II
Os caminhos da contemplação-união e a Theosis[1]
INTRODUÇÃO
Perder-se, revivificados pelo Espírito Consolador, no abismo de
Cristo; reencontra-se com Ele na Luz trina – eis o traçado e o fim do Itinerarium
mentis dos Espirituais Gregos. Todos, a começar pelos anacoretas do
deserto, pioneiros fervorosos da hesíquia, percorreram as etapas
ascendentes do “caminho real”, sem faltar nenhuma. Eles o seguiram, passo a
passo, com uma lentidão voluntária, sabiamente calculada, por meio da
mortificação, da penitência e da prece, até a iluminação carismática total da alma;
até que, unificada pela graça plena, essa alma pudesse encontrar e reproduzir
perfeitamente em si a imagem divina, seu modelo ou arquétipo eterno. Purgação,
iluminação, união transformadora e deificação participativa ou theosis.
O ciclo completo se fecha. Desde aqui, em baixo, a visão – jamais ontológica –
cabe aos “corações uros”, segundo a promessa solene das Escrituras, cujo
testemunho jamais enfraquece. Ora, ver a Deus, equivale a conhecê-Lo por uma intelecção
suprarracional, “acima de todo conhecimento”, implica penetrar Nele pela
intuição do amor; contemplação-possessão que faz participar o espírito criado,
não da incomunicável essência divina, mas das energias que dela procedem e que
a manifestam. E, para viver essa participação, é preciso ter purificado,
previamente, o ser como um todo, do qual o centro será o “coração inteligente”.
Tudo se passa aqui como os elos de uma só cadeia que liga a terra ao
céu, como os degraus de uma escada aérea que sobre ao paraíso da contemplação.
A experiência pneumática, longe de romper ou se desviar da teologia que a
sustém, projeta sobre essa um feixe de raios, vindos do fundo da alma renovada.
Assim, o dogma, entendido, vivido pelo espírito que enfim o assimila, se torna
para esse uma verdadeira revelação íntima, a própria revelação do amor.
O caminho de perfeição permanece sempre como uma imitação, como
um Vida em Cristo, simbolicamente interpretada em suas diversas partes.
À bios practicos – a vida “ativa” num sentido bastante particular do
termo – segue-se a bios theoretikos, vida inteiramente contemplativa,
que se divide em physike theoria e em theologia mystike, que
constitui sua culminação[2].
As duas vias, colocadas sob o mesmo signo, tanto se justapõem como se
interpenetram, sendo que a primeira é uma longa e laboriosa preparação para o
desabrochar da segunda. A ordem hierárquica das realizações permanece imutável;
somente seu ritmo pode ser, às vezes diminuído pelas falhas da vontade, às
vezes acelerado pela intervenção imprevisível e triunfante da graça. Estamos
aqui na escola da santidade extática simbolizada pela Scala Perfectionis,
a escada paradisíaca de Jacó, na qual os anjos subiam e desciam em silêncio[3].
Na sua base, tal como a raiz ao pé de uma árvore que cresce em plena luz, a
mortificação penitente.
A ascese, nervo vivo de toda a práxis, é, conforme se sabe, a peça
mestra do sistema, o qual por sua vez está integrado na antropologia
patrística. A doutrina nos é bem conhecida. O homem nasceu para a beatitude da
adoção divina, perdida e depois recuperada e reforçada pela Encarnação; e assim
o cristão, para ser perfeito de acordo com a ordem do Mestre, deve carregar sua
Cruz e segui-lo, a fim de realizar sobre aterra seu destino naturalmente
sobrenatural.
A catharsis, de origem pré-cristã e já familiar aos
pitagóricos, se encontra, sob uma forma racional e moral, em todo o estoicismo
sincretista. Em Fílon de Alexandria, as disciplinas catárticas estão inteiramente
subordinadas ao ideal da theoria, que constitui seu coroamento. Mas isso
não passa de antecipações. O impulso vertiginoso da alma em sua “viagem ao céu”
logo decaiu. Foi um voo que pouco aflorou o insondável mistério, porque Deus,
confessa Fílon, “está sempre à frente do homem no caminho, e permanece sempre a
uma distância infinita dele”. E seu Logos-demiurgo não é ainda mais do que o
intermediário entre dois mundos, que somente o Verbo encarnado dos cristãos
será capaz de aproximar, sem jamais confundi-los. Mas o precursor alexandrino,
profeta isolado, orientou o pensamento místico do Cristianismo nascente,
mostrando-lhe a chave de ouro que abre as portas secretas: a esperança da Visio
Dei.
A APATHEIA E A TEORIA DAS PAIXÕES NO PENSAMENTO DO
ORIENTE CRISTÃO
O primeiro teórico do novo
método na Igreja Grega foi Clemente de Alexandria. Seu “gnóstico”, ou perfeito
(aner teleios), será Deus no futuro, enquanto que, no presente, ele se
assimila a Deus, na medida do possível. Mas, antes de tudo, é um asceta que aplica
sobre si mesmo a regra de austeridade mais extrema. Ele não deseja se diminuir,
mas crescer, eliminando tudo aquilo que, no homem, não é intemporal. A
divinização está prometida, a esse custo. Clemente afirma com firmeza:
“Trata-se de um sacrifício de bom odor a Deus, separamo-nos sem retorno do
corpo e de todas as afeições carnais”. Primeiro do corpo, na medida em que ele
é um elemento perturbados da alma, de sua quietude primeira.
Não que nossa filosofia seja inimiga de toda carne, que a condene em
si. Longe disso. Conhecemos sua vigorosa polêmica contra os heterodoxos,
docetas maniqueístas de todas as nuances. Tudo o que Deus criou é, ao
contrário, bom, para o autor das Stromatas, bem como para todos os
Gregos. Mas, para o pecado, a matéria, sem se corromper, se tornou pesada a tal
ponto que ela esmaga e deforma o espírito que a habita. A paixão, reação
demasiado violente ao choque das coisas, desejo imoderado ao sensível, esse pathos
mórbido desconhecido no estado de inocência, afasta o homem da Divindade
impassível, cuja imagem ele deveria refletir. E a perturbação na qual ele é atirado
pela paixão lhe barra o caminho natural da teleia (perfeição)[4].
Somente pelo exercício de suas mais nobres faculdades, pela cultura intensiva
da virtude e da inteligência, que o sábio de Clemente chega a deparar o núcleo
luminoso do ser de sua concha opaca.
Por meio de despojamentos sucessivos e pela purificação progressiva,
ele alcança a haplosis, a simplificação, já praticada pelo
neoplatônicos, e que parece anunciar o “homem interior”, o “homo plasmatus,
non factus” dos místicos medievais. Único imortal, único reflexo da glória
incriada, ele não aparece senão quando a criatura adâmica decaída está elipsada
por completo. Entre as duas, existe uma incompatibilidade e uma antinomia
fundamental: para que uma viva, a outra deve morrer. Daí vem a necessidade das disciplinas
catárticas, negativas e positivas.
O iniciação, sempre sob a condução do Logos spermatikos –
primeiramente Conversor e Pedagogo, depois Mestre e Doutor – se realiza na
ascese, iluminada sempre pelo raio da Fé[5].
Pois a pistis (fé) condiciona a virtude, assim como amadurece a gnose,
seu mais belo fruto. Nessa “didascalé” (escola) existem três classes de
discípulos: os iniciantes, os que progridem e os perfeitos. Essa divisão era
comum no mundo pagão dos Mistérios, e tem seu lugar em todos os esoterismos.
Mergulhado nas fontes cristãs do “Deus é amor”, essa seleção, já anunciada por
São Paulo com seus “pneumáticos” e seus psíquicos”, se tornou uma verdadeira
prova de amor, tomando um sentido totalmente interior. Somente ela justifica a
obra amorosa obediente e testemunha assim o abismo que separa a gnose
alexandrina cristã, daquele, sempre orgulhosa e vaticinante, que tenta tomar o
céu de assalto, dos Basilides e dos Valentins. Clemente distingue entre os dois
escravos movidos pelo temor, começo da sabedoria, segundo as Escrituras; os
mercenários, que contam a recompensa como certa, e que esperam por ela; enfim,
os filhos, ou amigos de Deus, entre os quais todo desejo outro, que não amar a
Deus e amá-lo por si só, foi abolido[6].
Perfeição do puro amor, sobre a qual se discutiu interminavelmente durante
séculos. Conhecimento profundo dos segredos do coração cristão, que não pode
escutar as “palavras inefáveis” senão se perdendo no infinito do amor. As
epístolas paulinas, nas quais brilha o Cristo encarnado, estão imbuídas dessa
direção. O germe, de uma fecundidade inesgotável, se encontra na última
conversa do Cristo joanino com os apóstolos, depois de lhes ter dado o “novo
mandamento”: “Já não vos chamo de servidores... eu vos chamo amigos[7]”.
E é sempre pela estreita associação dos discípulos para com o Mestre, dos ramos
em relação ao tronco – sem o qual eles não podem dar frutos – que a lei do
amor-adoção, promulgada na Ceia, se torna vivificadora e operante. “Caritas
est gratia Testamenti novi”, diz Santo Agostinho. Essa graça quem anuncia,
“para a nossa salvação”, é o Verbo encarnado, por ser ele a vítima do Amor
infinito.
Tornar-se filho de Deus em Cristo, essa é a primeira palavra da gnose
cristã, que refunda o ensinamento tradicional e popular com os elementos de uma
ciência sagrada, inacessível às massas. E isso, não por meio de um
aristocratismo orgulhoso, do qual jamais Clemente se tornou culpado, mas
porque, de fato, apenas uma elite consente nesse sacrifício supremo: a
metamorfose espiritual completa na renúncia voluntária[8].
Para o mestre de Orígenes, assim como para esse último, os cristãos, todos
perfeitos com o auxílio da graça, na verdade não desejam realmente a perfeição:
aspirar a se tornar perfeitos como o é o Pai, apresentado como modelo
inigualável pelo próprio Filho. Clemente, com sua teoria da virtude e do
conhecimento conexo, com seu ideal de santa impassibilidade, da apatheia
vivida, apagou o caminho para o monaquismo pneumático da era futura. Ele fez
com que convergissem a cognição, que deifica, coroando a obra natural e
sobrenatural, com o restabelecimento da imagem divina apagada pelo pecado
original em nosso espírito: a imagem do Theos Anthropos, exemplar da
espécie humana, do Unigênito, “Ele próprio marca viva da glória do Pai”. E é
ainda o Logos pré-eterno que, pela efusão do Espírito Santo, seu mensageiro,
enche de graça deificante a alma do gnóstico. Com essa atitude, o Sábio
impassível, ouvindo apenas a Deus, espera, no silêncio místico, que Deus “o
revista da forma divina”.
O ideal Alexandrino, abraçado com fervor por todo o Oriente ortodoxo,
se exprime em primeiro lugar pela apatheia. Essa, que também é de origem
pré-cristã, já havia adquirido uma grande importância entre os estoicos do
tempo de Fílon. Ele próprio estava compenetrado disso. Já ninguém contesta a
influência que o grande pensador judeu teve sobre o amigo dos filósofos,
Clemente. Em um como em outro, encontramos a mesma concepção, essencialmente
religiosa. Ora, na doutrina de Pórtico, a impassibilidade consiste num
pragmatismo moral que, como uma bainha gasta pela lâmina, termina na ataraxia
(ausência de toda e qualquer perturbação). Primeiro, uma atitude intransigente
e consciente da vontade que se recusa ao sofrimento e triunfa sobre o medo, bem
como sobre a concupiscência; depois, a resignação, a extinção de todo desejo por
meio da repressão. Uma conquista negativa, talvez, quase inumana, a um preço
tão alto que parece uma derrota, pois toda sensibilidade parece morrer de
inanição na solidão glacial da indiferença adquirida. Mas talvez haja aí uma
vitória. Diante do inexorável, uma submissão nobre e serena ao destino,
entendido como Lei do mundo, divindade imanente da Stoa panteísta. Está
claro, no entanto, que não pode haver aí nenhum devir, nenhum dinamismo do
impulso vital. Trata-se de um fim em si: o suicídio da “querer viver”
individual, próximo do Nirvana, sacrifício da parte em benefício do
Todo, que, absorvendo-a, a destrói.
Ao contrário, a apatheia dos Alexandrinos, tal como foi concebida por
Fílon, retrabalhada e aperfeiçoada por Clemente, Orígenes e seus descendentes espirituais,
aparece como uma poderosa alavanca para a ação. Ela não passa de uma etapa no
caminho que conduz ao Deus vivo; uma solicitação premente em ultrapassar o
humano na busca pelo incorruptível divino. ora, o divino não lhe é heterogêneo,
graças à homoiosis, ou “similitude” da alma criada com seu tipo
incriado. O desejo de ser perfeito, “como o Pai é perfeito”, ancorado no bem,
assim como o Deus imutável é sempre, é um estímulo que lança o homem para a
frente, obrigando à total conversão de suas potências patéticas. Essa não são
em absoluto extintas, mas apenas desviadas, dirigidas para outros fins. E a
energia criativa se reencontra por inteiro. Falando em termos psicológicos, o
que existe aqui é uma sublimação. Assim, nada é sacrificado, da pessoa viva,
criatura única, insubstituível; pois ela não consiste num um simples momento na
duração, mas individualidade indestrutível, por ser ideia de Deus, por
ser uma de suas imagens, projetadas e refletidas no criado.
Para compreender melhor o valor intrínseco da apatheia, cuja
raízes estão mergulhadas no pensamento do “divino Platão”, seria preciso
retraçar as grandes linhas da antropologia cristã grega. É preciso lembrar, no
mínimo, do que havia de idealismo em sua concepção do homem, herdado da antiga
tradição grega, mas agora refundido no cadinho cristão, de tudo o que existia
severamente ordenado ao redor de um centro, que permanecia puro espírito, e que
era refratário, por sua natureza preternatural, ao transbordamento das paixões.
Toda a concepção antiga da alma a ela predispunha, inclusive a concepção da
psique inferior, da humanidade ainda animal, submetida ao nous
suprassensível. E essa psicologia platônica e aristotélica, cujas
transformações e aplicações na ascese grega veremos a seguir, formava já em
Clemente de Alexandria o núcleo de toda sua doutrina da perfeição e do
conhecimento. Menos pessimista do que viria a ser seu genial discípulo Orígenes
– por estar mais próximo da autêntica tradição da Igreja – Clemente jamais ensinou
a queda das almas nos corpos, infligida como castigo por causa de um pecado
irreal. A seus olhos, o homem, saído das mãos do Criador e animado por um sopro
– pneuma – estava plenamente organizado em vista da deificação latente.
Um futuro com possibilidades infinitas, no qual a matéria ainda dúctil
obedeceria, sem trair, o espírito condutor.
A ideia mestra de Clemente, que a partilha com Santo Irineu, é a de
uma evolução espiritual ascendente, interrompida antes de começar, e que deve ser
retomada de outro modo. O pecado original amarrou a alma à matéria e privou o
espírito de sua seiva natural divina[9].
Gregório de Nissa falará também de nossa Inteligência angélica caída sob o
poder de forças animais e vegetativas, o que faz da alma uma desordem
organizada, uma falsa disposição de todas as partes do corpo humano. E a marca
visível e dolorosa do triunfo da psique, sede da sensibilidade, sobre o
espírito deiforme, são as pathè, as paixões parapsíquicas.
O autor dos Stromatas, de acordo com as ideias de Fílon, foi o
primeiro a definir o pathos como “um movimento da alma contra a natureza[10]”,
definição implicitamente reconhecida por Atanásio e os Capadócios, explicitada
e aprofundada pelos mestres da espiritualidade Bizantina. Ela será ponto de
partida de toda a terapêutica da alma no Oriente cristão. Pela influência exercida
por sua forte personalidade, e pela autoridade intelectual de São Máximo o
Confessor, esse conceito da paixão se implantará para sempre na Igreja Grega. Mas
o terrenos já havia sido semeado, de longa data, pelos Alexandrinos e seus
discípulos imediatos, que viveram a ascese antes do êxtase.
O primeiro dente eles, enquanto especulativo, foi o origenista Evagro
o Pôntico[11]
(falecido em 399). Ao mesmo tempo, ele pertenceu, como asceta, a essa “escola
do deserto”, da qual era chefe Santo Antônio o Grande. Essa escola contou,
dentre seus mais ilustres representantes, com Macário o Grande (ou o Egípcio,
falecido em 390), fundador do eremitério de Sceta, assim como com o monge palestino
São Nilo (falecido em 430). Sua ascese contemplativa, que já podemos qualificar
como hesíquia[12], é
inteiramente comandada pelo ideal de impassibilidade ou apatheia, o qual
está especulativamente fundamentado sobre a teoria das paixões que “ligam a
alma à matéria”. Quem a expôs com a maior concisão e clareza, foi São Máximo,
em especial em suas Centúrias sobre o Amor, com justeza reputadas a
Bizâncio. Caminhando sobre as pegadas de seus antecessores, o santo Confessor
se liga estreitamente ao pensamento de Evagro, embora jamais tenha partilhado
de certas opiniões heterodoxas desse fervoroso origenista. Mas toda a tradição
mística Bizantina repousa sobre uma mesma visão global de Deus, do mundo e do
homem, indissoluvelmente unidos na vontade criadora da Causa primeira, tal como
ela se reflete, exteriormente no Cosmo, interiormente no espírito iluminado.
Essa foi uma rápida visão da teoria de Máximo sobre as paixões. A
origem antiga dessa teoria, já esboçada por Clemente, é evidente. Ao mesmo
tempo, ela permanece inseparável de toda a antropologia patrística, tão
fundamentalmente grega ela também, e do neoplatonismo dionisíaco que a
completa.
O mal não se encontra nas coisas[13]:
essas só se tornam más pelo excesso de desejo acrescentado ao uso que delas o
homem faz. É, portanto, o prazer que aparece como o indício de um estado
anormal, perverso, no qual o homem já não age “segundo a natureza”. A paixão,
que implica necessariamente o desejo, se apresenta sempre como um movimento
violento da sensibilidade, contrária à razão, como um abuso, uma desordem
mesmo, desconhecido no estado da natureza perfeita, pois a natureza criada
permanece boa, enquanto reine nela a ordem prescrita, enquanto sua escala de
valores não seja invertida. Adão era apathos (sem paixões), tendo como
modelo a impassibilidade divina. Para São Máximo, como para todos os Espirituais
antes e depois dele, isso significa que a alma de Adão no paraíso jamais se
perturbava com a concupiscência, nem era abalada por nenhuma contrariedade. A apatheia
é um “estado de calma mental”, uma estabilidade perfeita do espírito que não
aspira a nenhuma mudança[14].
A esse “estado pacífico”, que se trata de reencontrar desde aqui em baixo, se
opõe o “estado de perturbação”, no qual o homem vive desde a queda. Tendo se
rompido o equilíbrio entre as diferentes potências da alma, a concupiscência e
a irascibilidade predominaram, submetendo à sua tirania o logikos, que
antes dirigia a “força vital” da psique, conformando-a à virtude; daí provém a
inclinação espontânea ao vício e às tendências pecaminosas. Mas, como a origem
do mal é, em última instância, intelectual – um erro de julgamento, conforme
Gregório de Nissa – é preciso buscar s causa na desordem inicial da parte
racional. Embora orientado por sua própria natureza para o conhecimento divino,
o nous cessou de ser o regulador perfeito de todas as forças e
faculdades do ser, porque ele já não era “o puro e brilhante espelho de Deus”
(São Máximo). E o ilustre Confessor, lógico impecável e psicólogo prudente,
descreve em seus Capita de Caritate (I, III e IV) o próprio processo, a
marcha que segue a corrupção que conquista todas as partes vulneráveis da alma.
Primeiro a memória, antes una e indivisível, centro e acumuladora de todos os logoi,
Ideias, que lhe vinham por iluminação direta de Deus, se torna dispersa,
múltipla e distraída. Ela logo passa a acolher todos os pensamentos passionais,
nos quais Evagro denunciava os males aos monges. O espírito, já não exercendo
mais sua supervisão atenta, deixa penetrar em si uma sugestão impura. Uma vez
dentro, essa se torna libido ou sugestão-desejo (prosbolé), e aí se
fixa. Ora, esse desejo, que é sempre uma ligação a um falso bem, exis,
traz desde logo em si o consentimento ao pecado, a alma, avassalada à paixão
nascente, escorrega na vertente. Através de um último dobramento da vontade,
também ela relaxada, ela permite ao pecado, até então virtual, se realizar, e
em seguida criar raízes e crescer rapidamente, como os espinhos do terreno ruim
de que falou Jesus. Os escolásticos diriam que, tendo passado da potência ao
ato, o pecado se estabelece como habitus. Esse pecado em ato é chamado
de “energia” por São Máximo.
A fim de remediar esse estado de inquietude permanente, essa afluência
de desejos provocadores e de pensamentos carnais, a fim de se aproximar, numa
palavra, da libertação, mesmo que parcial, o asceta cristão deverá se submeter
à mais completa disciplina. O método geral, preconizado por Evagro e Máximo,
consiste, de um lado, numa abstinência voluntaria, e, de outro no “uso das
coisas indiferentes que purificam”. Quanto a essa própria purificação, sobre a
qual está toda a ênfase, ela é tripla, segundo as três categorias psíquicas já
estabelecidas por Platão e Fílon, e aceitas por todos os Espirituais desde
Clemente: as paixões do concupiscente, do irascível e, enfim, muito sutis e
complexas, as do racional. Os dois primeiros grupos resumem o conjunto da
psique, já ilustrado pelos antigos, e eles formam um bloco e não podem ser
dissociados. Não existe assim, propriamente falando, senão duas espécies de
impurezas que maculam a alma humana: as do corpo, inseparáveis da alma animal,
instintos, apetites e paixões afetivas, culpadas ou relaxadas; e as do
espírito. Essas últimas, por seu turno, se subdividem em conhecimentos errados,
nascidos sempre da ignorância, agnoia, e em raciocínios, inspirados pela
paixão do espírito, seduzido por pensamentos desordenados e múltiplos. A esse
esquema corresponde, como contrapartida exata, toda uma sábia e minuciosa
regulamentação da vida mortificada. Pois a teoria jamais se separa da prática.
Vida vivida plenamente, regra integralmente aplica, tanto na
idiorritmia como no anacoretismo puro, tanto na existência menos isolada das
diversas lauras pacominianas, como nos cenóbios dos futuros monges basilianos.
A luta se desenrola, desde meados do século III, sobre a arena abrasadora do
deserto, não mais à margem, mas no próprio coração do mundo cristão, fugindo da
tentação, buscando a Alegria imperturbável... Mas convém primeiro lustrar as
armas para o grande combate, ao qual se entregam os “atletas de Cristo”. A
ascese é aqui um comovente prelúdio, que permanecerá até o fim como um encorajamento
discreto, mas perceptível, das mais altas manifestações pneumáticas[15].
Como testemunhos, obras tais como a Historia Monachorum de Rufino, a Historia
Lausiaca de Paládio, a coletânea anônima dos Apophtegmata Patrum, as
Collationes (Conferências) e as Intitutiones de Cassiano, tão
apreciadas no Ocidente; talvez ainda mais os inumeráveis tratados
ascético-místicos de origem Sinaíta e outras.
Todas essas abundantes obras, que vão do século IV ao VIII e além,
atestam, com uma força cativante, a vitalidade do ensinamento criativo e a
perseverante tradição de uma sociedade religiosa única: de uma elite de almas
que aspiravam a atingir, ainda em vida, com a apatheia e a anamartesia,
ou impecabilidade incorruptível dos santos, a plenitude das graças gratis
datae. Pois, à teleia adquirida, ela própria sustentada pelo
incessante influxo espiritual proveniente da charis (graça), se
sobrepõe, coroando-a, a ciência infusa da contemplação: o conhecimento da agapè.
A NATUREZA E A GRAÇA: O CONCEITO DE LIBERDADE HUMANA
E O SINERGISMO DOS PADRES, VIVIDO PELOS MONGES
O que espanta, à primeira vista, no monaquismo do Oriente, tal como
ele se apresenta aos nossos olhos sob sua forma primitiva, e tal como ele se
manteve até sua primeira decadência, é a confiança inquebrantável das forças
naturais do cristão. Essa confiança não será denunciada nem desmentida após o
renascimento hesiquiasta do século XIV. E isso, apesar da obsessão pelo
demônio, dos inumeráveis espíritos malignos nos quais os monachi encarnavam,
com realismo intransigente, às vezes ingênuo e cru, às vezes profundo e
contundente, todas as tentações sofridas pelo homem aqui em baixo. A vontade,
fortemente exercitada pelas práticas ascéticas e à qual a ajuda divina jamais se
recusou, triunfou, triunfa e triunfará, segundo eles, sempre. Eis o credo dos
Padres do deserto que viveram, com uma fé e um ardor intactos, o ideal de sua
época heroica. Esse robusto otimismo, no qual a liberdade desabrocha em toda
sua fecundidade, está nos antípodas do fatalismo esterilizante dos gnósticos
heterodoxos. Mas ele se opõe também à angustiante depressão de Santo Agostinho,
que marcou com seu selo indelével toda a Europa cristã.
Perante tal crença, verdadeiramente inconcebível à cristandade
agostiniana, falou-se de “semi-pelagianismo”, sem hesitação. Foram feitas
reservas expressas do lado católico moderno, a respeito dessa tendência, já
manifesta desde os escritos de João Cassiano (falecido em 435), traço de união
viva entre o Oriente dos Padres do deserto e o Ocidente latino[16].
Aquilo que se reprovou em Cassiano, inteiramente dependente de sua fontes, é
ter desconhecido a necessidade sine qua non da graça antecedente na obra
da salvação[17].
A influência estoica, erroneamente invocada aqui, é correta no que se refere à
heresia de Pelágio, insuportável a um espírito cristão, por não levar em conta
as deficiências da natureza humana decaída. A ortodoxia Grega, bem prevenida
por seu turno, soube se preservar desse erro. A seus olhos, não apenas essa
natureza foi ferida originalmente (Pelágio admite isso, em princípio), como
ainda ela permaneceu para sempre vulnerável, malgrado o “antídoto” trazido pelo
Cristo encarnado; e isso, na medida mesma em que a humanidade, em via da
deificação participada, deveria, segundo a doutrina Grega, ultrapassar
magnificamente a ela própria. Poderia ela fazê-lo, sem uma ação carismática
perpétua? Certamente que não. Mas essa noção divina, sempre subjacente, deixava
uma iniciativa primeira à vontade, dirigida e sustentada, não escancarada por
ela. Nenhum dogma especificou isso, antes do século VIII (João Damasceno), pois
os limites exatos para o Oriente cristão, os Concílios ecumênicos, não haviam
se ocupado com a antropologia, mas apenas com a teologia Trinitária ou
cristologia.
Diante da esmagadora majestade do Pantocrator, os Bizantinos,
eminentemente feitos para a reverência, para o sentido do sagrado, mantiveram
assim mesmo uma certa autonomia da criatura humana, autonomia que eles
encontraram tanto no Antigo Testamento, no qual
o homem conserva sempre a
liberdade primeira de opção, como na predicação evangélica, que não é senão o
apelo vibrante às almas para que aceitem livremente o doce fardo do Mestre. O
próprio apóstolos dos Gentios, embora tendo inaugurado uma nova era com sua
doutrina da redenção pela graça do Crucificado, não fez, na realidade, outra
coisa do que colocar a nu o patético conflito entre as duas vontades: pois ele
afirma que é possível desejar o bem, e ao mesmo tempo fazer o mal, o que
implica a fraqueza de nossa vontade, não sua carência.
O pensamento patrístico afirma a liberdade inata, sobrelevando-a pela
graça. Ele está expresso inteiramente no famoso adágio, tão discutido depois:
“Deus não recusa sua graça àquele que faz o que está ao seu alcance”. Essa
doutrina é, a um tempo, do esforço consciente e do humilde abandono, doutrina
que a experiência ascética aprimorou ainda, exaltando, alternadamente, nossa
força primeira e nossa deficiência última. Segundo os Padres, as consequências
funestas da queda – jamais negadas por eles, diga-se o que se disser – não
podem senão atenuar, mas não destruir o selo divino sobre o rosto humano. A
liberdade humana, diminuída por ter se dividido interiormente (São Paulo), não
está completamente amarrada. Mesmo antes da Redenção, o desejo do bem subsiste
e age, como o prova a atribuição e a manutenção da lei mosaica por uma elite[18].
