São Cirilo de Alexandria, que declara com força ímpar: “Se Deus se tornou homem, o homem se tornou Deus[39]”. São João Crisóstomo, chefe da escola realista de Antioquia, dirá, sob uma forma mais atenuada: “Nós precisávamos da vida e da morte de um Deus, para que vivêssemos”. Enfim, São João Damasceno, em sua Suma De Fide Orthodoxa, resume assim, já no final da era patrística, a economia de nossa salvação: “Cristo, cuja natureza é idêntica à nossa, recriou em nós a imagem divina, para nos libertar da corrupção. Ele nos tornou imortais em espírito e na carne”. Mais uma vez, trata-se do antídoto do veneno mortal do pecado, o princípio imanente do renascimento espiritual.

 

Toda obra messiânica, trazida à luz e vista por esse ângulo, recua no tempo e no espaço, alarga seus horizontes até o infinito, se multiplica com uma prodigalidade real. Conhecemos bem o abundante paralelismo, modelado por São Paulo, amplificado pelos Padres, dos dois Adão, de Cristo, chefe místico do novo corpo, do qual nós somos os membros. Esse paralelismo sem fim foi completado, desde Santo Irineu, pelo das duas Eva. A mãe cresceu misteriosamente com o Filho e o concebeu.... ora, isso que o segundo Adão recebeu no seio virginal de Maria nos entregou, é a natureza humana integral. Para ele, a “túnica de pele” de que falam com tanta dor Orígenes e Gregório de Nissa – nossa própria carne pecadora – renasce de sua deterioração. Aqui, a Encarnação é, desde logo, uma Redenção, pois aquilo que Cristo assumiu, ele redimiu. É a reparação, condição primeira para a glorificação, e ao mesmo tempo uma prova inequívoca de amor e de perdão.

 

Mas, por que a Paixão? Tanto par5a a expiação pela virtude do sangue divino, como para a imortalidade; as duas coisas, inseparáveis, levam à perfeição a obra da recapitulação. Clemente de Alexandria escreveu: “Ó divina maravilha! Um Deus sucumbiu, e o homem foi levantado””. A morte foi vencida pela morte, e a vida, como objetivo último, finalidade da Redenção – eis o motivo primordial, a coluna dorsal de todas as meditações soteriológicas. O caráter propiciatório dessa morte única também não escapou aos nossos doutores. Justino o Mártir, em seu célebre Diálogo, já indicava a seu adversário Trifon que essa consistia numa expiação penal. Para São Cirilo de Jerusalém, a morte de Cristo representa a reconciliação entre a terra e o céu[40]: uma expansão do humano até o cósmico. Santo Atanásio insistirá sobre a ab-rogação do decreto divino pela morte de um único representante de toda a humanidade, “pois, com Ele, todos morrem e ressuscitam[41]”. Mais uma vez, a ênfase recai sobre a vitória final: a atanasia renovada pela anastasis (ressurreição). São Basílio repete também, dando-lhe novos matizes, essa afirmação de que somente o Logos poderia, por sua obediência voluntária, oferecer a Deus uma expiação suficiente.

 

Os dois Gregório retomam a questão, a perscrutam e aprofundam, sobretudo o bispo de Nazianze, numa cristologia plena e límpida. Não é apenas em relação ao dogma trinitário que ele foi considerado como o teólogo da Ortodoxia, por excelência. A imolação sobre a Cruz comoveu profundamente a alma desse Doutor, que foi um dos corações mais sensíveis de sua Igreja. Ele colocou em nítido relevo o caráter de penitência voluntária, de oblação gratuita dessa morte, triunfo sobrenatural, não suplício heroico e apoteose póstuma do Justo, conceito que nada tem de cristão. Em seu belo Discurso pascal, São Gregório nos lembra que o Sacrifício verdadeiro já havia sido figurado pelos ritos do Antigo Testamento. Para o ilustre Teólogo, o Cristo-hóstia verdadeiramente se apropriou de nossos pecados, se fez “pecado e maldição por nós”, como o afirma São Paulo, a fim de nos libertar dessa maldição. A ideia, que encontramos igualmente em germe na Grande Catequese de Gregório de Nissa, a ideia do Novo Adão que nos resgata com seu sangue, energia da Cruz, se aproxima, antecipando-a, da substituição vicária de Santo Anselmo; mas lhe falta a noção jurídica da “satisfação”. Quanto ao lytron, o tributo pago ao demônio, ele jamais teve senão um lugar secundário na doutrina dos Padres e, salvo para o mais jovem dos Capadócios, esses a rejeitam ou a negligenciam. O que importa, é a morte do Deus feito homem, que salva a humanidade pecadora, comunicando a ela a virtude luminosa de sua vida imortal. Aqui estamos plenamente no ambiente espiritual do Quarto Evangelho e das glórias apocalípticas que o cercam com seus raios fulgurantes. Encarnação, Redenção, tudo tende para o acordo final: a Ressurreição.

 

A própria Paixão jamais consiste, para os Gregos, a de Jesus-homem, apenas a da humanidade do Deus encarnado; ela provém da hipóstase do Filho, na qual, pelo “privilégio da unidade”, a divindade e a humanidade se encontram inteiras. Sobre essa “comunicação dos idiomas”, tudo está fundamentado na cristologia ortodoxa, e o Anthropos não aparece senão sob a auréola do Theos. Assim é que São Gregório de Nazianze verá na imagem do Cordeiro imolado o pathon Theos, o Deus sofredor. Com singular insistência, ele nos falará da Paixão do Ser, impassível por definição. São Cirilo de Alexandria irá ainda mais longe: ele só deseja ver e saudar essa hipóstase una, com suas duas naturezas completas, até no despojamento do ultimo abandono humano, até esse último espasmo de agonia mortal: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. E, de fato, esse clamor de profundis não termina, já no Salmista, por um vibrante apelo ao louvor da eterna glória? A mesma concepção do sofrimento divino encontramos em São Máximo.  

