segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Nikolai Berdiaev - O Eu, a solidão e a sociedade

  


 

I

O EU E A SOLIDÃO

SOLIDÃO E SOCIABILIDADE

 

 

O eu é primitivo: ele não pode ser deduzido a partir de nada, nem pode ser reduzido a nada. Quando digo ‘eu’, não enuncio nem estabeleço nenhuma doutrina filosófica. Eu, esse ‘eu’, não constitui a substância da metafísica ou da religião. O erro do cogito ergo sum está em que Descartes pretendia deduzir a existência do eu a partir de qualquer coisa diferente, deduzi-la do pensamento; mas, na realidade, não é pelo fato de pensar que eu existo, ao contrário, eu penso por que eu existo. O que deveria ser dito não é: “Penso, logo existo”, mas “Eu existo, envolto nas trevas do Infinito, portanto eu penso”. O ‘eu’ é primeiro existente, ele pertence ao domínio da existência.

 

O ‘eu’, antes de toda objetificação, é, por sua natureza existencial, liberdade. Henri-Frédérik Amiel diz justamente que o fundo do ‘eu’ não pode ser feito de objeto. Precisamente por ser o ‘eu’, ele não se encontra entre os objetos do mundo. A partir do momento em que ele se torna objeto, ele deixa de ser o ‘eu’. Ele é, por natureza, inicial e primitivo. Consciente e inconsciente não se opõem senão enquanto suas propriedades. O que vem primeiro, não é, como pensam muitos filósofos, a consciência, mas o ‘eu’ imerso na existência. Quando começamos pela consciência, partimos já de um certo grau de objetificação. Que a consciência do esforço seja, como professa Maine de Biran, a aurora da personalidade, isso sem dúvida possui uma importância considerável, mas não é o que existe de primordial. Dizemos ainda que a consciência de si é uma criação do si. É verdade, mas isso pressupõe a existência de alguma coisa anterior à existência.

 

O surgimento da consciência é um acontecimento extremamente importante no destino do ‘eu’. A consciência divide e isola, mas ela também faz um esforço para reunir e para superar o isolamento. Pois se o ‘eu’ é liberdade, liberdade em primeiro lugar, também é verdade que a consciência aguda do ‘eu’ é inseparável de um sentimento de servidão e de dependência em relação ao ‘não-eu’. Originalmente, o ‘eu’ e o tudo, o tudo e o ‘eu’, não se distinguem; apenas mais tarde descobrimos o ‘não-eu’ e, em contato com ele, o ‘eu’ contrai uma sensibilidade especialmente aguda e dolorosa. A distinção entre o ‘eu’ e o “eu próprio”, entre anima e animus, é já secundária e relativa ao crescimento espiritual do ‘eu’. Assim é que partimos da unidade indiferenciada do ‘eu’ e do mundo, passando pelo dualismo entre o ‘eu’ e o ‘não-eu’, para alcançar a unidade concreta de todo ‘eu’ com o ‘você’, na qual a multiplicidade se conserva, mas transfigurada.

 

A filosofia parte do ‘eu’, não do objeto: ela nasce a partir da dúvida em relação ao objeto. O filósofo não é o homem da consciência coletiva, genérico; ele não poderia partir do estado no qual o ‘eu’ é objetificado na consciência coletiva. Antigamente os homens viviam encerrados num espaço restrito, no qual eles se sentiam bem, onde estavam preservados do sentimento de isolamento. Hoje, em geral, eles começam a viver no universo, no seio da imensidão do mundo, com um horizonte mundial, o que aviva o sentimento de solidão e de abandono. O filósofo sempre viveu no universal, sempre teve por horizonte o mundo inteiro, ele não conhece um círculo restrito; e é por isso, inicialmente, que ele é só, no mesmo grau que o profeta, mas de modo diferente desse. Essa solidão é superada pelo filósofo, mas não pela vida numa consciência coletiva, mas pelo conhecimento. É isso que iremos examinar agora.

 

O ‘eu’ se define, de um modo antinômico, como o imutável prestes a mudar. Ele não poderia mudar no tempo, se atualizar, se não houvesse algum suporte para a mudança, se esse sujeito que muda não permanecesse e persistisse sendo ele mesmo. O ‘eu’ se desdobra sem cessar, muda de feição; mas, em si mesmo, ele permanece sendo ele mesmo, um e único. Ele pode se contrair e se expandir; cada um de nós comporta um ‘eu’ mais estreito e um ‘eu’ mais vasto. Mas o ‘eu’ em si pode ser definido como a unidade permanente sob todas as mudanças, o núcleo extratemporal, que não pode receber nenhuma determinação de outra coisa do que de si próprio. As mudanças experimentadas pelo ‘eu’ podem ser determinadas extrinsecamente; mas ele próprio não pode ser determinado desde fora, pelo ‘não-eu’. Ele só é determinável desde dentro, e responde ativamente a toda ação extrínseca, determinando-se a si próprio.

 

Todo ‘eu’ se parece com todo outro ‘eu’, enquanto puro ‘eu’; mas cada qual só é um, precisamente na medida em que é diferente dos outros. Cada ‘eu’ é um mundo á parte. Que pressupõe a existência dos outros, mas que não se parece, nem se identifica com eles. O que eu chamo de ‘eu’ é unicamente o ‘eu’ não socializado, não objetificado. Minha existência, a existência do ‘eu’ precede sua inserção no mundo; mas ela é inseparável da existência do ‘outro’ e dos outros.

 

A consciência de si é necessariamente a consciência dos outros; em sua natureza metafísica, ela é social. A existência do homem, na medida em que a consideramos como a pura existência do ‘eu’ pressupõe a existência dos demais homens, do mundo, de Deus. O isolamento absoluto do ‘eu’, a suspensão de todo contato com outrem, com um ‘você’, equivale à destruição do ‘eu’ por si próprio. Ele cessa de existir quando, no interior de sua própria existência, não lhe é dada a existência de um outro ‘eu’, de um ‘você’.  Amiel afirma com justeza que a análise de seu ‘eu’ lhe abre uma perspectiva sobre o mistério do mundo. Ao contrário, o ‘eu’ de Fichte não é exatamente um ‘eu’: ele não é individual, mas universal, e não conhece nenhum outro ‘eu’, nenhum ‘você’, mas apenas o ‘não-eu’. O ‘eu’ apreende a si próprio como produto de sua própria atividade; mas essa atividade não é possível senão com a existência, não apenas desse ‘eu’ ativo, mas de alguma coisa e de algum outro; e aquilo a que me refiro aqui não é a existência dos objetos para o ‘eu’, mas é, como veremos a seguir, a existência de um outro ‘eu’, de um outro ‘você’.

 

Naquilo que me constitui enquanto ‘eu’, entram não apenas minha alma, mas meu corpo também. A teoria do dualismo, do paralelismo entre a alma e o corpo, é estéril. Tanto em mim como no outro, o corpo não pertence apenas ao mundo objetivado, mas provém da existência interior; e, tanto em mim como no outro a existência interna não depende somente de sua projeção no mundo, mas ela manifesta a própria intimidade do ser. É precisamente nesse domínio, diferente daquele a que chamamos de vida-no-mundo, que se coloca o problema do ‘eu’ e de suas relações, seja com os outros, seja com o objeto.

 

É surpreendente constatar que o sentimento de existir e, em especial, a consciência de si, envolvem sofrimento e vulnerabilidade, despedaçamento e desdobramento. Esse sofrimento se relaciona com aquilo que certos filósofos, como Simmel, Tillich e Jaspers, chamam de “situação imite do homem”. é verdade que o ‘eu’ é lançado no mundo, que ele habita o mundo, que está submetido à sua ação; entretanto, é verdade também que ele não pertence unicamente ao mundo. Minha vida transcende a si mesma incessantemente; mas esse transcender, na medida em que eu permaneço no mundo. Torna minha existência dolorosa e atormentada. O ‘eu’ não existe senão na medida em que transcende a si próprio, e perece se permanece em si mesmo, sem saída: esse é o enigma fundamental do ‘eu’.

 

Para que continue sendo ele mesmo, duas condições se impõem ao ‘eu’: é preciso que ele se subtraia à objetificação e à socialização do ‘eu’, e é preciso que ele ultrapasse a si próprio; na medida em que for capaz de realizá-lo, pela força de sua existência íntima, ele poderá sair de si para ir ao encontro do ‘outro’ e dos outros, ao ‘você’, a seu próximo, ao mundo de Deus. Não há nada mais repugnante e funesto do que um ‘eu’ que mergulha egoistamente em si mesmo e em seus próprios estados, um ‘eu’ que se esquece dos outros, do mundo, do múltiplo e do todo; em resumo, um ‘eu’ incapaz de transcender a si mesmo. Isso acontece com algumas mulheres histéricas. Somente o poeta lírico tem o poder de lidar com sua ignominia de beleza, porque a criação poética constitui em si uma maneira de transcender.

 

A reflexão que esclarece mais profundamente toda a existência do ‘eu’ é a reflexão sobre a solidão, tão pouco estudada até o presente com um espírito filosófico – ainda que o próprio conhecimento, com sua ambiguidade, pudesse considerar interessante a solidão, permitindo que ela seja superada de tal sorte que seria essa justamente a maneira de obtenção da luz interior. Na medida em que o ‘eu’ não é capaz de dizer ‘nós’, ele experimenta um sentimento agudo, lancinante de solidão. É no coração dessa fase de solidão que nasce a personalidade, ao tomar consciência de si mesma. A massa da humanidade, que vive na inocência primitiva, de uma vida coletiva, genérica, ignora esse sentimento de solidão; ao contrário, esse último acompanha o esforço para sair dessa vida da espécie e nascer para a personalidade. É quando estou só, quando me sinto só, de modo agudo e doloroso, que eu experimento minha personalidade, minha originalidade, minha singularidade, minha irreversibilidade, minha diferença em relação a seja lá quem for, ou a seja lá o que for, nesse mundo. No agudo extremo desse sentimento de solidão, tudo parece se tornar para mim estranho e heterogêneo. Eu já não me sinto comigo, em meu país natal; nesse mundo que me parece estranho eu não me sinto na pátria de meu espírito.

 

Esse sentimento de degredo da alma no mundo para o qual ela foi enviada se exprime na concepção órfica original da alma.

 

Lentamente ela nasce nesse mundo, consumida por um desejo maravilhoso;

E as tristes canções dessa terra não podem substituir para ela a música celeste.

(Lermontov)

 

 

Na medida em que não me sinto eu mesmo, na medida em que não me encontro no mundo de minha própria existência, na medida em que sinto os homens com se pertencessem a um outro mundo que não é o meu, tanto o mundo como os homens se tornam objetos para mim, e passam a fazer parte de um mundo objetificado, ao qual eu me sinto, mais do que ligado, acorrentado. O mundo objetificado não é capaz de me tirar de minha solidão. Diante do objeto, diante de qualquer objeto, quaisquer que sejam os laços que o prendam a mim, o ‘eu’ permanece sempre só. Essa é uma verdade fundamental.