O livre arbítrio sob o domínio da Lei, permaneceu vivo no povo eleito,
sustentado e guiado pela mão do Altíssimo. E o verdadeiro cristão recupera,
mais plenamente ainda, seu bem mais precioso, uma vez regenerado pelo sangue de
Cristo e pelas águas lustrais do batismo, dupla fonte de energia imortal. Mas é
enquanto filho de Deus, adotado por Ele, que o homem é reconhecido como sendo
apto a desejar eficazmente sua salvação, e não em virtude de algum
imprescritível direito “natural”, conforme o entendiam os filósofos do
paganismo. Da mesma forma, sem o Verbo feito carne, que mostrou o caminho e
abriu todas as grandes portas do reino da graça, todo esforço é insuficiente,
impotente.
Clemente e Orígenes já defendiam, cada um a seu modo, a liberdade
intangível do homem, desdobrando-se sob a conduta suprema do Logos educador. Essa
ideia atravessa como um fio condutor a “trilogia” de Clemente de Alexandria;
Orígenes a retomará por sua própria conta, mas com uma dialética hábil, não
mostrará senão uma face: a integridade do livre arbítrio. A contrapartida, que
é a doutrina própria da graça, é deixada por ele na sombra[19].
Os teólogos que se seguiram corrigiram essa perigosa tendência a atribuir tudo
apenas ao homem. O que eles sempre irão conceder, com sábia circunspecção, é o
primeiro movimento não imposto da vontade, em termos teológicos, o initium
fidei. Um presente real recusado pelo non posse non peccare de Santo
Agostinho, que suprime inclusive o próprio dualismo paulino. O bispo de Hipona,
arrependido do maniqueísmo, foi quem primeiro quis definir as relações precisas
entre a natureza e a graça. Em plena luta contra o orgulhoso monge bretão, e
para cingir os rins à soberba humana, odiosa ao pecador renovado pela graça de
Cristo, Agostinho forçou a mão, inclinando, e mesmo virando a balança para o
outro lado[20]. A
Igreja Grega, fiel ao pensamento tradicional, não quis, nem podia segui-lo até
aí, sem negar a si mesma. As duas doutrinas, enraizadas em suas respectivas
antropologias, permaneceram irredutíveis uma em relação à outra. É inútil
negar, mas é preciso ver por que isso aconteceu dessa maneira.
Para uma dessas doutrinas, a graça de adoção divina é inata,
incorporada ao homem, tal como um germe, desde seu nascimento no tempo – germe
mergulhado na lama pelo pecado de Adão, mas maravilhosamente reencontrado,
fecundado novamente pela Encarnação, que o tornou, com Cristo, coerdeiro de sua
glória. Em seu estado empírico presente, o cristão é um convalescente
debilitado, mas não um enfermo: ele sabe o mal que o corrói e o remédio
poderoso, único, contra esse mal. A cura, a vida eterna ou athanasia,
está ao alcance de sua mão. Ela começa com a nostalgia dessa vida, e passa para
o desejo de vencer essa morte, custe o que custar, desejo esse que já é
operante nela. Enfim, bem acima dos recursos humanos próprios, eis a
inesgotável fonte da graça santificante: seja nos sacramentos, viáticos da
incorruptibilidade, seja puramente individual, íntima, dessedentando cada alma
à sua vontade, regando sua lenta germinação, seu secreto crescimento. A marcha
pessoal dessa alma, livre porque livre foi criada, consiste em sua
vontade fundamental: na opção, sempre possível, impulso inicial, débil caule
que reclama o apoio de um tutor invisível para não se dobrar ou romper. Pois,
em virtude de uma lei misteriosa, à medida em que a alma sobe, ela se torna
pesada pela abundância de sua colheita, incapaz de enceleirar, desejosa sempre
de crescer cada vez mais. Assim ela permanece suspensa entre a terra do exílio
e a pátria do céu, à mercê da graça que a livre num golpe de asa derradeiro.
Mas seu destino, sobrenaturalmente natural, foi a alma que a pediu, iniciada
pelo batismo. E, conforme seu desejo ela será atendida, pois esse desejo da
criatura é o querer profundo do próprio Criador.
Aquilo que quis o Deus vivo do Gênese, foi, tendo feito o homem à sua
efígie, ter diante de si um ser plenamente responsável e livre; com isso todo o
Cristianismo está de acordo. E essa marca divina – aqui começam as divergências
– deve permanecer indelével. A liberdade que a criatura inteligente fez tão mau
uso, sem, no entanto, perdê-la – porque ela faz parte de sua substância
metafísica – essa liberdade lhe foi restituída no ato de infinito Amor[21].
A justificação não é simplesmente imputada, mas realmente é tornada possível.
Pois o sacrifício oferecido pelo Redentor deve ser suficiente para que toda a
espécie humana possa se por a caminho, na via de sua salvação. Mas há mais. A
própria remissão dos pecados não é mais do que uma parte ínfima da obra redentora,
completada não sobre o Calvário, mas no Sepulcro de Arimatéia; essa obra foi
uma restauração (recapitulatio), desde antes ainda. Repetimos: o homem
foi aí reconciliado com Deus, a fim de retomar sua ascensão interrompida em
direção à deificação. Reconquistada pela Encarnação, que rompeu as grades do
antigo espírito cativo, a liberdade será, aqui em baixo, o bastão do caminho do
peregrino, não uma bengala para o estropiado, mutilado por todo o sempre. Esse
é o tema Grego.
No sistema agostiniano, que o
protestantismo, com seu “arbítrio servo”, levará ao paroxismo, essa liberdade,
salvaguardada na medida do possível pelos Bizantinos, foi tremendamente
abalada. De resto, a parte humana na justificação-glorificação já estava
reduzida ao mínimo, desde o estado preternatural. Santo Agostinho adotado e
reforçado sobre esse ponto por toda a teologia católica, considerava, como
sabemos, a justiça original como um dom, acrescentado à nossa natureza
inocente. Uma vez retirado, devido à queda, esse “dom acrescentado” (que é uma graça
sobrenatural desde sua origem), a semelhança-similitude para com Deus se
obscurece e desaparece: já não há comunicação direta com o Criador, coisa que
era antes o efeito dessa natureza privilegiada. Coisa estranha: desse estado de
apostasia, no qual nossa vontade do bem se encontra ensombrecida, a Redenção
parece não haver retirado o homem agostiniano. Ela o livrou da maldição daquela
falta, ou seja, da lesão do livre arbítrio, que antes estava íntegro. A
liberdade jaz ferida, e, na verdade, ferida de morte. Somente a misericórdia
divina pode, substituindo-se a ela mais uma vez (graça natural) conferir à
criatura deserdada tanto o querer como o poder. Assim, mesmo redimida, a raça
de Adão se encontra, acuada nos umbrais da vida nova, a esse auxílio sine
qua non, porque a graça santificante infundida a todo cristão no batismo só
possui eficácia nominal. Deus a tudo opera dentro desse sistema fechado, não
somente o fazer, como também o quere ab initio, porque até mesmo o começo
da boa vontade já não pertence ao homem. esse não faz mais do que cooperar para
sua própria salvação, pela contrição e a não recusa da graça. É o que, mais
tarde, os escolásticos chamarão de mérito de congruo, cuja importância
certamente não devemos diminuir, do ponto de vista pragmático.
Essa “cooperação”, na qual o homem pode, no máximo, ser chamado de
“associado”, é muito diferente, como podemos ver, da cooperação divino-humana,
real, efetiva, ensinada desde sempre pela Igreja Grega[22].
Verdadeira harmonia pré-estabelecida entre a liberdade, consubstancial à
natureza criada, e a graça incriada, essa antiquíssima teoria, conhecida sob o
nome de sinergia, permanece na base de toda a vida ascética, e também de
toda a teologia mística Bizantina. Mas ela foi rejeitada sob suspeita de
pelagianismo por Roma, que cristalizou definitivamente a doutrina contrária,
agostino-tomista, no Concílio de Trento.
Sobre o plano providencial da economia moral, a graça, aos olhos dos
Gregos, é o corolário da vontade salvífica de Deus. Vontade antecedente
universal, como declara o autor da Suma ortodoxa, São João Damasceno,
pois Cristo morreu por todos. O pensamento Bizantino nunca variou sobre esse
ponto: ele jamais admitiu a condenação ante praevisa merita que viola,
em detrimento da justiça e como uma ofensa à caridade, o mistério da
presciência divina. A terrível asserção de Santo Agostinho, a saber, que Deus
não seria injusto ainda que nenhum dos descendentes de Adão escapasse à
condenação, parece blasfema a essa Igreja, que pendia, nas profundezas de sua
consciência, para o extremo oposto: para a apocatástase origenista[23].
O angustiante problema da predestinação, colocado por Santo Agostinho
a respeito dos caídos[24]
de São Paulo, aguçada por Lutero, exacerbada por Calvino e os Jansenistas,
parece ter sido deliberadamente negligenciado pelos Bizantinos. Em momento
algum esse angustiante tormento alterou a serenidade de um pensamento, que
estava como que instintivamente voltado para a escatologia. Mas a visão cósmica
do Apocalipse, tão perscrutado pela ortodoxia oriental até hoje, não
ultrapassa, de toda a altura de um sonho profético do fim derradeiro, os
tristes cálculos nos quais a Europa reformada de se perdeu sobre a massa e os
vasos da perdição? O que ocorre é que o Oriente cristão, sempre desdenhoso de
tamanha miséria, buscou algo completamente diferente: na Parúsia do Filho do
Homem, do Agnus Dei, ele viu, como que uma antecipação da transfiguração
dos eleitos, de todo o Cosmo, n[bem mais do que o Julgamento inexorável da
humanidade pecadora.
Outro sonho frequentou assiduamente, desde o início da era cristã,
esse Oriente voltado para as alegrias da contemplação: o sonho de viver
integralmente a esperança carismática. Toda essa doutrina da liberdade e da
graça, impossível de ser discutida abstratamente, de ser situada no vazio,
sofreu, como o aço, a têmpera do fogo, a prova da experiência ascética e
mística, da alta aventura na qual o ser
humano se engajou a fundo, de corpo e alma, sem esperança de retorno. E
aí, o equilíbrio entre os dois polos se estabeleceu por si só na dura realidade
das lutas seculares entre o homem espiritual e o homem carnal. Os admiráveis
“diretores de consciência”, mestres na “arte das artes”, que foram os Padres
dos desertos de Sceta e da Nítria, cultivando o solo virgem das almas, souberam
discernir e harmonizar, com rara felicidade, as forças construtivas de seu
ideal: de um lado a fé tonificante na liberdade humana, de outro a necessidade
de estaiá-la firmemente sobre a onipotência divina. Abandonado a si mesmo,
joguete dos espíritos maléficos e presa do orgulho que espera os mais fortes, o
“soldado de Cristo” não era para eles mais do que algo sem valor, um feixe de
palha. O cristão militante devia sentir todo o tempo que Deus vela por ele;
para avançar na via estreita, ele não podia passar sem invocar, sem descanso, a
ajuda divina. João Cassiano, num de seus escritos, de um frescor repousante, de
um tato psicológico sem fim, nos lembra de que maneira o venerável abade Moisés
recomendava a todos os irmãos, jovens e velhos, a lançar, qual chamado dentro
da noite, a súplica: Deus in adjutorium meun intende! – demanda que não
é outra coisa do que o dom da perseverança, sem o qual nenhum progresso
espiritual é possível. Ato de humildade consciente, que desmascarava os ardis
do Inimigo que ronda ao redor das almas, como atraído pelo perfume da santidade
florescente. Mas para que o apelo seja ouvido e que a graça seja concedida, é
preciso que essas almas primeiro se recriassem a si mesmas pelo desejo da
perfeição, que elas afirmassem em alta voz sua vontade de luta. Sempre o mesmo
tema humano, em ritmo alternado: “Senhor, eu creio!”, e em seguida: “Ajuda-me
na minha incredulidade!”. Desses contrastes patéticos se tecia a vida do
solitário, que não estava só senão em aparência: atividades vivificantes,
passividades profundas das quais a graça, energia operante da atração divina,
intervém em toques cada vez mais frequentes, cada vez mais prolongados. Quando
São Máximo, sinergista convicto, declara: “O homem possui duas asas para
alcançar o céu: a liberdade e, com ela, a graça”, é preciso saber interpretar
essas palavras audaciosas. Ele próprio a suavizou, especificando que a cada novo
esforço da vontade corresponde uma graça, que é proporcional a esse esforço, e
que a carrega. Longe de suprimir o livre arbítrio, a graça o pressupõe, e
inversamente. Somente assim existe diálogo, troca possível entre Deus e o homem
livre, que traz, preternaturalmente, ao Criador, esse pouco imenso: sua
aquiescência sempre voluntária, renovada sem cessar, reconhecendo em tudo
humildemente toda a fragilidade do presente recebido. E Deus quer, e Deus faz
com que esse grão de cevada cresça sob o sol, que a graça seja multiplicada na
feliz plenitude da natureza, a um tempo criada e incriada. Pois, sem essa
possibilidade latente, a liberdade não passa de uma aparência sedutora, e
depressa o homem deixa de ser uma verdadeira efígie divina.
A ASCESE ORIENTAL E A “GUARDA DO CORPO”
A vida austera, que primeiro prende o olhar do observador, entre os monges
do Oriente[25],
envolve e melhora a dura matéria com que se molda sua santidade. Não um simples
pedra de milha, marco colocado ao longo da via ascendente, mas o próprio corpo
de uma alma em busca da perfeição. A “agonia” heroica das vontades não é senão
a tensão do arco distendido do qual parte a flecha que voa. No lançamento dessa
flecha, a única coisa que conta é o objetivo a ser atingido, o alvo sempre
visado. Mas sem o arco a flecha não partiria. A ascese é um começo, não um fim.
Se a maioria dos chamados à alegria sobrenatural da contemplação-união não
atingiu o cume – e quem poderá sabê-lo com certeza? – se muitos se detiveram no
começo, ou a meio caminho, que importa? Cada um, nas areias áridas da
mortificação, suspirou pelo “lugar de refresco”, o oásis da Paz; cada um voltou
seus olhares nostálgicos ao longe, buscando no horizonte a terra prometida da
Consolação. É como se fosse uma caravana humana em marcha deserto afora.
O espírito carismático irradia através das obras dessa espantosa
literatura: desde a prodigiosa Vita Antonii, verdadeiro modelo, sob
forma hagiográfica, do novo gênero espiritual, até os últimos escritos quase
herméticos da escola Sinaíta. Impregnando com seus eflúvios toda a atmosfera
circundante, esse espírito dos amantes da Contemplação, como um monoideísmo
visionário pré-hesiquiasta, se revela infinitamente rico em sublimações, em
dons inesgotáveis.
Tudo está fundamentado sobre esse princípio afiado, e que já
mostramos: a submissão total do ser sensível à alma inteligente, intuitiva e
purificada. Veremos mais adiante, no que consiste a tripla purificação que essa
submissão exige. Para o momento, basta uma vista d’olhos sobre o conjunto.
Ascese negativa e positiva, renúncia e luta, penas sensíveis e aurora da
alegria sobrenatural: tudo compõe aqui um cativante quadro no qual a humanidade
aparece, erguida sobre um rochedo nu, banhada por uma luz radiosa. O itinerário
do monge se baseia, em resumo, nas três renúncias, “segundo a tradição dos
Padres e a autoridade das Escrituras”. Essas três renúncias, ou perfeições, são
reportadas, em sua ordem ascendente, por João Casssiano.
“A primeira renúncia é exterior: é aquela que nos faz desprezar todas
as riquezas e bens desse mundo. Pela segunda, negamos nossa vida passada,
nossos vícios, nossas paixões do espírito e da carne. A terceira consiste em
retirar nosso espírito das coisas presentes e visíveis, para contemplar
unicamente as coisa do devir e não desejar senão as coisas eternas[26]”.
E, longínqua reminiscência da exegese alegórica Alexandrina, eis a gnose,
apresentada pelo mesmo Cassiano, do mandamento do Eterno a Abrahão: “Deixa teu
país, tua família e a casa de teu pai[27]”.
Essa seria a tripla renúncia: às vaidades do século, à vida engessada devido
aos hábitos naturais e egocêntricos, e por fim, a toda lembrança sensível do
mundo presente. E nosso autor, em simpatia profunda com o ideal místico de sua
época, lembra com insistência a ideia de que tal esquecimento – ou morte das
paixões em Cristo – nos conduz “a contemplar as coisas invisíveis, as únicas
eternas, segundo o apóstolo”. Todo o resto está subordinado a esse objetivo.
A progressão só pode ser lenta. Primeiro, a separação do coração ainda
carnal das coisas que lhe são exteriores; separação ardente que começa com o
desprezo pelo mundo, primeiro sinal, mais ainda incerto, da eleição. É o “foge”
prudente, que precede o “cala-te” e o “fique em paz”, que o completam, na Vita
lendária de Santo Arsênio. Fuga para longe do mundo, do qual disse o Mestre não
ser nem o seu, nem o dos seus, desprezo racional de tudo o que esse mundo
estima e elogia, mas que se dissipa em fumaça para aquele que sabe ver. As
religiões de todos os tempos pregaram a mesma coisa, seja pelo exemplo, seja
pela palavra. Mas a tradição monástica cristã escreveu em letras de fogo o desprezo
pelo mundo no fundo das consciências desapegadas.
O monachos é um solitário por definição, uma homem que
“naturalmente” não tem necessidade de nada, nem de ninguém[28].
Desenraizado de si mesmo e mergulhado nesse novo ambiente, ele vive numa
altitude onde o ar é rarefeito. Daí ele sobe ainda uma longa escarpa que se
perde nas nuvens. E ao pé dessa montanha solitária, a montanha de Sião, está
plantada a Cruz. Essa aceitação da dor, pela aceitação lamentativa do pecado,
constitui a plena reparação desse pecado, por meio do qual a morte penetrou no
mundo a inocência radiosa: a morte do corpo, com a morte da alma, prisioneira
desse corpo. Sobre o fundo cinzento da penitência estende-se um negro véu: a
lembrança da morte. Todos os contemplativos cristãos fizeram do memento mori
seu companheiro silencioso; não como antes os pagãos, o espectro que
adverte nos festins da carne, mas o amigo verdadeiro do desnudamento total, das
mortificações dessa carne condenada a perecer, antes de renascer em glória.
Mas, por esse buraco nas trevas, a luz subitamente reflui no retiro sombrio.
Morrer, para reviver transfigurado! O temor da natureza carnal exorcizada, a recordatio,
que não faz mais do que abrir novos planos no espírito solitário. Se o
pensamento antigo havia proclamado, pela boca do Sócrates de Platão, que a
filosofia nada mais era do que uma “meditação sobre a morte”, isso permaneceu
verdadeiro para a filosofia cristã, intensamente vivida no monaquismo dos primeiros
séculos, e mais além disso. Essa meditação deveria deixar uma marca profunda
nas sensibilidades sublimadas, e daí provém essa “santa tristeza”, que é o
clima natural das almas enclausuradas. Ela nada tem de comum com a melancolia
deprimente da qual os Antigos fizeram um grande pecado, a acídia. A
tristeza natural nasce da não satisfação dos desejos carnais, e possui um gosto
de terra. A outra, a que vem da não satisfação das necessidades espirituais, é
apaziguada, como que interiormente iluminada por essa crença doce e forte: um
Deus morreu para triunfar sobre a morte; sua ressurreição gloriosa, garantia da
nossa, arrancou para sempre o aguilhão maldito. Pois a morte, não nos
esqueçamos, não existe senão em função do pecado que a fez nascer.
A tristeza do verdadeiro cristão se alimenta, sempre e sempre, dessa
fonte. A Escada Santa, de João Clímaco, cujo prestígio e influência
sobre o Oriente Bizantino conhecemos, está imbuída com o pensamento de nosso
fim terrestre. E esse – cujo medo instintivo devemos aprender a vencer – jamais
se separa da penitência: penitência, “restabelecimento de nosso batismo” e
condição primeira da salvação, da salvação de todos pela renúncia e o sofrimento.
É a cinza lançada sobre o braseiro das paixões, para extingui-las. Clímaco a
chama de “uma aflição do espírito pelo sentimento vivo, pela excruciante dor de
nossa dignidade”. Então, a alma pecadora, trespassada pelo arrependimento de
seus pecados, se prosterna e se arranha chorando sua culpa. Dessa consciência
abrasadora da impureza, da baixeza humana, nossos Espirituais fizeram uma
virtude fértil em dons abençoados: a compunção. Trata-se de uma “dor íntima,
que é ao mesmo tempo um doce refresco pela confissão interior que fazemos em
Deus”, dirá Clímaco em sua Escada, cujos primeiros degraus subimos com
ele. Fazendo coro com toda a cristandade antiga, o austero monge Sinaíta se
estende longamente sobre os benefícios dessa disposição penitente. Ele chama a
essa contrição de “aguilhão de outro” (de pungere, picar), que penetra
no coração contrito, na lembrança de todas as nossas iniquidades. Lembrança
sensível, irrigada com o pranto que amolece o solo duro, preparando-o para as
colheitas futuras.
Essas lágrimas são a graça mais pura do coração sedento de perdão, no
qual a dor se espalha, sem jamais se enervar. Primeiro vêm as lágrimas de
tristezas, amargas e raras, depois cada vez mais abundantes, mais e mais
suaves, verdadeiro orvalho celeste, que se transformam – ó milagre – em
lágrimas de alegria, de terno amor espiritual. Então as desejamos, imploramos
por elas, não apenas como um alívio, uma libertação, mas como o próprio sinal
da realização, tão ardentemente aguardada. Pois, num grau elevado da vida
santificada, essa “iluminação pelas lágrimas” constituirá um dom carismático do
Santo Espírito: o dom das lágrimas, chamado por todas as promessas no
Oriente e, mais tarde, seguindo suas pegadas, no Ocidente beneditino[29].
Mas não é possível alcançar a alegria plena, a não ser passando pela via
estreita do sofrimento penitente, do sofrimento-provação atravessado voluntariamente,
alegremente aceito.
A penitência é o grande mastro ao qual estão amarradas todas as velas
desse barco que navega, navio da alma solitária cujas amarras com a terra firme
foram cortadas. E a brisa que o empurra ao largo será chamada alegremente de obediência[30].
Virtude necessária entre todas, pois ela é a própria condição das demais,
virtude exaltada em todas as ordens monacais. Pois seu modelo vivo foi Aquele
“que se fez escravo e que obedeceu até a morte”, como disse o apóstolo dos
gentios.
Em seu estilo ornado de metáforas e de imagens de retórica, João
Clímaco designa a obediência como sendo “uma das duas asas de ouro, sendo a
segunda a retirada do mundo, pelos quais a alma santa se ergue ao Céu”. Outra
definição, mais precisa e seca, notável pela concisão: “Uma vida isenta de
curiosidade”. Ainda: “Um movimento pelo qual agimos sem discernimento”. E, por
meio de sutis observações, o Sinaíta enraizado na tradição ascética de sua
época mostra o quanto essa tradição estava fundamentada psicologicamente. Por
experiência, seus aderentes sabem que, para ser efetiva, uma virtude moral deve
se tornar voluntária, irracional, instintiva, habitual, diríamos mesmo subconsciente.
Aqui, a obediência será dupla: uma em relação aos superiores, que são talvez verdadeiros
mestres dos noviços, mas que não passa de um trabalho preliminar, para atingir
a obediência perfeita na qual se realiza a fusão da vontade humana, mutável por
natureza, com o imutável querer divino.
O cristão sempre penitente, que “viva no mundo como se não existisse”,
tendo aceito livremente a pobreza e o trabalho, tendo feito seu voto de
obediência, esse cristão estará maduro para a ascese positiva. Ele não faz mais
do que começar a ascensão para a vida dita angélica. Essa ascensão se dá por
etapas místicas, que equivalem a despojamentos, a eliminações do sensível, e a
outras tatas iluminações, através da fuga em relação às aparências evanescentes,
em busca da realidade única do Espiritual: o Reino ciosamente guardado pela
espada inflamada do Querubim. É nesse sentido que está orientada toda a via
purgativa do Oriente cristão. Trata-se de uma perspectiva infinita, que tem no
primeiro plano o anfiteatro de uma luta ao mesmo tempo física, moral e
espiritual, cujo troféu é a beatitude. E o primeiro estágio dessa luta se
chamará “justiça corporal”, ou “guarda do corpo”.
A ascética própria do deserto possui um caráter muito particular que a
distingue claramente da Idade Média Ocidental, sobretudo em sua segunda metade
pós-beneditina. Trata-se de uma ascese privativa, em estreita relação
com o objetivo perseguido: a catharsis, que por si própria tende à
impassibilidade. O corpo deve aprender a obedecer a seu mestre, purificando-se,
curado por meio de sua total mortificação. As provas de todos os tipos impostas
aos monachi, ou que eles próprios se auto impunham – a própria
substância da vida penitente e sacrificada – são essencialmente privações:
supressão de todos os desejos naturais, interdição das menores alegrias
normais, não satisfação até das necessidades mais legítimas, como a fome, a
sede, o repouso e o sono. Os Padres eram persuadidos que o corpo vive às
expensas da alma, que languidesce, impotente, na letargia de suas forças mais
altas, por estar submetida a carne concupiscente. Mortificando a carne,
devolve-se o vigor à alma; despertada num sobressalto, depois renascendo
lentamente, essa por fim refloresce e atrai, pouco a pouco, toda a vida, toda a
seiva para si.
Mas, acima de tudo, a circuncisão dos sentidos é salutar para o
próprio ser inferior. Por meio de provas reiteradas e sabiamente dosadas, que
conduzem à apatheia corporal, molda-se uma nova matéria, menos densa e
menos opaca. Eis o sentido da mortificação cristã, oculto aos profanos, que
aspira a constituir um ganho real, um crescimento, ao invés de uma deficiência,
ainda que aparente. Fazer sofrer a carne, recalcitrante e ainda assim
obediente; aliviá-la, liberá-la de si mesma, tudo realizado com a esperança, mal
confessada, de uma transfiguração próxima, de um rompimento com o pesado
passado da antiga condenação[31].
Pois, como é possível guardar o vinho novo em odres velhos? Flexível como um
músculo, a vontade se prepara para matar o escravo rebelde, esperando que o
equilíbrio rompido se restabeleça.
O instinto, tanto quanto a paixão, não passam de estigmas do pecado,
ou seja, um estado que não deve existir. Trata-se de uma teimosia, de uma
fraqueza, inerente apenas à natureza decaída. Às imperiosas solicitações dessa
natureza deformada e depravada, é preciso opor uma recusa categórica, tão
completa quanto possível. Jejuns e abstinências, dormir sobre a terra dura, vigílias,
trabalhos noturnos e toda espécie de fadigas, sem falar nos incômodos diários,
na queimação do sol, nas intempéries, nas picadas de insetos, etc. Tudo isso
sistematicamente levado ao limite extremo da resistência. Uma disciplina, no verdadeiro
sentido do termo, e que se coloca em acréscimo à pobreza apostólica.
Indiferente em si mesma, essa pobreza parece salutar como negação de todos os
falsos valores, adorados pelo mundo que jaz nas trevas. “Seguir nu ao Cristo
nu”, porque Ele é o modelo perfeito do qual não se pode desviar o olhar, porque
Ele nos deu o exemplo e carregou a Cruz, porque Ele chama e atrai para Si os
eleitos, para conduzi-los à vida perdurável.