 

Na teologia grega, mais especificamente na tradição alexandrina que domina sempre entre nossos contemplativos, o elemento humano está a tal ponto penetrado, saturado – mas não reabsorvido – pelo divino, que ele parece já coroado de glória. Não há nisso nenhum monofisismo – porque os mais eminentes doutores de Alexandria e Bizâncio, Cirilo, Leôncio, Máximo, o combateram sem tréguas – mas uma crença essencialmente teocêntrica[42]. O Cristo dos sinóticos, o “Cristo segundo a carne”, se eclipsa diante do Cristo pneumático de São Paulo, de São João sobretudo, cujos pés tocam a terra, sem pesar sobre ela. Isso se revela, tanto na especulação, quanto na sensibilidade, tanto na natureza íntima da piedade, quanto no culto oficial cujo dogma é a alma, e na arte sacra que penetra esse culto. Com que munificência a Igreja grega celebra a Epifania, no batismo de Jesus pelo precursor, e na Transfiguração na luz sobrenatural do Tabor! Quanta poesia litúrgica, hinos de alegria sem par, se derramam em ondas sobre a noite clara como o “dia sem declínio”, a noite de Páscoa, desta das festas, triunfo dos triunfos!

 

O Oriente cristão se prosterna, também ele, diante da vítima sem culpa, ele beija, não a madeira do suplício, mas, sobre o epitáfio, o Corpo sagrado velado pelos Serafins, o lençol Daquele que “amou até a morte”, e que, com isso, arrancou para sempre o aguilhão dessa morte. O Oriente não separa todas as estações do caminho da Cruz, que ela abarca num só olhar: no próprio sono da morte, ela pressente a incorruptível vida divina, e não se demora pranteando-a humanamente. Através das sombras trágicas do Getsêmani e do Calvário, ele espia a aproximação do radiante milagre no sepulcro selado. Do Gólgota, onde tudo se consumou, ele volta seu olhar para o jardim de Arimatéia, jardim da Ressurreição, protótipo mesmo da Transfiguração final, que revela ante seus olhos fascinados a Jerusalém celeste[43]. Num só coro, ela lembra de suas promessas e adora o Deus-homem, mais do que o Homem-Deus, do que o Ecce Homo. E aqui renasce o espírito do Quarto Evangelho, que é não apenas o do amor infinito, como também o da majestade, infinitamente glorioso. Do alto de Sua Cruz, o Cristo-Rei não deixa cair nenhuma lágrima humana, e não parece contemplar, ao longe, senão a colheita da vida eterna que se levanta, ao confiar sua Mãe e filha, a Ecclesia, ao discípulo bem-amado. O mesmo acontece com os cristãos gregos que seguem esse rastro luminoso. Para eles, a esperança é mais forte do que a compaixão. Em alguns crucifixos bizantinos, sobre os quais antes brilhava em glória, Cristo voou para onde está entronizado à direita do Pai, e a Cruz nua basta no santuário para eternizar a divina lembrança.

 

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Duas oferendas do gênio cristão, dois olhares de um só e único amor Dei. À Idade Média ocidental, tomada por um sofrimento amoroso, pertence todo o tesouro inesgotável da sensibilidade patética, da fruitio Dei na prece, em todas as formas da piedade; o fervor de joelhos, o culto da humanidade que sangra do dulcíssimo Mestre e Amigo. Sentimento feito de perdida gratidão, desenrolando-se num longo estremecimento de ternura, sentimento do qual nascerá a pura devoção ao Coração imaculado, ao Sagrado Coração de Jesus[44]. Todas as lágrimas de infinita piedade sobre o Homem das dores que traz a salvação, sobre a Virgem mãe, cujo coração foi trespassado por sete espadas; e todos os sorrisos à maternidade da divina Infância, sob a estrela de Belém, a estrela da Redenção. Todos os raios partem de nosso coração de carne; mel roubado da colmeia da dileção bernardina, cântico ensolarado do Poverello de Assis, laudes inflamadas de Jacopone da Todi, litanias suaves do Jesu dulcis memoria...

 

E, no Bizâncio porfirogeneta, tão austero em sua púrpura, nem efusões, nem unção, nem langores, nem delírio. Mas, com os dons simbólicos dos reis Magos, o ouro, o incenso e a mirra, no seio de uma Liturgia onde tudo é luxo, majestade e repouso, a reverência-adoração, prosternada sobre as pedras nuas da alma, aos pés do Pantocrator. Um arrepio sagrado nos percorre e nos envolve numa mesma atmosfera irreal, quase irrespirável, como uma obra prima da arte bizantina, ícone milagroso, “não feito pela mão do homem” (acheiropoiete), que ilumina, sem jamais se extinguir, a lâmpada da prece perpétua. E, no lirismo hierático dos hinos de Simeão o Novo Teólogo, o mais abençoado pelo Eros divino desse Oriente grego, eis o vinho, destilado gota a gota, vinho de uvas densas, como que pisado pelo próprio invisível Vinhateiro.