 

No seio de minha solidão, na minha existência encerrada em si mesma, eu não me limito a sentir e reconhecer com acuidade minha personalidade, minha originalidade e minha singularidade; ao contrário, eu experimento a nostalgia de uma fuga para fora de minha solidão, a nostalgia da comunhão, não com um objeto, mas com o ‘outro’, o ‘você’, o ‘nós’. O ‘eu’ tem sede de sair de sua reclusão ensimesmada, para se dirigir a um outro ‘eu’; mas ao mesmo tempo ele permanece em guarda, pois ele vê com apreensão um encontro que pode fazê-lo experimentar a brutalidade de um objeto.

 

O homem possui um direito sagrado à solidão e à salvaguarda de sua vida íntima. Seria errôneo confundir solidão com solipsismo; ao contrário, não pode haver solidão que não implique a existência do ‘outro’ e dos outros, assim como a existência do mundo estranho e objetificado. Não é tanto em sua existência própria que o ‘eu’ é solitário, quanto em face e no meio dos outros, no mundo onde ele se encontra alienado. A solidão absoluta não é concebível, ela só pode ser relativa à existência dos outros e do ‘outro’.

 

Se absoluta, a solidão seria o inferno e não o não-ser: como tal, ela não pode ser pensada positivamente, e não seria mais do que uma negação. Se relativa, a solidão constitui uma enfermidade, colocada sob um sinal negativo; mas ela não é só isso, pois ela deve também ser considerada como positiva quando manifesta uma condição mais elevada do ‘eu’, erguendo-se acima do mundo comum, genérico e objetificado. Nesse caso, ela nos separa, não de Deus e do mundo de Deus, mas do lufa-lufa social de todo dia, que em si mesmo não passa de um mundo degenerado. Ela nos revela assim o crescimento da alma.

 

Quando se afasta da banalidade cotidiana e social, o ‘eu’ busca uma existência mais profunda, uma existência autêntica. Ele experimenta como que um ritmo alternativo que o faz oscilar entre a ação cotidiana e integrada à sociedade, e a solidão. Quando Kierkgaard expressou o pensamento de que o Absoluto é o que desune e não o que une, isso só está correto com a condição de considerar a união e a desunião no mundo social do cotidiano. O espaço e o tempo, condições do mundo dos objetos, provocam ao mesmo tempo a solidão e a ilusão de superar a solidão; eles conduzem, seja à desunião entre os homens, seja à sua união, não na existência real, numa comunhão verdadeira, mas apenas na objetividade, que é a matéria cotidiana do social. Nada é mais importante para o ‘eu’ do que o fato de se mover no espaço e no tempo. Sair fora dos dados do espaço e do tempo implica de certo modo escapar de uma solidão fixa, estabilizada. Ora, a solidão pressupõe sempre uma necessidade, uma nostalgia de comunhão. Quando eu me reconheço como uma pessoa, quando desejo realizar em mim a personalidade, eu tenho que reconhecer ao mesmo tempo a impossibilidade de permanecer confinado em mim mesmo, e também toda a dificuldade que experimento em deixar a mim para ir ao encontro do ‘outro’ e de outrem.

 

A solidão é sempre, num certo sentido, um fenômeno social: ela pressupõe sempre a consciência de uma conexão com o ‘outro’, com o ser estrangeiro. A mais cruel das solidões é a solidão dentro da sociedade, vale dizer, a solidão por excelência. É somente no mundo e na sociedade, ou seja, no mundo dos objetos, no mundo objetificado, que a solidão é possível. Na medida em que não saímos do ‘eu’ senão para encontrar o ‘não-eu’ – o mundo objetivo – não superamos, em absoluto, a solidão. A cada instante, sem cessar, o ser solitário realiza esse movimento; entretanto, sua solidão, longe de se atenuar, cresce sempre e sempre. Essa é uma verdade indiscutível, a de que nenhum objeto e capaz de remediar a solidão.

 

Essa não pode ser suplantada senão no plano da existência, no contato do ‘eu’, não com o ‘não-eu’, mas com o ‘você’ que é também um ‘eu’, ou seja, mediante o encontro, não com um objeto, mas com um sujeito. Uma vez separado da vida coletiva original, e depois de haver experimentado o mal da consciência, do desdobramento, da solidão, o ‘eu’ já não pode adquirir a integridade, a harmonia, a comunidade com o ‘outro’, por meio de um retorno à vida coletiva no mundo objetivo. Ele precisa sair do mundo dos objetos: nenhuma relação com um objeto é capaz de realizar a comunidade e a comunhão. A solidão é uma contradição. Segundo Kierkegaard, o trágico está na contradição na qual se sofre, e o cômico, na contradição na qual não se sofre. A solidão é trágica: o ‘eu’ tenta suplantar esse trágico, mas ao mesmo tempo não cessa de experimentar a impossibilidade disso; daí nasce uma contradição dolorosa entre a impossibilidade de suplantar o trágico da condição, e a necessidade de fazê-lo.

 

Existem muitos caminhos pelos quais o ‘eu’ se esforça para vencer a solidão: o do conhecimento, o da vida sexual, o do amor e da amizade, o da vida social, o dos atos morais, o da arte, e assim por diante. Seria inexato pretender que a solidão não diminua com isso; mas não é possível sustentar que ela seja definitivamente superada; porque todos esses caminhos conduzem à objetificação, e o ‘eu’, ao invés de atingir um outro ‘eu’, um ‘você’, no ato da comunhão interior, não encontra mais do que o objeto, a sociedade.

 

A solidão não é uma experiência simples e uniforme. Ela existe em diversas formas e diferentes graus. É notável que eventos sociais como a disputa, a luta, mesmo o ódio, permitem muitas vezes superar ou diminuir o sentimento de solidão. Mas, depois, ela se mostra ainda mas grave. Pode acontecer também que a solidão seja sentida como efeito da incompreensão, da infidelidade do reflexo enviado a mim pelo outro. No seio do ‘eu’ vive a necessidade profunda de ser exatamente refletido pelo ‘outro’, de receber sua própria afirmação e confirmação. O ‘eu’ aspira a ser entendido, a ser visto. O narcisismo provém de profundezas insuspeitas: ele está ligado à própria essência do ‘eu’. O ‘eu’ se vê no espelho e busca seu reflexo na água, a fim de confirmar sua existência no ‘outro’; mas, na realidade, não é no espelho nem na água que ele deseja ser refletido, mas sim no outro ‘eu’, no ‘você’, num ato de comunhão. Ele aspira a encontrar um outro ‘eu’, seja ele quem for, um amigo, qualquer que seja –  não um objeto – que o adote definitivamente, que o confirme, que o veja em sua beleza, que o entenda; numa palavra, que o reflita. Nisso reside o sentido profundo do amor. O narcisismo representa o fracasso do amor, ele consiste no reflexo o ‘eu’ no objeto; o sujeito continua a existir em si mesmo, sem jamais sair de si. O objeto – que paradoxo! – é justamente aquilo que deixa o sujeito no interior de si mesmo, que não o conduz a outrem, de tal modo que a objetividade resulta ser a forma extrema da subjetividade.

 

A sede de conhecer constitui-se no desejo de superar a solidão. O conhecimento consiste numa saída para fora de si, em direção do ‘outro’ e dos outros, uma extraordinária dilatação do ‘eu’ e da consciência, uma vitória sobre a divisão produzida pelo espaço e o tempo. Mas, na medida em que permanece objetivo, o conhecimento não permite se evadir realmente da solidão, porque todo objeto é sempre algo de estranho para o ‘eu’ que, em face disso, permanece recluso em si mesmo. Nenhuma objetivação, seja do conhecimento, seja da natureza, seja da sociedade, pode por fim às contradições trágicas do ‘eu’; o único conhecimento que pode vencer eficazmente a solidão é aquele que se opera sob a perspectiva, não da sociedade, mas da comunhão. Dentro da perspectiva da sociedade, do conhecimento socializado – e, como tal, universalmente válido – conhecer equivale a obter aquilo que é comum, e não a entrar em comunhão.

 

Ontologicamente falando, a solidão é a expressão da nostalgia de Deus, de Deus enquanto sujeito e não enquanto objeto, de Deus enquanto ‘ele’ (Du) e não como ‘mim mesmo’(Ich)[1]. Somente em Deus é possível encontrar aquilo que é capaz de suplantar toda solidão, por meio do que eu posso adquirir o que é, de forma próxima e intimamente, um sentido incomensurável com minha existência. Aquela coisa única à qual eu posso pertencer, e nela confiar plenamente, à qual posso me entregar sem reservas, essa coisa é Deus, e somente Deus. Deus não pode ser um objeto para mim, e a objetificação, a socialização de minhas relações com Deus o torna exterior a mim, faz dele uma autoridade em relação a mim.

 

Podemos dizer que a solidão não é da ordem ontológica do ser, e que ela só existe de forma subjetiva. O que existe subjetivamente não pode ser suplantado senão por um sujeito existente em contato com o fundo do ser, e que não se revela objetivamente, mas subjetivamente. A relação do ‘eu’ com o mundo é dupla. De um lado, ele experimenta o sentimento da solidão, ele se sente estrangeiro no mundo, sente-se apátrida num mundo que não lhe parece ser de todo seu; por outro lado, ao contrário, o ‘eu’ descobre que a história do mundo não é outra coisa do que seu fundamento mais profundo, que tudo o que acontece, acontece a ele pessoalmente, pertence ao seu destino. Da mesma forma como tudo me parece estranho e longínquo, ao contrário, tudo se apresenta a mim como formando parte de minha própria experiência.

 

Pois não é uma contradição, que aquilo que me acontece possa parecer estranho a mim. É porque a sociedade é para mim um objeto, e assim a socialização, a objetivação, a sociedade, não se apresenta como existencial, e a vida na sociedade, a vida que nos projeta nela, é alguma coisa que, embora sendo eu mesmo, me é estranha e não é capaz de dissipar minha solidão. Mas nada é mais importante para o destino do ‘eu’, porque ser precipitado no cotidiano na natureza social é um fato de sua existência interna, é a decadência do ‘eu’, ainda que essa decadência pertença à sua existência. Nesse mundo de desunião, a parte que cabe ao ‘eu’ é precisamente a vida em sociedade. Podemos dizer então, num certo sentido, que a sociedade é interior em relação ao ‘eu’. Carl Gustav Carus pensa que a consciência está ligada ao particular, ao individual, e que o inconsciente, está ligado ao geral, ao supraindividual. Nesse sentido é verdade que, em suas camadas inconscientes o ‘eu’ contém toda a história do mundo e da sociedade, tudo o que a consciência experimenta como sendo estranho e longínquo, porque na consciência o ‘eu’ não revela mais do que uma parte de seu conteúdo.