Tal “imitação”, que jamais se detém na figura humana do Redentor,
quase desconhece a terna exaltação da Idade Média bernardina e franciscana, que
criou o culto da santa Humanidade do Cristo de carne. Da mesma forma, a
pobreza-libertação não possui o atrativo da “esposa-irmã”, tão querida pelo
seráfico Francisco. Aqui não existe nada dessa volúpia espiritual, encurralada
e severamente reprimida em toda parte onde se refugie. E é isso que confere à
ascese oriental – sobretudo a Bizantina – esse “algo” abstrato e, à primeira
vista, sobre-humano, no qual toda música terrestre expira, da qual todo sorriso
parece banido. Isso é ainda mais verdadeiro no monaquismo tardio, propriamente
Bizantino, com raras e notáveis exceções anteriores. Acrescentemos que é na
antiga Rússia que encontramos frequentemente um tipo mais humano, mais
evangélico, de santidade: um São Sérgio de Radoneje, um São Serafim de Sarov,
luminosos exemplos dentre muitos outros. De resto, trata-se de uma santidade
como que desencarnada, com pouca piedade afetiva e nenhuma sede de reparação:
nem feridas de amor, nem corações milagrosamente trespassados, mas um martírio
voluntário, acre e rugoso, a serviço de uma Felicidade muito mais alta.
O Oriente Grego sempre ignorou o culto da dor pela dor, esse “dolorismo”
cujos excessos acabaram por permitir a infiltração de um elemento perturbador
na espiritualidade medieval em seu declínio. Aqui, não existe nenhum gosto
pelas flagelações e pelo sangue, tampouco prática alguma de sofrimentos
supostamente reparadores[32],
nenhuma ideia de obras superrogatórias. E nenhuma devoção sensível à Paixão – salvo à
Cruz nua, assim como à agonia do Calvário, objeto de austeras meditações, mais
do que de adorações apaixonadas. Para o verdadeiro asceta, revivendo em si
mesmo as diferentes fases da Vita Christi, tudo aí possui um sentido
“pneumático”. A humanidade sofredora do Mestre não pode ser separada de sua
divindade triunfante, pois nessa humanidade já transparece a glória. Da mesma
forma, a purificação do humano pela ascese não deve jamais perder de vista sua
glorificação futura na união com o divino.
PECADOS CAPITAIS
A “guarda do corpo”, pela qual se inicia o “jugo do Senhor” possui,
como vimos, também ela, uma base doutrinal. Evagro e Máximo o repetiram
suficientemente: o mal reside no uso abusivo e irracional das coisas, sendo
antes de tudo um consentimento ao prazer. Daí vem a recusa em se deixar prender
à atração, ao visgo dos sentidos. Em seguida, vem a ablação de todos os desejos
não dirigidos a Deus. Numa palavra: “a crucificação do velho Adão”. O ferro em
brasa é posto sobre a chaga, para exterminar dos vermes que corroem o fundo,
infectando a alma superior.
A antiguidade cristã, tributária do De Anima de Aristóteles, e
de sua Ética a Nicômaco, estabeleceu os fundamentos de uma moral e de
uma cultura espiritual únicas no gênero: um pragmatismo cuja ação depende de
uma consciência intelectual perfeitamente lúcida. Adesão da vontade, poder apetente,
essa moral estritamente religiosa é comandada por uma concepção ideal dos fins
humanos. O Cristianismo Patrístico herdou, em larga medida, essa moral
idealista antiga, ao mesmo tempo em que lhe apunha seu selo, único e indelével.
Nós o vimos na teoria das paixões de Máximo, a qual não passa de uma
especificação das concepções Alexandrinas e Capadócias. Não nos esqueçamos: por
trás dos Bizantinos espirituais se alinham sempre Clemente de Alexandria, o
grande Orígenes, os dois Gregório e, mais tarde, o pseudo-Dioinísio. Toda essa
teoria foi elaborada sob seus auspícios, transposta para a vida ativa, desde o
fim do século IV: pelo criador da ética dos monges, Evagro o Pôntico, seguido
de perto por São Nilo, chamado O Sinaíta, e por outros Espirituais da época.
A classificação dos oito pecados de Evagro é a pedra angular de todo o
edifício[33].
Estabelecido no Antirrheticos – conhecido em latim como Practicos –
o esquema dos oito pecados passou, por intermédio de Cassiano, para o Ocidente
medieval que assimilou e retocou essa classificação[34].
Evagro, embora origenista, representa a esse respeito a concepção tradicional
da Igreja Grega[35].
Ele começa por dividir o conjunto dos vícios, ou logismoi, em pecados de
intenção e pecados de ação. Os primeiros são a aporta de entrada dos segundos.
Todos se encontram repartidos em sequência, com uma precisão e um senso
psicológico que nada deixam a desejar, de acordo com as três principais funções
da alma – de tripartito animae modo, segundo Cassiano – a epithymia,
o thymos e o logistikon. Verdadeiros desvios das forças psíquicas
naturais, que em si mesmas são indiferentes, esses vícios são arrumados em três
grupos, que se opõem às quatro virtudes cardinais, a temperança, a coragem, a
sabedoria e a justiça. Clemente já colocara essas últimas no polo oposto das
paixões, cujo número foi também por ele emprestado dos Estoicos: o desejo, a
concupiscência, o medo e a dor. A classificação antinômica de Evagro é mais
completa, senão exaustiva. Somente um grande conhecedor da natureza humana,
perscrutando suas taras mais secretas, poderia descobrir, “inventar”, no
sentido exato do termo, esse quadro graduado das octo vitia: gula,
luxúria, avareza, tristeza, ira, acídia, vaidade, soberba. Com pequenas
variações, esses serão os próprios círculos infernais, cada vez mais profundos,
do Inferno de Dante e, mais claramente designados ainda, as expiações
ascendentes ao monte do Purgatório.
O primeiro gruo abarca, com os apetites mais grosseiros – gulodice,
luxúria e avareza ou cupidez – toda a concupiscência. Esse é o animal que é
preciso domar, sem mais. O segundo grupo, que oferece uma resistência mais
tenaz, compreende a tristeza e a acídia – essa última, representada como a
preguiça espiritual, como um espécie de atonia, e por fim a cólera, a mais
temível e recalcitrante dentre as forças do thymos. Essas são, propriamente
falando, as verdadeiras paixões ou falhas da alma, ainda ligada à natureza animal
e domesticadas por ela. Indícios irrecusáveis de nossa queda e afastamento de
Deus. São Máximo dirá das primeiras que elas se caracterizam por uma falta (de
virtude), enquanto que as segundas são caracterizadas por um excesso, a que ele
chama de hyperbolé. O mesmo faz, bem antes dele, São Nilo, tão próximo
de
Evagro.
A vaidade e a soberba, centradas no próprio coração da alma, provém de
outro domínio: elas representam a desorientação, não dos sentidos ou do
temperamento – as falsas sensualidade e sensibilidade – mas antes daquilo que
os Gregos consideravam como o verdadeiro homem: de seu espírito. Nessas
perversões, as mais perigosas, como o orgulho, o fundo mesmo da alma é
cooptado, e sua essência, corroída. Ora, todas as paixões espirituais são
geradas pela ignorância do verdadeiro bem, mostrando, assim, sua origem
intelectual.
A PURIFICAÇÃO PELAS VIRTUDES
Inspirado pelo ideal contemplativo de seu tempo e de seu estado, Evagro
preconiza remédios eficazes contra todos esses desregramentos. São eles: de um
lado, o trabalho, o jejum e a solidão, e, de outro, a paciência e as boas obras.
Bem acima, para reeducar a parte racional, estão a meditação e a prece. A
melhor estratégia para vencer, sempre e sempre, consiste em tomar a ofensiva.
Não se trata de extirpar os vícios penosamente, ou se defender contra eles, um
de cada vez. Isso é insuficiente e se mostrou inoperante, pois se trata de
abater, não entidades, mas poderes vivos, dinâmicos, os demônios dos vícios, logismoi
daimonioi. É preciso exorcizar o mal vivendo o bem. É por isso que o
autor do Antirrheticos desenrola, face aos seus “oito malditos”, uma
guirlanda florida de virtudes. Virtudes puramente cristãs, ou a tal ponto
cristianizadas que chegaram a adquiri uma figura nova[36].
Ao mesmo tempo, ele jamais esquece o sábio princípio Stagirita: “A
virtude se cria pelo exercício”. Esse princípio foi aplicado por toda a
antiguidade pensante, na sua melhor forma.
O encadeamento das virtudes, que se colocam como os dedos de uma mão com
articulações flexíveis, é, entretanto, menos rigorosa do que o dos vícios, que
foi modificado por Nilo e Cassiano, os quais, em seus tratados, reproduziram as
tabelas de Evagro apenas as explicitando. Quanto às aretai, os
diferentes autores as classificam com mais liberdade, mas sempre seguindo o
mesmo método clássico. Cada virtude mostra sua face, exclusivamente sua, e cada
uma delas é como que duplicada interiormente por uma virtude interior que a
engrandece e eleva. Também aqui parece se verificar plenamente a sinergia dos
Espirituais: a cada esforço – conquista humana – se acrescenta, reforçando-a e
enaltecendo-a, uma graça correspondente. Resulta daí às vezes uma aparente
confusão. Assim é que em Evagro, e mais ainda em Máximo ou mesmo em Clímaco,
fala-se tanto de pistis (fé) e de agapè (amor), como sendo
virtudes naturais, como elas podem ser isoladas à parte, coroadas com a mesma
auréola de luz. Pois, como declara o autor da Escada, em seu Degrau
XXX, a fé e a caridade não são, junto com a esperança, senão “um mesmo
esplendor e uma mesma claridade”. Isso vale mesmo para essa vitória “prática”
definitiva que constitui a impassibilidade, porque existem dois tipos de apatheia,
a adquirida e a infusa, sendo essa última uma perfeição inacessível aos nossos
poderes naturais. Mas tudo o que é adquirido só pode sê-lo em função daquilo
que é infundido. O próprio fundamento das primeiras virtudes, que formam também
uma escada, a escada do paraíso, é a fé, a verdadeira base de toda vida
santa. Com efeito, embora reinando sobre suas duas irmãs na constelação das
virtudes teologais, a fé ocupa seu lugar como iniciadora, sem dúvida para
deixar bem clara a origem mística de toda a linhagem que dela descende. Ela é a
raiz invisível da planta visível, com suas mil flores desabrochando. Os
Alexandrinos chamavam a fé de “mãe das virtudes”, e sabemos da importância
excepcional que ela tem no sistema de Clemente, no qual a gnose não eclode, a
menos que nasça da fé.
O moralista-mistagogo Clemente, para quem a ciência é divina, fazia
nascer dessa fé, que para o cristão é sempre penitente, o temor salutar,
“começo de toda sabedoria”, conforme afirma a Escritura. E do temor decorreriam
para ele a esperança, a continência e a paciência que, desenvolvendo-se, nos
conduzem diretamente à caridade[37].
Evagro, que segue a grande linha Alexandrina, introduz ainda, como uma última
virtude, derivada das demais e que as completa, a impassibilidade, ou apatheia,
que, aliás, permanece subentendida em Clemente. A “santa indiferença” será o
objetivo da ascética positiva. Essa ideia foi recolocada à luz por Máximo, fiel
à espiritualidade de Evagro. Para esse último, a própria caridade procede da askétikon.
Quanto ao santo Confessor, ele traça assim o itinerário do asceta que entrou na
via da perfeição: “Aquele que crê no Senhor, crê no castigo; quem crê no
castigo, domina as paixões; quem domina suas paixões, suporta as aflições; quem
suporta as aflições, tem esperança em Deus; essa esperança irá separá-lo de
toda afeição terrestre; separado, o espírito poderá adquirir a caridade por
Deus[38]”. Aqui, todo temor expira nos umbrais do amor.
Diádoco de Foticéia indica o mesmo caminho de perfeição em sua Centúria
(XVI, 117).
A caridade, ou agapè, coroamento da vida pragmática e da vida
teórica, é precedida pela phronesis (inteligência) e pela enkrateia
(“poder”). Difícil de definir, essa última representava para os Estoicos o
perfeito domínio de si, virtude muito apreciada pelos sábios da Antiguidade.
Fílon a conhecia e praticava. Clemente
de Alexandria a adotou e batizou-a. Para ele, assim como para Orígenes, a enkrateia
é a continência-castidade, que tem por objeto a “fuga aos prazeres”. Ao mesmo
tempo, essa virtude será o fundamento da gnose de Evagro, seu panegírico
declarado. Ele não separava a enkrateia da agapè, pois, sem a
caridade, dizia, “a continência não passaria das virgens tolas, excluídas da
câmara nupcial por faltar azeite às suas lâmpadas”. São Máximo muito a prezava,
e a entendia sempre como Evagro, ou seja, intimamente ligada com a caridade.
Para Clímaco, continência e pureza são uma e a mesma coisa, pois o “templo da
alma” não poderia ser edificado senão sobre as ruínas da “morada da carne”. No
que concerne à phronesis, seu papel é o de forçar as potências da alma a
agir racionalmente; nesse sentido, como virtude da vida prática ou ativa, ela
prepara o “caminho da sabedoria” ou sophia, que “une a Deus”, segundo o
Confessor. Voltaremos a isso adiante.
Também a mansidão, a doçura, é inseparável da caridade, e serve de
freio a toda violência, sendo ainda ela que gera a sabedoria, segundo Evagro.
Para Clímaco, essa domadora da ira é a “porta da caridade”. Ela consiste em
“suportar com santa indiferença as perturbações causadas pelo próximo, e em
orar por ele”. Assim, a doçura se aproxima tanto da impassibilidade e, de mais
perto ainda, da paciência, sua fiel seguidora. Ambas são às vezes assimiladas
às palmas dos mártires. Esse nobre cortejo segue sempre, em harmonia cada vez
mais perfeita.
O mesmo Clímaco, na sua linguagem sempre florida, declara: “Assim como
a aurora precede a luz do sol, da mesma forma a doçura precede a sublime
humildade”. E é também à humildade que ele aplica o epíteto mais elevado para
si e para os seus, o de “exterminadora de todas as paixões”. Com efeito, é por
meio da humildade que é abatida a maior e mais terrível paixão, que se agarra à
alma por inteiro e que a vicia irremediavelmente: o orgulho. Seria, a bem
dizer, mais justo colocar, na raiz de todas as virtudes pragmáticas, ao lado da
fé e dela nascendo, por ela alimentada, essa beleza – a humildade –, a um tempo
senhora e servidora. Pois somente a humildade é cristã em seu estado nativo,
pura e unicamente cristã, estranha e irredutível ao espírito pagão, que jamais
se prosterna para orar. Junto com o escândalo da Cruz, a humildade seguirá
sendo o enigma impacientemente sofrido pelo Gentios. Não é ela a mais pura
pérola dos Evangelhos? O Cristianismo da História a encarnou num símbolo de maternidade
sobre-humana único: exaltando Maria, fazendo dela a “serva do Senhor”, imagem
viva dessa virtude virgem, rainha glorificada por todos os santos, planando
acima das milícias celestes, adorada pelos coros dos Querubins e dos Serafins.
Tudo já se disse, desde longínquos tempos, sobre a humilitas, sobre seu
papel na realidade e na poesia cristã. Nossos Espirituais lhe acrescentaram
ainda, como corolário, o sofrimento purificador e a humilhação voluntária, essa
última às vezes exagerada nas suas expressões, às vezes sublime. É aí que a
piedade menos expansiva e suave do Oriente terá sua revanche. Pois, não nos
esqueçamos, foi ele que criou a lenda de Santo Alexis, a partir de fontes
distantes e com diversas ramificações. Foi ele ainda que lançou através do
mundo a turba dos simples de espíritos, os “loucos” voluntários de Deus. Talvez
fosse preciso distinguir aqui, como somos obrigados a fazer na iconografia,
entre o hierático Bizâncio, de um lado, e de outro o próprio Oriente, com sua
alma patética mais atormentada e acessível a todas as santas loucuras.
Parece que, para os Gregos, enquanto raça espiritual, a humildade era
menos o sentimento esmagador ou exaltador do vazio do homem, do que aquele do
abismo que separa o desejo de Deus, Dele mesmo; e, simultaneamente, a aguda
consciência, quase intolerável em sua vertigem, de ser, mesmo assim, vaso de
eleição. Um sentimento e um contraponto, que, nos temperamentos ardentes e
líricos, como em Macário do Egito ou, mais próximo de nós, em Simeão o Novo
Teólogo, provoca momentaneamente lesões profundas, mas que, por outro lado,
empresta à humildade Oriental acentos nunca ouvidos, sedentos da dolorosa
contrição ou vibrantes de gratidão apaixonada. O coração místico derrama aí
seus aromas mais preciosos, que jamais se evaporam, os mesmos que Maria
Madalena derramou nos pés do Bem-Amado, numa hora única da qual se falou por
todo o mundo.
Humildade sempre molhada em lágrimas, humildade que lava a alma das
paixões que a mancham. Evagro e Máximo, ambos afirmaram: a humildade é libertadora,
porque é catártica, essencialmente. Ora, sabemos que a purificação que torna
simples o ser (o “sejam como as crianças” de Jesus será sempre compreendido
dessa maneira pelos nossos místicos), e, antes de tudo a separação perfeita do
coração, convertido a Deus.
Assim entendidas, a pureza e a humildade são desde logo as primícias
da sabedoria-discernimento. Clímaco, que tanto louva essa virtude, tanto moral
como intelectual, a chama de filha da humildade, que ele compara à “mãe de
todas as fontes”. O discernimento é colocado por ele no alto de sua escada
santa, no vigésimo-quinto degrau (num total de trinta degraus). Para ele, assim
como para todos os demais Espirituais, ela já constitui uma graça: a infusão
primeira do Espírito Santo, “uma luz que ilumina a alma, desde que se dissipam
as nuvens das paixões”, pois ela permite reconhecer com certeza a vontade de
Deus. Dom de discernimento dos espíritos, visão intuitiva das demais almas, sentido
delicado da medida na austeridade e da verdade em meio aos erros e às quimeras,
é nisso que consiste o Discernimento. Com essa virtude, de per si sobrenatural,
só são gratificados aqueles que a recebem com toda humildade, que não abusarão
dela jamais e que não extrairão dela nenhuma vanglória. Pois aqui já não é o
homem que julga e decide, mas, através dele, somente Deus. Trata-se assim de um
dos mais altos presentes do Espírito Santo à alma, o mais belo florão – com
exceção da caridade – da coroa que cinge a fronte do atleta de Cristo. Também
para Cassiano, que veio primeiro aqui. No exórdio da Segunda Conferência dos
Padres do Deserto (cap. III), o abade Moisés coloca o discernimento em
lugar de honra, sem hesitar. Ilustrando seu elogio com muitos paradigmas, com
muitos exemplos voltados para o piedoso auditório, o venerável ancião lembra
que Santo Antônio comparava o discernimento ao olho, “lâmpada do corpo”, de que
falava Nosso Senhor. E o discernimento carismático se torna uma espécie de
eurritmia, harmonizando todo o conjunto das virtudes.
Entre os grandes dialéticos, será a phronesis a virtude
conhecedora por excelência. Ela alcança até a gnose de Deus. Para Máximo, ela
será a inteligência prática que franqueia o caminho à inteligência teórica. Diríamos
que ela marca a passagem da praktikè para a physikè theoria, que
consiste já na purificação do espírito. A insistência com que Evagro aproxima
da phronesis da sophia parece ser significativa: uma, “contempla,
sem palavras, os santos poderes intelectuais”, e a outra “os manifesta em
palavras[39]”.
Aqui, a phronesis que prepara o caminho para a sabedoria é
praticamente equivalente à gnose: de um lado, o conhecimento não expresso (os
Latinos diriam em potência), de outro, a interpretação explicitada, ou atualização.
Se o pensamento dos dois autores não concorda sobre esse ponto, pouco importa
aos nossos olhos, pois se trata de nuances individuais, nada além disso. A
linha espiritual geral permanece a mesma: ela vai da vida ativa à vida
contemplativa ou cognitiva, sendo que toda ascese se encontra ordenada em relação
à mística dogmática que se realiza na experiência. A phronesis aparece
aqui como um marco de fronteira que pertence aos dois caminhos que, por meio
dela, se unem. Pois aqui toda fronteira permanece imóvel. A natureza, reformada
pela cultura ascética, ser torna desde logo uma super natureza, formada pelo
Espírito que a santifica. A bios praktikos (a via ascética) se fecha por
inteiro no espaço ideal, que vai da fé à apatheia e culmina no agapè,
espaço limitado no qual se movem as almas dos que progridem, esse perfeitos do
amanhã.
Na ordem mística, a virtude deificante é o amor Dei ou agapè:
ele é todo bondade, todo beleza, todo dileção. Não falaremos dele senão na
medida em que alcancemos o cume da perfeição. Pois o agapè é uma fonte
superabundante. É dela que jorra esse amor ao próximo que hoje em dia tomou
para si, e apenas para si, o nome de caridade, e que se inclina, numa
misericórdia fraternal, sobre a angústia dos corações e dos corpos; para curar,
para levantar, para consolar. Na realidade cotidiana, ele precede e deve
preceder o desabrochar do outro bem – sempre carismático –, mas sempre pressupondo-o
e derivando dele. O segundo mandamento, “semelhante ao primeiro”, e incluído
nele, não é o sacrifício, mas o dom de uma pessoa viva a uma outra. Não o
conceberam e desejaram assim os Padres? Muitos relatos, extraídos de Rufino e
de Paládio, e também diversos Apophtegmata anônimos, muitas hagiografias
parecem atestar isso, e todos os nossos Espirituais, sem exceção, se esforçaram
por inculcá-lo nas almas. Porém, dada natureza e a orientação dessa vida, mesmo
cenobítica, sem falar no eremitismo intransigente que cortava toda ligação
afetiva, que proibia toda simpatia pessoal, a caridade permaneceu como sendo um
dever distante, quase abstrato. Ela se exercia principalmente na prece e em
algumas obras piedosas, como a cura dos enfermos e a hospitalidade. A emoção, a
piedade do coração, e ainda menos o abandono, quase não aparecem aí, pois todo
impulso vivo era refreado por princípio. Um amor como que magro, sem ternura,
porque desafiava as seduções do sensível: um amor espiritual, pois o monge se
esforçava por ser mais espírito do que coração[40].
Eis porque a caridade traz seus frutos mais maduros e mais abundantes das
preces de intercessão. Em sua espera, o amor fraternal se assemelha mais a uma
pálida flor de estufa do que aos lírios perfumados dos campos da Galileia,
renascidos nos vales azuis da Umbria, sob o céu de São Francisco. O primeiro
amor, o amor Dei, parece absorver, em seu esplendor único, todas as
forças vitais, todas as virtualidades e volições do ser humano.
Feitas para a santificação solitária, essas virtudes, mais angélicas
do que apostólicas, permanecem, socialmente falando, pouco fecundas: passivas e
estáticas, não ativas, elas possuem uma irradiação apenas interior. A
espiritualidade oriental, repetimos, está devotada à contemplação.
Transformadas em macarismos, ou beatitudes evangélicas misticamente
interpretadas – como o era o Pater na Idade Média – essas virtudes que
hoje nos parecem plantas estéreis, mudam subitamente de aspecto[41].
De repente elas se animam, brilham com uma intensidade que não se pode velar,
retomam toda a sua cor, todo o calor que antes lhes faltava. E a vida secreta
da nova alma brota de todos os lados. Pobreza espiritual, paciência na aflição,
contrição banhada em lágrimas, lembrança do exílio terrestre, sede insaciável
de uma justiça que não é desse mundo, resistência do coração, humildemente
heroico, na perseguição, amor apenas à verdade e a mais nada. E, no horizonte,
uma vez apaziguados todos os desejos, aponta a consolação derradeira das
alegrias seráficas. Rosário desmontado, do qual se destaca a conta mais
preciosa, a pérola de grande valor do Reino, a visão de Deus: “Felizes os de
coração puro, porque verão a Deus[42]”.
Na nostalgia do coração imaculado que só vê a Deus, que só a Ele se
une, está condensado todo o pathos da espiritualidade, como que
desencarnada a nossos olhos. E é aqui que percebemos diretamente, ao cabo de
tão dura luta, como se dá a sublimação de toda sensibilidade. Pois existe
sublimação, vale dizer, transferência das energias a um plano superior, da
quintessência das energias emotivas, reduzidas ao seu puro extrato. Nossos
próprios Espirituais as consideravam como a pneumatização dos sentidos,
sentidos novos, tornados verdadeiras antenas capazes de captar os invisibilia.
O “dom das lágrimas” é a mais comovente revelação disso. Uma compensação, no
sentido próprio do termo, na dissolução de todo sensível pelo desejo amoroso,
que aponta apenas para o divino. é o anúncio da transfiguração do carnal na alma:
carnal que, um dia, deverá amadurecer como espírito puro. Aquilo que deve ser
salvo do naufrágio da paixão condenada, dos próprios impulsos passionais, sê-lo-á
assim. Numerosos místicos do Oriente o experimentaram em si mesmos: Macário o
Egípcio, Isaac de Nínive, mais tarde Simeão o Novo Teólogo – esse gênio da
oração, prosternado aos pés do Cristo de glória, banhando-os com suas santas
lágrimas. E São Máximo reunirá numa breve e feliz fórmula essa “conversão” da
psique, da qual dirá: “A alma perfeita é aquela cuja pathetikè dynamis
(todas as forças das paixões) está voltada para Deus” (De Charit, III,
93). Esse é o milagre da vontade fecundada pela graça. Assim são reabilitadas e
honradas essas potências dinâmicas que são as paixões. Malignas, na medida em
que consistem em movimentos contrários à “razão”, essas forças naturais da
psique entram em ordem quando se “permanecem impassíveis sob o choque das
coisas e dos pensamentos das coisas”. Para experimentar a santa embriaguez, é
preciso, portanto, ser apathos. A partir daí, tudo se torna ordenado,
submetido à razão mestra, a qual é, em si mesma suprarracional. O concupiscente
passa a ser regido pela perfeita continência, o irascível se liga ao desejo único
do Bem supremo. Esse é o termo ideal de toda a vida ativa: o praktikos
(asceta) se torna theoretikos (contemplativo), pois nele as virtudes do
corpo se submetem às “virtudes da alma” (São Nilo). O alto patamar da apatheia
é alcançado com a absorção de todo inferior pelo superior. Então se realiza a
conversão última, nos umbrais da teoria: o coração de carne é
purificado, ele morre para toda volúpia e todo tormento, ele se fecha aos
apelos enganadores do eu, ele se abre, como um cálice, e se oferece inteiramente
a Deus. Ao Deus que vive, invisível aos cegos, inaudível aos surdos, no
tabernáculo de nosso espírito. Ali está o repouso, pois Deus é a Paz, a
hesíquia, como repete e ecoa por todas as partes o Oriente contemplativo.
Nascido para amar e conhecer, nascido para viver eternamente, o
cristão que alcança a perfeição sobrepassando toda “justiça corporal”, o
vencedor das paixões terrestres, se abandona à catarse derradeira que,
purificando-o, o ilumina: ele se abandona à oração, cada vez mais pura em si
mesma, e que eleva ao céu da “visão mental”.
Pela prece, esse “coreuta do coração das virtudes” (Macário), pela
oração mental, o espírito conhece, ama e vê, vale dizer, ele se torna ele
mesmo, se reencontra e se realiza plenamente, como o Deus que participa da
economia divina, coerdeiro da glória do Filho.
OS GRAUS DA ORAÇÃO E A “GUARDA DO ESPÍRITO”
O CONHECIMENTO PNEUMÁTICO
A oração é a base e ao mesmo tempo o cume da coluna da ascese; ela é o
alfa e o ômega de toda vida militante e também triunfante, a lâmpada votiva da
alma enclausurada, a lâmpada nupcial cujo azeite jamais se esgota. Ela possui
tantos nomes como aspectos, modalidades e variedades[43].
Sem falar da Opus Dei propriamente dita – liturgia e ofícios – a devoção
privada, a primeira a ter perfumado as solidões do Egito e da Palestina,
constitui por si só um mundo à parte, um mundo no qual todas as aspirações
desabrocham, todas as nostalgias se acalmam, todas as revelações dão
anunciadas. E na prece pura, a um tempo cume e abismo, germinará a flor do
grande silêncio da contemplação, o consummatum est do espírito
deificado.
O Oriente monástico, mais metafísico do que psicológico, jamais levou
tão longe a análise introspectiva dos estados de oração como o Ocidente latino
que, depois de tê-la limitado a princípio, acabou por ultrapassá-lo pela
variedade de seu tesouro, indefinidamente acrescentado. Mas algumas formas
superiores da prece-contemplação foram escavadas pelos Gregos até a raiz do ser
orante.