 

Em nenhum lugar podemos perceber melhor esse vivo contraste, em suas nuances, como na dupla orientação da imitação de Cristo: seguir o Crucificado ou reviver com o Transfigurado. A Cristandade medieval quis imitar antes de tudo a santa humanidade, fiel à antiga divisa agostiniana, “Per Christum hominem ad Christum Deum”. Para São Bernardo, que tanto amou os “dias de carne” de Jesus, é no “cálice bebido pelo Senhor” que começa a lenta espiritualização de nosso amor ainda carnal. E, ainda muito longe do Doutor melífluo, Suso, o servidor-amante da Eterna Sabedoria, lhe fará eco, designando à alma “que ama a Deus ao pé da Cruz” a meditação deleitosa de todas as etapas da Paixão, com a ardente crucificação de si mesma. Entre as duas se desenrola toda a teoria das vítimas oferecidas em holocausto.

 

Imitar a Cristo será, para todo o Ocidente medieval, e para além dele, colocar seus passos nos passos do Senhor, sem retirar nem por um instante os olhos da Face coroada de espinhos, subir com Ele ao Jardim das Oliveiras e ao Calvário, e prosseguir, prolongar indefinidamente sua obra de expiação, sua obra de misericórdia. Daí provém a invasão das Ordens mendicantes, com sua ascese crucificadora, penetrando no século para evangelizá-lo ou fustigá-lo, rompendo com o ideal exclusivamente orante dos Beneditinos. Daí também o rio transbordante da adoração reparadora e da caridade, amor ao próximo, derivado do outro; a alegria dos méritos reversíveis, aureolando a comunhão dos Santos católicos, e, na intimidade dos colóquios inefáveis, no brilho das visões imaginativas sem sombra, tantos dons, tantas graças sensíveis.

 

Também o Oriente bizantino seguiu seu Kyrios, dobrado aos pés da Cruz, pela via estreita da renúncia total, mas sempre buscando ver, mesmo no abismo do rebaixamento, da kenosis, os brilhantes vestígios divinos. A ideia da Basileia (Realeza) jamais o abandona.  Ao mesmo tempo, semelhante à alma platônica caída, ele se lembra eternamente de sua própria origem sobrenatural, vela solitária queimando diante do Senhor das Beatitudes. Não o primado do sofrimento[45], necessário apenas como discípulo catártico, a teleosis (acabamento) de São Paulo (“Eu perfecciono minha carne...”), ou mesmo a prova aceita com serenidade; a sede do cervo sedento, que corre para a fonte, a sede da Contemplação que já não parece ser desse mundo, a apatheia ou “santa indiferença”, que prepara a alma para a união deificante. Uma intensa concentração interior que refunda a alma sensível, que remodela o espírito e a metamorfose; menos irradiação visível, sem dúvida, menos obras apostólicas próprias. Marta sacrificada a Maria, a Maria que primeiro viu, no orvalho da graça matinal, a Cristo ressuscitado, que ouviu sua voz e exclamou tremendo: “Rabbi!”.

 

A santidade ortodoxa jamais conheceu, nem poderia conhecer, as delícias e as loucuras da Cruz, ela não sentiu, impressos em sua carne, os estigmas das benditas feridas. Ela tampouco escutou o apelo do Sagrado Coração que parece rasgar a unidade orgânica do Salvador, pela qual tanto lutaram os Doutores. Mas, segundo a firme crença dessa Igreja, seus Santos desfrutaram também, em vida, dos mais preciosos carismas físicos: levitação, luminosidade e outros sinais precursores da “carne espiritual” anunciada solenemente pelo Apóstolo. Pouco a pouco, o envelope carnal, tornando-se permeável à ação do espirito, deixa transparecer a incorruptível chama, quantas hagiografias orientais, começando pela Vita Antonii (lendária ou não, pouco importa aqui), tratam desses seres sem desejos nem necessidades, como que desencarnados, falam de seu poder sobrenatural, cativando com sua doçura seráfica os animais selvagens dos desertos, comandando as forças da natureza, que retorna, parece, à suave obediência do paraíso terrestre. Nota cósmica, em prelúdio à “nova terra” do Apocalipse, e que não é a mesma da comunhão fraternal de São Francisco com tudo o que vive, tudo o que respira, tudo pelo que “laudato si il Nostro Signore”.

 

Mas há mais.

 

Conhecemos o culto dedicado pela Igreja grega aos restos mortais, ou antes aos corpos defuntos, aos quais o sepulcro não infligiu corrupção. Apoiando-se sobre as palavras do Salmista: “Eu não deixarei que se corrompa o corpo de Meu Justo”, a Igreja ortodoxa considera o estado de conservação desses despojos, com seu poder taumatúrgico acrescentado, como o indicio mais certo de sua justificação[46]. Carne já glorificada, que aguarda a próxima reunião com a alma imortal, na hora da Parúsia, e sua glorificação plena no soma pneumatikon (corpo espiritual) incorruptível que cantará a Deus (cf. Santo Irineu).

 

Caminho dos espirituais-ascetas, que é o mesmo caminho do Cristo “impassível”: a subida do Filho para o Pai. Primeiramente, Deus misteriosamente concebido na fé, depois encarnado nas virtudes, crucificado nos trabalhos da teologia prática, ressuscitado em glória na “visão mental”, que subiu aos céus na teologia mística consumada, a theosis[47]. E o acorde final ainda retine: “A partir de agora somos filhos de Deus[48]”.

 

Os Padres do antigo monaquismo, nascido no Oriente, berço das religiões de dos Mistérios, representam essa humanidade militante que deseja se tornar triunfante, provando-se para alcançar a nova vida maravilhosa, a vida em Cristo[49].