 

Uma vez arrancado das profundezas da existência e entrando em contato com a sociedade objetificada, o ‘eu’ deve se defender dela como se ela fosse um inimigo. Na sociedade, o homem preserva seu ‘eu’ desempenhando tal ou qual papel, em que ele já não é si-mesmo. Seja qual for a condição social na qual se encontre, ele sempre desempenha um personagem, seja de rei, aristocrata, burguês, homem do mundo, pai de família, revolucionário, funcionário, artista e assim por diante. No cotidiano social, no seio da sociedade objetificada, o ‘eu’ não é o mesmo que em sua existência interior; esse é o tema fundamental da obra artística de Tolstoi. Por isso é tão incômodo cavar até o eu verdadeiro de um homem, retirar dele todos os seus véus. Na sociedade, o homem está sempre em cena, ele se conforma com aquilo que recebe em sua condição social; e, quanto mais compenetrado de seu papel ele se torna, mais difícil é para ele chegar ao seu próprio ‘eu’. Considerado assim, o instinto cênico se torna um dos caminhos da objetificação. O homem vive em muitos mundos simultaneamente, e em cada um ele representa um personagem diferente, ele se objetificar de maneira diferente. Isso foi bem demonstrado por Georg Simmel. O que é especialmente notável é ver que é precisamente a objetificação produzida por ele, na qual ele se aliena de si, e que ele sente como estranha a ele, que provoca nele o sentimento de sua solidão. Parece que o ‘eu’ coloca diante de si sua própria exterioridade.

 

O romantismo, tal como surgiu na história e no espírito europeu, apresenta muito interesse para o problema da solidão do ‘eu’. O romantismo é a expressão do sentimento da solidão, vale dizer, da ruptura entre o objetivo e o subjetivo, ele aparece quando o ‘eu’ se separa da ordem hierárquica objetiva, que parece ser eterna. Ele vem sempre depois do desdobramento, quando a alma sente como estranha a si a ordem hierárquica do objeto, o cosmo de São Tomás de Aquino e de Dante. O ‘eu’ romântico é um ‘eu’ que pressupõe já a cisão entre sujeito e objeto; ele nega pertencer à ordem subjetiva das coisas.

 

Essa cisão foi preparada pelo sistema astronômico de Copérnico, pela filosofia de Descartes e também pela reforma de Lutero. Ela pressupõe novas ideias científicas sobre o universo, novas ideias filosóficas sobre a atividade do ‘eu’ no conhecimento, novas ideias religiosas sobre a transformação na consciência não apareceram imediatamente, mas vieram a surgir apenas depois de diversas repercussões.

 

Quado o mundo objetivo se tornou estranho ao sujeito, quando deixou de haver um cosmo hierárquico no qual o sujeito possuía sua residência orgânica, em que se sentia em casa, o homem começou a buscar uma saída para sua solidão e seu abandono, a buscar para si uma proximidade, uma intimidade com o mundo subjetivo; isso conduziu ao desenvolvimento de uma vida afetiva. O sentimento cósmico dos românticos, seu sentimento panteísta do universo emanavam do sujeito. Seu cosmo não era um dado objetivo, como o cosmo da Idade Média no pensamento escolástico. É justamente por sua subjetividade que as relações românticas com a natureza conduziram à fusão do homem com ela, coisa que as relações objetivas, por serem hierarquizadas, jamais fizeram. Sentindo sua solidão, o ‘eu’ romântico fundia-se com o cosmo.

 

Ainda que o romantismo não tenha encontrado uma saída, ao menos ele se constituiu num momento importante para a libertação do ‘eu’ em relação ao mundo objetificado e socializado. Ele o abriu para o infinito, libertou-o das cadeias que o prendiam ao finito, a um lugar determinado na ordem hierárquica. Sua fraqueza foi – apesar de libertar o ‘eu’ da objetividade, apesar de ter revelado sua potência criativa, a potência da fantasia do ‘eu’ – não tê-lo tornado apto a tomar consciência de sua personalidade, não tê-lo tornado capaz de forjar uma para si. A filosofia romântica não é personalista, nem a individualidade humana constitui uma personalidade. O ‘eu’ se perde num infinito cósmico e nele se dissolve, perdendo sua consistência. A vida afetiva, atingindo talvez pela primeira vez a liberdade de seu desenvolvimento, inundou o mundo inteiro com o ‘eu’; o conhecimento subordinou-se à imaginação criativa.

 

São diversas as formas com as quais o romantismo pode se revestir: existem os que são otimistas ao extremo, com o dogma da inocência da natureza humana e a fusão com a vida do universo; outros são pessimistas ao extremo, com a solidão do ‘eu’, o infortúnio e a trágica sorte do homem. Entretanto, o que o pessimismo acusa, aquilo de que ele é a consciência, não é o estado de pecado em que o homem é mantido por sua natureza, mas sua infelicidade, a tragédia insolúvel do ser.

 

Podemos ainda apresentar o romantismo como uma mudança de horizonte. Durante a infância, os espaços mais restritos, o canto, o quarto, o corredor, o carro, o buraco de uma árvore, constituem um mundo imenso e misterioso. Na consciência dos adultos esse sentimento se enfraquece e quase chega a desaparecer. O universo é menos misterioso para nós do que o canto sombrio ou o corredor para a consciência infantil. Como novidade, o romantismo mostrou o lado misterioso das coisas, ele mudou o horizonte; mas esse horizonte romântico não é capaz de se sustentar, pois ele carrega consigo a dissolução da personalidade no infinito cósmico, ele a afoga no oceano da afetividade. O ‘eu’ deve superar a solidão; mas isso não pode ser feito, nem por maio da objetificação, recaindo na escravidão do mundo dos objetos, nem tampouco pela subjetividade romântica: somente pela conquista da espiritualidade no coração de sua intimidade, confirmando a si mesmo como uma pessoa, que, ao mesmo tempo em que sai de si, ele permanece sendo o mesmo.

 

Podemos, assim, distinguir quatro tipos de relação entre a solidão do ‘eu’ e o instinto social:

 

1.       O homem que ignora sua solidão e é absorvido pela sociedade; esse é o tipo mais elementar e o mais difundido. Nessa condição, o ‘eu’ está plenamente adaptado ao meio social; a consciência está objetificada e socializada ao máximo. O ‘eu’ ainda não viveu a cisão e a solidão. O homem se sente em casa em meio ao cotidiano social, ele pode ocupar aí uma posição elevada, e mesmo eminente. Existe aí apenas uma reserva: o que predomina nesse tipo são os imitadores, homens sem originalidade, medíocres, que vivem de um fundo “comum” transformado em tradição, seja essa conservadora, liberal ou revolucionária.

 

2.      O homem sem experiência da solidão, mas indiferente à sociedade. Nesse caso, ainda, o ‘eu’ está adaptado ao meio social, ele se sente de acordo e em harmonia com a vida coletiva, e sua consciência é socializada; mas ele não partilha dos interesses sociais, ele não mostra nenhuma atividade social, ele é indiferente aos destinos da sociedade e do povo do qual faz parte. Esse é um tipo muito comum. Nele, como no primeiro, está ausente todo conflito; ele se multiplica nas épocas de vida social estável e tem dificuldade em se manter nas épocas revolucionárias, nas épocas de crise.

 

3.      O homem familiarizado com a solidão, mas sem preocupação social. Esse tipo, ou não está, ou está pouco adaptado à vida social; ele é dividido por conflitos, ele não é um tipo que está em harmonia. Sua consciência é pouco socializada e não é levada a se insurgir contra a coletividade ao seu redor, porque isso revelaria um interesse e uma emotividade voltados para a sociedade. Dessa forma, ele se contenta em se isolar do meio social, de proteger sua vida espiritual e criativa. É isso o que faz o poeta lírico, o pensador solitário, o esteta sem raízes. Os homens desse tipo costumam viver sua solidão constituindo pequenas elites. Eles se dobram facilmente, quando o exigem as necessidades de sua existência, aos compromissos com a vida social, porque lhes falta, de modo geral, as crenças e convicções a respeito disso, sendo conservadores em épocas conservadoras, revolucionários nas revoluções, mas indiferentes, tanto ao espírito conservador como ao espírito revolucionário. Não são nem combatentes, nem tomam a frente.

 

4.      Por fim, vem o homem que vive na solidão sem se desinteressar pela sociedade. Esse caso pode parecer à primeira vista muito singular, porque a solidão não parece muito compatível com a sociabilidade. Entretanto, é isso que nos mostra esse tipo profético, do qual os profetas do Antigo Testamento nos oferecem o protótipo eterno. Esse tipo profético não se encontra senão no domínio religioso, porque ele compreende todos os iniciadores, os inovadores, os reformadores, os revolucionários do espírito. O profeta está sempre em conflito com a coletividade religiosa ou social, ele jamais está de acordo com o meio, com a opinião pública. Ele é, como sabemos, sempre mal interpretado, e nele jogam-se pedras. Sendo um profeta religioso, ele está em conflito com o sacerdote, com o pontífice, com a expressão da coletividade religiosa. O profeta sente de uma maneira aguda sua solidão, seu abandono; ele pode estar exposto à perseguição de todos aqueles que o cercam.

 

Pois bem, o que é insustentável é afirmar que o homem de tipo profético seja indiferente em relação à sociedade. Bem ao contrário, ele está inteiramente voltado, e em todas as circunstâncias, para os destinos do povo e da sociedade, para a história, para seu devir pessoal e para o devir do mundo. Ele denuncia os vícios de seu povo e de sua sociedade, ele os julga, mas não cessa de se interessar por seu destino. Ele não se ocupa com sua própria salvação, com seus sentimentos ou estados de consciência; mas ele olha em direção ao reino de Deus, para a perfeição da humanidade, e mesmo de todo o universo. Encontramos esse tipo semelhante a si mesmo fora do domínio religioso, na vida social, no conhecimento que não deixa de ter um elemento profético, e na arte.

 

Desses quatro tipos, a distinção, como acontece com todas as classificações, é bastante relativa; e as relações entre eles não devem ser compreendidas num sentido estático, mas dinâmico. Os dois primeiros têm como característica comum se adaptar ao meio social, enquanto que os dois últimos se opõem a ele. Importa muito compreender que o revolucionário medíocre na ordem social não está menos em harmonia com o meio, que sua consciência pode estar completamente socializada, e que ele ignora os conflitos inseparáveis da solidão.

 

Assim sendo, a reflexão a respeito da solidão me parece ligada àquilo que existe de mais profundo no problema filosófico: ela é o nó ao qual estão ligados os problemas do ‘eu’, da personalidade, da sociedade, da comunhão, do conhecimento; nos seus confins extremos, o problema da solidão se torna o problema da morte. Passar pela morte equivale a passar para a solidão absoluta, romper com o mundo inteiro. A morte é a ruptura com toda a esfera da existência, a interrupção de todas as ligações e de todos os contatos, o isolamento completo. Se, no termo último do mistério da morte, essa ainda fosse partilhada, se o contato ainda se mantivesse com o ‘outro’ e os outros, já não se trataria de morte. O que faz a morte é justamente o fato de que toda ligação, todo contato, são cortados, que a solidão é absoluta. Com a morte, o comércio do homem com o mundo dos objetos chega ao fim.