Uma primeira classificação foi rascunhada por Orígenes: classificação
que foi retomada, completada, sobretudo aprofundada, pelas gerações seguintes,
aquelas dos grandes ascetas dos séculos IV ao VIII[44].
Esses ensaios, tenham sido coordenados (São Nilo), ou mais frequentemente
dispersados por diversos textos “espirituais”, nos permitem penetrar até o
coração da doutrina da oração perfeita. Toda prece, é verdade, consiste numa
criação, pois “onde está o Espírito, aí está a liberdade”. Mas a própria
inspiração espontânea, necessita, para que seus frutos amadureçam, de uma
forma, de uma regra voluntariamente aceita. Assim, também a prece é em si uma
arte, uma arte sacra, antes de ser a graça fulgurante que curva e esmaga a
alma. O abade Henri Brémond nos lembra, em seu livro sobre a Prece, o quanto o
pedido dos apóstolos a Jesus, “ensina-nos a orar”, é natural à alma afastada de
Deus. Tudo se resume em aprender a orar. Quanto ao monge, especificamente, é
preciso que ele saiba canalizar, recolhendo-se, seu pensamento orante; e, para
ser bem sucedido, ele deve seguir os conselhos de seus anciãos. Existiu um
cânone da proseuchè (prece), assim como houve um cânone da ascese, uma
técnica elaborada com cuidado, e que, longe de dificultar a expansão do
espírito, a sustenta, dirigindo seu impulso com precisão segura. Essa técnica,
que todas as religiões praticaram, algumas mais, outras menos, pouco entravou o
voo de nossos Espirituais, da mesma forma como as regras da prosódia, em todas
as épocas, não entravou o voo dos poetas. Sem dúvida, o gênio sempre acaba por
transbordar do molde, ou rompê-lo. Mas ele próprio não se afirma senão depois
de ser testado e submetido, previamente, à lei das progressões espirituais
editadas para a massa.
Em primeiro lugar, impõe-se uma estrita disciplina de ordem geral. O
excelente Cassiano, refletindo Evagro o Pôntico e Rufino, seus mestres, indica
o sentido e o alcance da discriminação que existe entre esses termos: “Três
coisas tornam consistente o espírito dissipado: as vigílias, a meditação e a
prece” (Confer., I, 14). Poderíamos especificar: vigiar, velar, para
meditar e orar. A meditação e a prece são interdependentes, mas a primeira
ainda não possui o caráter específico que lhe será atribuído pela Idade Média
latina[45].
Com seus temas alternados, e mesmo estreitamente entrelaçados, de contrição e
de recordatio mortis, a oração se elevará até perscrutar “em espírito”
as altas lições da Vita Christi, que, para o asceta, deverá se
transformar em Vita in Christo, em Christo zoè. Essa consistirá
numa verdadeira iniciação mística.
A proseuchè se divide inicialmente em prece vocal exterior e
prece mental, de longe a mais importante, embora muitas vezes derive da
primeira. A forma e o tipo da prece vocal, é a salmodia, ou leitura dos Salmos,
não apenas aquela pública ou das horas canônicas, mas a privada, no interior de
cada cela. O monaquismo beneditino a receberá como herança, sob uma forma um
pouco diferente. Já imposta aos semi-cenobitas de Pacômio como exercício de
treinamento, a lectio divina (anagnosis) se tornará a ocupação
por excelência de todas as comunidades monásticas do Oriente Ortodoxo[46].
Essa é verdadeiramente a louvação
perpétua do monge bizantino. São Nilo, chamado de Sinaíta, declarava, no seu De
Oratione (meados do século IV), inspirado pelo tratado de mesmo nome de
Orígenes: “A palavra das fortifica a alma e expulsa os demônios”. O mesmo autor
acrescenta, entretanto, que essa não passa ainda da “imagem da sabedoria
multiforme”. Alimento da alma penitente, a salmodia será assim, de preferência,
a prece dos iniciantes[47].
Antes de tudo, trata-se de uma armadura espiritual, do próprio escudo da fé.
A prece apresenta divisões tanto na largura como na profundidade. Já
Orígenes distinguia entre a proseuchè propriamente dita e a deèsis,
súplica de socorro de bens espirituais. Evagro, que o seguiu de perto,
acrescenta a enteuxis, ou prece de intercessão para a salvação de
outrem. Cassiano, apoiando-se em São Paulo, estabelecerá quatro tipos de
orações, “todas necessárias a todos”: a súplica, a oração, a intercessão e a
ação de graças. A primeira não é mais do que um grito de arrependimento e dor;
a segundo, uma oferenda, um voto, euchè; a terceira, uma prece pela
salvação do próximo; a quarta, finalmente, “um olhar sobre o futuro, sobre a
recompensa infinita”, prelúdio do arrebatamento que nenhuma linguagem humana
pode traduzir (Confer., IX, 9), pois existe ainda um estado mais
sublime, acima desse quarto, no qual “a alma se funde em santa dileção” e
contempla as coisas divinas. Da mesma forma, Clímaco falará por último no
“arrebatamento do espírito em Deus”, que lembra o rapto paulino.
Antes de “ouvir o que nenhum ouvido ouviu, de ver o que nenhum olho
viu”, é preciso subir pela escada santa, de baixo até em cima, passar por todas
as etapas da postulatio e da observatio, domínio reservado no
qual se exercitam os que progridem e se movem à vontade aqueles que alcançaram
o final. Para São Máximo, existe uma perfeição de prece para os praktikoi,
outra para os theoretikoi: a primeira tem como signo a imperturbabilidade
do espírito, ligada a esperança, enquanto a segundo se expressa no êxtase do
amor (De Carit., II, 6). Os estados místicos próprios são sugeridos,
mais do que analisados, na literatura espiritual, na qual os exageros líricos
são raros e ciosamente vigiados.
Eis aqui algumas definições excelentes da oração, recolhidas de
diferentes autores. São Nilo a chama de “comércio do espírito com Deus”, e,
mais nobremente ainda, com todos os Padres: “uma elevação da alma a Deus[48]”.
Para João Clímaco, ela é “um impulso do coração que se renova sem cessar e
jamais termina”; ou ainda “uma santa familiaridade e uma união sagrada entre o
homem e Deus” (Grad., XXVIII). De São Máximo recolhemos essa sentença em
dois tempos: “Quem ama a Deus com um amor sincero, ora sem se distrair; quem
ora sem se distrair, ama a Deus com um amor sincero”.
A oração permanece sempre sendo “o ato mais digno do espírito, ato que
exige o esquecimento do mundo visível e do invisível” (Clímaco). São Nilo diz
que, durante a prece, o monge é separado de tudo e unido a todos”. O amor,
fonte da graça, escorre por esse canal, sem nunca se esgotar[49].
E é preciso sonhar com essa onipotência oculta, atribuída à prece pelo espírito
religioso, ao mesmo tempo em que se limita a essa fervorosa intercessão por
outrem a parte desempenhada pelo monge nas provas e sofrimentos do próximo. A
eficácia da prece é tamanha aqui, que ela pode ser chamada de opus operatum,
“Pão supraessencial” do homem, de que fala o Evangelho de Mateus, “maná
espiritual dos Anjos” (Clímaco) – a prece que faz a alma viver uma vida
sobrenatural. Ela é o sacramento do corpo e do espírito, o espelho da alma que
capta e reflete os raios do pensamento divino.
Diremos agora uma palavra sobre a monologistos, a invocação
indefinidamente repetida do nome de Jesus, que possui propriedades teúrgicas[50].
Essa oração jaculatória que, de vocal, se tornou rapidamente mental, parece ser
de origem muito antiga, talvez Sinaíta. Muitos autores ascéticos a mencionam e
recomendam. Mas foi somente a partir do século XIV (hesiquiasmo hagiorita) que
ela se tornará a oração típica do Oriente Ortodoxo. O que é preciso lembrar, é
a dupla tendência que aparece aqui. De um lado, o papel primordial atribuído ao
Filho de Deus, uma devoção específica ao nome “luminoso” de Jesus. Em segundo
lugar, a exortação imperiosa (que já aparece em Lucas), de “orar sem cessar”. A
prece, ensinarão os Sinaítas, deve constituir um estado permanente, ao menos na
medida em que ela é uma disposição do espírito. E essa será a tradição em toda
a Igreja pneumática, na qual predomina o preceito da prece “sem distração”,
como prova da perfeita caridade (São Máximo). Para o Confessor, a prece
perpétua não é outra coisa do que “uma perfeita separação do espírito do mundo
e das formas materiais” (De Carit., II, 1 e II, 61).
A vida íntima do solitário, sua finalidade exclusiva, é a oração
contínua, repetem Cassiano, Clímaco e outros Espirituais. Segundo a escola
Sinaíta (Hesíquio, Filoteu, São Gregório, mestre de Palamas), a prece deve
brotar dos lábios, deve ser exalada como um sopro: é o sopro da vida, o próprio
ritmo que pontua o pensamento secreto dos oblatas de Cristo. Ora, essa proseuchè,
cada vez mais interiorizada, é sempre aliviada por lágrimas de compunção, e
depois de alegria, lágrimas que parecem ser acompanhadas em surdina por essa
“prece do coração”. Clímaco aconselhava vivamente aos seus leitores de jamais
cessar a prece mental até que esse orvalho caia do céu. Pois a perfeição
consiste em chorar, tanto quanto se ora, ou seja. Sempre. A ideia do orante
perpétuo também contagiou o monaquismo ocidental latino. O hagiógrafo de São
Francisco de Assis, Tomás de Celano, disse de seu herói: “Ele se tornou por
inteiro oração”. E, por trás do Poverello seráfico, que longa fila de orantes
se perfilava sobre o fundo unido da grande ordem Beneditina, a da prece por
excelência!
Não nos esqueçamos de que a virtude orante é também um carisma,
constantemente renovado; um dom do Espírito Santo, presente na prece mental,
ela própria fruto da solidão, e que transforma o coração humano em “céu terrestre”
(Clímaco). Pois a prece é o paraíso do monge, paraíso no qual é eternamente
verdejante a árvore da vida. Essa prece é teocêntrica por sua própria essência.
A “oração mental” dos Orientais pressupõe a aquisição de todas as
virtudes “ativas”, e também uma verdadeira transmutação, uma metanoia,
do espírito. Esse é o vasto campo da experiência mística. Não é ele que
Cassiano chama de “a porta fechada”? Entre todos os mestres, a prece superior
comporta dois graus[51].
Ao primeiro, o dos theoretikoi avançados, corresponde a prece simples e
os pensamentos puros (noemata); como um prelúdio ao conhecimento
perfeito, ele é a contemplação adquirida, da qual toda imaginação sensível foi
banida. Mas a oração mais alta será a da “prece sem pensamentos”, contemplação
infusa na qual o espírito unificado encontra o centro vital de seu ser: a
imagem-similitude de Deus, incrustrada no mais profundo de si. Essa oração não
é acessível senão aos apathos (sem paixões), aos teleioi
(perfeitos), isentos de toda mácula e únicos capazes de viver “somente em
Deus”, na theologia (conhecimento-visão de Deus). Para alcançar essa
prece “agnóstica”, o aspirante deve se submeter ainda a uma última catarse, ao
despojamento do nous: esse despojamento deve ter por objetivo, ao
simplificar o espírito, dobrando-o sobre si mesmo, de colocá-lo, por assim
dizer, a nu. Essa é a famosa “guarda do espírito”, ou atenção permanente,
exercida pelo espírito purificado sobre todas as funções psíquicas, que se
submetem a ele, e sobre as correspondentes operações mentais, que ele deve
ultrapassar[52]. Parte
mais original – e também a mais contestada – de toda a espiritualidade
Bizantina, essa supervisão estrita do espírito pelo espírito recebeu, como
sabemos, um desenvolvimento particular na escola Sinaíta, e triunfou mais tarde
entre os hesiquiastas do Monte Athos. Sua relação com a oração será tão
estreita, que os hagioritas dirão: proseuchè kai prosochè. Eles têm a
tradição por trás de si.
Clímaco, seguido por seus discípulos, por sinal muito mais precisos do
que ele, que é ainda vago, já havia traçado seus primeiros delineamentos, e
Gregório Palamas colocou o ponto final, quase oitocentos anos mais tarde,
abrindo uma nova era na mística Bizantina.
A última purificação na theoria é análoga à última na praktikè:
mesmo trabalho de depuração, que constitui a suprema purificação. O higoumeno
da Líbia, Thalassios, amigo de São Máximo, estabelece esse paralelismo numa
fórmula concisa, notável. Ele declara: “O pecado do pensamento é um abuso dos pensamentos,
assim como o pecado da ação é um abuso das coisas”. A multiplicidade no
tumulto, esse é o perigo a ser evitado. Trata-se de varrer o terreno de todo o
sensível, expulsando-o do espírito: abolir, junto com as imagens, mesmo as que
não são profanas, toda percepção sensorial. Pois as infiltrações de fora, que
consistem em distrações e causas de perturbações, induzem o espírito em
tentação. Os produtos da imaginação, sob todas as suas formas, são chamados de phantasiai[53],
e rejeitados como tais por nossos autores. Então, com a alienação dos sentidos
exteriores, vem a rejeição a toda representação considerada “contrária”. O
espírito que foi enganado, que se perdeu por causa de uma pista falsa, preso
nas malhas de uma rede, deve ser libertado o quanto antes. Eis porque São Nilo,
que que primeiro apontou seu machado à raiz do mal, afirmava claramente que “a
prece superior exclui toda representação”. Ele preveniu, como mais tarde
Diádoco, os monges a quem dedicou seu tratado, contra o desejo perigoso de ver
sensivelmente os anjos e o próprio Cristo. Ele acrescenta: “O princípio desse
erro é a ilusão do espirito que tenta buscar a Deus sob formas e figuras”. Ora,
“Deus não possui forma, nem figura, nem medida, Ele é puro espírito”. Para
encontrá-lo, é preciso de “do imaterial ao Imaterial[54]”.
Esse grande mestre da oração lembra numa glosa sutil aos ascetas noviços uma
passagem do Êxodo (conhecida desde Phílon e que mais tarde reencontramos em
Gregório de Nissa): quando Moisés quis se aproximar da Sarça ardente, ele foi
impedido de fazê-lo até que tirasse as sandálias. Nilo acrescenta, repreendendo
diretamente seu auditor ou leitor: “E você, que pretende ver Aquele que
ultrapassa todo pensamento e todo sentimento, não pretende se desembaraçar de
toda sua natureza sensível?”. Deus jamais cai sob a percepção de sentido algum.
Ante a insistência do autor, podemos adivinhar que ele pretende
preservar seus irmãos, menos firmes na espiritualidade, e colocá-los em guarda
contra a heresia antropomorfista, que, ao que parece, estava muito difundida
entre os anacoretas de sua época. Cassiano nos legou uma notícia pitoresca a
respeito desses heréticos inconscientes, cuja boa-fé parece ter sido
surpreendida. Podemos entrever, em meio a seus saborosos escritos, as graves
consequências possíveis de tal erro. A história dessas lutas, no seio do
monaquismo nascente, foi escoimada há muito tempo. Aqui não temos mais do que
ecos distantes daquilo que foi. Para os Pneumáticos, tratava-se de salvar o
próprio conceito do Deus incorpóreo, em resumo, todo o espiritualismo
filosófico de um Clemente, de um Orígenes (sobretudo), piedosamente recolhido
por seus descendentes diretos[55].
Entretanto, por ingênuo que nos pareça a crença contrária à primeira vista, é
preciso sopesá-la longamente, antes de condená-la com tanta facilidade. Não se
trataria aí de um antagonismo psicológico real entre duas formas igualmente
legítimas da mística, a visionária e a anti-visionária? E esse antagonismo,
embora mais atenuado, não existe ele também no Ocidente? Seria preciso retomar a
questão. Se o colocamos assim, é porque a espiritualidade ortodoxa, cada vez
mais exigente e severa, acabou por proibir, sob a pecha de sedução, ou de
“armadilha do demônio”, toda contemplação imaginativa. Somente a “visão
intelectual” encontra graça aos seus olhos, para se servir das definições
agostinianas clássicas, desde Santa Tereza de Ávila, na terminologia católica.
Nossos Gregos a designam como sendo hyper ta eidè, “acima de toda
imagem”.
A exclusão das imaginações, esvaziando o espírito de todo conteúdo
sensorial, não é mais do que a primeira etapa dessa purificação passiva. As phantasiai,
esses “ventos tenebrosos que agitam a alma” (Clímaco), uma fez apaziguadas, dão
lugar ao surgimento de novos adversários, que deverão também ser vencidos: os logismoi.
Sob essa denominação coletiva compreende-se aqui não os erros de julgamento,
mais os próprios julgamentos, aos quais se opõem da noèmata[56].
Trata-se de um modo conceitual de entendimento que foi recusado como sendo
inadequado ao objeto do conhecimento, não apenas suprassensível, como ainda
supra-inteligível. Um movimento em três tempos, dos quais o último, por não
depender de nenhuma vontade humana, é consumado carismaticamente: primeiro,
organizar os pensamentos dispersos ao redor de um centro, dando fim à sua
funesta dispersão; em seguida, conduzi-los a um pensamento simples; por fim,
suprimir toda atividade mental, encerrando o espírito nas “profundezas do ser”,
o Gêmut de Eckardt-Tauler, a passividade superior. Essa se manifesta na apatheia
mental, na qual expira todo movimento voluntário do espírito, assim como antes
se detivera todo movimento da psique, convertida a uma serenidade imperturbável.
Nisso consiste a transfiguração do nous, agora tornado teleios,
pela graça da prece perfeita. Ultrapassado o “discurso”, a própria operação
intuitiva já não é suficiente. É preciso a iluminação divino modo. A
metafísica, assim transcendida, se torna metalógica, rejeitando todas as
categorias da abstração[57].
Somente as “noções puras das coisas invisíveis” (Máximo) podem reinar no nous
amorphos (o espírito livre de formas, inteiramente despojado). Os
discípulos de Plotino chamavam de “mântico” (visionário) esse estado. Os
cristãos Gregos, que atribuíam esse tipo de sabedoria aos anjos, afirmavam que
ela se devia a um êxtase do espírito, ainda que transitório. Mas esse
conhecimento último, negativo e jamais afirmativo, teria sido, segundo eles, semeado
no homem interior como um germe vivo, a fim de que esse alcançasse a visão
deificante. Essa semente não germina enquanto todo o ser não chega ao seu
limite, quando o espírito flutua, desencarnado, por um espaço vazio no qual
cresce a luz, na medida em que todo o criado se desfaz e desaparece. Círculos
concêntricos, cada vez mais estreitos, que envolvem o núcleo luminoso da alma
desimpedida; é desse ponto nas trevas que parte a teofania, segundo o
Areopagita[58].
Essa apreensão imediata do objeto para o qual tendem todas as
potências do desejo sobrenaturalizado, essa apreensão do Absoluto, incognoscível
e inatingível, se realiza numa verdadeira agnosia: ela consiste na privação por
excesso. E é nesse sentido que devemos entender Evagro, quando ele diz em seu Gnóstico
que, se o pensamento passional – carregado de sensível – impede a virtude,
mesmo o “pensamento simples” constitui um obstáculo à visão. Esse mestre da
espiritualidade oriental e, depois dele, Máximo, distingue, assim como
Orígenes, três tipos de conhecimentos, ou theoriai, que ele chama de
três “altares” da alma[59].
Os dois primeiros já possuem um seguro caráter pneumático. São eles: o
conhecimento-contemplação do mundo visível (compreendido como “ideia” divina);
outra, mais elevada, das criaturas invisíveis – espíritos angélicos e almas
humanas; por fim, o conhecimento-contemplação do próprio Deus trino, revelado
no Verbo. Esse é o cume da theologia, o altar mais elevado, “aberto”,
porque não pode ser circunscrito nem limitado por seja lá o que for. Somente a
graça plena do Espírito Santo, órgão do Logos, confere à alma privilegiada,
pela efusão da caridade, esse conhecimento místico que consiste, propriamente
falando, na visão imediata de Deus no Verbo.
De outro ponto de vista, voltamos aqui ao ponto que foi abandonado por
um instante, ao ponto culminante, ao espírito “pobre e nu”, expressão preferida
de Evagro e Máximo, centro invisível do ser deiforme. Em perfeita
receptividade, totalmente voltado à escuta do divino, esse espírito que
retornou a si mesmo aguarda a unção carismática: a unificação total que tem por
fim reanimar a homoiosis, ou semelhança divina. Essa será a obra do Amor
hipostasiado. Aqui o homem recebe pela graça aquilo que Deus possui por
natureza, a fim de se tornar, pela graça, aquilo que Deus é por natureza:
tornar-se inteiramente Caridade (Amor), pois “Deus é Amor”.
O AMOR CARISMÁTICO E O AMOR-INTELECÇÃO
O amor vem de Deus e conduz a Deus. Tal é a intuição profunda da alma
religiosa que chegou à sua maturidade, vale dizer, à sua plena consciência. Os
neoplatônicos o afirmaram claramente, e sua dialética do Eros é bastante
conhecida para que insistamos nela. Sabemos também como o Areopagita, precedido
por Orígenes, fundiu no cadinho cristão a ideia do Desejo universal que, já em
Plotino, atrai irresistivelmente os seres para além do Bem e do Belo supremos,
em direção ao Um, o qual não pode ser nomeado nem qualificado. Aí se encontra
“o retorno em Deus” dos místicos de todas as religiões. Mas o Cristianismo não
adotará esse mote senão depois de modificar tanto o sentido quanto a natureza
desse retorno, segundo sua própria concepção da transcendência divina. O Deus
cristão não é outra coisa do que o objeto infinito de uma nostalgia infinita.
Para além do Amado e do amante que é atraído, existe acima de tudo Aquele que
primeiro nos amou, que se inclinou para a criatura extraída do nada, para que
essa participasse livremente da plenitude divina. Essa criatura foi chamada à
existência não apenas para amar, mas para ser amada, também ela[60].
As duas linhas, descendente e ascendente, se encontram e se confundem: uma
parte como um raio, outra sobe como uma flecha. Uma única energeia erotikè
(potência amorosa), cuja fonte é Deus, da mesma forma como Ele é o oceano no
qual se lançam todas as águas vivas do universo. Antes de tudo, para os filhos
do Pai celeste, todos irmãos no Cristo encarnado, Deus é uma vontade de
benevolência, de filantropia (Irineu e Clemente). Por meio dessa vontade, o
Deus trino criou o mundo e fez, à sua imagem, a criatura inteligente. Depois da
queda – prevista – ele a restabeleceu “mais maravilhosamente ainda” (como todos
os dias o repete o ofertório da missa romana), restabelecida na natureza do
Verbo encarnado. O amor usque ad mortem e para além da morte – até a
gloriosa anastasia, prometida a todos, até a ressurreição do Amor
crucificado[61]
–, eis o que foi realizado pelo milagre de Cristo crucificado. Toda carne
florescerá na alegria, graças à semelhança ideal humana – alma e corpo – com o
arquétipo divino. Mas somente a caridade por aperfeiçoar o espírito
tornando-o semelhante a Deus, ou seja, deificá-lo. Todo o pathos da
“energia erótica” está concentrado aí.
O Amor, a alma dos mundos, arrasta em sua órbita o Cosmos inteiro. O
Amor, fogo dos céus, que consome toda impureza, que reduz a cinzas o pecado e o
próprio pensamento do pecado. Espada que corta da existência tudo o que é
indigno de sobreviver em seu seio. Energia criativa que, por sua ação
carismática, metamorfoseia as potências sublimadas do desejo e que, por uma
transfusão do sensível, o transforma em inteligível. Com ele e por meio dele,
“todo pensamento se torna desejo, e todo desejo se torna pensamento” (Evagro).
A alma, abrasada por essa chama incorruptível que queima sem se consumir, tal
como a sarça ardente de Moisés, é arrancada pelo eros extatikos de toda
vida perecível. Ela é transportada para uma zona estelar formada pelo ar
invisível do espírito puro, região acima até da fé e da esperança – que
passarão – enquanto que ela, a caridade, não passará. Rainha das virtudes
naturais, por abraçá-las a todas, reunindo-as numa fogueira de luz, a caritas,
ou melhor a agapè-Eros, aparece como a própria essência da alma
semelhante a Deus. O Eros divino, desejo dos mundos inteligíveis, reúne todos
os raios dispersos pelo universo, todas as incandescências, criadas e
incriadas, num só e imenso braseiro. E, por meio dele, o mistério supremo se
revela aqui, em baixo, aos eleitos à glória.
O Amor é nostalgia na alma, dileção e fruitio Dei, o sabor
espiritual do “Provai e vede como o Senhor é bom”[62];
ele é uma doce e sóbria embriaguez, e, enfim, para o espírito, o excessus
mentis (o que excede o espírito), conhecimento e possessão, revelação dos
segredos últimos pelo “sentido do amor” (Diádoco).Ele é a semelhança com Deus,
ao mesmo tempo que hipóstase, Pessoa divina. Ele faz eclodirem os cânticos
epitalâmicos[63] em
indizível graça de lágrimas, verdadeiro batismo, pelo Espírito, da alma nova.
Um pudor secreto e puro atenua seu brilho: um amor que se prosterna em
reverência, que freme elevando-se num voo planado pelos arcanos do
“arrebatamento”. Amor forte e viril, de uma espiritualidade quase sobre-humana,
que não conhece falha carnal de nenhuma espécie, nem langores e êxtases
sensíveis, e que não aspira senão à quietude perfeita da união. Ele é amante do
silêncio sagrado, o único digno de Deus, que envolve com suas asas a alma
nascida duas vezes, na hora da Visitação suprema. “Quando se trata do Ser que o
universo não pode conter, diz Gregório de Nissa em sua Homilia sobre o
Eclesiastes, esse é o momento de se calar: tempus est tacendi[64].
Esse silêncio já não é mais uma simples homenagem, um tributo do sentimento
reverente, mas uma suspensão das atividades na noite do sensível e do
inteligível. E esse amor vela constantemente sobre si mesmo: “Eu durmo, mas meu
coração vigia”. Coração que já não é de carne, mas a que chama do Espírito
queimou em vida[65]. Mas
às vezes, como no Areopagita, o Desejo plotiniano brilha, distante de frio: uma
neve fulgurante sobre os cimos, que brilha ao sol mas jamais se incendeia. Na
mística intensamente vivida de um Macário ou de um Simeão, outros ardores se
fazem sentir. Porém, a nota grave, sóbria e velada, ressoa sempre dominando
toda emoção: o sentimento da Presença real é o púnico tangível. Eis aqui, para
que possamos julgá-lo, o cântico vesperal do poeta do Amor Divino, Simeão o
Jovem (ou o Novo Teólogo), transposto para a prosa:
“Irmãos, deixem-me entretê-los com o Amor Divino, que tem muitos nomes
e também muitas obras, muitos sinais e atributos, mas cuja essência é única,
absolutamente inconcebível aos anjos, aos homens e a todas as criaturas, até
mesmo a seres que ainda são desconhecidos por nós. Indizível e invisível,
eterno – porque fora do tempo – esse Amor se assemelha à santa montanha de
Sião, pois, obrigando-nos a abandonar toda beleza sensível, ele nos faz adorar
apenas sua glória, nada mais”.
“Me é difícil representar a beleza desse Amor imaculado, cuja luz
brilhou em meu coração e cuja doçura me arrebatou para fora de mim; a atividade
de meus sentidos foi suspensa, e em espírito eu deixei minha vida presente, e
esqueci tudo o que é desse mundo... Ó Amor de tanto deleite! Bem-aventurado
aquele que o amou, porque nunca mais há de se apaixonar por qualquer beleza
terrestre. Bem-aventurado o que se ligou a você pelos laços do desejo divino,
pois ele renegará o séculos e já não poderá ser maculado. Bem-aventurado aquele
que, seduzido por seus esplendores, deles usufruiu plenamente: esse terá sido
sacrificado em sua alma pelo santíssimo sangue e pela água vivificadora que
brotam de você... Mas, mais feliz de todos é aquele que, por você amado, por
você instruído, por você habitado, será nutrido com o alimento imortal que é
nosso Senhor Jesus Cristo”.