 



[1] O tema do presente estudo, que não passa de um ensaio dividido em duas partes, está duplamente limitado. Primeiro, pelo tempo. Nós nos detivemos em meados do século XI, com São Simeão o Jovem, o maior místico Grego, e com Nicetas Stethatos, um dos artífices da separação das Igrejas. Esse último acontecimento encerrou todo um milênio de pensamento religioso criativo e de experiências vividas. Uma nova era irá se abrir em Bizâncio no século XIV com o movimento hesiquiasta do Monte Athos, que trouxe grande problemas, até hoje não completamente resolvidos. Nós os apresentaremos eventualmente. Da mesma forma, no que diz respeito à doutrina da graça deificante nos sacramentos, ou à mística ritual da Igreja. Somente iremos nos ocupar da busca solitária da alma, que sobre para Deus, sem jamais nos afastarmos da teologia dos Padres, nem da ascese tradicional. Trataremos exclusivamente dessa teologia nessas páginas, um pouco ligeiras, que se seguem. Uma última observação: convencida do caráter sintético – e não sincrético – do Cristianismo original, a autora não tentou esgotar esse bloco errático.

[2] Para os Gregos como para os judeus, Deus é igualmente inacessível, mas por razões diferentes, filosóficas ou religiosas: os Gregos consideravam o primeiro Princípio como incognoscível em si, por causa da ausência, nele, de toda e qualquer qualidade definível, por ser ele uma substância simples. Para os judeus, a arrasadora majestade Daquele que não se ousava nomear, não permitia à imperfeita natureza humana aproximar-se Dele, ou de conhecê-lo fora da Revelação. Os rabinos viam no carro-trono, sustentado pelos quatro animais alegóricos da visão de Ezequiel, a imagem do insondável mistério divino. E Jó diz: “Deus é tão grande, que triunfa sobre nossa ciência”.

[3] Ver Apologia, I, 10 e II, 12: somente o Pai é inominável, porque é o único “não-gerado”.

[4] João Damasceno vê uma distinção semântica entre agenêtos, não produzido, e agennêtos, não gerado.

[5] Adv. Haer. IV, 20, 5.

[6] No capítulo V de seu tratado Adversus Haereses, Irineu interpreta todas as teofanias do Antigo Testamento como aparições do Verbo. Já os apologistas haviam expressado a mesma opinião, que parece advir de Fílon.

[7] Devemos buscar o ponto de partida dessa ideia-mãe de Clemente, que encontraremos em todos os “Espirituais” Gregos depois dele, nos meios judaicos da época helenística; essa é a teoria da identidade entre o sábio e o extático, teoria desenvolvida, sob influência judaica, por Fílon de Alexandria.

[8] R. Arnou, em seu estudo Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, 1921, escreve: “Deus não se entrega no êxtase, Ele se deixa acontecer”. E também: “Deus é o Primeiro, sem jamais se tornar o Amigo, um Deus cuja bondade é sem amor”. Isso é verdadeiro para todo o misticismo pagão, embora nos seus graus superiores a contemplação seja inseparável do amor. Para Plotino, o Bem da alma é a soma da Virtude com a Inteligência, que resulta na Beleza.

[9] Para Platão, Deus é um Princípio imutável, um ontologismo estático; para Aristóteles ele é o ato puro e o primeiro Motor. Toda a Idade Média escolástica adotara, como sabemos, essa definição, que se estenderá aos anjos, enquanto espíritos puros. Já o homem, é um composto: uma matéria conformada pelo espírito, que atualiza toda potência, considerada como uma imperfeição. O pensamento de Plotino, ao qual o neoplatonismo será fiel – o areopagitismo cristão – distingue em cada objeto sua essência, as potências pertencentes a essas, e as forças atualizadas. Para essa escola, a potência, ao contrário do aristotelismo, não constitui uma inferioridade em si, mas a força criadora por antecipação. De resto, sendo a essência inatingível, ela não pode ser objeto do conhecimento. É o que repetem os Padres Gregos, como São Basílio e São Gregório de Nazianze; para conhecer plenamente, o sujeito deve se tornar um com o objeto do conhecimento, na identidade entre essência e conhecimento.

[10] A especulação cristã platonizante considera o mundo criado como uma série de teofanias da essência divina. É o que pensa, por exemplo, o irlandês João Scotus Erigena, embora católico latino.

[11] Na concepção cristã, o princípio hierárquico só vem a surgir com as criaturas. No interior da vida divina, só existe, na unidade metafísica e na igualdade consubstancial, a multiplicidade das Pessoas co-eternas.

[12] Para sermos exatos, devemos dizer: uma essência (ousia), três substâncias, a pessoa, propsopon são, segundo Aristóteles, “a substância individual de uma natureza racional”. Mas essa linguagem não é admitida pela Igreja romana, que teme criar uma confusão de termos. De resto, sabemos que as expressões de persona e hypostasis não se superpõem inteiramente, pois o vocabulário latino tem menos nuances do que o Grego.

[13] Aos olhos de Fílon, todos os justos do Antigo Testamente teriam sido profetas, inspirados pelo Espírito. Mas ele distinguia entre o êxtase-visão de Deus – ou aparição, teofania – e o êxtase-ascensão da alma para Deus, o qual, modificado no contexto da mística cristã, receberá o nome de rapto ou arrebatamento. Seu primeiro representante será sempre Moisés, no Sinai, e, no Novo Testamento, São Paulo.

[14] Êxodo 32: 33. Os místicos medievais empregavam correntemente a expressão “ver a Deus pelas costas”, vale dizer, contemplar suas ações, mas não sua essência.