 

O que resta a se perguntar, é se esta solidão é definitiva e eterna, ou se ela não passa de um momento no destino do homem, do mundo, de Deus. Toda a vida do homem deve ser empregada em preparar laços, contatos com os outros homens, com o universo e com Deus, de tal forma que eles possam suplantar a solidão absoluta da morte. Falando propriamente, a morte não deve ser a negação completa do ‘eu’, pois seria mais fácil negar o mundo do que a ele. a morte não deve ser mais do que um momento durante o qual o ‘eu’ se vê completamente isolado, e, pela ruptura de todos os laços e contatos, separado do mundo e de Deus. Todo o paradoxo da morte provém do fato de que esse isolamento, essa ruptura, essa separação resultam da existência em um mundo decaído, na objetificação, na sociedade de nossos dias. As ligações estabelecidas na objetificação conduzem inexoravelmente à morte. Assim, devemos nos interrogar sobre as relações de correlação entre o ‘eu’ e o objeto e entre o ‘eu’ e o ‘você’, devemos abordar o problema da comunicação entre as consciências.

 

 

II

O EU, O VOCÊ, O NÓS E O ISSO

O EU E O OBJETO

A COMUNICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS

 

 

Um filósofo religioso, judeu, Martin Buber, num livro notável, Ich und Du, (Eu e você), estabelece uma distinção fundamental entre IchseinDusein e Essein, o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’. A relação primária entre o ‘eu’ e o ‘você’ é, para ele, a relação entre o homem e Deus. Essa relação é dialógica, ou dialética. O ‘eu’ e o ‘você’ estão em presença um do outro, face a face. O ‘você’ não é um objeto, não é uma coisa para o ‘eu’. Quando ele se transforma em objeto, ele se torna Essein, isso. Podemos dizer também, misturando minha terminologia com a de Buber, que o Essein, ‘isso’, é o resultado da objetificação. Tudo o que é objetificado é Essein, mesmo Deus, objetificado, se torna Essein. O ‘você’ desaparece e já não há encontro possível, não mais face a face. O sujeito na terceira pessoa, ‘ele’, se não for o ‘você’, se torna ‘isso’. Para mim, o ‘você’ jamais pode ser um objeto. Mas tudo é susceptível de se tornar objeto segundo um processo que podemos assistir na vida religiosa. O objeto é ‘isso’, o Es de Buber. Na medida de sua objetificação, a natureza e a sociedade se transformam para nós em ‘isso’; mas a partir do momento em que encontramos um ‘você’ na natureza, o mundo objetivo se evanesce e o mundo da existência se revela a nós. Buber pensa acertadamente que oo ‘eu’ não existe fora de suas relações com o outro, na medida em que esse outro é um ‘você’; mas, para ele, a relação entre o ‘eu’ e o ‘você’ é unicamente aquela do homem para com Deus, aquela que é tratada na Bíblia. A relação entre as consciências humanas, a do ‘eu’ e do ‘você’, a relação entre dois homens, a que envolve a multiplicidade humana, não é estudada por ele. ele não se coloca o problema da metafísica social humana, o problema do ‘nós’.

 

Pois não são apenas o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’ que existem, também o ‘nós’ existe. O ‘nós’ pode se transformar em ‘isso’, como acontece na socialização (que é uma objetificação), como acontece por exemplo no ecumenismo da Igreja, considerada enquanto instituição social. O ‘nós’ objetificado consiste na coletividade social, que é dada a cada um de nós desde fora; mas ele existe também de outra maneira, como comunidade e comunhão de pessoas, na qual cada um é um ‘você’, e não um ‘isso’. A sociedade é o ‘isso’, ela não é um ‘nós’. Quando ela é objetificada, cada um de seus membros é um objeto dentro dela. São os vizinhos, não os próximos, os amigos, porque um amigo jamais é um objeto. Na sociedade existem nações, classes, as diversas camadas sociais, os partidos, os concidadãos, os camaradas, os superiores, mas nunca um ‘eu’, nem um ‘você’; e o ‘nós’ só se encontra aí sob uma forma socializada, descolada da pessoa concreta.

 

Existe um outro modo de comunhão das consciências: sua participação no ‘nós’. O ‘nós’, para o ‘eu’, não é ‘isso’, o objeto, ele não constitui um dado exterior. O ‘nós’ é um conteúdo qualitativo imanente ao ‘eu’, pois todo ‘eu’ envolve sempre uma relação, não apenas com o ‘você’, mas também com a multiplicidade humana. É sobre essa relação que se fundamenta a ideia de Igreja, tomada em sua pureza ontológica, da Igreja não objetificada ou socializada, pertencente à ordem ontológica, pois quando acontece de a Igreja transformar a si própria em objeto, num ‘isso’, o ‘nós’ já não pode conter nada mais de existencial.

 

Com efeito, tanto quanto no ‘eu’, a existência se revela no ‘você’ e no ‘nós’; é apenas no objeto que ela jamais se revela. Freud, apesar de sua ingenuidade filosófica, que às vezes confinava com o materialismo, distingue entre o ‘eu’ e o ‘si’. Existe no homem um fundo impessoal, o ‘si’, que pode sobrepujar o ‘eu’.

 

Essein de Buber em parte corresponde ao das Man de Heidegger, a terceira pessoa determinada. O Essein coincide também com aquilo que eu chamo “mundo da objetificação”, no qual, por sinal, não se resume todo o problema social. O mundo do Dasein, do ser-situado, de Heidegger, é o Mitwelt, o mundo da coexistência com outrem. Mas Heidegger não coloca, nem tampouco aprofunda o problema da sociologia metafísica. Será mais em Karl Jaspers que encontraremos essa questão tratada.

 

Se não apenas o ‘eu’ e o ‘você’, mas também o ‘nós’, são imediatamente dados, não é menos verdade que é o ‘eu’ que é primitivo; mas eu não posso dizer ‘eu’ em anunciar e colocar, por esse mesmo ato, o ‘você’ e o ‘nós’. Entendida assim, a sociabilidade consiste numa propriedade do ‘eu’, constitutiva de sua própria existência íntima. É preciso distinguir radicalmente entre o ‘você’ e o ‘nós’, de um lado, e o ‘não-eu’, de outro, pois, enquanto que o ‘não-eu’ se confunde com a objetificação, o ‘você’ e o ‘nós’ são existenciais. O ‘você’ é um outro ‘eu’, e o ‘nós’ é o próprio conteúdo do ‘eu’. Quanto ao ‘não-eu’, ele é sempre hostil ao ‘eu’, ele constitui sempre uma oposição, um obstáculo ao ‘eu’. No máximo, o ‘eu’ pode enxergar no ‘não-eu’ uma metade, a outra metade do ser, embora não possa encontrar nele a multiplicidade dos demais homens, seus semelhantes, o que é evidente, porque sendo o ‘não-eu’ um objeto e não um ‘você’, nenhum ‘eu’ pode decorrer dele.

 

Até o presente, o problema das relações entre o ‘eu’, o ‘você’, o ‘nós’ e o ‘isso’ não foi colocada com suficiente amplidão na filosofia, que só se preocupou com a questão da realidade do ‘eu’ de outrem e da maneira como ele é conhecido. Será que nos é dada essa realidade do ‘eu’ de outrem, será que a conhecemos? Segundo a teoria antiga, não perceberíamos mais do que o corpo do outro, e seríamos obrigados a inferir, por analogia, a vida de sua alma. Essa teoria é completamente errada e deve ser imediatamente rejeitada. De fato, conhecemos muito mal o corpo do outro, ignoramos por completo o que se passa ali, e não percebemos senão sua superfície, enquanto que a vida psíquica do outro nos é, ao contrário, melhor conhecida, na medida em que a captamos, que nela penetramos de maneira imediata. A intuição da vida mental de um outro ‘eu’ não pode ser negada, porque a intuição não poderia se aplicar a um outro ser ou uma outra existência considerados como objetos, e ela só pode ser possível na medida em que tomamos esse ser ou essa existência como sendo um ‘eu’, como sendo ‘você’. Pois diante de um objeto eu permaneço sempre só, sem poder sair de mim mesmo; ao contrário, na presença de um outro ‘eu’ que seja para mim um ‘você’, eu saio de minha solidão e alcanço uma comunhão. A intuição da vida espiritual de um outro ‘eu’ é uma comunhão com esse ‘eu’.

 

O fato de percebermos o rosto de outrem, e expressão de seus olhos, frequentemente nos entrega o segredo de sua alma. Os olhos, os gestos, as palavras nos fazem conhecer a alma de alguém, melhor do que seu corpo. Conhecemos de fato, e percebemos a vida de outrem, não apenas com o auxílio daquilo que ele nos revela, mas também daquilo que ele nos vela. Esse método para conhecer a outrem por suas reticências chegou a ser objeto de muito abuso em nosso tempo, a partir da descoberta do inconsciente. Sem dúvida, a psicanálise freudiana atesta a possibilidade de conhecer a vida psíquica e não a vida fisiológica de outrem, pois exatamente de seu ponto de vista a libido, a sexualidade, provém, não da vida orgânica, mas da vida espiritual. Também não é menos errado imaginar que o método analítico é o único capaz de nos ensinar profundamente a respeito da vida interior de alguém, em outros termos, a respeito de seu verdadeiro ‘eu’. Quando pretendemos fazer do ‘eu’ um objeto de conhecimento, ele se esconde fundo. Ao contrário, existe uma apreensão imediata da alma do outro; mas ela é afetiva, simpática, erótica, vale dizer: ela é da ordem do amor. Se ela não perfura o mistério do ‘eu’ de outrem, que é impenetrável, não devemos concluir daí, como se faz tantas vezes a partir da realidade desse mistério, a impossibilidade total de conhecer seja lá o que for da alma de outrem.

 

Até hoje, não se prestou muita atenção no problema da comunicação entre consciências. Esse é um dos problemas fundamentais da filosofia. É indispensável distinguir entre comunicação e participação. A participação é real, ela consiste na penetração na realidade primeira. Ao contrário, a comunicação, para a maior parte, não passa de simbólica, ela pressupõe a simbolização, vale dizer, o emprego de signos exteriores capazes de traduzir para fora a realidade interna. O simbolismo próprio às comunicações é precisamente aquilo que, a partir da ordem interior da existência, transparece no mundo objetivo, vale dizer, desunido, desfeito, desmembrado. Nossas artes estão cheias de simbolismo, assim como nosso conhecimento: ao mesmo tempo em que ela trai um estado de desunião, ela estabelece comunicações. Numa certa medida, é graças aos signos e aos símbolos, que conhecemos a vida interior dos outros; mas essas comunicações que se estabelecem na vida humana implicam sempre a desunião, elas pressupõem que não é possível encontrar saída para o mistério da existência; isso se deve ao fato de que elas não possuem mais do que um valor simbólico.