“Ó Amor divino! Onde guarda você o Cristo, onde o esconde? Entreabra-nos a porta, a fim de que possamos
perceber aquele que sofreu por nós, pois, se apenas o entrevermos, jamais
poderemos nos morrer. Interceda por nós, a fim de que Ele nos permita cair a
seus pés – esses pés puros – a fim de que Ele nos remita a ofensa de nossos
pecados, que Ele se digne cuidar de nossa miséria, e nos alimentar
eternamente”.
“Ó santo Amor! Quem não o conhece não pode provar a suavidade de suas
benesses, que só uma experiência vivida pode revelar. Mas quem o conheceu, ou
que por você é conhecido, já não poderá conceber dúvida alguma. Pois é você o
cumprimento da Lei, você, que me preenche, que me aquece, que inflama, que
abrasa meu coração com uma imensa caridade. Você, mestre dos Profetas, ascendente
dos Apóstolos, força dos Mártires, inspiração dos Padres e dos Doutores,
perfeição de todos os Santos. E a mim você prepara, Amor, para o verdadeiro
serviço de Deus[66]”.
Jamais o Eros extático de nossos Gregos, esse pelo qual “o ser já não
se pertence” (Máximo) constituirá uma pura afetividade. Dele emana uma alta
intelecção, ou antes, essa última está oculta nele, como o pistilo na corola.
Não que não haja interferências da vontade e da cognição; não que o amor seja,
a um tempo, o que sente e o que pensa, na nossa acepção dos termos. Mas dele
nasce um conhecimento sui generis, e que revela sua própria natureza:
conhecimento superior carismático, o único verdadeiro, que se molda tão
estreitamente quanto possível, ao objeto, que, de outra forma, é impalpável.
Todos os antigos textos dão fé disso – e eles são numerosos.
Já entre os primeiros Alexandrinos, as noções de ciência (gnose) e de
caridade (ágape) se interpenetram. Clemente não quer, nem é capaz de distinguir
entre conhecimento e Amor. E Orígenes, em suas Selecta in Psalmos, diz
expressamente: “O amor espiritual não pode ser preferido ao conhecimento de Deus”
(Salmo 149: 9). A mesma certeza fica clara em toda a obra do “divino Dionísio”,
na qual o amor é cognitivo n mais alto grau. Evagro e, depois dele, Máximo,
retomam essa ideia, repetindo quase que textualmente, o primeiro: “A caridade é
a porta do conhecimento”, e o segundo: “A caridade gera o conhecimento”. A bem
dizer, a caridade já consiste no conhecimento: o verdadeiro amor a Deus se
identifica com o conhecimento (Máximo, Quest. Ad Thalas.). Ao contrário,
o mal é sempre a agnoia, da qual decorre o mau querer, que por sua vez
não passa, em si mesmo e em última instância, de uma ausência de direção na
partida.
O Padre Viller, a quem devemos tanto em relação às aproximações desses
mestres da espiritualidade Bizantina, nos traz ainda duas citações decisivas:
“A caridade consiste no estado superior da alma racional, no qual é impossível
amar qualquer coisa do mundo, mais do que o conhecimento de Deus” (Evagro I, 86;
Salmo 123); “A caridade é essa disposição segundo a qual a alma não prefere
nenhum dos seres ao conhecimento de Deus[67]”
(Máximo, De Carit. I, 4). Mas, há mais: não apenas “o conceito da gnose
está incluído no conceito da caridade” (Viller), como os dois termos são
equivalentes para nós, e mesmo idênticos, quando se trata da gnose divina, pois
esse conhecimento é, efetivamente, um conhecimento do amor: ele participa do
amor e do conhecimento divinos (De Carit., I, 27). E o pensamento
Alexandrino, assim como o areopagitismo integral que constitui seu
prolongamento, e também as sínteses ascéticas, do deserto, e da especulação
Bizantina, proclamam, cada qual, a mesma doutrina. O amor de Deus, único bem da
alma, possui nela, por definição, propriedades cognitivas de ordem superior,
uma ordem à parte, pneumática. Ele é o conhecimento imediato “acima de todo
conhecimento”, e isso porque ele recria a unidade original do ser,
tornando-o semelhante a Deus. Renovada e aprofundada, reaparece aqui a
antiga cognição secundum dilectionem de Santo Irineu. A cognição que não
é apenas por amor, mas ela consiste no próprio ato do amor, ou
seja, no conhecimento iluminado e iluminador.
Essa crença, fundamental para o Oriente Grego, coloca-o em contradição
com a Escolástica e vai de encontro com essa grande corrente do pensamento
medieval. Pois, mesmo entre os místicos da Idade Média, os dois domínios, o da
vontade e o da intelecção, ainda que constituindo uma só alma racional,
permanecem distintos um do outro: conhecer não é amar, e amar não é conhecer. As
diferentes escolas, em primeiro lugar a Agostiniana, com Citeaux (São Bernardo)
e a abadia de São Victor, depois o franciscanismo de Boaventura e de Duns Scot,
e por fim o tomismo dominicano (que se opõe àquele), discutem sobre o primado
da vontade (amor) ou da intelecção[68].
Implicitamente,, todos reconhecem o dualismo existente. O problema se complica,
a partir do momento em que tocamos nas diversas interpretações da união
extática na Idade Média Latina. E Gilson, cujos trabalhos são referência na
matéria, separa claramente a mística afetiva (cisterciense e franciscana) da
outra, essa na qual o conhecimento a supera enquanto fim ideal, como podemos
ver em seu livro Saint Bonaventure. O eminente crítico, falando da
última etapa do Itinerarium mentis in Deum do Doutor Seráfico, escreve:
“No êxtase, a alma pode, com o auxílio da graça, experimentar a presença de
Deus pela alegria do amor, mas sem vê-Lo pelo intelecto”. E conclui: “A visão
direta (ontológica) de Deus não nos é dada nesse mundo”. Com apenas uma
exceção: o arrebatamento (Moisés, São Paulo), “estado extraordinário no qual a
alma, momentaneamente separada do corpo, é elevada até o assento dos
bem-aventurados: lá ela contempla a Deus, face a face, e depois retorna para
contar o que viu”. Para São Boaventura, fiel ao pensamento seráfico, “o amor se
dilata mais do que a visão (aqui, no sentido de conhecimento)”. A beatitude
consiste assim na posse do Amado, segundo o Príncipe da teologia mística
medieval. O êxtase seria uma experiência na qual o conhecimento em si permanece
excluído, por definição. A mesma concepção encontramos em Richard de
Saint-Victor, para quem a contemplação, que começa na imaginação e na razão
para se perfeccionar no intelecto, se opõe à mística, ou “ascensão oculta do
espírito em Deus”. Hugues de Balme dirá igualmente, em seu Traité de la
Théologie mystique, que ela se estabelece acima do intelecto, no cume do
sentimento. Por outro lado, conhecemos a doutrina tomista, de agudas arestas, a
qual, mesmo reconhecendo o caráter afetivo do êxtase aqui de baixo, sobrepõe a
ele a visão intelectual última, visão dispensada pela luz de glória que, “na
pátria”, substituirá a graça concedida in via. Os recintos estanques
subsistem assim até o final, mas conhecer, aqui, consiste no ato primeiro,
essencial, da criatura inteligente. Conhecemos antes de amar, embora, sobre a
terra, a primazia pertença, por ofício, à caridade.
Em São Tomás, o conhecimento
supremo será fruto da mens iluminada, sem que por isso haja ruptura
total com a nossa ratio, ou razão racional, porque não se trata mais do
que de uma “função superior de nossas faculdades de inteligência e de vontade”.
Isso vai ao encontro com a tese de Alberto o Grande sobre das potentia imaginis[69].
Ora, não é o q eu acontece com nossos Gregos, cujo conceito de
conhecimento é platônico, não aristotélico, ou seja, que ele não parte das
coisas, mas das ideias-realidades. O espírito não se apresenta aí como uma
razão raciocinante, e plana acima dela, unificando a alma. Como conclusão, em
termos acadêmicos: a synderesis-scintilla, a perfeição do querer,
coincide com a inteligência simples, conhecimento não racional, que
possui uma outra estrutura, por ser de uma qualidade diferente. Pois o nous
é, originalmente, conforme ao sobrenatural, em virtude de um dom que ele
recebe de Deus e que ele deve recuperar, depois de havê-lo perdido por sua
falta[70].
Toda essa gnoseologia inatista, na qual intervêm, profundamente modificados, os
julgamentos de valor, postula o amor-conhecimento, aquele que decorre da
Verdade oculta, e que faz aderir a alma ao seu princípio: tal é a revelação da
Sabedoria, que “une a Deus”, segundo Máximo, Sabedoria que não é, como para São
Tomás, “uma maneira melhor de atingir o objeto proposto pelo intelecto”. Não, a
Sabedoria, ou a saborosa ciência do espírito, permite realmente conhecer aquilo
que Deus é: a um tempo incognoscível por natureza e carismaticamente revelado ao
espírito, que conhece amando, e que ama conhecendo. Ato único, tomada de posse
imediata e plena.
A ordem pneumática se encontra inteira na experiência vivida, que é a
iluminação do eros-ágape, da beatitude-amor e da beatitude-experiência, pomo da
discórdia das espiritualidades franciscana e dominicana assim reconciliadas. Ao
mesmo tempo, o “paraíso mental”, tal como o entendem nossos contemplativos, se
implanta no fundo da alma, que volta a ser una. Nessa profundidade, já não é
possível nenhum conflito entre o querer e o pensar: eles se fundem na unidade
primeira do ser, na mônada perfeita.
É ao Amor, concebido ainda como êxtase do espírito, que retorna essa
unificação total do ser, unificação que é, desde já, união transformadora. Pois
o nous, órgão de intelecção divino modo, se torna, por isso, o
coração puro, entro ontológico de toda vida sobrenatural. Eis porque a “guarda
do espírito” será, na mística Bizantina, sinônimo da “guarda do coração[71]”.
Os hesiquiastas dirão tanto noera proseuchè (atenção do espírito),
quanto noera kardia (coração atento)
Temos agora a chave de todo esse sistema, verdadeiro castelo da alma
com uma fachada dupla e elevada. Aqui, o desejo pensa e o pensamento deseja,
para retomarmos a máxima de Evagro, já citada. “Os pensamentos, bons e maus,
vêm do coração”; essas palavras, proclamadas pelo próprio Jesus, é entendida ao
pé da letra pelos nossos Espirituais. Por outro lado, para todo grego desde
Sócrates, é a inteligência que gera o pecado da intenção, ele próprio um pecado
em potência que, inelutavelmente, se atualiza. Essa antinomia aparente se
resolve a partir do momento em que remontamos, com os Bizantinos, à fonte de
todo saber e de todo desejo: a câmara secreta onde reside a imagem natural de
Deus, Amor e Inteligência fundidos no Ser. E é aí que se revela a nós o segredo
último da theosis Ortodoxa.
A deificação constitui, como já dissemos, uma participação pela graça,
portanto um modo de conhecer e de ser. Pois, por toda antiguidade, o
conhecimento é considerado como a assimilação do sujeito ao objeto: conhecer é
ser. Conhecer e amar a Deus são uma só coisa, e ambos significam, em última
instância, tornar-se Deus; ou, dada a heterogeneidade das essências, tornar-se
“semelhante a Deus”. Mas somente Deus permite conhecer a Deus; somente ele, por
meio de um carisma supremo, dom substancial do Espírito, atualiza a semelhança
latente deiforme da alma humana. Trata-se da confirmação pela graça, da unção
pelo Espírito Santo, que marca definitivamente com sua efígie as almas
ascendentes[72].
TEOLOGIA MÍSTICA TRINITÁRIA.
DEIFICAÇÃO PARTICIPADA NA THEORIA QUE SE REALIZA.
A ascensão do espírito, carismaticamente iluminado, até a união
perfeita, desenha, como vimos, um movimento circular que reproduz de certo modo
a “pericorese” (circumincession) no seio da própria Trindade. Apenas, em
obediência à lei das participações do humano no divino, esse movimento – do
qual fala Dionísio – procede em sentido inverso da taxis (ou ordem)
intradivina. A pirâmide é invertida. A alma, que se aproxima da fonte de todo
bem e de toda beleza, reproduzindo a imagem divina, se entrega ao movimento do
Espírito Santo, ao sopro da vida emitido pelo Pai e transmitido pelo Filho: do
Espírito Santo ela passa para o Verbo, gerado fora do tempo, imagem e glória do
Pai, e pelo qual – e somente por ele – se revela a monas-trias (a
“uni-trindade”). Não existe aí, em absoluto, uma hierarquia dentro da Trindade,
mas apenas sua própria economia. A migração/retorno da alma parte da ideia
trina para alcançar a mônada. Ela chegará aí quando se tornar toda sabedoria e
amor em sua vida, derramando-se, sem se dissolver, na plenitude da energia
divina. O caminho real lhe foi traçado previamente: primeiro, a aquisição do
Espírito Santo, depois, por meio dele, do Verbo (do qual é inseparável); enfim,
esse próprio Verbo, união virtual com a Trindade una.
A pneumatologia patrística se desenvolveu e a Terceira Pessoa ganhou
destaque desde o fim do século II, mas em especial no século IV na obra do
grande Teólogo São Gregório de Nazianze. São João Damasceno consagrou
definitivamente a doutrina tradicional do Espírito, quando explicitou seu ekporeusis
ou modo de processão[73].
Mas os caracteres próprios da Terceira Hipóstase já haviam sido dados
anteriormente: “dedo” do Pai, selo do Filho, que dele recebe o Espírito
santificante (Irineu, Atanásio, Cirilo de Alexandria, Ambrósio); unção do Pai e
do Filho que ungiram o primeiro homem, conferindo a ele sua
semelhança/similitude com o Logos (Clemente, Orígenes e os Capadócios). Segundo
as Homilias Espirituais (pseudo Macário) sempre foi por intermédio do
Espírito Santo que Adão se comunicava no paraíso terrestre com seu criador, o
Verbo. Na Igreja cristã, o Paráclito, através do mistério dos sacramentos, dá
testemunho do Filho aqui em baixo. Pois, se ninguém pode chegar ao Agennetos
senão por meio do Unigênito, tampouco ninguém pode acessar a esse último, senão
pela ação do Espírito Santo. Clemente, o precursor, já declarava que, graças ao
Espírito Santo, “vivem ocultos no templo do espírito humano o Pai e o Filho”.
Por sua vez, Evagro e Máximo explicitam: é pelo fato de que um só Deus
reside e age nos pneumata individuais, que todos os cristãos se
encontram unidos fraternalmente em Corpo místico no seio da Igreja una.
Princípio ativo por sua própria natureza, o Espírito Santo, que é uma espécie
de tonos (força, energia, tônus) universal (reminiscência estoica),
possui uma natureza ígnea muito particular: ela nos lembra o fogo primordial de
Heráclito, que circula no interior do Cosmo animando-o. no mundo espiritual,
essa Força-ardor derrama sobre as criaturas as ondas da graça deificante.
Flamejamento de línguas de fogo que pousam sobre a fronde dos eleitos,
coroando-os de glória, a graça, com seus múltiplos dons emana sempre do
Espírito, doador por essência. São Paulo foi o primeiro a falar de seus dons,
sem enumerá-los todos; a teologia posterior fixou seu número em sete,
agrupando-os em dons da Inteligência, da Ciência e do Conselho, de acordo com
Isaias[74].
Trata-se de lampejos de ouro que se desprendem da massa sem jamais diminuí-la,
pois essa não pode ser dividida nem desmembrada por nenhuma consciência cristã.
Os Gregos, sem estabelecer sobre ela uma doutrina tão sistemática como os
Latinos, fizeram, tanto da Graça quanto dos carismas particulares, uma
concepção eminentemente dinâmica. Eles realmente infundiram a graça do Espírito
divino a todo o criado, desde sua origem: pelo mistério da homoiosis
(similitude), essa foi como que incorporada à substância metafísica humana.
Parece que para Dionísio os modos ou analogias – princípios diversos da
manifestação de Deus nas criaturas – podem ser assimilados a outras tantas
capacidades de participação da alma nas virtudes divinas. Ora, a “analogia
ascensional” dionisíaca consiste no Amor, cujo fim, designado por Deus, será a Theosis.
Tal é o dom real do Espírito ao espírito que se separa da servidão carnal.
Novamente, o círculo se aperta ao redor do núcleo luminoso. Sem esgotar toda a
ideia do Espírito Santo, a energia erótica representa sua operação própria. E é
por isso que o Consolador servirá de guia à alma, conduzindo-a ao Esposo e
preparando o festim nupcial.
Nas Cinquenta Homilias que nos chegaram sob o nome de Macário o
Grande, patriarca de Sceta e discípulo de Santo Antônio (mas que provavelmente
não são dele), encontramos o testemunho infinitamente precioso de uma
experiência pneumática plena. Essa mensagem, única em seu gênero, é irrecusável,
embora ela de afaste em certos pontos – que não vê ao acaso aqui – da doutrina
dos Padres[75].
Em nossa opinião, sua ortodoxia, permanece inteira em todo o domínio da
espiritualidade, e só se diferencia dos evagrianos por sua inspiração, mais
lírica e especulativa. Em toda sua concepção ascética e mística, na própria
economia da deificação que ele nos oferece, o autor permanece fiel à tradição
recebida; em especial no que concerne à missão e à natureza do Espírito Santo,
pintadas em cores luminosas e com ousada penetração nas profundezas da alma errante,
dividida entre a força do mal e a atração do bem. Lentamente, essa alma deixa
as traves e surge para a luz, chamada pelo Espírito, que a recria, gravando
nela sua marca.
Desde que Cristo subiu aos céus em sua gloriosa Ascensão, as portas
fechadas do Cenáculo só se abriram ao sopor do Paráclito, enviados por Ele aos
órfãos de seu amor. A era do Pentecostes é anunciada pelo fogo celeste.
Macário chama o Espírito de “mestre da apatheia”, porque o
espírito de Eros é a “matriz ígnea da alma”. A passividade nele – sobretudo
nele – se torna uma abertura ao amor divino, paixão espiritual de inexprimível
suavidade. Toda a sensibilidade sublimada aparece aqui, transmutada, transposta
para um plano unitivo superior.
O amor Dei é, para nosso contemplativo uma realidade fervente.
Ao Espírito Santificador, cuja virtude substancial é o amor, o grande anônimo
(ou pseudo Macário) assinala um augusto ministério: é ele quem, no distante dia
da Parúsia, reanimará com sua chama incorruptível os mortos adormecidos no Senhor;
depois ele reunirá os membros desconjuntados dos pobres corpos caídos em meio
ao pó. Princípio de vida, ele é a ressurreição gloriosa (Homilia 2).
Ora, essa se realiza desde já para a alma purificada, desde aqui de baixo. O
Pentecste do cristão se coloca entre a paixão humana, que é a crucificação do
velho Adão, e sua ressurreição gloriosa em Cristo. O epitálamo de Macário, por
onde passam os eflúvios abrasadores do além, comparado às mais belas páginas
dos Cantica de São Bernardo, as ultrapassa tanto pela suntuosidade das
imagens como pela visão, de um brilho extraordinário.
O Espírito Santo, primeiramente, empossa a alma que se abandona a ele.
essa é a “suspensão das potências” de que falam todos os místicos: o homem já
não age, mas é agido. Já o Hieroteu dos hinos dionisíacos chamará esse
estado de patiens divina, ainda que nem toda consciência própria seja aí
abolida (estado teopático ou supraconsciente), então o Espírito infunde na
alma, tornada sua pelo amor transformador, o conhecimento, “segundo a
capacidade do vaso”. Depois, preenchendo-o até a boca, ele faz desse vaso de
eleição o habitáculo de sua divindade.
Com o realismo figurativo que lhe é peculiar, nosso autor insistirá sobre
o aspecto substancial da henosis (união) assim consumada, que a seus
olhos é uma verdadeira fusão, krasis (Hom. 9, 12). A fim de descrevê-la,
o Oriental, cuja linguagem é tão colorida, tão patética, encontra altas e
radiosas palavras: “Quando a alma atinge a perfeição, tornando-se ela mesma um
espírito puro, ela se torna toda luz, amor e suavidade, alegria e misericórdia”
(Hom. 18, 10). Nesse momento, o paraninfo, ou amigo do Esposo, derrama
sobre a alma nupcial, como garantia de bem-aventuradas bodas, a chuva de ouro
dos carismas. Aproxima-se a hora das Bodas espirituais, e o Espírito brilha
através da envoltória humana, que se tornou como cera permeável, e faz da criatura,
santificada pela graça, o reflexo vivo do esplendor do Verbo. Revestindo-se da doxa,
que não é outra coisa senão a divindade de Cristo-Deus, a alma, tornada assim
pneumotófora, é por fim cristificada[76].
Esse é o casamento místico no qual tudo se consuma (Hom. 1, 2, 3). E,
sempre temerário, o autor, para acentuar ainda o caráter íntimo, absolutamente
único, da união realizada, ousa compará-la àquela das duas naturezas em Cristo,
a qual, por sua vez, é assimilada à “circumincessão” intradivina. “O nous
pacificado, e que repousa, permanece unido ao Senhor, diz ele, assim como o
corpo do Senhor, indissoluvelmente unido à divindade, se torna um com ele” (Hom.
17, 4). Essa comparação nada tem de heterodoxa, e São Máximo há de
desenvolvê-la especulativamente. Pois a própria possibilidade da henosis-theosis
depende, para esse último, do mistério cristológico: da fusão da natureza
divina com a humana no Verbo.
Mas essa união da alma com Cristo não implica, bem entendido, nenhum
preconceito monista. O autor das Homilias, seja quem for, ensina como
bom cristão que a natureza de Deus permanece heterogênea, enquanto essência, em
relação à do homem. como na patrística Grega, tudo repousa sobre a ideia de
participação da comunicação imediata pela graça e, menos do que nunca, sobre a
identidade impossível do criado e do incriado. O pensamento, que plana nas
alturas, permanece Ortodoxa.
Uma das imagens de que se serve o pseudo-Macário nos demonstra isso
fartamente. É a mesma imagem, não nos esqueçamos, que mais tarde Máximo utilizará,
e que São Bernardo, retocando-a, séculos mais tarde, há de imortalizar: a
imagem do ferro lançado ao fogo, braseiro de amor, e que se torna fogo, ao
mesmo tempo em que permanece metal por sua substância. Pois é somente assim que
a alma, tocada pela Luz incriada, se tornará Deus na eternidade. Nosso
contemplativo profetiza: “Tudo se tornará luminoso, tudo penetrará na Luz, se
tornará fogo... Assim como o corpo do Senhor foi glorificado sobre o Monte Tabor,
transfigurado em Glória divina e em Luz infinita, assim os corpos de todos os
santos serão glorificados e translúcidos... Pois, assim que todas as chamas se
acendem a partir de um único e mesmo fogo, todos os corpos dos Santos, membros
de Cristo, deverão se tornar como Ele” (Hom. 1). E essa será a primavera
de nossa carne, que reflorescerá.
O tema do phos, do photismos, domina toda a mística
macariana. Lá ainda, nosso Espiritual não faz senão transpor num lirismo de
alta tensão, senão acentuar um conceito patrístico firmemente mantido através dos
séculos pela Igreja Grega. Para todo o Oriente – para os Pitagóricos, para
Platão, para o neoplatonismo e a literatura dita hermética – e também para o
Ocidente místico, ver a luz equivale a ver a Deus. Apenas,
segundo os Cristãos, a face de Deus permanece sempre incontemplável, “por causa
da profusão de luz” (Dionísio). Ela se oculta na “nuvem”, na qual penetrará o
Moisés de Philon, de Clemente e dos dois Gregório. A divina caligo (a
nuvem divina) significa sempre a incognoscibilidade de Deus, que escapa aos
olhos pelo próprio excesso de seu brilho cegante. Aqui os raios impedem a visão
direta da fonte resplendente, que ofusca os próprios Serafins. Mas o olho puro,
o olho do coração nu contempla os raios e se faz penetrar por eles: raios-energia,
ou ideias divinas, que manifestam, ao descer do Princípio dos princípios, a incomunicável
essência fecundadora dos mundos, e dos
quais participam, segundo uma hierarquia estritamente estabelecida, os seres
criados. Todo o pensamento dionisíaco é como que tecido por uma luz imutável e
por luminosas sombras moventes. Ser iluminado para ele significa ser
purificado, ou seja, ver cada vez mais claramente o Sol inteligível. Pois Deus
é luz, verdade já anunciada pelo autor do Quarto Evangelho que, para toda a
cristandade, seguirá sendo o discípulo bem-amado. Em sua obra, na qual o Verbo,
vida eterna, “era a verdadeira luz”, a espinha dorsal está na luta entre phos
(luz) e skotos (trevas). E não se trata aqui de simples analogias, de
figuras de retórica, mas de símbolos substanciais, que revelam uma realidade plena,
sendo o mundo sensível nada além da “semelhança” do outro, manifestando a sua
presença imaterial (enyparchon).
Aproximemos, enfim, conforme está assente, o “Deus é luz” da primeira
epístola joanita (I, 1: 5), do “Deus é amor”, da mesma epístola (I, 4:8). Com efeito,
se a segunda expressão deve ser tomada ao pé da letra – e quem poderia negá-lo?
– como recusar à primeira, apresentada paralelamente, um significado real?
Pensemos, com efeito, no ato inicial da criação ex nihilo, no fiat lux
do Gênesis, santificação primeira da energia do Cosmo em devir. Podemos assim
compreender todo o alcance dessa dupla fórmula cristológica: Lumen de
lumine, Deum verum de Deo vero. Aqueles que impuseram, com todo o peso de
sua autoridade, o Credo, em Niceia e em Constantinopla, certamente não a
entendiam no sentido metafórico. Isso é certo[77].
Os Doutores da fé estavam imbuídos desse espírito “realista” platônico,
para quem o símbolo não passa de um véu transparente. Lembremos ainda que, dos
quatro nomes dados ao batismo antigo por imersão, retivemos e aprofundamos o de
photismos: iluminação. Para Clemente de Alexandria, que tanto falou
desse sacramento regenerador no qual a energia divina está por inteiro,
trata-se da “santa luz que traz a salvação”. O grande moralista e mistagogo não
distingue entre essa iluminação carismática e a libertação dos pecados – ou das
trevas – que conduz à adoção, que faz do cristão um filho de Deus. São Gregório
de Nazianze, pilar da Ortodoxia Grega a quem São Máximo tanto deve, morreu para
o mundo, por sua própria vontade, depois que a “inefável Luz trina penetrou seu
espírito”. Incansável, esse teólogo da Trindade repetiu, em suas Homilias,
que Deus é Luz inacessível, inatingível em sua fonte. O homem, a seus olhos,
será, assim como para o bispo de Nissa, a criatura que, pela inteligência – seu
“luminar” natural – comunica com a energia divina e se torna assim, ele
próprio, semelhante à luz primigênia. A contemplação é visão. Nisso estão todos
de acordo[78].
Sobre essa base está edificada a mística oriental do photismos,
chamada a desempenhar um papel tão importante em Gregório Palamas e seus discípulos.
Pois eles declararam contemplar com seus olhos corporais, a exemplo dos
Apóstolos na Transfiguração, a luz do Tabor, da qual Máximo falava. E essa Luz
santa não seria outra coisa que a própria divindade, sua glória incriada que
resplandece por toda eternidade. Não vamos nos ocupar aqui da curiosa
metafísica do phos entre os hesiquiastas; mas é preciso notar, ainda que
de passagem, suas afinidades com todo o pensamento patrístico. A Luz divina se
encontra embrionária na teologia mística dos mestres Bizantinos, bem antes do século
XIV. Todas as obras espirituais conhecidas no-lo atestam e, na hinologia de
Simeão o Moço, ela brilha com evidência ante os olhos menos prevenidos.