[15] O Oriente Grego assimilou o pensamento dionisíaco, sobretudo por intermédio das Scholias de São Máximo o Confessor, que adaptou os Areopagíticos à estrita ortodoxia, corrigindo em especial das tendências monofisitas secretas na cristologia de seu autor.

[16] A Igreja do Oriente não elaborou uma doutrina tão precisa e exaustiva da graça, como aquela que desenvolveu o Ocidente sob o impulso de Santo Agostinho. Mas, contrariamente a essa, ela sempre manteve, junto com a diversidade dos carismas ou dons do Espírito – modos de participação dos humanos na vida divina – sua natureza incriada. O mesmo acontece com a Sabedoria, Sophia, identificada tanto com o Logos (era patrística em seu conjunto), como com o Espírito Santo, identificação que encontramos em alguns Padres Gregos, em especial sob a influência das Escrituras, e também de Fílon.

[17] A teologia apofática de Santo Agostinho se aplica a Deus, enquanto Ser suprassensível, que transcende toda matéria, que não possui nenhum caráter antropológico, mas não enquanto estando acima de todo ser. Seu mistério não jaz em sua natureza própria, mas na imperfeição da natureza humana, que não pode se elevar até a inteligência pura. Sobre esse ponto, existe uma coincidência, o que é raro, entre o grande Africano e Orígenes. De resto, foi Agostinho quem, em primeiro lugar, atacou a fundo o argumento preferido dos origenistas em favor da consubstancialidade: a saber, que o Pai não teria podido ser sábio pré-eternamente, se não houvesse gerado o Verbo-Sabedoria antes dos séculos. A forte crítica de Agostinho sobre esse argumento, da qual ser serviu ainda seu mestre, Ambrósio de Milão, contra os arianos, se baseia na impossibilidade de atribuir a Sabedoria apenas ao Filho, pois ela é um apanágio da Trindade como um todo, e não uma função do ato gerador divino: tudo o que pertence ao Filho, pertence, desde sempre, ao Pai, e inversamente, com exceção das relações de paternidade e filiação. Isso é mais do que justo. Mas, a partir dessa premissa, podemos deduzir que o Pai é cognoscível, tanto quanto o Filho (isso é agostiniano), como podemos deduzir pela incognoscibilidade do Filho, igual à do Pai, como os Padres Gregos. Somente esse último caminho conduz à verdadeira posição apofática.

[18] Toda a concepção trinitária de Santo Agostinho aceita pela Igreja do Ocidente com ligeiros retoques, repousa sobre a ideia de unidade. Ela parte do um para desembocar no três: amans, amatus, amor, eis a definição favorita da divindade trina (cf, De Trinitatis, VIII, 10). Pode-se dizer com razão que Agostinho nos mostrou antes uma Trindade em Deus do que um Deus que seja uma Trindade. O perigo de tal princípio unitário será sempre uma inclinação para o modalismo (Abelardo e Pierre Lombard). Ao contrário, os Gregos remontam à unidade primeira, partindo de hipóstases distintas. Sua dificuldade está numa tendência trinitarista que foi inclusive reprovada em Basílio o Grande. A mesma tendência iremos encontrar, com mais clareza, na Idade Média, com Roscelin, Gilbert de la POrré e sua escola, Joachim de Flore. É de se notar que a revelação cristã, assim como o Símbolo de Niceia e como todo símbolo batismal, implica em primeiro lugar a ideia das três Pessoas Divinas separadas.

[19] Único dentre os filósofos medievais, caminhando sempre nas pegadas do Areopagita, Scottus Erigena manteve, em seu De Divis Naturae, a distinção entre a essência e as energias divinas. Somente ele ensinou que, mesmo na visão beatífica dos santos – tanto quanto dos anjos – não é possível contemplar a essência de Deus. É um erro acusá-lo de panteísmo, embora ele tenha passado perto disso nas suas teorias sobre a criação da alma. Parece que a reprovação feita no século XIV a Maïtre Eckart, discípulo longínquo do Areopagita – e através dele a toda a teologia Grega – se deve à mesma confusão. Quanto aos místicos do Oriente cristão, suas revelações serão julgadas pela Igreja Grega segundo um critério bem diferente, fundamentado na rejeição às “imaginações” sensíveis.

[20] São Tomás, por respeito à autoridade agostiniana, manterá ainda essa distinção, que dominou a Idade Média latina.

[21] “A anamnese platônica não tem relação com o papel, bem diferente e muito mais restrito, atribuído pelo bispo de Hipona a essa peça mestra de seu sistema, a memória. De modo geral, o puro platonismo de Santo Agostinho, que já foi um axioma, já não é mais aceito por nenhum de seus historiadores...” (R. Carton, L’illumination divine chez saint Augustin, 1931)

[22] Desde Santo Agostinho, a linguagem dos místicos emprega de bom grado as expressões imagéticas de “conhecimento matinal” e de “conhecimento vesperal”; elas designam dois conhecimentos de Deus, um incerto, outro perfeito. A última parece reservadas pelos espíritos ortodoxos àquilo que está além dos Bem-aventurados. Esse é, ao menos, o sentimento expresso muitas vezes por São Bernardo: o conhecimento e o amor perfeito – que são uma coisa só na mística afetiva cisterciense – não são desse mundo, para o abade de Clairvaux. E o “pleno Meio-dia” será, para toda a escola de Eckart, a apreensão ou a intuição do próprio ser de Deus. A bem dizer, o caráter verdadeiro da “Visão da essência divina” em Eckart ainda não foi elucidado, pois sua obre mística ainda não foi suficientemente estudada até hoje.