 

Esse é o caso dos costumes, dos hábitos, da imitação, da polidez, da amabilidade. Todas as comunicações que constituem a vida do Estado possuem esse caráter, e elas não pressupõem a menor comunhão entre as pessoas. Em particular, o caráter convencional é próprio a todos os signos que servem às relações pecuniárias, e nas quais a objetificação alcança sua forma mais extrema. Mas o ‘eu’ não se satisfaz em comunicar com os outros apenas por meio da sociedade ou do Estado, pelas instituições, ou seja, por meio de signos convencionais. Ele aspira a algo mais do que uma comunicação, ele deseja uma comunhão com os outros, o que ele quer é deixar seu lugar para aceder a uma existência autêntica. As comunicações convencionais não permitem deixar o mundo dos objetos, elas se mantém em relação com eles; por sua vez, o impulso que nos leva à comunhão conduz, para além da objetificação, à existência real. O simbolismo das comunicações está sempre em proporção aos diferentes graus de objetificação.

 

A comunhão comporta a reciprocidade: não é possível haver comunhão unilateral; no amor não partilhado, não existe comunhão, pois na comunhão o ‘eu’ e o ‘você’ são ambos ativos, enquanto que com o objeto não se pode exigir nenhuma reciprocidade, porque com ele não é possível estabelecer mais do que uma comunicação simbólica.  O ‘eu’ não pode comungar senão com um ‘eu’ que seja, para ele, um ‘você’, e um ‘você’ ativo, para que a comunicação seja bilateral, vale dizer, sobre o plano, não da objetividade, da objetificação, mas da existência. Na medida em que o ‘eu’ não está ligado senão ao objeto, ele permanece só, mesmo na comunicação, e a solidão não pode ser suplantada senão pela comunicação entre pessoas, entre o ‘eu’ e o ‘você’, no interior, não da sociedade objetificada, mas do ‘nós’.

 

A consciência, por sua própria natureza, é social, ela pressupõe que os demais seres humanos existem e que eles estão em relação recíproca, ela implica irmãos em humanidade. Mas é frequente acontecer que ela contrarie a comunhão, deixando o homem em sua solidão, por ter sido socializada, vale dizer, adaptada às comunicações simbólicas que constituem o reino da sociedade, ao invés de se voltar para a realidade da comunhão na existência autêntica. Ao ser socializada, a consciência é entregue à vida coletiva do dia-a-dia. No êxtase místico, como caem todas as barreiras da consciência, desaparece todo obstáculo à união. O homem chega a aspirar ao apagamento de sua consciência a fim de saciar sua sede de comunhão. Na originalidade criativa, pessoal, assim como no êxtase suprapessoal, dissipam-se o cotidiano social, com suas barreiras e normas. Não é que o pensamento pessoal, original, próximo de sua fonte primária, seja a negação da comunidade e da comunhão; ele não nega senão a sujeição do pensamento ao cotidiano social, à sociedade transformada em objeto. O que o pensamento pessoal condena não é a comunidade, mas a generalidade. Jaspers professa com razão que não existe um ‘eu’ sem que haja comunicação com ‘outro’, sem disputa dialética. A partir do momento em que o mundo se degrada na condição de sujeito puro do conhecimento, ele já está objetificado, e o que ele pode obter daí por diante já não será uma comunidade interior, mas apenas uma comunicação, restritiva e fundamentada no geral.

 

Uma vez que a conversão de seja lá o que for em objeto constitui uma evidente racionalização, será na vida afetiva que o ‘eu’ irá melhor se revelar. Ela comporta uma objetificação menor do conhecimento, desde que as emoções não tenham sido socializadas de modo a mascarar a vida interior do ‘eu’. Essas dificuldades não impedem que o conhecimento fundado na comunhão, por meio do qual um ‘eu’ penetra na intimidade de um outro ‘eu’, seja um conhecimento emocional. Seria um erro crer que a comunhão, vitoriosa sobre a solidão, só seja possível de homem para homem, que ela seja reservada à amizade humana. Ela também pode penetrar no reino animal, e até no reino vegetal ou mineral, que possuem também sua existência interna. Podemos, como São Francisco de Assis, comungar com a natureza, com os oceanos, as montanhas, as florestas, os campos, os rios. O exemplo mais notável desse tipo de comunhão afetiva nos é fornecido pelas relações do homem com os cães, verdadeiros amigos do homem. realiza-se uma reconciliação do homem com a natureza alienada e objetificada, na qual o homem reencontra, não mais um objeto, mas um sujeito, um amigo. As relações entre o homem e o cão possuem um valor metafísico, pois, perfurando o objeto, atinge-se a existência autêntica.

 

Sabemos, a partir da teoria de Freud sobre o narcisismo, sobre a qual já dissemos colocar um problema dos mais profundos, que o ‘eu’ se torna aí objeto da libido. O narcisismo consiste num desdobramento do ‘eu’, e é por isso que o ‘eu’ se torna seu próprio objeto, torna-se ele mesmo uma parte do mundo objetificado. O narcisismo não pode ser superado senão com a condição de que o ‘eu’ busque seu próprio reflexo, não mais em si, mas em algum outro ‘eu’. Esse fenômeno do narcisismo se encontra igualmente no domínio do conhecimento.

 

Para Freud, o instinto mais profundo é o da morte; ele pensa assim, porque ignora o mistério da comunhão, da saída do ‘eu’ no ‘você’ e no ‘nós’. O instinto sexual, como tal, não conduz à comunhão e à penetração num outro ‘eu’. Existe nele um elemento demoníaco de destrutivo. Ao contrário, é ele que nos lança no mundo objetificado e nos acorrenta a ele. é por isso que, ao lado do instinto sexual, aparece para Freud o instinto da morte, que não conhecia um terceiro que pudesse ser mais profundo.

 

A evasão para fora do cotidiano social, que desune e prende, por meio da união extática no suprapessoal, traz uma solução ao problema da solidão pela abolição e a negação da personalidade. A máscara nos cultos antigos, por exemplo no culto dionisíaco, simbolizava a vitória sobre a solidão, e a participação no divino. mas o problema da comunicação de ‘eu’ para ‘eu’, de pessoa a pessoa, não deixa de subsistir. Ele não pode ser resolvido a não ser pelo amor, amor erótico e amor amistoso, pois o amor está indissoluvelmente ligado à pessoa e constitui sempre uma saída do ‘eu’ para fora de si em direção a um outro ‘eu’, e não em direção ao impessoal, ao ‘si’ coletivo. Mas o ‘eu’ não é ainda a pessoa. É preciso que ele se torne pessoa: e para isso concorre a comunhão com o ‘você’ e o ‘nós’. A pessoa se afirma na comunhão em que cada qual sai de si e vai na direção do outro.

 

Pois a reserva interior do ‘eu’ só faz expressar seu isolamento, sua solidão. É uma maneira dele se defender contra o mundo objetificado e socializado. O ‘eu’ não pede mais do que se abrir para o ‘você’, mas o que ele encontra, ao invés desse ‘você’, são coisas. E no entanto, se a solidão constitui uma fase no desenvolvimento pelo qual a pessoa toma consciência de si esma, ela deve ser superada; e, como ela não pode sê-lo por meio da objetificação que só gera um mundo impessoal, somos assim levados ao problema da pessoa, que será examinado mais adiante.

 

 

 

 

III

SOLIDÃO E CONHECIMENTO – TRANSCENDÊNCIA

CONHECIMENTO COMO COMUNHÃO

SOLIDÃO E SEXUALIDADE – SOLIDÃO E RELIGIÃO

 

 

É incontestável que o conhecimento chega a suplantar a solidão, porque ele nos faz sair de nós mesmos, do espaço e do tempo – tais como nos são dados – para nos conduzir a outro espaço e outro tempo, e que ele, levando-nos até o ‘outro’, supera o isolamento. O conhecimento é uma das saídas possíveis para a solidão, uma saída para o outro ‘eu’, para mundo, para Deus. Aquele que conhece sai de sua reclusão, deixa de viver unicamente em si e consigo mesmo. Tampouco se pode negar que o conhecimento traz em si uma marca social, que ele permite aos homens comunicar entre si. São evidentemente sociais a comunidade lógica, o aparelho lógico do conhecimento, os conceitos, as normas e as leis, a língua. A língua é o instrumento mais poderoso da constituição da sociedade e o estabelecimento de comunicações entre os homens, mas ela própria está ligada ao pensamento e à elaboração de noções que permitem a instituição de uma comunidade de ordem intelectual entre os homens. Subjaz aos nomes uma verdadeira magia social. Os resultados e as realizações práticas do conhecimento dependem do grau de comunidade entre os homens, de agrupamentos sociais, de sua cooperação laboriosa, em resumo, da maneira como eles superam a solidão. Todos esses fatos colocam, em toda sua complexidade, as relações entre conhecimento e solidão.

 

Se o caráter social do conhecimento caracteriza o estabelecimento de comunicações entre os homens, nem por isso segue-se que ele caracterize também a realização da comunhão, vale dizer, que a solidão seja ontologicamente superada. Pois, uma vez que a socialização é idêntica à objetificação, e que a objetificação do conhecimento mascara o mistério da existência (única forma de suplantar a solidão e estabelecer a comunhão), das duas perspectivas a partir das quais se pode considerar o conhecimento – a da objetificação e a da amizade com um ‘si mesmo’ – somente a segunda é capaz de trazer a cura para a solidão.

 

Assim é que o conhecimento comporta dois aspectos. Seu sentido primário está na relação do conhecedor para com o ser; nesse sentido a solidão é superada quando a participação do conhecedor no mistério da existência é alcançada. O segundo sentido do conhecimento reside nas relações do conhecedor com o ‘outro’, com a multiplicidade dos homens, com a sociedade. Se, desse segundo ponto de vista, se pretender suplantar a solidão por meio da socialização, como essa reflete a queda do ‘eu’ no mundo dos objetos, o sucesso obtido será superficial, e não poderá ser conseguido sem que o sentimento e a consciência de si sejam amortecidos.

 

A comunhão por meio da qual a solidão pode ser superada não se realiza, portanto, senão pela passagem, não do ‘eu’’ ao objeto, mas do ‘eu’ ao ‘você’, tal como operam o amor e a amizade. Isso é inteiramente válido para o conhecimento. Nem o contato do ‘eu’ com o objeto, nem a sociedade podem abolir a solidão. Tal coisa só é possível por meio do ‘você’, pela comunhão no interior de um ‘nós’, e jamais por meio do social. Uma vez que o conhecimento objetificado não trata nunca de outra coisa que não do geral, ele fabrica abstrações e alcança o universal, mas, seja no geral, seja no universal, já não existem o individual, o singular e o pessoal. Ao contrário, no conhecimento visto como comunhão, na medida em que ele permite ao ‘eu’ se unir com o ‘você’, o valor da universalidade dos resultados reside em que eles servem para alcançar o individual, o singular e o pessoal. Não é numa generalidade abstrata, mas no universal concreto, que o individual encontra sua afirmação.