Eis o que devemos reter do impressionante conjunto dos testemunhos: a
visão de Deus pela graça é, sobretudo, sempre e em toda parte, a contemplação
da Luz. É certo que uma imagem sensível, por mais adaptada que esteja à
realidade inteligível, não pode fornecer a natureza de uma essência; com mais
razão, a de uma essência incognoscível in se. Dito de outra maneira, a
luz é um aspecto sob o qual Deus se mostra à sua criação: sua revelação ao
teofania, se faz na luz e pela luz, inundando o espírito,
infiltrando-se nele, entranhando-se no pelago luminis et luminosae aeternitis
(o abismo de luz e de luminosa eternidade), de que falará o reformador de
Citeaux (De diligendo Deo, X, 5). Assim é que Deus e luz, no sentido
anagógico do termo. Repitamos com São Gregório o Teólogo: o espírito se
torna luz ao penetrar em Deus. A iluminação não apenas conduz à
contemplação, como ela é a própria contemplação. Mas ver a Deus, implica conhecê-lo
pelo amor, e também conhecer o que é o amor. Essa fórmula é reversível. Mas isso
não é tudo. Conhecer, como já dissemos, equivale a ser: aqui, equivale a ser a “luminosidade
imutável”. Ora, somente Deus permite conhecer a Deus, e somente Deus pode se
unir a Deus. É assim que as duas vias, a iluminativa e a unitiva, acabam por se
confundir num largo rio de luz. Da mesma forma, a theoria confina com a
teologia, separada dessa última apenas por uma imperceptível linha ideal. É o
cume do conhecimento, da gnosis Theou e da possessão extática, que
arrebata o espírito humano em Deus.
A escada angélica sobe sempre e sempre. Após a invasão já deificante
do Espírito, depois das Bodas místicas com o Cristo de Glória, a alma chega ao
seu ápice: ela é admitida à visão da Luz Trina, porque se torna digna de
refleti-la, porque se torna sua imagem perfeita. Uma vez cristificada, a alma
entre por si só na doxa. Os teóricos do êxtase, Evagro, Máximo,
Thalassius, captaram seguramente a revelação última da Trindade, justificando
especulativamente, revelação que é o próprio mistério da vida intradivina, de sua
existência una. Aqui em baixo, esse mistério mal aflora: “Nós enxergamos como
um enigma, como que num espelho”. E essa já constitui a “pequena” ressurreição
(Evagro), que antecipa a grande.
Mas o pensamento penetrante de nossos mestres não dá conta plenamente
do fenômeno psicológico, que somente a mística alemã da escola renana colocará
em termos expressos: como a alma, ao encontrar a Deus, encontra a si mesma? E,
questão adjacente que completa e amplia essa pergunta: em que é essa alma a
imagem real da divindade trina? Não encontramos aqui mais do que raras
sugestões da teologia Grega, sempre comandada por sua antropologia, dominada do
alto pela economia do dogma trinitário, que é para ela, não uma verdade
abstrata, mas a verdadeira festa mística vivida interiormente, uma antropologia
estritamente ortodoxa, impregnada de teognosia apofática. Nada de incriado
existe na alma humana, apenas a imagem de Deus, impressa no fundo do nous
e indelével[79]:
a Inteligência pura, princípio de todo o ser, Paternidade; a Sabedoria
manifestada, o Verbo proferido; enfim, o Sopro da Vida, ou Espírito Santo,
conhecimento do amor. A Trindade, indivisível em suas separações, diakriseis,
é sempre uma na inconcebível henosis, e se reencontra e se recompõe na
alma inteligente, expurgada de toda paixão, simplificada, “convertida” a Deus e
nele imobilizada. Para unificar as três forças essenciais de seu ser, divisões
interiores de uma substancia punica, a criatura segue o caminho ascendente da haplosis:
reformada pela ascese purificadora, elevada pela ciência iluminada na oração (“guarda
do espírito” ou “do coração”), ela não alcança sua unidade original senão pela
graça da caritas. Dito de outra maneira, a imagem divina, tornada
semelhança, se perfecciona pela infusão do Espírito Santo. Essa é uma
experiência vivida duplamente. A alma conhece a si própria ao conhecer a Deus,
captando-o numa visão global na alistos gnosis (conhecimento gratuito),
pois o homem não pode compreender a si mesmo, senão Naquele que é sua causa
eficiente e sai causa final, o arché e o telos do cosmos.
Movimentos simultâneos, convergentes, que são a um tempo uma subida à
irradiação divina e uma descida vertiginosa às profundezas abissais. Na alma,
unificada por completo, se revela por inteiro a mônada trina: uma só potência,
uma só vontade de amor, uma intelecção única, vale dizer, toda a divindade se
encontra aí. Mônada, na qual declara Evagro, “já não existem mestres ou
discípulos, e todos são iguais” no infinito conhecimento que é a gnose do amor
perfeito.
O espírito “pobre e imaterial”, tendo perdido tudo – e recuperado mais
do que tudo – já não reflete, como um espelho límpido, outra coisa que não seja
o esplendor do Incriado. Somente então ele “é chamado a Deus, tendo alcançado a
plena imagem de seu Criador” (Evagro). Estado teopático, sabático, “semelhante à
cor do céu espiritual no qual brilha a Luz da Trindade”, segundo o De
Oratione de Evagro. Esse é o repouso silencioso da “prece pura”, que para
Isaac de Nínive já quase não pode ser chamada de prece. Repouso da alma
transfigurada em luz trina ou “penetrada na luz sem forma” (Máximo)[80].
Elo final da cadeia, pico mais elevado da “montanha espiritual, escarpada, da
qual é difícil se aproximar”, segundo Evagro: aí o mistério da Santa Trindade é
contemplado no Verbo. Essa theia gnosis, ou agnosia angélica, conhecimento
acima de toda ciência, mesmo intuitiva, é, como dissemos, a gnose da Santa
trindade experimentada numa transverberação fulgurante pelo espírito
arrebatado: um habitar em Cristo. Silêncio, paz: hesíquia, prelúdio da
transfiguração total, na plenitude dos tempos, quando o Reino virá finalmente e
a Felicidade será duradoura.
Máximo o Confessor os evoca essa visão grandiosa (Ambigua, Quest. Ad,
Thalass), reproduzida fielmente por Scotus Erigena, que lhe faz eco.
Trata-se da própria visão, amplificada, perscrutada pelos dois Gregório da
Capadócia e por Ambrósio de Milão, o último dos Padres Latinos discípulo dos
Gregos. Uma apoteose, não apenas do gênero humano, mas da alma individual
renovada, terminada. A criatura feita à semelhança do Criador se unirá a Ele,
indissoluvelmente, sem jamais ensombrar-se no abismo sem fundo e sem visão do Todo
panteísta: o face a face beatifico do Apóstolo o desmente solenemente. Os
eleitos, ressuscitados segundo a lei de seu próprio ser, se tornarão os membros
translúcidos do Corpo Místico do qual o Cristo é a Cabeça, naturalmente. Todos,
hipóstases criadas, aí irradiarão Nele e com Ele, imagens incorruptíveis do “Pai
das Luzes”. Nesse dia sem sombras do Reino sem fim, todo o Cosmo será
glorificado. Toda carne se fará espírito, como todo verbo se fez carne. Por
amor ao homem – microcosmo do qual o Filho é a “prefiguração” ideal – Deus admitirá
o universo à glória da deificação. Transfigurado, vibrante, qual instrumento
sensível com mil cordas (a cítara divina de Orígenes), ele viverá a vida
imperecível, no século dos séculos. E Deus será “tudo em todos” (I Coríntios
15: 28), Doxa-Theosis. Mais uma vez, não que aconteça aí a dissolução de
toda substância que não a divina, mas sim conformidade absoluta de toda vontade
ao querer divino, penetração de todo o criado pelo Incriado, de onde provém a
harmonia cósmica eterna. Tudo manifestará a Deus e, nesse sentido, será Deus,
pois nada poderá subsistir fora Dele (ektos Theou). Teofania perpétua da
qual não será excluído senão o que, por natureza, já não existe, nem pode existir:
o mal, que é o nada. Sobre esse acordo perfeito termina a sinfonia
magistralmente orquestrada pelo Oriente Bizantino, herdeiro tanto dos Padres da
Igreja, quanto dos Padres do deserto.
CONCLUSÃO
Se compararmos agora esse final com o primeiro esboço, no qual o tema
foi delineado, percebemos o desenvolvimento amplo e magnífico que esse tema
recebeu. Uma rápida vista d’olhos se impõe a nós, para abarcar o conjunto e
concluir. O horizonte continua a se alargar. A história não está sendo
considerada aqui como um périplo, mas como uma evolução livremente realizada. A
raça de Adão, nascida imortal, fez infinitamente mais do que retornar, pela recapitulatio,
ao seu ponto de parida. O impulso, cortado antes da ação pela falta trágica, foi
retomado e conduzirá muito além essa raça de antinomias humanas, generosamente
concebidas, amorosamente renovadas pela Encarnação. Militante, ela se revelou
primeiro a partir da terra arada pelo suor de suas justas penas, depois banhada
pelo sangue de seu Criador, pois a gloriosa ressurreição de Deus foi o anúncio
de nossa anastasia. Sem retornar aos limbos do Éden perdido, a humanidade se
ergueu, triunfante, sobre as asas da liberdade e da graça, até o Paraíso
mental. E é assim que se realizará o plano providencial da economia divina,
feito de sabedoria, bondade e beleza. Um progresso imenso irá então se
realizar, quando expirar o Éon terrestre.
Adão era originalmente um homem pneumotóforo, e possuía tida a ciência
organizada, trazendo em sai a retidão ou a justiça perfeita: um filho de Deus,
sua imagem criada, mestre do Cosmo, delegado do Logos: pela graça, um deus em
devir. A prova do bem e do mal, da vida e da morte, consequência de sua
apostasia, o fez decair de sua grandeza sobrenaturalmente natural. Por causa de
seu pecado, ele se tornou uma criatura interiormente despedaçada, vulnerável,
mortal, sempre pronta a escurecer-se no não-ser; uma inteligência
entenebrecida, uma vontade pervertida, doente. Mas as brumas dessa noite de
escravidão foram dissipadas pelo “dia sem crepúsculo”, vitória da Cruz. Na Encarnação
se operou misteriosamente a troca das naturezas: a do Deus encarnado e a do
homem deificado se interpenetraram, para sempre, ainda que conservando cada
qual seu idioma próprio. Esse é o próprio mistério do deofisismo, da “comunhão
dos idiomas” em Cristo, que se afirma e triunfa. Pois o “poder e sabedoria de Deus” se
revestiu de carne, primeiro de humildade, depois glorificada, a fim de
transfigurar depois dela toda carne, simples revestimento do espírito
embrutecido depois da queda. Ora, o Logos, arquétipo da natureza humana, é o
centro irradiante da mônada trina, e somente ele a revela plenamente, em sua doxa,
ao mundo, criado pela efusão do amor subsistente, pelo Filho e por esse outro
dedo do Pai: o Espírito Santo.
Como vimos, o movimento circular da alma, descrito por Dionísio e os
Bizantinos, não é outra coisa do que a descoberta do divino sob tudo o que é
humano. Aí mesmo Santo Agostinho o buscará, com toda sua mística, nascida dele
e indo além dele, no Ocidente. Os Gregos foram ainda mais longe. Eles não se
contentaram nem com o êxtase sobre a terra, nem mesmo com a visio beata
no além. Para eles, a essência divina que derrama suas energias sobre as
criaturas as deifica plenamente, no interior delas próprias, com a condição de
que as vontades se entreguem ao duro esforço da ascese, e o espírito ao
abandono do amor cognitivo. O “conhece-te a ti mesmo” conduz ao conhecimento
espiritual primeiro, o Deus imanente e o Deus transcendente se reencontram na
solidão do coração puro, do “coração inteligente”, ponto extremo do nous deiforme.
Pelo sopro criador do Amor, atinge-se, com o conhecimento agnóstico perfeito, a
consumação de todo desejo. Lá, no fundo desse santuário da vida imanente,
irradia Aquele, uno e trino, que unifica a alma, chamada por ele à existência e
predestinada à sua glória, unindo-a à Sua força, que é Ele próprio. União de
graça, não de natureza, e, ainda assim, união real. O longo caminho de
purgações e iluminações progressivas, para além de toda paixão e de todo “discurso”,
para além do próprio pensamento intuitivo, não é um circuito fechado. A
humanidade feliz, ao final de sua ascensão “em espírito”, se tornará o corpo
mesmo do Theos Anthropos, submersa no indizível esplendor da mônada
trina. E é nisso que consiste a verdadeira e única deificação possível, inteiramente
obra da graça.
Toda essa doutrina, lentamente elaborada pela patrística Grega
platônica, vivida, aprofundada e fixada definitivamente na theoria contemplativa
dos monges, foi sustentada no decurso das eras, e jamais combatida ou minada
pela Igreja mãe: a Igreja, ela mesma dispensadora da graça deificante através dos
sacramentos, que traçou o largo caminho a todo o rebanho dos fiéis, impotentes
para subir pelo caminho demasiado estreito da ascese contemplativa. Unidas indissoluvelmente
em sua raiz comum, as duas místicas, a estritamente pessoal e a ritual, apoiadas
uma na outra, longe de se contradizer, se completam harmoniosamente. Elas não
passam das duas faces de uma só e mesma religião pneumotófora. Nesse ideal da theosis
se revela, com força avassaladora, o desejo e nostalgia da criatura que pensa e
sente aqui em baixo: viver eternamente em espírito, sem perder seu rosto humano,
sem ver desaparecer, para sempre, o mundo que ela amou.
Uma última palavra sobre os destinos dessa doutrina do Oriente cristão,
onde ela nasceu e se desenvolveu plenamente.
Cada vez mais distante e longínqua essa aspiração de uma elite mais e
mais rara se mantém intacta, oculta nas profundezas de um sonho taciturno, até
o final do século X. Nesse momento, Simeão o Moço, chamado de o Novo Teólogo, o
maior desses mestres contemplativos de Bizâncio, reanimou com o sopro de seu
gênio a chama vacilante. Ela queimava bruxuleante em algumas antigas lauras do
Sinai, entre os longínquos descendentes de João Clímaco, dos quais parece ter bebido
a mística de Simeão. E, depois de sua morte em odor de santidade, a flama
passará, sem se extinguir, para as mão de seu hagiógrafo Nicetas Stéthatos: ele
mesmo um teólogo espiritual, conhecido sobretudo pela sua participação na
separação das Igrejas em 1054, separação que, pela primeira vez, rasgará em
dois o “manto sem costura”. Nenhuma renovação acompanhou a obra de Simeão,
plenamente revelada ao mundo, mas não esquecida, viva nas comunidades
monásticas de Bizâncio. Tudo parecia se afundar nas areias de uma ascetismo cada
vez mais exigente e formalista. Mas, cerca de trezentos anos depois do Novo
Teólogo, uma onda poderosa se ergueu no Monte Athos, sacudindo todo torpor. O sinal
foi dado por um monge, último representante da tradição Sinaíta, antes
gloriosa, dessa escola na qual florescera uma devoção fervorosa à prece de
Jesus, ao nome sagrado de Jesus. Com Gregório Palamas, seu discípulo que se
tornou bispo de Tessalônica, o centro da teologia espiritual se deslocou e se
estabeleceu na Montanha Santa, perto do final do século XIV. Foi por causa do
modo físico de sua contemplação que os hesiquiastas hagioritas foram chamados
de “onfalopsíquicos”. Movimento a um tempo especulativo e empírico, ele não
tardou a ecoar com amplidão sem precedentes por todo o Império, quase às
vésperas de sua queda. Movimento fundamentado sobre sólidas bases doutrinais,
que o assalto do Ocidente não conseguiu abalar, e que foi confirmado, com toda
autoridade, pelos sínodos de Constantinopla. Foi esse o verdadeiro renascimento
místico. Palamas, canonizado no Oriente depois de muitas disputas doutrinas,
foi sem dúvida um dos cérebros mais originais e poderosos da Ortodoxia Grega. Com
ele, a escolástica Bizantina, esboçada em alguns tratados de Máximo, alcançaram
sua plena medida. Ao mesmo tempo, ela consagrou definitivamente, talvez sem
perceber, um método exclusivo, certamente já em voga no Sinai, há muito tempo:
a oração mental do Nome de Jesus, cuja técnica lembra o Yoga Hindu. Sob a
cobertura do venerado nome de Simeão, abusivamente invocado sem dúvida, esse “meio
rápido” queimou um pouco a antiga linha da contemplação infusa, mas sua
inspiração profunda não foi traída, mas somente reescrita e novamente fixada,
com a rejeição definitiva de toda “visão imaginativa”, tantas vezes
incompreendida no Oriente[81].
Nos umbrais dessa nova era, paramos nosso ensaio de síntese teológica.
Conscientes de sua insuficiência, pela falta de uma documentação mais completa
e segura, de um saber mais extenso, ficaríamos felizes por conseguir ao menos
atrair a atenção para esse tema, trazido pela primeira vez à França: a
espiritualidade tão específica do Oriente cristão, alimentada pela seiva patrística
Grega, e que segue, solitária, nas sombras da História, a via regia da
Deificação.
[1]
Aqui, como na primeira parte desse estudo, a autora permanece fiel ao princípio
enunciado: considerar e tratar a doutrina analisada como um todo orgânico. Esse
trabalho não é de pura erudição, mas de psicologia, introspecção e empatia (Einfühlung).
Como a deificação se encontra implicitamente, tanto no pragmatismo da ascese,
como na experiência mística própria, foi preciso se resignar a algumas
repetições inevitáveis. O método adotado será do tipo “concêntrico”, que, sem
dúvida, possui alguns inconvenientes. Mas, por outro lado, a ideia mestra será
assim melhor exposta, com mais proximidade, dada à luz, enfim. Devido à dificuldade
da tarefa proposta, nos pareceu impossível proceder de outro modo.
[2]
Essas três etapas da vida contemplativa, ou gnostikê, – a virtude, a
ciência e a teologia – alegoricamente interpretadas por São Máximo (Cap.
Theol. et Econ., II, 16), são as três tendas que os apóstolos queriam
levantar, na Transfiguração, para Elias, Moisés e Jesus. Ao redor dessa tríade,
tudo se organiza na vida do mundo que se prepara para se tornar pneumáticos.
No próprio conhecimento, o n úmero três sempre domina, em honra da Santa
Trindade.
[3]
Klimax (P.G. t.88) é p título do célebre tratado de piedade oriental,
nascido da pluma do monge Sinaíta João, apelidado de Clímaco por causa de sua
obra prima. Ele representa a escola da Palestina, que se desenvolveu
paralelamente à do Egito. Parece que todas as “escadas” santas da Idade Média
derivam desse manual da vida contemplativa, que exerceu, de resto, forte
influência sobre os destinos da espiritualidade Bizantina. A Igreja Grega
canonizou Clímaco, como o fez com todos os abades ascetas, com exceção do origenista
Evagro, diácono do Ponto, condenado pelo Quinto Concílio Ecumênico.
[4]
Clemente foi quem primeiro insistiu sobre a necessidade, não de moderar, mas de
extirpar as paixões (Strom. VII, 10, 11). Seu sonho secreto era de viver como
um puro espirito, à imitação de Deus, pois a impassibilidade divina era para
ele uma certeza. Os herdeiros de seu pensamento às vezes o atenuaram, às vezes
o reforçaram, segundo o grau de sua confiança na humanidade terrestre.
[5]
A ideia do Logos-educador, em germe desde o estoicismo, foi desenvolvida desde
Fílon. O pensamento de Clemente é, na realidade, pouco original. Mas seu Logos
é completo, de outra maneira, mais vivo e fecundante do que o de seu precursor
judeu.
[6]
Sabemos que São Bernardo construiu todo o seu De diligendo Deo sobre
essa distinção cavada em profundidade. Seu amo quia amo dá toda a medida
dessa teoria do “puro amor” que mais tarde levantará, em torno do quietismo, tantas
discussões ardentes. Ele permanecerá sempre contra a concepção hedonista
agostiniana do amor Dei, que “pretende que Deus seja Sua beatitude”, e
estará mais de acordo com a concepção de Erigena. Quanto à divisão tripartite
dos antigos, ela foi retomada por uma elite, entre os espirituais Bizantinos, a
começar por Evagro o Pôntico e Diádoco de Foticéia. Máximo a menciona em sua Mystagogia
e nas Questionies ad Thalas. Segundo o mesmo esquema foi construída a
escala das virtudes pragmáticas, teóricas e místicas dos Ambigua: praktiké,
theoria e theologia, ou purificação, iluminação e união, segundo
Dionísio.
[7]
Joao XV: 15.
[8]
Em Clemente, é sempre preciso distinguir entre o “conselho” e o “preceito”.
Isso explica as contradições aparentes dos Stromatas, nos quais, tanto o
autor fala como moralista, cioso de salvaguardar a doutrina da salvação
universal cristã, como ele visa apenas uma elite entre as elites. Essa tendência
irá se acentuar até o final de sua obra.
[9]
O pensamento dos Padres Gregos a esse respeito está em conformidade com toda a
sua antropologia. São Máximo desenvolverá a teoria da corrupção origina que se
transmite pela concupiscência (Ambigua, Quest. ad Thalas.). mas é certo
que o pecado original, entre os Gregos, não depende inteiramente da transmissão
da transgressão do casal ancestral no ato gerador, e daí provém uma concepção
diferente da graça e da liberdade.
[10] Stromatas
II, 13.
[11]
As primeiras menções, cheias de admiração, pelo ilustre asceta de Sceta, estão
nos escritos de Rufino e de Paládio. Sua vida foi inserida na Historia
Lausiaca, cujo autor foi um de seus discípulos. Mesmo depois de sua
condenação, suas obras continuaram sendo uma fonte de espiritualidade. Não foi
apenas a gnose Alexandrina que reviveu nesse “ímpio origenista”, como também o
pensamento Capadócio, uma vez que ele iniciou sua vida eclesiástica à sombra
das figuras de São Basílio e de São Gregório de Nazianze; sem falar de São
Gregório de Nissa, o grande especulativo de toda escola, de quem beberam nossos
Espirituais. A doutrina se fixou rapidamente, e se cristalizou com São Máximo o
Confessor.
[12]
Clemente de Alexandria, que já celebrava esse estado de quietude, a chamava de anapausis.
As primeiras menções de adeptos da hesíquia são antigas. Em suas Cartas, Nilo
fala do grande hesiquiasta Rufino; documentos da época mencionam João de
Citópolis, que foi hagiógrafo de João o Hesiquiasta. Às vezes os
pré-hesiquiastas são considerados, bem antes dos discípulos de Gregório o
Sinaíta, como contemplativos, mas ainda não submetidos ao exercício metódico de
um método único. Mas o objetivo permanece o mesmo: a paz perfeita em Deus, por
intermédio da oração.
[13] Esse
é o axioma conhecido do neoplatonismo que nega a origem ontológica do mal.
Santo Agostinho, desde que se livrou do trágico dualismo maniqueísta, adotou a
ideia de Plotino do mal-“nada”, e, por meio dele, essa ideia passou a toda a
teologia católica. Seria o caso de pesquisar se devemos ligar à antiga ideia
gnóstica – contra a qual toda a patrística reagiu – certas tendências que
enfatizam a realidade do mal, como em Macário e em pseudo-Macário, por exemplo.
Podemos encontrá-las mesmo nos Evangelhos. O monaquismo, cuja luta contra o
Inimigo foi tão ardente, desenvolveu essa tendência a fazer do mal uma força
real, mesmo sem ter contato algum com os heterodoxos.
[14]
São Máximo levou ao extremo seu ideal de apatheia como indiferença
humana, como fará mais tarde Nicetas Stethatos, discípulo de São Simeão,
influenciado pelo Confessor. A base desse ideal permanece sendo Bizantina, mas
a noção de apatheia é bastante elástica. São Gregório de Nazianze, o
mestre preferido de Máximo, designa a lei natural – phsycos nomos – como
sendo a própria conformidade da natureza com a vida moral. E Máximo, depois
dele, dirá que a virtude é o funcionamento normal das forças e faculdades
humanas. Ele enumera quatro graus de apatheia, dos quais o último é o
desnudamento completo – a vacuidade – do espírito na contemplação. Voltaremos a
isso mais adiante.
[15]
Por esse sinal reconhecemos infalivelmente a ortodoxia dos Espirituais. Somente
algumas heresias de origem gnóstica, tanto na Idade Média latina, como na
Rússia moderna (tais com a seita dos Khlysty), depois de pregarem o mais
rigoroso ascetismo, se livraram dele rapidamente para cair na libertinagem. Isso,
sob o pretexto falacioso de que tudo é permitido aos puros. Entre esse
relaxamento, primeiro exercido sub-repticiamente, depois justificado, e a
medida numa ascese já consumada, medida aconselhada por numerosos “diretores de
consciência”, no deserto, a diferença é imensa. O princípio ascético permanece
intangível, sempre e em toda parte, para os verdadeiros cristãos.
[16]
Eis um quadro cronológico resumido dos tratados mais representativos, desde a Vita
Antonii de Atanásio, e sem contar as conhecidas coletâneas de Rufino e
Paládio. Século IV: as cinquenta homilias espirituais atribuídas a Macário o
Egípcio, segundo uma longa tradição; a obra, em grande parte conservada, de
Evagro o Pôntico, considerado como discípulo do patriarca de Sceta, e que
perpetuou o pensamento Alexandrino no deserto; as cartas e opúsculos de São
Nilo o Sinaíta e do pseudo Nilo, em especial seu De Oratione, manual da
prece espiritual. Século V: João Cassiano, Conferências e Instituições;
Marcos o Eremita, “difícil de situar geograficamente”, Sentenças, Diálogos e
Advertências, obra ascético-mística interessante, com fisionomia própria,
que foi seguida de perto por São Máximo, em seus Capítulos Teológicos e
Econômicos; Diádoco de Foticeia, Centúria sobre a Perfeição Espiritual,
cujos capítulos curtos, sob a forma de pensamentos, em moda na sua época;
Século VI: João Clímaco, A Escada Santa; as Cartas de Barsanulfo
e João de Gaza, monges do Mosteiro de Seridos, editadas por Nicodemo o
Hagiorita no século XVIII. Século VII: sem falar no célebre Pré-espiritual
de João Moschus, que não apresenta para nós grande interesse, a obra magistral,
embora hoje parcialmente contestada, de São Máximo o Confessor; as quatro Centúrias
de seu amigo Thalassos, abade na Lìbia; as catequeses de Isaac de Nínive, cuja
espiritualidade é evagriana. A partir desse momento, a literatura Bizantina
pós-justiniana começa a declinar. Somente a escola Sinaíta mantém ainda uma
certa fecundidade, com Hesíquio de Bathos e Filoteu. Século IX: a santidade
ascética domina a mística pura, com o grande moralista e predicador Teodoro o
Studita. Séculos X e XI: o agrammatos São Simeão (949-1023), com seus
extraordinários Hinos do Amor Divino e seus Discursos,
incompletamente traduzidos por Allatius; enfim, o hagiógrafo e discípulo de
Simeão, Nicetas Stethatos, um teólogo espiritual da escola de São Máximo, mais
conhecido na História coo um dos artífices da separação das Igrejas.
[17]
Cassiano apresentava uma estreita dependência em relação a Evagro, do qual
emprestou muitas coisas. Esse monge do século V, fundador da Abadia de Saint-Victor-em-Provence,
não foi mais do que um eco fiel, mas enfraquecido, dos Padres do Oriente, e,
por sua vez, foi seguido pelo Ocidente beneditino.
[18]
Atanásio o Grande (Contra Gentes) ensinava que a liberdade de opção não havia
sido inteiramente tirada do homem, a fim de não retirar dele a própria
possibilidade de se reerguer. Encontramos o mesmo conceito em Gregório de Nissa
(De Mortuis) e nas Orationes do outro Gregório. A própria
essência da natureza humana vulnerável não pode ser destruída, segundo os
Padres. E conhecemos a convincente sinergia dos Espirituais Bizantinos. Marcos
o Eremita, em seu de Baptismo, reagindo contra o fatalismo pessimistas dos
Messsalianos, pretendia mesmo que somente a morte passara aos descendentes de
Eva, como consequência do pecado original, mas não o próprio pecado. Trata-se
de um exagero polêmico. Somente uns poucos representantes da escola de
Antioquia, como Teodoro de Mopsueste, se inclinaram para o pelagianismo. O
Padre Bulgakoff vê a afirmação dessa boa liberdade na recusa mesma de sua
Igreja em reconhecer o dogma da Imaculada Concepção. Para o reverendo autor,
Maria encarna o livre impulso da humanidade para Deus, de uma humanidade ainda
não redimida. A isenção do pecado original diminuiria, segundo ele, o mérito
pessoal da Virgem Mãe pura de todo pecado atual, pois assim “ela não passaria
de um instrumento passivo nas mãos de Deus”. Ora, segundo Bulgakoff, a
Theotokos é o modelo ideal do gênero humano, criado sob o aspecto “sofial”,
aquele da Sabedoria divina, aqui identificada com o Espírito Santo.