[23] Esse ponto de partida, que determina a atitude de Deus em relação à criatura inteligente, e a natureza íntima de suas relações, dá ao pensamento patrístico seu tom particular, e lhe confere sua originalidade. Pois é daí que decorre a própria teoria da Encarnação-Redenção dos Padres Gregos, transmitida por eles e recebida tradicionalmente de todos os Bizantinos. Essa similitude entre o homem e Deus, sobre a qual se apoiou Clemente de Alexandria, já se encontrava em Fílon. É a ideia do Anthropos celeste, a respeito da qual voltaremos mais adiante.

[24] A primeira doutrina ortodoxa completa sobre a criação do homem, sua natureza própria e seu objetivo sobrenatural se encontra no tratado de Gregório de Nissa, conhecido e citado por Scottus Erigena com o nome de Sermo de Imagine (P.G. t.144), traduzido no século VI para o latim, e seguido por todos os Bizantinos.

[25] Embora a angelologia de Dionísio, com  suas hierarquias purificadora decrescentes, tenha sido adotada pela Igreja Grega (e pela católica, desde a Idade Média), essa sempre distinguiu entre, de um lado, a preeminência espiritual da natureza angélica, mais próxima da fonte divina, sendo o anjo uma luz segunda, e, de outro, seu lugar no universo, inferior em importância ao posto do homem-microcosmo. Ora, a Encarnação, que revestiu a carne humana de tal esplendor, acabou por elevar o homem, imagem do Logos, a um altura única na escala dos seres criados. Com que audácia o autor da Fé Ortodoxa, João Damasceno, declara: “Deus não se uniu à natureza angélica, mas à humana, e se tornou homem em hipóstase” (De Imaginibus, orat. III, c. 26). E, falando da Eucaristia, ele dirá ainda que os anjos não participaram – como os homens – da natureza, mas apenas da energia divina, pois eles não participaram da carne e do sangue de Cristo. O germe desse pensamento pode ser encontrado na epístola aos Hebreus, que diz a respeito do Filho do Homem: “Ele não está encarregado dos anjos, mas da descendência de Abrahão” (Hebreus 2: 16).

[26] Esse é um ponto de litígio entre o tomismo e a escola de Eckart, que separa o conhecimento de consciência do conhecimento racional.

[27] Os Bizantinos talvez tenham especulado menos e antes insistido mais que os teólogos latinos sobre a imagem do Deus trino, impressa na alma humana. Uma comparação rápida se impõe. O que domina, em Santo Agostinho e nos medievais, é a ideia de analogia, de semelhança longínqua. E sempre se afirma a tendência unitária; a mens, substância una da alma e, no interior, o pensamento puro, seu próprio conhecimento e sua vontade. Sobre o conceito trinitário divino, da Inteligência que se conhece e deseja – conceito que tem uma origem puramente psicológica e humana – teria se formado, por analogia, o ser espiritual do homem. Nessa teoria da imagem encontramos a seguinte tríade: inteligência, memória, vontade, ou ainda, transpondo-a: ser, compreender, viver. Aqui não existe distinção real entre a alma e suas faculdades, “para nos oferecer nela uma imagem racional da Trindade”. Mas “Agostinho consagra o último capítulo de sua I a descrever as diferenças radicais que separam a Trindade criadora de suas imagens reais. É a análise de São Boaventura que ilumina melhor a economia trinitária da criatura racional, segundo o pensamento medieval. O triplo princípio espiritual é aí composto de substantia, virtus, operatio.

O homem, efígie real do Deus trino, se encontra no Ocidente antes da escola de Eckart, em Erigena, pois, para esse, como para os Gregos, a Trindade da qual se deve partir sempre se reflete inteira na criação, da qual o homem representa o cume e a síntese: per essentiam Pater, per sapientiam Filius, per vitam Spiritus Sanctus; ou intellectus, ratio (no sentido da contemplação das ideias, e não da razão discursiva), e sensus, o sentido interior.

Os Bizantinos distinguiam no homem, verdadeira imagem divina: a Inteligência pura, princípio de todo o ser, seu pensamento expresso ou Verbo, e o pneuma, a respiração da Vida, sopro ígneo do amor.

[28] Desde Orígenes e Gregório de Nissa, os Gregos se inclinam a ver no primeiro homem criado à imagem de Deus (Gênesis 1: 26) um ser ideal andrógino, que deverá ressuscitar no Juízo Final, como o Cristo “glorificado”. Essa androginia primitiva aparece em Fílon. Encontramos o mito do Anthropos celeste num tratado de Hipólito sobre os Naassenios. Qualquer que seja a origem “gnóstica” dessa crença, o Ocidente agostiniano rompeu com ela. Somente Erigena partilha dela, contra Agostinho que afirma em sua Cidade de Deus que ela é contrária ao Evangelho de Mateus (Mateus 22: 29-30).