 

Assim sendo, quando o universal e o geral oprimem, negando o particular e o singular, torna-se possível superar a solidão, mas apenas na medida em que se suprime totalmente o ‘eu’, e portanto do ‘você’ (que não é outra coisa do que um ‘outro eu’). Ao contrário, quando o conhecimento é considerado como sendo uma filosofia da existência, ele sempre trata do ‘eu’ e do ‘você’, e é, em essência, personalista. Com efeito, o que importa não é afogar a solidão numa universalidade impessoal, mas sim ultrapassá-la pela personalidade. Ao se libertar do jugo da sociedade, da comunidade lógica socializada, o conhecimento torna o pensamento supralógico.

 

O certo é que superar a solidão consiste sempre em operar uma transcendência do ‘eu’, seja no pensamento, seja na vida emocional. Mas transcender-se em direção ao objeto e ao geral é uma coisa, transcender-se em direção ao ‘você’, ao ‘outro eu’, em direção à existência autêntica, é outra, e totalmente diferente. Certamente existe um valor positivo no ato através do qual o ‘eu’ ultrapassa a si mesmo, se liberta pelo conhecimento do objeto, pela instituição da sociedade, pela elaboração das generalidades e dos conceitos indispensáveis à comunicação – mas o mundo em cujo interior isso se realiza continua a ser um mundo decaído, dividido, acorrentado. Mesmo na generalidade do conhecimento objetificado transparece a luz do Logos, ainda que seja num meio obscurecido, que reflete a servidão do ‘eu’ humano.

 

Assim é que o conhecimento desemboca em contradições e antinomias insuperáveis. Na medida em que ultrapassa a solidão e obtém a comunhão, e enfrenta o tempo, a pessoa e outros tantos problemas, de onde surgem as contradições. A objetificação não suprime essas contradições, ela só o faz em aparência; e elas se multiplicam na mexida mesma do progresso do conhecimento objetificado. Para todas essas contradições, que às vezes se tornam intoleráveis, a solução possui um único nome, que é Deus. Deus significa precisamente a coincidentia oppositurium, para retomarmos a definição genial de Nicolas de Cusa.

 

O conhecimento é conjugal por natureza: ele pressupõe uma dualidade; ele não pode ser produzido, nem somente pelo objeto, nem por uma atividade própria e exclusiva do sujeito. É por isso que a solidão não é suplantada, a menos que, na operação do conhecimento, se realize a união verdadeira, que é a união pelo amor, uma vez que não existe união possível com o geral, sendo a única forma de união aquela que se dá com um ‘outro eu’, com o ‘você’.

 

A essência conjugal do conhecimento é una com sua essência teândrica. No conhecimento, existe a parte do homem e a parte de Deus. A objetificação parece eliminá-las do saber, e substituí-las pela impessoalidade e a generalidade. A dificuldade do conhecimento está em trespassar essa impessoalidade e essa generalidade, para realizar a união conjugal das pessoas. Mas pode acontecer que, sobre a via do conhecimento, o ‘eu’ não consiga banir a solidão, e que ele se ponha a buscar a união por outros caminhos. Por conhecimento, entendo aqui não apenas o conhecimento dos sábios e dos filósofos, estranho à maior parte das pessoas, como também o conhecimento comum, fornecido pela vida de todo dia, que está submetido ao geral e resulta da imitação.

 

Uma das principais causas da solidão humana é o sexo. O homem é um ser sexuado, vale dizer, ele é metade de um ser, um ser cindido, incompleto, que aspira a ser completado. O sexo lesa profundamente o ‘eu’, que é bissexual, que em sua integridade e sua plenitude seria macho e fêmea, ou seja, andrógino. Dessa forma, a primeira maneira de fugir da solidão na comunhão diz respeito à solidão sexual, ao isolamento no sexo; ela aspira à reunião na integridade sexual. Pelo simples fato de sua existência, o sexo é separação, falta, nostalgia, desejo de se abrir ao outro.

 

A união física dos sexos, que encerra o desejo sexual, não basta, por si só, para superar a solidão, e essa pode vir a se mostrar ainda mais violentamente. A união sexual pode inclusive levar à queda do ‘eu’ no mundo objetificado, pois, embora sendo um acontecimento da natureza, a vida sexual remete ao mundo dos objetos. Seu resultado se encontra socializado no casamento e na família. Como fato biológico e social, a sexualidade é objetiva; ora, na objetividade, a solidão não é superada, mas apenas amortecida.

 

É por isso que, embora a união biológica dos sexos e a instituição familiar possam adormecer e apaziguar o sentimento de solidão, eles não podem fazê-lo em definitivo, e existe um verdadeiro demonismo no sexo, que aparece tanto na repressão quanto nas manifestações sexuais. Quando a sexualidade é demoníaca, ela se torna destrutiva e assassina.

 

Somente o amor e a amizade podem trazer ao homem a grande promessa de que a solidão pode ser superada. O amor é precisamente aquilo que suprime a solidão, o que conduz o ‘eu’ ao outro, a reflexão do ‘eu’ no outro e do outro no ‘eu’. É uma comunhão na qual a pessoa se une a outra pessoa. Um amor impessoal, que não se dirija a nenhuma imagem individual, não poderia ser chamado de amor: “amor de vidro”, dizia Vasily Rozanoff. Isso não passa de uma corrupção do Cristianismo. Da mesma forma, a amizade só pode ser personalista, e dessa forma participa igualmente do erótico.

 

Como poderia não existir uma ligação profunda entre a pessoa e o amor, uma vez que o amor é o que faz de mim uma pessoa? Somente pelo amor podemos nos fundir totalmente com o outro, superando a solidão. O conhecimento não é possível, a menos que ele seja amor. Mesmo o que existe de parcial e demoníaco na sexualidade pode conduzir ao amor. Quando a existência humana é lançada no mundo objetivo, o amor se torna trágico e se liga à morte. O mundo objetificado não reconhece o amor autêntico, ele não o ama, só conhece dele o aspecto biológico e social; por seu lado, o amor desconhece das leis do mundo objetivo e social, ele deve romper seus limites a fim de suplantar a solidão; e é por isso que ele está tão intimamente ligado à morte.

 

Somos reconduzidos à mesma dualidade. A comunicação sexual pode se encerrar dentro da sociedade, permanecer dentro dos quadros das instituições sociais, e a objetificação impede a comunhão real, de modo que a solidão persiste; ou, ao contrário, os sexos se unem, não mais da sociedade, mas na comunhão pelo amor, e a solidão é superada; enquanto isso, no mundo objetivo essa união gera um destino trágico e se liga misteriosamente à morte.

 

Dentro dos limites de nosso mundo, o dualismo é insuperável; mas em conexão com ele está o transcendente, que é o princípio da vida autêntica, e que, por franquear os limites da vida enclausurada, permite alcançar uma esfera mais alta. A essência do amor consiste em transcender. O homem é lavado a tal pela força do sentimento contundente de seu abandono, e o mundo congelado dos objetos o faz buscar a outrem e a desejar a reunião. Mas o mistério metafísico da sexualidade é tão grande e profundo q eu, mesmo na extremidade do amor, como no caso de Tristão e Isolda, a solidão e a nostalgia sexuais não são completamente suprimidas. Entre os amantes existe um elemento demoníaco de inimizade. Na sua superação definitiva poderia se realizar a imagem do andrógino perfeito; mas isso implicaria a transfiguração da natureza. O que permanece como verdade é que é no domínio da sexualidade que se revela com mais clareza a necessidade de ultrapassar a solidão.

 

No comunismo, esse problema desaparece. A solidão é definitivamente superada pela dissolução do ‘eu’ pela coletividade pública, pela substituição da consciência coletiva ao ‘eu’ pessoal. A existência do ‘eu’ se objetiva definitivamente e se enraíza no processo do construtivismo social. A vida sexual se submete definitivamente à coletividade, às exigências da construção social. Daí a importância atribuída à eugenia, à mecanização e à tecnificação do sexo: o amor pessoal é totalmente negado. Conta-se com esse sistema de seleção para sufocar a nostalgia sexual e o sentimento de solidão conectado a ela. O erótico é sacrificado em benefício do econômico e do técnico. Encontramos a mesma tentativa no racismo alemão.

 

Isso equivale a tentar resolver por meio da objetificação e da socialização um problema cujo caráter está em nos conduzir para além de toda espécie de objetificação e de socialização, na direção da comunhão e da união existencial. Isso não é novo: entre os Doutores da Igreja, encontramos a mesma negação do amor pessoal, a mesma concepção da vida sexual considerada como uma instituição social. É verdade que, por um de seus aspectos, a sexualidade mergulha na existência interior do ‘eu’, ela se interessa pelo destino do homem e da pessoa, enquanto estrangeiros ao mundo dos objetos, sem, no entanto, jamais deixar de estar num conflito trágico com esse, de estar envolvido no conflito da família e da sociedade. O mesmo acontece com o desejo de autoridade, a necessidade de poder, que precipita o homem no mundo dos objetos e da sociedade, ao mesmo tempo em que é inseparável do destino do homem íntimo. O poder e a autoridade não superam a solidão, porque só podem ser exercidos sobre os objetos; é por isso que o destino de um Júlio César, de um Napoleão, é trágico.

 

Religião significa ligação. É em virtude de sua própria definição que a religião conduz o ‘eu’ a ultrapassar seu isolamento, a sair de si, a se mostrar, a conquistar uma comunidade, uma familiaridade. Por essência, ela está associada ao mistério do ser, ao próprio ser. Mas não é pela religião, diretamente, que a solidão é suplantada, pois a religião não passa de uma relação e, como tal, ela é secundária e transitória: a solidão só pode ser suplantada por Deus. É Nele, precisamente, que ela é ultrapassada, que se obtém a plenitude, que se descobre o sentido da existência. Esquecemo-nos com frequência que é Deus o primeiro e que a religião pode mesmo prejudicar a relação entre Ele e o homem. No interior da religião, tal como ela se revelou na história, na vida social da humanidade, a relação do homem com Deus não é independente da objetificação e da socialização. Com essa religião objetiva e socializada, o sentimento de solidão fica amortecido, em consequência da queda do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade, ainda que esse mundo se chame Igreja; mas ele não é ontologicamente superado.