[19]
Podemos dizer que o livre-arbítrio é a pedra angular de todo o sistema de
Orígenes, segundo F. de Faye. O que é evidente é o desejo dos Alexandrinos de
se opor ao fatalismo gnóstico que aniquilava toda a liberdade humana, em
proveito de forças ocultas e irresponsáveis. Parece que a correção trazida
pelos Padres à doutrina de Orígenes se deve, em grande parte, à elaboração de
uma teologia pneumática mais completa. Pois a graça é a obra imediata do
Espírito Santo, pela qual a Igreja vive eternamente. Ora, essa noção precisa do
papel ministerial da terceira hipóstase falta ao subordinismo de Orígenes.
[20]
São Tomás, menos pessimista no que diz respeito à corrupção original de nossa
natureza, adotará entretanto a mesma tese agostiniana em última instância. Ele
reconhece que o homem – mesmo pagão – pode, por sua própria vontade, realizar
atos moralmente bons; mas essas ações, não sendo salutares, não podem garantir
nossa salvação. Assim, com uma mão se retira o que foi dado pela outra. Em toda
essa teoria da graça, na qual pouco intervém a cristologia, nenhuma real se faz
entre a pré-redenção e a pós-redenção. O fato de que o cristão, ao sair da
fonte batismal, já participa da energia divina, não entra em consideração aqui.
Esse é um fato primordial pela o Oriente ortodoxo. Segundo Diádoco, esse
sacramento renova em nós a imagem divina empanada pelo pecado, esperando
que o livre assentimento da vontade permita à graça recriar a semelhança
latente. Esse pensamento foi confirmado e ampliado por Gregório de Nazianze e
pelo Damasceno, aplicando a ele o princípio da sinergia, que nada tem de
racional. O pensamento dos Bizantinos não variou aí também: a graça não é algo
devido, mas um dom; mas esse dom pode ser solicitado pelas almas fervorosas, às
quais jamais será negado. São Nilo insiste sobre a necessidade de pedir
incansavelmente, de merecer, pela fé e as obras espirituais, o conhecimento
perfeito: “Os violentos se apoderam do Reino dos Céus”. Quanto à importância
que a Redenção teve para a plena liberação da vontade, quem melhor a estudou
foi São Máximo em seu estudo sobre as duas naturezas do Verbo. Toda a sua
cristologia gira em torno desse pivô, arrastando o homem, imergindo-o na liberdade
divina, como num elemento natural, por ser ele a imagem do Verbo.
[21]
Lembremo-nos de que a fonte do mal, para os Gregos, é o erro, a dispersão, a
obnubilação do espírito; a vontade não é atingida, senão secundariamente. A
Encarnação, quando Deus se torna homem para que o homem se torne Deus,
restabeleceu virtualmente o estado preternatural: o cristão, iluminado,
reconhece então o erro com o pecado; ele bebe de Cristo, comungando com Ele
pela graça do Espírito vivificador, a força que falta para a eficácia de seu desejo
de bem. Vemos assim de que modo a cristologia, por assim dizer experimental,
está na base de toda essa doutrina da salvação. A reprimenda que ela dirige comumente
ao agostinismo é de não ter considerado no Verbo encarnado senão o Imolado voluntário,
que veio apenas para reparar a falta cometida pelo homem. O sacrifício de
Cristo se torna aí apenas e sempre um “socorro sobrenatural”. Nem em seu Liber
de Perf. Just. Hominis, nem no De Libero Arbitrio, Agostinho faz uma
relação imediata entre a Encarnação-redenção e o restabelecimento de nosso
livre arbítrio, que ele confunde com a liberdade. O papel de Jesus Cristo não
cessa jamais de ser o de um mediador, insuficiente aos olhos da patrística
Grega, que reclama uma reparação mais notável da espécie humana verdadeiramente
renovada.
[22]
Em seu opúsculo Contra os Erros dos Gregos, São Tomás se levantou contra
essas duas atividades conjugadas. Sua crítica mais contundente se volta contra
a identificação, subentendida aqui, da causalidade divina com a causalidade
humana – comparação clássica das duas pessoas que remam juntas o mesmo barco.
Ora, essas causalidades jamais devem ser colocadas sobre o mesmo plano, segundo
ele, pois “Deus age como causa transcendente e como causa primeira”, ou seja,
ele subordina a Si próprio toda nossa atividade. O homem vem sempre em segundo
lugar, mas sem que seja por isso alienada sua liberdade própria. Para Tomás,
existem aí “duas causas totais, cada qual se exercendo sobre seu plano
particular”; assim, não pode existir entre elas nem conflito, nem cooperação
verdadeira. Toda essa dialética, de uma precisão impecável, tem como ponto de
partida o conceito agostiniano da criatura racional, elevada, por um decreto de
Deus, à vida sobrenatural. Entre essa criatura e seu Criador, existe uma
distinção irredutível das duas naturezas, sem participação imediata, como dizem
os Gregos, dos efeitos criados na graça criadora. Pois a “analogia”, em São
Tomás, não passa de uma simples relação da criatura com Deus, como dirá Lossky.
Para os Gregos, essa participação efetiva foi confirmada pelo Verbo, que
assumiu e redimiu a natureza humana. Ora, a liberdade é a própria substância
dessa natureza; portanto, em virtude do próprio querer de Deus – que, pelo ato
Criador, se desfez voluntariamente de seu poder único, o homem pode ser chamado
de “vontade autônoma”, e não apenas de “atividade segunda”. A sinergia dos
Gregos é salientada sobretudo em relação com sua doutrina diofisita, em São
Máximo e, no século XIV, na obra de Nicolas Cabasilas, na qual a vontade
desempenha um papel primordial.
[23]
A Igreja ortodoxa manteve oficialmente o dogma do inferno, sem sequer atenuá-lo
com a crença católica no purgatório, que ela não admite por não reconhecer o
julgamento imediato das almas após a morte. Talvez por serem as penas eternas
para eles, os Gregos tentaram transformar sua natureza. Mesmo Santo Ambrósio se
inclinava para salvação de todos os cristãos pela fé, com a extinção final dos
maus. Gregório de Nissa aceitava a demi a restauração última de Orígenes;
São Máximo aos reprovados um castigo metafisico, de certo modo, negativo – o de
não poderem ser deificados. Eles seriam iguais aos eleitos em conhecimento,
mas, longe de ser beatificante, esse conhecimento se tornaria para eles um
enorme tormento, pela impossibilidade, por assim dizer orgânica, de se unirem a
Deus: um conhecimento isento de graça, privativo como o próprio mal (Ambigua,
P.G. t. 91, 1252B, 1392, Ep. 1).
[24] Romanos
11: 11.
[25]
Parece-nos necessária uma palavra sobre o princípio do monaquismo, que não
iremos estudar em detalhe. É certo que os diversos modos da vida solitária, bem
como a ascese que a acompanha, já existiam bem antes da era cristã: mas não
eram mais do que fenômenos isolados e desprovidos de valor social real; no
melhor dos casos, uma longínqua preparação. Os motivos que geraram o verdadeiro
monaquismo cristão não foram os mesmos que deram origem à ascese pagã. O germe ideal dessa instituição pode ser
descoberto no próprio Evangelho (Mateus 19: 16-21, Lucas 18: 18-23, Marcos 10:
17-22); podemos constatar que o desejo de abandonar o mundo e suas vaidades
parece inerente à natureza humana, independentemente das condições históricas e
do meio, que não fazem outra coisa do que intensificar e generalizar esse
desejo, que todos os povos conheceram e cultivaram. Se nos recusamos a
reconhecer esses “fenômenos originários”, arriscamo-nos a nada compreender da
vida religiosa, seja dos povos, seja dos indivíduos. Mas não podemos aqui
aprofundar o problema que o monaquismo dos Padres coloca; o que nos interessa
aqui é a aplicação que ele fez da doutrina patrística, provando sua vitalidade
a cada passo. Se existe uma palavra que aparece a cada instante sob a pluma de
nossos místicos, essa palavra é – junto com o termo “pneumático” – “experiência”.
Trata-se, portanto, de viver a união com Deus, sem por isso de separar da
tradição eclesiástica própria. Essa é a garantia. Não fazemos mais do que retomar
e seguir o triplo movimento ascendente, no interior da vida una em Cristo.
[26] Conf.
III, 6.
[27]
Gênese, XII: 1.
[28]
São Jerônimo deu essa primeira interpretação da etimologia de monachos
em sua carta a Heliodoro: “Que fazes tu no meio da multidão, tu que és um
solitário?”. Já Santo Agostinho o entendia no sentido da unidade, monas,
à luz do Salmo 132: ecce quam bonus... est habitare fratres in unum. Mas
ele não podia aplicar essa glosa senão aos cenobitas, e não aos eremitas. Ora,
a própria ideia de monaquismo, em seu nascimento, é uma ideia de solidão como “única
beatitude”. Enfim, para Cassiano, tratar-se-ia da abstinência ao casamento, o
que parece pouco provável. O antigo nome do monge, que lembra o hermetismo
pitagórico, era therapeutes, e o Areopagita se serve desse termo em seus
escritos.
[29]
Haveria um grande estudo a ser feito sobre os diversos aspectos das lágrimas,
sobre a própria definição desse “dom”, que a crítica moderna interpreta
arbitrariamente, aplicando-o sempre à Idade Média franciscana. Ora, é preciso
distinguir entre as lágrimas de ternura, derramadas pelos corações sensíveis
sobre a Paixão redentora, daquelas lágrimas únicas que a antiguidade cristã
considerava e que eram lágrimas “espirituais”. Os Bizantinos possuíam uma
verdadeira “teologia das lágrimas”. Essa constituía a mais alta expressão de
toda essa pneumatização dos sentidos de que falamos por alto. Quem melhor
sentiu, viveu e exaltou o donum lacrymarum no Oriente foram Isaac de
Nínive e São Simeão o Novo Teólogo, esse último instruído por seu pater
pneumáticos, Simeão o Studita.
[30]
Segundo Clímaco, a obediência precede a penitência, sendo ela a prova decisiva
“das vítimas que serão sacrificadas em holocausto”.
[31]
Todos os milagres que abundam nas primeiras coletâneas dos Padres foram
concebidos nesse espírito, desde a Vita Antonii, na qual os prodígios se
multiplicam. O ideal não é destruir, nem sequer simplesmente mortificar o
corpo, mas fazer dele o dócil instrumento da alma, ela mesma sendo a “cítara de
Deus”. Já indicamos de passagem essa espiritualização de nossa carne, ao final
do primeiro capítulo. Reitzenstein fala, a propósito da ascese hermética, de
uma verdadeira metamorfose do ser, que tende a se tornar angélico. Mas aqui
intervém, entre os ascetas ortodoxos, a graça viva dos sacramentos,
inexistentes nas heresias místicas (como, por exemplo entre os messalianos). Os
carismas, ou dons gratuitos do Espírito Santo, não são necessariamente
requisitos para atingir a perfeição, como já afirmava Antônio. Para bem situar
o pensamento dos Espirituais sobre a justiça corporal, precisamos lembrar
dessas palavras profundas de Gregório de Nissa: “A alma é para o corpo aquilo
que Deus é para a alma”.
[32]
O estado de espírito que cria o pensamento de Pascal sobre a “agonia perpétua”
de um lado, e, de outro, a doutrina do sofrimento reparador inspirado por São
Paulo e que desemboca no dogma da reversibilidade dos méritos, todo esse
“complexo” permaneceu estranho à Igreja Grega, imobilizada em sua tradição
pneumática. Não esqueçamos, de resto, que já Orígenes exigia do verdadeiro
Espiritual que ultrapassasse o Cristo de carne, para se elevar à dignidade do
Verbo. O que pode ser mais diferente, como orientação, do ensinamento de Santo
Agostinho, sobretudo sobre o amor “carnal” de São Bernardo e dos medievais que
vieram depois dele, pelo Homem das dores?
[33]
Os críticos discutem ainda a proveniência do esquema de Evagro, imitado por
Nilo e Cassiano, debate, para nós, sem interesse, a não ser no que tange às
profundas modificações trazidas pelo monge de Sceta à tradição antiga. Evagro
personifica os oito pecados, fazendo com que cada um dependa de um demônio
específico. É assim que a palavra logismoi deve ser entendida no seu
caso. Trata-se, efetivamente, de espíritos maus, cada qual devotado a um vício
determinado. Nilo intitula seu tratado como Os oito espíritos do mal. A
descrição dos vícios em ambos é das mais vivas, concreta e realista, bem mais
do que a das virtudes. O Livro V de Cassiano é igualmente consagrado à
luta contra os principais vícios, luta que já havia sido preconizada na Conferência
do abade Serapião.
[34] Por
São Gregório o Grande, depois, definitivamente, por São Tomás de Aquino: o
primeiro fez da tristeza e da acídia o mesmo vício; o segundo fundiu a vaidade
e o orgulho. A inveja, omitida pelo Gregos, foi acrescentada ao conjunto. Daí
por diante o número dos pecados capitais fixou-se em sete, na seguinte ordem:
soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e acídia.
[35]
Para a definição de pecado como algo contrário à natureza, veja-se a Vita
Antonii: “Quando o homem se desvia da natureza e dá as costas a ela,
falamos de pecado da alma”. O Ocidente jamais abraçará essa definição.
[36] Antônio
colocava, acima das quatro virtudes cardinais, a inteligência, a caridade, o
amor aos pobres, a fé em Cristo, a doçura e a hospitalidade.
[37] Strom.,
III, 28.
[38] De
Charit., I, 3.
[39] Gnóstico,
146.
[40]
São Máximo disse: “Feliz aquele que ama igualmente a todos os homens” (De
Carit., I, 17). Ele formula esse voto muitas vezes em suas obras. Suas
palavras mais fortes sobre esse tema são: “Amar a todos os homens é não amar
nada que seja humano” (De Carit., III, 37). Conhecemos a desconfiança,
sua e de Evagro, a respeito da amizade e o amor próprio (philautia), que
consideravam como uma perigosa perversão. Esse desconfiança por ser entendida à
luz dessa psicologia apatética, pois onde existe preferência e desejo, o impulso
passional logo intervém. Ora, não se deve desejar nada que não seja a Deus,
ainda que confortando e fazendo o bem a todos, em especial àqueles que nos
fizeram mal. Diádoco, Marcos o Eremita, Isaac de Nínive, também o afirmam, pois
essa é a lei evangélica. É preciso amar o próximo como irmão em Deus, portanto
de um modo diferente de como o mundo o entende: aquilo que desejamos para ele,
acima de tudo, é que seja salvo. Poderíamos distinguir entre duas tendências,
no seio da mesma caridade monástica: a dos primeiros séculos – a do deserto, se
quisermos – e a da época seguinte, do próprio Bizâncio. Mas um livro como o Liber
spirituali amicitia de Aelred de Riévaulx jamais poderia ser escrito no
Oriente.
[41]
Essa interpretação anagógica era comum nas obras da antiguidade cristã, de onde
ela passou para a Idade Média ocidental. O número dos macarismos varia,
mas isso não tem importância, porque seu sentido permanece o mesmo: essas beatitudes
são sempre virtudes contemplativas, embora às vezes designadas como pragmáticas
– e sabemos o que esse termo designa para os Espirituais.
[42]
Não nos esqueçamos de que essa “visão”, de acordo com os Espirituais gregos,
acontece já nesse mundo, conforme insiste São Simeão em suas catequeses.
[43]
A classificação moderna dos modos e graus da oração são os seguintes: prece
vocal, meditação, oração afetiva e oração simples ou quietude perfeita. O que
nos interessa aqui não é a análise desses estados, mas apenas a gênese do
sentimento de presença que se revela neles.
[44]
O De Oratione do mestre Alexandrino foi o modelo para esse gênero. Da
mesma forma, seu célebre Comentário sobre o Cântico dos Cânticos, no
qual, pela primeira vez, surge o t ema das Bodas espirituais, com a
substituição do nome de Eros pelo de agapè (no prólogo); aí se revela a sponsa-ecclesia,
símbolo da alma humana. Gregório de Nissa não fez mais do que retomar essa
glosa e amplificá-la. Traçadas por Orígenes, as duas vias ascendentes da
prece-conversação e da união se unem no cume. Mas a oração de quietude parece
convir melhor ao gênio bizantino do que o gênero epitalâmico, mais cultivado no
Ocidente, desde São Bernardo e dos continuadores de seu Cântico.
[45]
O método moderno de meditação sobre tal ou qual mistério (como, por exemplo, no
Rosário, cuja origem é obscura) é contrário à espiritualidade dos primeiros
séculos, por apelar para a imaginação afetiva, que os antigos, e mesmo aqueles
da Idade Média ocidental primitiva, consideravam suspeita.
[46]
Foi em Constantinopla que a salmodia se impôs como prece perpétua aos monges, a
“salmodia da alma”, que de veria acompanhar, em princípio, a do corpo. São
Basílio recomendava aos religiosos: “Cantem os Salmos com sabedoria” (Regras,
110).
[47]
O Méthodos Hésychaste declara: “A oração e a salmodia diferem entre si
como o homem perfeito difere do jovem e do adolescente”. Trata-se de uma mudança
de idade espiritual. Por outro lado, São Teodoro o Studita, higoumeno do século
IX, representante de outra corrente espiritual (o “asceticismo”, mais moralista
do que espiritual), a considera a prece por excelência de toda ordem de Basílio
em Bizâncio. Atualmente, a salmodia predomina no Monte Athos, tendo quase
suprimido a “oração mental”, ao menos entre os cenobitas.
[48]
O Tratado sobre a Prece de São Nilo (ou Evagro) é uma obra-prima do
gênero. Concebida sob a forma clássica de apoftegmas, ela contém toda uma
doutrina espiritual, a mesma que se reflete nas Cartas de Nilo, onde se
encontram também pensamentos elevados sobre a oração que purifica e ilumina a
alma; ela permanece sempre sendo o preludio do conhecimento imaterial. Suas
definições, embora extraídas da patrística primitiva, foram sempre
aprofundadas. Algumas, extremamente concisas. São João Damasceno emprestará a
“subida da alma a Deus”, como já fizeram São Bento, que legou à Idade Média
latina essa bela máxima, a qual foi aproveitada também por São Boaventura e São
Tomás de Aquino.
[49]
“O valor da prece consiste, antes de tudo, em que ela orienta o espírito para
Deus. Mas seu objetivo principal – assim como o de toda a vida cristã – é de levar
o cristão à aquisição do Espírito Santo” (Boulgakov). Isso é verdadeiro para
todas as épocas do pensamento místico oriental, e Serafim de Sarov o repetiu no
século XVIII, na Rússia.
[50]
A história da “prece de Jesus” ainda não foi contada, e o monologistos segue
quase desconhecido, ou, com mais frequência, mal compreendido no Ocidente. Já
Diádoco e, depois dele, Clímaco, a mencionam expressamente. O Deus in
adjutorium meun intende, tão recomendado por Cassiano, no fundo não passa
de uma forma diferente de oração jaculatória. A devoção ao nome de Jesus
floresceu no final da Idade Média latina, graças à Teologia Mística de
Hugues de Balme. São Bernardo a cultivava, essa terna piedade do nome único,
mas sem fazer dela um método de oração. Mas a invocação “Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim” não se encontra em nenhuma obra autêntica de
São Máximo, nem de Evagro. Mesmo o grande místico São Simeão não parece tê-la
praticado, ao menos não exclusivamente, como pretendiam os hesiquiastas do século
XIV. Sabemos hoje que o Methodos, atribuído ao Novo Teólogo, é apócrifo,
nascido provavelmente nos círculos palamitas. O que há de verdade é que a Prece
de Jesus é uma oração experimental de alto valor no Oriente Ortodoxo,
remontando a uma tradição venerável, e que tem suas raízes na antiga crença do
“nome-realidade”. Essa é ao opinião de Haussherr, que se recusa a levar a sério
a espiritualidade bizantina tardia. Ele escreve, a respeito da oração
onfalopsíquica: “Alguns suspeitam de uma infiltração Hindu. Talvez a estupidez
humana a explique”. Essa afirmação pareceria descabida, mesmo vinda de um
agnóstico convicto. Que dizer, então, de um religioso? Hoje os pensadores são mais
imparciais. O Padre Haussherr destaca a escola de Simeão o Jovem, chamado por
ele de um “contemplativo”, sem mais (de onde então vem esse “teólogo” que ele
partilha com João Evangelista?), do ancestral de nossos Espirituais, São
Máximo. Ele justifica isso alegando o caráter filosófico da escola de Máximo,
oposta à ingenuidade dos autodidatas dos séculos X e XI. O santo confessor é
apresentado como um racionalista convicto, cuja theoria seria, antes de
tudo, intelectual. Ora, não resta dúvida que, para Máximo, assim como para
Simeão e Nicetas, a gnose provém do Espírito. Teólogo místico, imbuído
do pensamento dionisíaco, ele não poderia desprezar a docta ignorantia.
Toda sua obra se inscreve contra semelhante interpretação da ciência
espiritual, ciência que ele próprio declara – como Clemente ´- ser fruto da fé.
Essa gnose gerou diretamente a “união que ultrapassa o pensamento e o
conhecimento”.
[51]
Segundo as Centúrias sobre o Amor e as Quaest. ad Thalassus, toda
oração conta com três graus, que correspondem às três etapas da perfeição. Mas
aqui estamos falando da prece purificada. Nem Evagro, nem Máximo, sintetizara
suas ideias sobre a oração. São Simeão dirá: “Monge é aquele que não se mistura
com o mundo e que só conversa com Deus”. Precisamos do auxílio de toda a
doutrina espiritual de nossos mestres: é o grau de aperfeiçoamento da visão
quer nos servirá sempre de critério para a pureza da prece, que culminará na
graça, ou na perfeição “natural” desta. Acima da prece, enfim, existe o estado
pacífico – eirenikè katastasis – da prece, que é sua culminação.
[52]
Essa guarda, ou atenção, recebe diversos nomes, seja “guarda do espírito” (noera
prosochè e phylakè nous), seja “do coração” (sobretudo entre os hesiquiastas).
[53]
Essa palavra deve ser entendida nos dois sentidos que lhe atribui Santo
Agostinho: phantasia, “imagem de um objeto que reproduz uma lembrança”,
e phantasma, “imagem de um objeto não percebido, que formamos com a
ajuda de uma lembrança”. Toda espécie de imaginação, tendo um substrato
material, é absolutamente proibida na oração. Chega-se à condenação formal de
toda “visão imaginativa”. Mas não devemos esquecer as “visões imaginativas” de
São Simeão, o maior dos místicos de Bizâncio, sem falar nas inúmeras aparições
com as quais foram gratificados os santos Padres dos Apophtegmata e das Vitae.
Mas o princípio permanece intacto e sua intransigência só cresce com o tempo. E
essa exclusão explica, sem dúvida, a raridade das revelações próprias no
Oriente bizantino, comparada com a riqueza crescente dos dons recebidos pelos
místicos católicos. Alguns grandes contemplativos do Ocidente não admitiram, é
verdade, senão a “visão intelectual”, que, de resto, comporta uma certa
adaptação ao sensível humano. A maior parte não os seguiu. Essa é uma questão,
seja de temperamento religioso, seja de domínio no exercício das faculdades superiores.
Quanto aos fenômenos mórbidos que frequentemente acompanham o êxtase, e sempre
considerados pelos próprios pacientes como o pagamento pela fraqueza humana – as
falhas da natureza desorientada – o Oriente jamais as admitiu em sua
contemplação, austera e nua. Assim, a suspeita – ou a rejeição da “histeria” –
da qual tanto se abusou antes, não pode florescer nessa mística, tão viril e sã
em suas raízes.
[54]
De Orat., 115, 116. Esse é o tema do pequeno tratado que deve ser meditado.
Parece também que é preciso distinguir entre figura (ou imagem sensível, schema)
e forma (morphè). Ebvagro e Máximo afirmam que o espírito orante deve
ser aneideon (sem imagens), e falam de “contemplação além das imagens” (theoria
hyper to eidos).
[55]
Aqui se coloca todo um delicado problema de psicologia religiosa. Pois não se
trata, evidentemente, para os monges – chamados de antropomorfistas – de
representações grosseiramente materiais do ser divino, mas de uma profunda
necessidade humana de imaginar e sentir aquilo que se adora. O grito patético
do abade Serapião nas Conferências de Cassiano (“Pobre de mim, eles
roubaram-me meu Deus!”), repercutirá em inumeráveis corações. Não se manifesta
Deus em todas as espécies sensíveis? Tudo está aí. A própria discussão a
respeito dos ícones, ao final de contas, não tem outra origem senão a resposta
dada a essa questão. Essa reflexão é confirmada pelo fato de que Santo
Epifânio, grande perseguidor da heresia e dos heréticos, era ao mesmo tempo um
Espiritualista hostil ao culto das imagens, embora os tratados iconoclastas que
lhe foram atribuídos careçam de autenticidade. A expressão mais forte do
espiritualismo extremo consiste na cristologia docetista, que recusa,
deliberadamente, a própria possibilidade da encarnação de um Deus.
[56]
Não é fácil estabelecer exatamente o sentido do termo noèmata, pois esse
parece variar. Frankenberg, tradutor de Evagro, o interpreta como “pensamento
discursivo”. Hesitamos em admiti-lo: noèma e noèmata parecem
pertencer ao conhecimento já purificado, dá espiritual, e essas palavras se
colocam assim nos umbrais da própria contemplação. Em Evagro, a diferença entre
noèma e theoria é uma questão de grau, não de qualidade. Seus
textos o demonstram, e neles encontramos interferências entre pensamento (noèmata,
formas?) e theoriai ou contemplações, visões do espírito. Somente quando
se esvazia inteiramente dos fantasmas (imaginações) e dos logismoi
(produtos oi operações do pensamento discursivo), que esse espírito,
simplificado, desnudado, poderá se elevar ao “estado acima das formas”. O
domínio do racional, com todas as suas categorias, incluindo a abstração, deve
ser ultrapassado desde os primeiros passos no mundo fechado do conhecimento
gnóstico. Quanto aos Sinaítas, para eles os noèmata são “gerados pelo espírito
puro”, e se opõem sempre aos logismoi inimigos. Em suas Centúrias,
Hesíquio se recusa a “dar uma tradução adequada dessas palavras”. A “primeira
luz” das visões, para todas as escolas espirituais, é dada pelos theoremata,
chamados por Evagro e Máximo de pneumatikai theoriai. Os hesiquiastas
fizeram deles a alma de seu método clássico, chamado de phototokos, do
qual não falaremos aqui. Constataremos apenas que existe aí todo um corpo doutrinal
com base mística, que vale a pena estudar algum dia.
[57]
O “pensamento simples”, em Evagro, se opõe ao ingresso na luz sem forma, no
seio da theologia que ultrapassa a theoria, conhecimento ainda
imperfeito. Mesmo os theoremata (os pensamentos) impedem o espírito de
ser imaterial.
[58]
Muitas vezes, no hesiquiasmo, trata-se a questão do método de Dionísio, que
propõe “levar o espírito ao coração” para esvaziá-lo. Bem antes dele, os
Espirituais bizantinos o preconizavam como sendo o método por excelência.
Trata-se da “contemplação circular”, ou “enrodilhamento, sob forma da unidade,
das potências da alma, dando continuidade a essa como numa roda” (De Div.
Nominib. 4). Também Palamas se apoiava nessa teoria do “retorno ao
coração”, sob a autoridade do grande Basílio, e citava essa sua afirmação: “O
espírito que não se dispersa pelas coisas externas, nem se espalha pelo mundo
dos sentidos, retorna a si mesmo e sobe até o pensamento de Deus” (Epist.