[29] Discute-se muito para saber se a concupiscência era, para Agostinho, a raiz, ou, como para Santo Anselmo, e para toda a Igreja do Ocidente depois dele, apenas a consequência do pecado. A mesma questão poderia ser colocada para os Gregos, cujo pensamento poderia parecer flutuante à primeira vista. Para Gregório de NIssa, a queda dos Anjos teria sido causada pelo orgulho, por Lúcifer ter se ofendido pelo fato de o homem ter sido criado à imagem divina. Coisa curiosa, encontramos essa crença, de forma mais cativante, nas imagens islâmicas que remontam à Vila Adae, de origem judaica: a desobediência de Satanás, recusando-se a se prosternar diante de Adão, sob a ordem de Deus. No que se refere à queda do homem (no sentido da criatura humana), ela parece ter sido provocada, segundo o jovem Capadócio, por um movimento de atração pelo falso nem e a falsa ciência. À primeira vista, um erro de julgamento, mas um erro que já mostrava uma preferência sensível. É por isso que – segundo o doutor de Nissa que seguia a seu mestre, Orígenes – Adão e Eva, tendo perdido seus corpos etéreos, tomaram um corpo material que encarnava o apelo aos sentidos; somente com esse corpo nasceria a vida sexual, desconhecida no paraíso terrestre. Os Bizantinos permaneceram fieis a essa lembrança da longínqua espiritualidade origenista (com exceção da doutrina gnóstica da pré-existência das almas). Encontramos a mesma ideia da destruição de nossa natureza divina primitiva em Scottus Erigena, cuja antropologia é essencialmente Grega. O mesmo podemos dizer de alguns beneditinos do século XII, perdidos no Ocidente, como Rupert de Deutz, Honorius de Augsbourg e os irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg.

[30] Para São Gregório de Nissa, a dignidade do homem está na sua inteligência, imagem ou espelho que reflete a Inteligência de Deus. Essa é a parte divina de seu ser (De Imagine, XII, C. 164). A mesma concepção intelectualista está em São Máximo, que, em sua antropologia, segue de perto o bispo de Nissa, e também nos Bizantinos; mas a inteligência aqui e sempre suprarracional, não nos esqueçamos disso.

[31] Não que a escatologia da Cidade de Deus, da qual bebeu toda a Idade Média, tenha sido menos rica do que a dos Bizantinos. Mas o homem agostiniano ressuscitado mantém ainda seu aspecto terrestre (De Civitas Dei, XXII, 1). Sua carne ainda não se encontra transfigurada, como na patrística Grega. Essa é o erro que lhe aponta Erigena (De Divis. Natur., V, 37). A esse respeito, é interessante comparar o bispo de Hipona com seu mestre, Santo Ambrósio de Milão, que manteve intacto o pensamento tradicional: veja-se seu Comentário sobre São Lucas, no qual a espiritualização da natureza humana é completa.

[32] O ponto de vista ne varietur de Agostinho é sempre assim: Deus nada deve à sua criatura. Mesmo a imortalidade do primeiro homem consistia unicamente em não dever, e não a não poder, morrer; a retidão e o amor imperturbatus de Adão tampouco pertenciam à natureza própria do homem, que permanece sendo um enigma. A esse respeito, como em outros pontos, a doutrina agostiniana foi modificada por São Tomás, para o qual existe uma essência incorruptível na natureza humana. Acrescentemos que, segundo ele, perdemos, com o pecado original, não apenas os dons sobrenaturais – cuja visão intuitiva, que não passa de uma graça (isso, ao encontro do pensamento fundamental Grego) – fomos feridos ainda in naturalibus. Mas, no agostinismo, trata-se de uma verdadeira corrupção da natureza, enquanto que seus princípios essenciais subsistirão, segundo São Tomás. Quanto aos Gregos, somente a Encarnação poderia, por um milagre sem precedentes, recriar a divindade ideal de nossa espécie, cuja imortalidade era a principal característica, e que João Damasceno chama de “sua verdadeira natureza”.

[33] Segundo São Máximo e alguns Bizantinos, o Verbo teria se encarnado de qualquer maneira, mas não teria sido enviado à morte. Somente a Cruz foi demandada pelo pecado original, coisa que nenhum Grego jamais negou, diga-se o que se disser.

[34] O esquecimento em que caiu a escola de teologia inspirada pelos Padres platônicos se explica pelo triunfo, no século XIII, da escolástica aristotélica, e sobretudo pela desconfiança crescente da Igreja contra Scottus Erigema.

[35] É um engano chamar a essa concepção patrística do “renascimento” do homem em Cristo, de teoria física da Redenção, desconhecendo assim todo seu valor religioso. Ao contrário, ela é uma teoria orgânica de um realismo integral, na qual se afirma a unidade primeira da natureza humana, incorruptível e divina. Harnack – que jamais compreendeu os Gregos – chega a falar em recapitulação como sendo um “sistema físico-farmacológico”. O Abade Rivière não vê aí mais do que um esboço, uma série de tentativas, e nada mais. De fato, estamos aqui em presença de uma doutrina coerente, elevada e forte, doutrina que permaneceu na tradição ininterrupta da Igreja ortodoxa, cuja validade ninguém enfraqueceu, e que alimentou toda a experiência mística do Oriente cristão. Acrescentemos que ela nos parece diferir por natureza de toda divinização dos mistérios pagãos, onde alguns buscaram sua fonte, e que não passavam de “imitações antecipadas” do Cristianismo.

[36] Epist., VIII, 5.

[37] Orat. I, 7, XXXVII, 2.

[38] Para Santo Anselmo e os teólogos de sua linha, o Verbo não interveio senão porque a criatura era impotente para reparar a desordem, o que constitui uma ofensa contra o próprio Deus.

[39] Rom., Hom. IX, 3.

[40] Orat. XII, 1, 8 e XIII, 4.

[41] Orat. II, 56 e 66.