 

Esse sentimento não pode ser superado a menos que a relação entre o ‘eu’ e Deus seja da ordem da existência íntima, da vida original da Igreja-comunidade, e não da Igreja-sociedade; assim é que encontramos na religião a mesma coisa que vimos a respeito do conhecimento, da vida sexual – em toda partem a mesma dualidade, as duas mesmas perspectivas, a do Espírito e a da natureza, da liberdade e da necessidade, da existência (ou vida primeira) e da objetividade. Certamente, a religião é uma instituição social, ela já é algo de secundário, de objetificado, de projeção no mundo; mas ela é também revelação, a voz de Deus, a encarnação de Deus, e assim ela é primária e independente do mundo dos objetos, do mundo socializado.

 

Isso não quer dizer que, mesmo nesse caso a religião não passe de um acontecimento individual e o privilégio de almas isoladas. Ao contrário, a religião, ao mesmo tempo em que me religa e me une a Deus, é necessariamente o que me religa e me une ao ‘outro’, ao meu próximo – ela é comunidade e comunhão. Essa união revela uma outra ordem além da ordem objetiva da sociedade, onde é cada um por si, onde o próprio Deus é um objeto e não um ‘você’. O mistério do Cristianismo é o mistério da superação do ‘eu’ em Cristo, o Homem-Deus, em sua natureza teândrica, no Corpus Christi. Mas, para superar a solidão, não é bastante confessar de modo formal a fé em Cristo, pertencer formalmente à Igreja, pois nesse caso a superação não é mais do que aparente e superficial, ao invés de se realizar em profundidade. No Cristianismo puramente social, o amor só poderia ter um caráter convencional, simbólico, irreal. A solidão não pode ser efetivamente superada senão pelo amor real, que é o ápice da vida.

 

Acontece que pertencer por pura forma às confissões cristãs significa manter-se num grau de objetificação. O ‘eu’ que não sai de si senão para penetrar no objeto não se liberta de sua solidão, pois não existe realmente, ontologicamente, união com esse objeto, por meio do qual ele realizou sua saída de si. É por isso que, no próprio interior da Igreja, sua solidão ainda pode ser sentida de maneira aguda, contundente, particularmente dolorosa. No interior de uma mesma paróquia, junto com seus correligionários, é possível sentir-se infinitamente só, mais até do que entre homens de credos e convicções diferentes, e manter, com esses correligionários, relações exclusivamente objetivas, não vendo, em cada um deles, mais do que um objeto, e jamais um ’você’. Esse é um estado extremamente doloroso, trágico até, e que atesta a dualidade básica da vida religiosa. Um crescimento da espiritualidade pode trazer um agravamento dessa solidão, pois pode ser acompanhado de uma ruptura total com as relações sociais do mundo objetificado. Essas dolorosas rupturas não podem ser evitadas no caminho do progresso espiritual.

 

Não obstante, é somente sobre o plano espiritual que a solidão pode ser ultrapassada, é apenas na experiência mística, onde todas as coisas estão em mim, e eu nelas. Esse caminho é diametralmente oposto ao da objetificação, que põe em comunicação coisas que são absolutamente extrínsecas, estranhas, sem parentesco algum. Comunicações e relações, mesmo dentro do próprio Cristianismo, apresentam frequentemente um caráter de convenção puramente verbal, retórica, como acontece com a simbólica das comunicações e das relações. Toda a vida da sociedade repousa sobre uma “retórica” imitativa. A isso se opõe a realização da vida verdadeira, espiritual e mística. Sem dúvida, a própria mística pode se tornar retórica e convencional, mas em nenhum caso ela se torna objetificação, ela jamais se rebaixa ao cotidiano social. Mas esse não é seu sentido verdadeiro. Em suas profundezas, a existência humana, minha própria existência, é de ordem espiritual e não pertence ao mudo objetificado da obrigação, ela não tem aí sua raiz. É somente no seio dessa profundidade que a solidão é superada, que ela é posta a nu. Ao contrário, a objetificação final suprime a ansiedade da solidão. Ao reconhecer-se como pertencente ao objeto, à sociedade, o ‘eu’ já não se sente só; mas não existe aí nada que signifique a vitória sobre a solidão, ainda que essa inserção do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade objetificada seja de ordem religiosa, pois esse estado não é experimentado depois, mas antes do despertar da solidão, enquanto revelação das profundezas. É aqui que se reconhece toda a complexidade do problema da solidão, tal como se encontra em todos os domínios, seja do conhecimento, da sexualidade, da vida social ou da vida religiosa.

 

Ao tratar do mal da solidão, expusemos um dos problemas principais da filosofia da existência, concebida como filosofia do destino humano. Solidário a esse problema está o angustiante “mal dos tempos”, que iremos abordar oportunamente.



[1] Cf. Martin Buber: Ich und Du.Nikolai Berdiaev

 

O EU, A SOLIDÃO E A SOCIEDADE

 

I

O EU E A SOLIDÃO

SOLIDÃO E SOCIABILIDADE

 

 

O eu é primitivo: ele não pode ser deduzido a partir de nada, nem pode ser reduzido a nada. Quando digo ‘eu’, não enuncio nem estabeleço nenhuma doutrina filosófica. Eu, esse ‘eu’, não constitui a substância da metafísica ou da religião. O erro do cogito ergo sum está em que Descartes pretendia deduzir a existência do eu a partir de qualquer coisa diferente, deduzi-la do pensamento; mas, na realidade, não é pelo fato de pensar que eu existo, ao contrário, eu penso por que eu existo. O que deveria ser dito não é: “Penso, logo existo”, mas “Eu existo, envolto nas trevas do Infinito, portanto eu penso”. O ‘eu’ é primeiro existente, ele pertence ao domínio da existência.

 

O ‘eu’, antes de toda objetificação, é, por sua natureza existencial, liberdade. Henri-Frédérik Amiel diz justamente que o fundo do ‘eu’ não pode ser feito de objeto. Precisamente por ser o ‘eu’, ele não se encontra entre os objetos do mundo. A partir do momento em que ele se torna objeto, ele deixa de ser o ‘eu’. Ele é, por natureza, inicial e primitivo. Consciente e inconsciente não se opõem senão enquanto suas propriedades. O que vem primeiro, não é, como pensam muitos filósofos, a consciência, mas o ‘eu’ imerso na existência. Quando começamos pela consciência, partimos já de um certo grau de objetificação. Que a consciência do esforço seja, como professa Maine de Biran, a aurora da personalidade, isso sem dúvida possui uma importância considerável, mas não é o que existe de primordial. Dizemos ainda que a consciência de si é uma criação do si. É verdade, mas isso pressupõe a existência de alguma coisa anterior à existência.

 

O surgimento da consciência é um acontecimento extremamente importante no destino do ‘eu’. A consciência divide e isola, mas ela também faz um esforço para reunir e para superar o isolamento. Pois se o ‘eu’ é liberdade, liberdade em primeiro lugar, também é verdade que a consciência aguda do ‘eu’ é inseparável de um sentimento de servidão e de dependência em relação ao ‘não-eu’. Originalmente, o ‘eu’ e o tudo, o tudo e o ‘eu’, não se distinguem; apenas mais tarde descobrimos o ‘não-eu’ e, em contato com ele, o ‘eu’ contrai uma sensibilidade especialmente aguda e dolorosa. A distinção entre o ‘eu’ e o “eu próprio”, entre anima e animus, é já secundária e relativa ao crescimento espiritual do ‘eu’. Assim é que partimos da unidade indiferenciada do ‘eu’ e do mundo, passando pelo dualismo entre o ‘eu’ e o ‘não-eu’, para alcançar a unidade concreta de todo ‘eu’ com o ‘você’, na qual a multiplicidade se conserva, mas transfigurada.

 

A filosofia parte do ‘eu’, não do objeto: ela nasce a partir da dúvida em relação ao objeto. O filósofo não é o homem da consciência coletiva, genérico; ele não poderia partir do estado no qual o ‘eu’ é objetificado na consciência coletiva. Antigamente os homens viviam encerrados num espaço restrito, no qual eles se sentiam bem, onde estavam preservados do sentimento de isolamento. Hoje, em geral, eles começam a viver no universo, no seio da imensidão do mundo, com um horizonte mundial, o que aviva o sentimento de solidão e de abandono. O filósofo sempre viveu no universal, sempre teve por horizonte o mundo inteiro, ele não conhece um círculo restrito; e é por isso, inicialmente, que ele é só, no mesmo grau que o profeta, mas de modo diferente desse. Essa solidão é superada pelo filósofo, mas não pela vida numa consciência coletiva, mas pelo conhecimento. É isso que iremos examinar agora.

 

O ‘eu’ se define, de um modo antinômico, como o imutável prestes a mudar. Ele não poderia mudar no tempo, se atualizar, se não houvesse algum suporte para a mudança, se esse sujeito que muda não permanecesse e persistisse sendo ele mesmo. O ‘eu’ se desdobra sem cessar, muda de feição; mas, em si mesmo, ele permanece sendo ele mesmo, um e único. Ele pode se contrair e se expandir; cada um de nós comporta um ‘eu’ mais estreito e um ‘eu’ mais vasto. Mas o ‘eu’ em si pode ser definido como a unidade permanente sob todas as mudanças, o núcleo extratemporal, que não pode receber nenhuma determinação de outra coisa do que de si próprio. As mudanças experimentadas pelo ‘eu’ podem ser determinadas extrinsecamente; mas ele próprio não pode ser determinado desde fora, pelo ‘não-eu’. Ele só é determinável desde dentro, e responde ativamente a toda ação extrínseca, determinando-se a si próprio.

 

Todo ‘eu’ se parece com todo outro ‘eu’, enquanto puro ‘eu’; mas cada qual só é um, precisamente na medida em que é diferente dos outros. Cada ‘eu’ é um mundo á parte. Que pressupõe a existência dos outros, mas que não se parece, nem se identifica com eles. O que eu chamo de ‘eu’ é unicamente o ‘eu’ não socializado, não objetificado. Minha existência, a existência do ‘eu’ precede sua inserção no mundo; mas ela é inseparável da existência do ‘outro’ e dos outros.

 

A consciência de si é necessariamente a consciência dos outros; em sua natureza metafísica, ela é social. A existência do homem, na medida em que a consideramos como a pura existência do ‘eu’ pressupõe a existência dos demais homens, do mundo, de Deus. O isolamento absoluto do ‘eu’, a suspensão de todo contato com outrem, com um ‘você’, equivale à destruição do ‘eu’ por si próprio. Ele cessa de existir quando, no interior de sua própria existência, não lhe é dada a existência de um outro ‘eu’, de um ‘você’.  Amiel afirma com justeza que a análise de seu ‘eu’ lhe abre uma perspectiva sobre o mistério do mundo. Ao contrário, o ‘eu’ de Fichte não é exatamente um ‘eu’: ele não é individual, mas universal, e não conhece nenhum outro ‘eu’, nenhum ‘você’, mas apenas o ‘não-eu’. O ‘eu’ apreende a si próprio como produto de sua própria atividade; mas essa atividade não é possível senão com a existência, não apenas desse ‘eu’ ativo, mas de alguma coisa e de algum outro; e aquilo a que me refiro aqui não é a existência dos objetos para o ‘eu’, mas é, como veremos a seguir, a existência de um outro ‘eu’, de um outro ‘você’.