1). Encontramos uma concepção análoga na mística especulativa alemã, na qual a
alma busca seu Herzgrund (“fundo do coração”) conforme o método
dionisíaco. O que se deve esperar será sempre a “câmara alta”, na qual a alma é
unificada se acordo com o modelo divino.
[59]
Essas três theoria, às quais se acrescentam ainda, como prelúdio ao
conhecimento natural “do mundo”, os conhecimentos do julgamento, krisis,
e da providência, pronoia, são de ordem gnóstica. Já Orígenes havia
dito: “Trata-se de um livro de Deus, como o conhecimento de Deus e do mundo incorporal”.
Ele é conferido ao espírito pelos Anjos que nos libertam de nossa ignorância
por meio da iluminação. A mesma concepção encontramos em Evagro e Marcos o
Eremita, assim como em Dionísio. W. Bousset observa que os termos de gnose
e theoria são aqui intercambiáveis. Segundo Máximo, esse conhecimento
duplo – do mundo e dos espíritos – é acessível ainda à inteligência humana
iluminada: é o fim da gnosis e da physikè theoria. Mas somente
Cristo introduz diretamente no conhecimento último, no qual o Verbo age por
meio de seu Espírito, no êxtase mental desse conhecimento apofático do Deus trino,
que é a theologia. Essa última constituirá assim a contemplação, a um
tempo adquirida e infusa, dos raios-energia nos quais se encarna o Logos. É
assim que a alma se torna um Logos em miniatura. Toda essa gnoseologia é Cristocêntrica,
mas permanece fiel ao princípio econômico, que faz do pneuma o órgão e o
introdutor do Verbo.
[60]
Em seu livro Eros und Charitas, H. Scholz afirma que esses dois amores
estão em flagrante contradição entre si. O autor apoia sua tese sobre a
absoluta incompatibilidade do pensamento de Platão e Aristóteles com a
sensibilidade cristã: entre o Deus peripatético, motor imóvel e impassível que,
por sua natureza, não pode ser levado a nenhuma atividade de amor, e o Ser
supremo do Cristianismo, amor agente e vivo. De um lado, uma pura abstração, de
outro uma Pessoa viva. Um, Eros ou desejo universal, atrai, como que por
necessidade, sem volição possível, sem jamais poder ser atraído; outro –
Caridade encarnada dos Evangelhos – só faz nascer o amor entregando-se a si
mesmo. Entre os dois, Scholz ergue uma barreira intransponível e culpa Orígenes
por haver implantado (sob a cobertura de uma falsa interpretação de Inácio de
Antioquia) a ideia de Eros na literatura cristã, de um Eros que se infiltra aí
para envenenar a caritas. Não podemos entrar aqui no fundo desse debate,
que parece transplantar para um outro terreno a velha teoria fideísta. Apenas
colocaremos duas objeções: 1) a metafísica neoplatônica não está colada à
física do Stagirita, como afirma o crítico alemão, e o realismo patrístico fica
salvaguardado pelo conceito realista, herdado do “divino” Platão; 2) toda a
experiência cristã se coloca contra a pretensa contradictio in adjeto
dos dois conceitos do amor. Quando Scholz se esforça em convencer seus leitores
de que o Deus “ato puro” de Aristóteles, batizado por São Tomás, não poderia ser
aproximado do Deus Caritas dos Evangelhos, nos recusamos a segui-lo.
Toda a história da mística, na qual os elementos do pensamento grego se
fundiram na certeza do fato cristão, prova o contrário, a saber: a harmonia e a
inesgotável fecundidade dessa síntese, verdadeiramente orgânica. O Deus de
Platão e de Plotino não se isola completamente do mundo, ao qual ele deu
existência: todo o mito do Timeu implica a ideia do Deus não-indiferente,
mas bom, e o Eros do Banquete, mais ainda do que o da Quarta Eneida,
longe de contradizer a ideia do Amor que se oferece, tem uma fonte em comum com
esse último. Fonte essa que só o Cristianismo descobriu, com sua varinha
mágica, e de onde ele fez brotar ondas de vida fecundadora.
[61]
Como sabemos, foi Orígenes que deu à célebre passagem da Epístola aos
Romanos de Santo Inácio de Antioquia a interpretação que iria se tornar
célebre: “Meu amor está crucificado” (prólogo do Comentário sobre o Cântico).
Esse aparente contrassenso foi retomado e celebrizado pelo Areopagita.
Certamente, esse ainda entendia a palavra Eros no sentido do desejo carnal,
cujo fogo, dizia ele, havia se extinguido nele. Seja como for, a patrística
anterior a Nicéia já inserira em seu vocabulário o termo Eros, transpondo-o
para o plano cristão, como era de seu direito. Dionísio, ao final do século V,
justificou o emprego do termo para seu enigmático Hieroteu e, no século XII
francês, São Bernardo espalhará a fama do amor-desejo por todo o Ocidente
cristão. Mas o Oriente grego guardará desse amor o caráter mais “espiritual”,
menos afetivo, de uma pura nostalgia do espírito, que, por momentos, poderá
lembrar o amor intellectualis de Spinoza.
[62]
Essa “fruição espiritual”, tão exaltada por Agostinho e Bernardo, existe também
entre os Gregos: nós a encontramos na teoria da pneumatização dos sentidos, a
qual está associada à ideia patrística da transfiguração do carnal. A dulcedo
Dei – sabor do Divino – revive em Diádoco e nas Homilias ditas de
Macário. Gregório de Nissa também a experimentou, mais do que Orígenes,
conforme sua exegese epitalâmica do Cântico de Salomão. Mas ela
permanece indiferente a Dionísio e Máximo. Para Evagro, essa suavidade da
presença divina se inclui, curiosamente, no próprio conceito da gnose. De modo
geral, as alegrias sensíveis parecem menos abundantes no Oriente do que no
Ocidente. Também os langores nostálgicos são aí atenuados, sobretudo quando
comparados com às sangrentas feridas de amor da escola Cisterciense, assim como
as correspondentes penas místicas. Fora São Simeão, que as conheceu e exprimiu
com dolorosa emoção, e Diádoco, poucos Gregos nos relatam essas “securas”,
eclipses do divino.
[63] Hinos
de celebração de núpcias.
[64]
Sobre o silêncio místico que marca o momento culminante da oração – êxtase
mental – existe um belo estudo em latim de Odo Case. Já Clemente de Alexandria
invoca o exemplo dos grandes taciturnos, Pitagóricos que permaneciam judôs por
cinco anos, “antes de contemplar as coisas divinas”. Encontramos o mesmo
ambiente espiritual em alguns poemas de Gregório de Nazianze. Aqui ainda,
tocamos o fundo comum das almas religiosas de diferentes formações. Constatamos
isso a cada vez que tentamos aproximar o Cristianismo original do paganismo:
não a imitação, mas a comunhão de crenças essenciais, porém remodeladas. Se
existe empréstimo, será sempre um refazimento total do legado pré-cristão. No
que concerne ao silêncio, nossos Espirituais conhecem dois tipos, do mesmo modo
como distinguem duas virtudes, a natural e a sobrenatural, sendo que a última
pressupõe a aquisição da primeira. Na Escada de Clímaco, o silêncio adquirido
ocupa o décimo degrau, do qual diz o autor poder ser alcançado “após cortar a
raiz de muitos vícios”. O silêncio infuso, por sua vez, é um dom, um carisma,
semelhante ao dom das lágrimas. Em Máximo, a prece do theoretikos
(contemplante) consiste no “silêncio profundo no qual o espírito, por meio de
uma privação, se torna digno da união” (XIV Quaest. Thal.). Também
Evagro irá falar do “silêncio completo das sensações e dos pensamentos”.
[65]
O vocabulário do amor Dei é quase tão rico no Oriente quanto no
Ocidente, mas a ênfase se dirige a outros pontos, dentro das mesmas expressões
consagradas. De modo geral, a ideia de energia – erotikè kinesis – está
colocada em primeiro lugar, em conformidade com o caráter essencialmente
dinâmico, vital, do Espírito, doador de sua própria substancia, que é o Amor.
Os Orientais empregam às veze um vocábulo especial, no qual está condensada
toda a magia do Eros: philtron. Nós o encontramos em alguns Padres, como
Gregório de Nazianze e Teodoreto. No século XOV, o grande mistagogo Nicolas
Cabasilas adotará esse vocábulo. Devemos reter essa expressão, porque ela
possui um sentido de verdadeiro feitiço, de um filtro de amor que metamorfoseia
o ser por inteiro. É esse amor que está subentendido em Máximo, quando ele fala
do rapto em Deus.
[66]
Discurso LIII. É notável o ardente cristocentrismo desse Pneumático,
para quem o objeto do Amor – que não se confunde com o amor – é sempre, repetimos,
o Verbo encarnado e glorificado, embora não sua humanidade, como para a escola
bernardina.
[67]
Esse é o “conhecimento pelo amor” de que fala Clemente, que também dirá que o
gnóstico “esse sepulcro de si mesmo”, deve preferi-lo – por hipótese – até
mesmo à sua salvação. Pois não podemos nos elevar à ciência divina senão pela
caridade, e assim ela se torna uma contemplação permanente. Conhecer e amar se
tornam sinônimos aqui.
[68]
Aqui se coloca uma questão interessante, que nos parece não ter sido
suficientemente elucidada. O Padre Rousselot, autor de um opúsculo intitulado L’histoire
du problème de l’amour au moyen âge, expõe no Apêndice II a doutrina de
Guillaume de Saint Thierry, amigo de São Bernardo, sobre a identidade formal
entre conhecimento e amor, princípio que tende a identificar realmente a
inteligência e a vontade-amor com a substância
da alma (segundo Santo Agostinho) O Padre Rousselot supõe que Guillaume teria
captado essa ideia a partir de uma homilia de São Gregório o Grande, e talvez
também do “florilégio de Santo Ambrósio”, recolhido pelo mesmo Guillaume. Eis
alguns extratos, segundo o autor: “Pois a luz da cognição consiste em possuir a
perfeição da caridade”, e: “O Verbo de Deus nos abraça quando ilumina nossos
sentidos pelo espírito do conhecimento... O Verbo de Deus nos abraça quando
ilumina nosso coração e a parte principal de nosso ser (o espírito) pela luz do
conhecimento divino”. Segundo Rousselot, a ideia desse abraço (ou beijo) do Verbo
seria idêntica aqui à “infusão dos conhecimentos, à transfusão dos espíritos”.
As citações, extraídas de diversos tratados de Guillaume de Saint Thierry, não
deixam nada a desejar, do ponto de vista da caridade, como, por exemplo: “Deus
é idêntico a si mesmo, assim como amar e conhecer são idênticos”. O autor
explicita: “A alma não pode alcançar a Deus, senão por uma transformação que a
torne deiforme”. Para Rousselot, haveria uma flutuação no pensamento do amigo
de São Bernardo, a quem ele faz representante de sua teoria “extática” do amor.
Em nossa opinião, a única conclusão que se impõe é, de encontro com a
irredutibilidade comumente admitida pelo tomismo entre o amor e o conhecimento,
a assimilação entre o amor e a visão que constitui a cognição. Nesse caso,
podemos subscrever a afirmação de M. Gilson de que toda a escola cisterciense
“tem como característica designar por meio de fórmulas cognitivas estados que são
essencialmente afetivos”.
[69]
Além da escola renana, que mantém sua concepção do ato de conhecimento
sobrenatural (contemplação) como sendo distinto das faculdades da alma (e que,
assim, se aproxima dos Gregos), lembremos ainda, com o nome de Nicolas de Cusa,
a controversa Autour de la docte Ignorance. Por meio da famosa
“coincidência dos contrários, na qual “ver é amar a Deus” (De Visione Dei,
IV), o cardeal filósofo abriu caminho à especulação antirracional mais
acirrada: trata-se de um “conhecimento supra-mental que ultrapassa todo
conceito”. Nesse grande debate do século XV, no qual o prudente Gerson se
coloca na extrema direita e Cusa permanece no centro com Bernard Waging, a ala
esquerda, representada por Vincent d’Aggsbach se mostrou o campeão da “ascensão
ignorante”, que não admite nenhum pensamento concomitante, nem sequer
antecedente. Vansteenbergue lembra a propósito, ao comentar a ideia central de
Cusa, que “ao final da busca a distinção (entre “amar” e “ver” ou “conhecer”)
já não existe. Numa palavra, “ver a Deus” implica todos os modos de alcançá-Lo.
Aqui nos encontramos sobre o terreno no qual se coloca a metafísica Grega que
especula das trevas iluminadas.
[70]
É preciso esclarecer a noção de nous, comparada à ratio dos
Latinos, que é a luz natural do intelecto. Segundo São Tomás, somente
essa pertence à natureza humana, e ela deve bastar para todas as operações
mentais. E essa razão, como sabemos, só se apoia nos sentidos – axioma clássico
do tomismo peripatético. Nosso conhecimento, assim, não é uma emanação direta
das ideias divinas (mesmo em Santo Agostinho essa emanação já se encontrava
enfraquecida), como acontece no platonismo. Sem dúvida, São Tomás, que extirpou
o “exemplarismo” agostoniano, reserva um lugar privilegiado à mens, extensão
da alma racional onde a graça pode operar por meio das potências “obedientes”.
Mas nesse sistema, fortemente construído e organizado, a teoria da mens isolada
do conjunto permanece sendo um mero esboço. Da mesma forma, a intelligentia
de Boécio (ou intellectus) “que se perde na contemplação” será fundida
pelo doutor Angélico com a ratio, e dela não se distinguirá senão na
maneira de agir. É isso que devemos ter em vista quando comparamos a
escolástica Latina com o pensamento cristão Grego: não apenas esse depende de
Platão e dos neo-platônicos (de Aristóteles, somente as psicologia), mas ele o
retrabalha e o finde com a herança recebida, num sentido puramente místico. Não
devemos esquecer que, tricotomistas desde Orígenes, nossos Espirituais
consideram o nous deiforme como sendo perfeitamente independente da
psique, a qual se submete a ele, inclusive a parte racional da alma, ou ratio.
Santo Agostinho, que era platônico, distingue também a razão superior e a razão
inferior, e fala de duo in mente uno (De Trinit. XII, 73, 4).
Essas “duas” são o conhecimento racional e a sabedoria infusa, e somente a
segunda constitui um reflexo divino, sendo que o primeiro está submetido aos res
inteligibiles. Os Gregos possuem um sentimento mais vivo sobre essa
distinção e da missão suprema do espírito que, iluminado carismaticamente,
alcança a teleiosis (perfeição). Poderíamos buscar na própria concepção
de inteligência divino modo da Igreja Grega tradicional a razão de sua
atitude sempre deferente diante dos contemplativos. Ela jamais submete as
revelações desses últimos ao controle da razão dogmatizante, porque essa Igreja
sempre acreditou, implicitamente, que o apofático supera o catafático. Os
próprios dogmas não adquirem, segundo ela, toda sua força e autoridade, a menos
que sejam confirmados plenamente pela experiência, pela theoria. O
critério aqui é a pureza da vida ascética, de um lado, e a pureza da visão expurgada
de todo influxo sensível, de outro. Ora, a desconfiança em relação a esse
sensível só cresceu ao longo dos séculos, formando um dique contra os
transbordamentos possíveis de um sentido místico desviado, o que acabou por
esterilizar, pouco a pouco, sua vitalidade. Se jamais a devoção ortodoxa caiu
no esquecimento, por outro lado muitas vezes ela esteve sob a ameaça de
esclerose. Somente no século XIX, na Rússia, a mística ortodoxa foi renovada.
[71]
Todos os Espirituais Bizantinos empregam como sinônimos, no sentido pneumático,
as palavras espírito e coração. Os hesiquiastas criaram uma teoria a respeito,
um sistema com base antropológica. No final do século XVIII, Nicodemo o
Hagiiorita, editor da Filocalia, expôs ao longo da obra essa teoria, que contém
um verdadeiro sistema anatômico: o coração é designado aqui como órgão da
essência intelectual do nous. Semelhante identificação já aparecia no
Egito antigo
[72]
É por aí que podemos compreender a alta importância atribuída pelos Gregos ao
seu dogma da processão do Espírito Santo: a igualdade consubstancial das três
hipóstases não só fica inteiramente salvaguardada, como também é assegurada
toda a economia divina. Da mesma forma, a economia da salvação individual,
entendida no sentido da recapitulatio plena, não como uma simples
reparação. Pessoa real, e não relação que une o Pai ao Filho, o Espírito possui
seu próprio magistério, em conformidade com sua natureza dinâmica: ele conduz,
como verdadeiro psicopompo, as almas oferecidas a Cristo, de quem ele é um órgão
vivo. Graças a ele, a mística Grega, sempre Cristocêntrica, malgrado certas
aparências, jamais é pan-crística. A união se faz no Espirito e pelo Espírito
Santo, como podemos ver em Macário. E eis porque a epiclese continua sendo
necessária para conduzir a transubstanciação das espécies na Igreja do Oriente:
a intervenção direta do Espírito é requerida em todos os sacramentos nos quais
a graça deificante se derrama, graça que é, a cada vez, atual (para usarmos a
linguagem dos teólogos católicos). Voltando à mística individual, parece que
somente os Bizantinos mantiveram, no ato da união, um papel de primeiro plano a
Terceira Pessoa. Mesmo em Eckart e Tauler, nada se intercala entre a alma e
Cristo, por ser o Amor o fundo incriado dessa alma. Tauler dirá: “O homem, na
união, é gerado diretamente pelo Pai no Filho e reflui para o Pai com o Filho
que se torna um com ele” (Sermão LX, 5).
[73]
A teologia católica, cristalizada no Concílio de Trento, considera o Espírito
Santo como “expiração passiva” ou “exalação de amor” (Santo Agostinho). A
terceira existência da Essência una é a Caritas, laço que une o Pai ao
Filho, dos quais procede o Espírito, que os dois “respiram” conjuntamente. Esse
é o peso infinito do Amor agostiniano. A concepção Grega, ao hipostasiar o Pneuma,
nele vê a plenitude da vida, da qual o Agapè – que, no êxtase de torna Eros
– permanece sendo uma emanação. As duas concepções se tocam sem se confundir.
Dentre os Padres Gregos, São Basílio, em primeiro lugar, definiu num tratado específico
o caráter e o papel ministerial do Espírito Santo. O princípio colocado por ele
foi o seguinte: “A criatura não possui nenhum dom que não provenha do Espírito;
ele é o santificador que n os reúne a Deus”. Outros doutores o seguiram e
aperfeiçoaram a pneumatologia. Podemos dizer que a doutrina do Espírito Santo
permaneceu no centro do pensamento Ortodoxo. O que é certo é que, por todo o
tempo, o Oriente cristão se ocupou primeiramente em estabelecer a economia das
hipóstases (com o Pai sendo a Fonte da Divindade, ou Pegè theotès), ao
invés de tentar reunir a Trindade numa “unidade em ação”, como o fez o Ocidente
Latino de modo geral.
[74]
A doutrina dos dons do Espírito Santo que São Paulo reunira, e à qual aludem
com frequência os Padres do deserto (cf. as Conferências de Cassiano),
encontrou sua primeira expressão no Ocidente – segundo Santo Agostinho – em
Gregório o Grande. A Idade Média marchou resolutamente sobre suas pegadas. No
século XIV, o Dominicano espanhol Juan de São Tomás codificou essa doutrina,
seguindo de perto o Anjo da Escola. Ele distinguiu os sete dons, enumerados com
precisão, e as sete virtudes morais, mesmo infusas, e as virtudes teologais, ao
mesmo tempo em que manifestava sua conexão com a caridade. O Oriente não
definiu sua própria doutrina dos Carismas, indissoluvelmente ligados à noção
geral da charis, na qual “se unifica a diversidade de operações
sobrenaturais” (I Coríntios 12: 6). Já em Evagro e em toda a sua escola,
os “dons” se confundem inteiramente com algumas virtudes sobrenaturais, ou
melhor, eles operam a transfusão das virtudes naturais. E esses dons aparecem
como incriados, na medida em que são “frutos do Espírito”. O Pe. Viller
observou que existe uma divergência entre os Gregos quanto à atribuição de
alguns dons. Somente Máximo considerava a sabedoria – sophia – como dom
do conhecimento espiritual propriamente; para os demais (com Diádoco à frente e
até Nicetas Stethatos) essa seria apanágio do dom da ciência, sendo a sabedoria
identificada com o ensinamento (como em Orígenes). Os medievais Latinos
estariam mais próximos de São Máximo. Os Orientais sempre insistiram sobre a
diversidade dos dons inegavelmente distribuídos entre os eleitos, ao mesmo
tempo que no fato fundamental, afirmado por São Paulo, de que a graça
santificante é uma. As distinções sutis entre a graça habitual e a graça atual
são desconhecidas aí. Seria preciso rever tudo isso em relação com a doutrina
“sofial”, que possui raízes patrísticas seguras (Santos Justino e Irineu), e
que as teologias russas contemporâneas desenvolveram, ao identificar a
Sabedoria, não com o Filho, mas com o Espírito Santo, desde Vladimir Soloviev,
essa ligação viva entre a Ortodoxia Grega e o Catolicismo Romano, até Bulgakov.
[75]
É sobretudo pelo temperamento místico que Macário (ou o pseudo Macário) se
distingue dos outros Espirituais, pois ele é antes de tudo um poeta e um contemplativo.
Cristão, ele tem um senso agudo da realidade, da força do pecado – amartia
–, e de que Satanás vive nela uma vida imensa e múltipla, penetrando na própria
substância da alma humana. Isso se deve à concepção específica que o autor tem
da composição das substâncias, marcadas, segundo ele, pela corporeidade – salvo
a de Deus, unicamente espiritual.
[76]
Na Homilia 31, depois de haver mostrado os amigos de Deus ungidos pelo
Espírito, tornados christianoi e consagrados ao Senhor, o autor, num vibrante
apelo de amor, exala toda sua alma, toda sua paixão – eros tes agapès –
por Cristo-Deus. Ele declara de si mesmo: “Cristo se torna tudo para ti: paraíso,
árvore da vida, pérola, coroa, ao mesmo tempo sofredor e incapaz de sofre,
homem e Deus; vinho, água viva, cordeiro, esposo, combatente e arma, tudo em
tudo: Cristo é”. Podemos aproximar essa litania das invocações tão frequentes
nos hinos de Simeão, como, por exemplo: “Ó Cristo, Tu, reino celeste, Tu, terra
dos humildes, Tu, paraíso verdejante, Tu, castelo divino, pão de nossa carne!
Tu és a taça e a bebida da vida, chama inextinguível, coroa e distribuidor de
coroas, alegria, felicidade e glória... A graça de Teu santíssimo Espírito
brilhará como um astro sobre todos os justos e, no meio deles, Tu resplandecerás,
ó Sol inacessível! Então todos serão iluminados na medida de sua fé, de sua
esperança e de sua caridade, na medida da purificação e da iluminação de Teu Espírito”
(XXVII). O conceito de amor, força ígnea que destrói o pecado e a paixão na
alma, que a conduz à impassibilidade terrestre, que é o Eros extático divino,
está igualmente aí, assim como a imagem da Luz incriada, ao mesmo tempo Espírito,
Verbo e Divindade Trina por inteiro. Ora, a Ortodoxia impecável do Novo Teólogo
jamais causou a menor sombra de dúvida na Igreja Grega, que o tem na conta de
seus maiores santos. A imaginação lírica de Simeão, em quem o Salvador aparece
sempre em primeiro plano, cercado de glória, e onde a alma que se une a ele é
chamada de “cálice do espírito divino”, é notavelmente próxima da visão
epitalâmica das homilias macarianas.
[77]
Lembremo-nos da Sarça ardente – teofania divina – de Moisés, do Monte Sinai
abrasado, do carro fulgurante do profeta Elias no Antigo Testamento. Em seguida,
das línguas de fogo do Espírito, descendo sobre os apóstolos no Pentecoste, e a
visão de Saulo no caminho de Damasco, visão ofuscante que o fez perder
momentaneamente a vista. E o Cristo-Rei, não é ele o herdeiro do Sol Invictus
dos antigos?
[78]
Devemos citar, em apoio à nossa tese, não apenas os textos de origem Grega. O
Ocidente, desde Santo Agostinho, com sua impressio luminis divini in nobis,
confirmou a ideia do Deus-luz. Ele está presente, seja em tratados de mística,
seja nos relatos de experiências de “união” espiritual, na Idade Média e nos
séculos seguintes. A grande profetiza do século XII, Hildegarde, não concebia
suas visões senão como revelações na luz. Ela distinguia entre o fundo luminoso
de suas aparições, fundo que ela qualificava como sombra da luz viva, e vivens
lux. Bem antes de Hildegarde, São Simeão descrevia a Trindade como “Luz três
vezes brilhante”, e anunciava: “Tua carne se iluminará como tua alma e,
acolhendo a graça, brilhará inteira, semelhante a Deus”. Essa ideia está em
perfeita harmonia com toda a espiritualidade do Oriente Grego. Deus é percebido
pelo órgão da visão, transfigurado no momento da visão. Os Gregos especificaram
e sistematizaram, em especial no Hesiquiasmo, essa intuição mística universal
cuja origem remonta ao paganismo. Já para Evagro e para toda sua escola, assim
como para Máximo e Thalassius, a visão da Trindade é a da luz tri-solar, imagem
que se reencontra intacta em Simeão o Moço e em sua posteridade espiritual. Os
dois Gregórios, o Sinaíta e Palamas, recolheram essa imagem da Tradição. Se
Satanás pode se disfarçar em anjo de luz, como lembra Diádoco, isso só prova
que existem contrafações do divino, e que é preciso vigiar às portas do
espírito, incansavelmente.
[79]
Aqui está a linha se separação entre a mística cristã ortodoxa e o emanatismo
(de emanação). Separação dogmática essencial, tanto quanto a ascese, oblação
dos sentidos, não constitui jamais na recusa em reconhecer o direito do carnal à
santificação. Os Gregos, com sua antropologia idealista tão ousada, foram até o
limite, sempre preservados do perigo por seu conceito apofático de Deus. Sua imanência
não será para a criatura outra coisa do que a participação nas energias da
Essência, mas uma participação que deifica, conforme a graça. Nesse sentido, o
homem pode ser realmente chamado de “criador criado”, como diz Scotus Erigena,
longínquo discípulo de Gregório de Nissa, Dionísio e Máximo.
[80]
A prece pura se identifica ara Evagro e Máximo com a contemplação da Santa
Trindade, que é a “divinização dos anjos e dos homens”; trata-se da prece
teológica no silêncio profundo, com o espírito desnudado, posto em presença de
Deus. Somente então, conforme nossos Espirituais, a alma reproduz a imagem
perfeita de seu Criador. A ideia de quietude, consagrada pelo termo hesíquia, é
dominante: Deus é paz imutável – Sabbat – e para assimilar-se a essa paz
o homem deve vencer para sempre seu tumulto interior. A teoria das paixçoes, de
origem alexandrina, de seus movimentos induzidos da alma está fundamentada no
ideal da catástase, estado de estabilidade realizado na apatheia, que
consiste, não o esqueçamos, na liberdade plena da alma, independente de tudo
que não pertença à sua verdadeira natureza. A impassibilidade em Máximo tem
também o nome de “estado pacífico”. Todo dinamismo da energia erótica deve
servir à pacificação última, a mística Bizantina é uma mística quietista, no
sentido verdadeiro do termo, o que não implica uma pura receptividade, a alma é
levada até aí pelas asas da ação realizada e da graça derramada no próprio seio
da Paz, que constitui bem supremo, enquanto
q eu o mal consiste na agitação vã, impotente e vazia.
[81]
É preciso confessar que os escritos autênticos de Simeão e de Nicetas estão em
flagrante contradição com a proibição de toda imaginação no Methodos.
Nosso místico viu a Cristo, conversou com Ele, antes de se abismar na Luz
inefável e no silêncio sagrado. A regra adotada, será a mesma do Methodos
hesiquiasta: só se pode conhecer a Deus pela visão da Luz que emana Dele.
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