[42] Salientemos aqui esse traço significativo: o silêncio quase completo sobre o Jesus histórico nas homilias dos mestres espirituais de Bizâncio, ou a interpretação alegórica, na tradição alexandrina, de todas as palavras do Mestre. Mesmo um São João Crisóstomo, o maior moralista Grego antes de Teodoro o Studita, não tenta nos comover, nem apela diretamente à nossa humanidade. Que diferença para com os medievais, em particular São Bernardo, que em cada sermão – Natividade, Infância, Paixão – respira ternura humana, verdadeiramente abundante! As homilias Gregas, como as epístolas Paulinas, não veem no homem senão o Salvador. Da mesma forma, a iconografia Orienta ignora o tema do Presépio, o da Sagrada Família, tão amado no Ocidente, sobretudo na Itália, que acabará por penetrar no recinto das igrejas, e até mesmo no Calendário litúrgico. A Igreja ortodoxa tampouco conhece a devoção ao esposo da Virgem, São José, que de resto é considerado como viúvo e pai dos “irmãos” de Jesus. Ele jamais aparece nos ícones, ao lado de Maria: a Theotokos, só ou com seu Filho divino, é rodeada pelos coros celestes que cantam sua glória, e às vezes ela plana acima da humanidade terrestre. Às vezes ela está próxima de São João Batista, com Cristo no centro, e essa configuração recebe o nome de Deisis (imploração); ela possui um sentido teológico muito preciso: o Segundo Adão, que traz a vida nova, seu Precursor e – traço de união entre as duas Leis – a Virgem-Mãe.

[43] É o serviço litúrgico das duas Igrejas que nos fornece a melhor prova-ilustração disso. A missa romana, dobrando-se sobre si mesma numa concisão estilizada, culmina e termina no sacrifício pacífico do altar que renova o sacrifício sangrento do Calvário. A liturgia Grega reproduz, ritualmente, todos os momentos essenciais da vida do Senhor. Ela não se fixa unicamente no ato de imolação do Agnus Dei, mas o prepara e o ultrapassa. Seu ponto culminante é a comunhão dos fiéis – que jamais é distribuída fora da Liturgia, bem entendido – que simboliza o milagre da Ressurreição. Primeiro os comungantes, como as santas Mulheres junto ao sepulcro, se reúnem diante do iconostase, barreira móvel que separa a terra do céu; depois a porte real é aberta de par em par em silêncio pelo diácono, que representa, seja o Precursor, seja o arcanjo Gabriel; é a pedra do sepulcro que foi rolada pelo mensageiro celeste. Então aparece o Senhor vivo, oculto nos Santos Dons, para distribuir a seus filhos sua carne glorificada, dom da vida imortal. Vem então a oração final, que encerra o ofício, ação de graças cantada pelo coro, anunciando a Ascensão, epílogo sobre a terra, prólogo nos céus, onde tudo se consuma.

[44] A base evangélica dessa devoção está no gesto do apóstolo bem-amado que, no final da Ceia, prelúdio do sacrifício supremo do Amor, repousa a cabeça sobre o peito do Mestre. Foi como órgão do amor que Santa Gertrude de Helfta inaugurou, no final do século XIII, o culto ao Sagrado Coração de Jesus, culto revivificado nos tempos modernos pelas visões de Paray-le-Monial.

[45] Um simples olhar sobre as duas iconografias basta para nos convencer da diferença essencial sobre esse ponto entre o Oriente e o Ocidente. Na Idade Média, e além dela, em primeiro plano, a representação, cada vez mais patética, do sofrimento humano de Cristo; flagelação, caminho da cruz, instrumentos da Paixão, agonia do Calvário, sem falar das inumeráveis cenas de martírios que recomeçam e prolongam ao infinito o sacrifício voluntário do Mestre. Essa arte, que acabará por ter algo de mórbido, com seu gosto dolorido pelo sangue e os suplícios, atinge seu paroxismo na Espanha do século XVI. Entre os Gregos, cuja arte religiosa é objeto de um culto, ou antes de uma veneração – a proskynese – uma idealização procurada, uma separação das realidades terrestres, vem à luz: a dor é sempre transfigurada. Mesmo o maior realismo, e mais marcantemente patético, do oriente cristão (Síria, Mesopotâmia) permanece até sóbrio, discreto e contido na representação do sofrimento.

[46] Essa crença se funda sobre a teologia de uma certa identificação da impassibilidade, a apatheia, com a aphtharsia ou incorruptibilidade. Por meio dela se explica em grande parte das disciplinas de ascese no monaquismo oriental e seu caráter específico, em relação com a própria noção do pecado que destrói a vida. A esperança na athanasia está intimamente ligada à catharsis, verdadeiro princípio de conservação para a criatura. Eis porque o corpo de Cristo não estava submetido à morte, porque ser perfeitamente puro, e, tendo assumido essa morte voluntariamente, livremente, ele não poderia ser considerado – nem sobre a Cruz, nem na descida, nem no sepulcro – como um cadáver; nele, a vida se encontrava suspensa, mas não abolida. Estamos aqui na grande tradição cristológica que teve suas repercussões imediatas entre os Gregos, sobre a imitação do divino modelo pelos ascetas místicos. Segundo os Bizantinos, a alma do “espiritual” tampouco deixa por completo seus despojos, e o preserva da corrupção. Daí decorre também seu dom de milagres, que não é outra coisa do que o sinal dessa presença real do espírito purificado.

[47] Esse é o esquema traçado por São Máximo, em pleno acordo com toda a tradição mística Grega.

[48] I João 3: 2.

[49] Peri tes em Christo zoes: é o título do tratado, em sete discursos, de Nicolas Cabasilas, o célebre liturgista-mistagogo do século XV, no qual a imitação de Cristo é concebida como a deificação do homem por Cristo, na graça dos sacramentos, viático da imortalidade.

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