 

Naquilo que me constitui enquanto ‘eu’, entram não apenas minha alma, mas meu corpo também. A teoria do dualismo, do paralelismo entre a alma e o corpo, é estéril. Tanto em mim como no outro, o corpo não pertence apenas ao mundo objetivado, mas provém da existência interior; e, tanto em mim como no outro a existência interna não depende somente de sua projeção no mundo, mas ela manifesta a própria intimidade do ser. É precisamente nesse domínio, diferente daquele a que chamamos de vida-no-mundo, que se coloca o problema do ‘eu’ e de suas relações, seja com os outros, seja com o objeto.

 

É surpreendente constatar que o sentimento de existir e, em especial, a consciência de si, envolvem sofrimento e vulnerabilidade, despedaçamento e desdobramento. Esse sofrimento se relaciona com aquilo que certos filósofos, como Simmel, Tillich e Jaspers, chamam de “situação imite do homem”. é verdade que o ‘eu’ é lançado no mundo, que ele habita o mundo, que está submetido à sua ação; entretanto, é verdade também que ele não pertence unicamente ao mundo. Minha vida transcende a si mesma incessantemente; mas esse transcender, na medida em que eu permaneço no mundo. Torna minha existência dolorosa e atormentada. O ‘eu’ não existe senão na medida em que transcende a si próprio, e perece se permanece em si mesmo, sem saída: esse é o enigma fundamental do ‘eu’.

 

Para que continue sendo ele mesmo, duas condições se impõem ao ‘eu’: é preciso que ele se subtraia à objetificação e à socialização do ‘eu’, e é preciso que ele ultrapasse a si próprio; na medida em que for capaz de realizá-lo, pela força de sua existência íntima, ele poderá sair de si para ir ao encontro do ‘outro’ e dos outros, ao ‘você’, a seu próximo, ao mundo de Deus. Não há nada mais repugnante e funesto do que um ‘eu’ que mergulha egoistamente em si mesmo e em seus próprios estados, um ‘eu’ que se esquece dos outros, do mundo, do múltiplo e do todo; em resumo, um ‘eu’ incapaz de transcender a si mesmo. Isso acontece com algumas mulheres histéricas. Somente o poeta lírico tem o poder de lidar com sua ignominia de beleza, porque a criação poética constitui em si uma maneira de transcender.

 

A reflexão que esclarece mais profundamente toda a existência do ‘eu’ é a reflexão sobre a solidão, tão pouco estudada até o presente com um espírito filosófico – ainda que o próprio conhecimento, com sua ambiguidade, pudesse considerar interessante a solidão, permitindo que ela seja superada de tal sorte que seria essa justamente a maneira de obtenção da luz interior. Na medida em que o ‘eu’ não é capaz de dizer ‘nós’, ele experimenta um sentimento agudo, lancinante de solidão. É no coração dessa fase de solidão que nasce a personalidade, ao tomar consciência de si mesma. A massa da humanidade, que vive na inocência primitiva, de uma vida coletiva, genérica, ignora esse sentimento de solidão; ao contrário, esse último acompanha o esforço para sair dessa vida da espécie e nascer para a personalidade. É quando estou só, quando me sinto só, de modo agudo e doloroso, que eu experimento minha personalidade, minha originalidade, minha singularidade, minha irreversibilidade, minha diferença em relação a seja lá quem for, ou a seja lá o que for, nesse mundo. No agudo extremo desse sentimento de solidão, tudo parece se tornar para mim estranho e heterogêneo. Eu já não me sinto comigo, em meu país natal; nesse mundo que me parece estranho eu não me sinto na pátria de meu espírito.

 

Esse sentimento de degredo da alma no mundo para o qual ela foi enviada se exprime na concepção órfica original da alma.

 

Lentamente ela nasce nesse mundo, consumida por um desejo maravilhoso;

E as tristes canções dessa terra não podem substituir para ela a música celeste.

(Lermontov)

 

 

Na medida em que não me sinto eu mesmo, na medida em que não me encontro no mundo de minha própria existência, na medida em que sinto os homens com se pertencessem a um outro mundo que não é o meu, tanto o mundo como os homens se tornam objetos para mim, e passam a fazer parte de um mundo objetificado, ao qual eu me sinto, mais do que ligado, acorrentado. O mundo objetificado não é capaz de me tirar de minha solidão. Diante do objeto, diante de qualquer objeto, quaisquer que sejam os laços que o prendam a mim, o ‘eu’ permanece sempre só. Essa é uma verdade fundamental.

 

No seio de minha solidão, na minha existência encerrada em si mesma, eu não me limito a sentir e reconhecer com acuidade minha personalidade, minha originalidade e minha singularidade; ao contrário, eu experimento a nostalgia de uma fuga para fora de minha solidão, a nostalgia da comunhão, não com um objeto, mas com o ‘outro’, o ‘você’, o ‘nós’. O ‘eu’ tem sede de sair de sua reclusão ensimesmada, para se dirigir a um outro ‘eu’; mas ao mesmo tempo ele permanece em guarda, pois ele vê com apreensão um encontro que pode fazê-lo experimentar a brutalidade de um objeto.

 

O homem possui um direito sagrado à solidão e à salvaguarda de sua vida íntima. Seria errôneo confundir solidão com solipsismo; ao contrário, não pode haver solidão que não implique a existência do ‘outro’ e dos outros, assim como a existência do mundo estranho e objetificado. Não é tanto em sua existência própria que o ‘eu’ é solitário, quanto em face e no meio dos outros, no mundo onde ele se encontra alienado. A solidão absoluta não é concebível, ela só pode ser relativa à existência dos outros e do ‘outro’.

 

Se absoluta, a solidão seria o inferno e não o não-ser: como tal, ela não pode ser pensada positivamente, e não seria mais do que uma negação. Se relativa, a solidão constitui uma enfermidade, colocada sob um sinal negativo; mas ela não é só isso, pois ela deve também ser considerada como positiva quando manifesta uma condição mais elevada do ‘eu’, erguendo-se acima do mundo comum, genérico e objetificado. Nesse caso, ela nos separa, não de Deus e do mundo de Deus, mas do lufa-lufa social de todo dia, que em si mesmo não passa de um mundo degenerado. Ela nos revela assim o crescimento da alma.

 

Quando se afasta da banalidade cotidiana e social, o ‘eu’ busca uma existência mais profunda, uma existência autêntica. Ele experimenta como que um ritmo alternativo que o faz oscilar entre a ação cotidiana e integrada à sociedade, e a solidão. Quando Kierkgaard expressou o pensamento de que o Absoluto é o que desune e não o que une, isso só está correto com a condição de considerar a união e a desunião no mundo social do cotidiano. O espaço e o tempo, condições do mundo dos objetos, provocam ao mesmo tempo a solidão e a ilusão de superar a solidão; eles conduzem, seja à desunião entre os homens, seja à sua união, não na existência real, numa comunhão verdadeira, mas apenas na objetividade, que é a matéria cotidiana do social. Nada é mais importante para o ‘eu’ do que o fato de se mover no espaço e no tempo. Sair fora dos dados do espaço e do tempo implica de certo modo escapar de uma solidão fixa, estabilizada. Ora, a solidão pressupõe sempre uma necessidade, uma nostalgia de comunhão. Quando eu me reconheço como uma pessoa, quando desejo realizar em mim a personalidade, eu tenho que reconhecer ao mesmo tempo a impossibilidade de permanecer confinado em mim mesmo, e também toda a dificuldade que experimento em deixar a mim para ir ao encontro do ‘outro’ e de outrem.

 

A solidão é sempre, num certo sentido, um fenômeno social: ela pressupõe sempre a consciência de uma conexão com o ‘outro’, com o ser estrangeiro. A mais cruel das solidões é a solidão dentro da sociedade, vale dizer, a solidão por excelência. É somente no mundo e na sociedade, ou seja, no mundo dos objetos, no mundo objetificado, que a solidão é possível. Na medida em que não saímos do ‘eu’ senão para encontrar o ‘não-eu’ – o mundo objetivo – não superamos, em absoluto, a solidão. A cada instante, sem cessar, o ser solitário realiza esse movimento; entretanto, sua solidão, longe de se atenuar, cresce sempre e sempre. Essa é uma verdade indiscutível, a de que nenhum objeto e capaz de remediar a solidão.

 

Essa não pode ser suplantada senão no plano da existência, no contato do ‘eu’, não com o ‘não-eu’, mas com o ‘você’ que é também um ‘eu’, ou seja, mediante o encontro, não com um objeto, mas com um sujeito. Uma vez separado da vida coletiva original, e depois de haver experimentado o mal da consciência, do desdobramento, da solidão, o ‘eu’ já não pode adquirir a integridade, a harmonia, a comunidade com o ‘outro’, por meio de um retorno à vida coletiva no mundo objetivo. Ele precisa sair do mundo dos objetos: nenhuma relação com um objeto é capaz de realizar a comunidade e a comunhão. A solidão é uma contradição. Segundo Kierkegaard, o trágico está na contradição na qual se sofre, e o cômico, na contradição na qual não se sofre. A solidão é trágica: o ‘eu’ tenta suplantar esse trágico, mas ao mesmo tempo não cessa de experimentar a impossibilidade disso; daí nasce uma contradição dolorosa entre a impossibilidade de suplantar o trágico da condição, e a necessidade de fazê-lo.

 

Existem muitos caminhos pelos quais o ‘eu’ se esforça para vencer a solidão: o do conhecimento, o da vida sexual, o do amor e da amizade, o da vida social, o dos atos morais, o da arte, e assim por diante. Seria inexato pretender que a solidão não diminua com isso; mas não é possível sustentar que ela seja definitivamente superada; porque todos esses caminhos conduzem à objetificação, e o ‘eu’, ao invés de atingir um outro ‘eu’, um ‘você’, no ato da comunhão interior, não encontra mais do que o objeto, a sociedade.

 

A solidão não é uma experiência simples e uniforme. Ela existe em diversas formas e diferentes graus. É notável que eventos sociais como a disputa, a luta, mesmo o ódio, permitem muitas vezes superar ou diminuir o sentimento de solidão. Mas, depois, ela se mostra ainda mas grave. Pode acontecer também que a solidão seja sentida como efeito da incompreensão, da infidelidade do reflexo enviado a mim pelo outro. No seio do ‘eu’ vive a necessidade profunda de ser exatamente refletido pelo ‘outro’, de receber sua própria afirmação e confirmação. O ‘eu’ aspira a ser entendido, a ser visto. O narcisismo provém de profundezas insuspeitas: ele está ligado à própria essência do ‘eu’. O ‘eu’ se vê no espelho e busca seu reflexo na água, a fim de confirmar sua existência no ‘outro’; mas, na realidade, não é no espelho nem na água que ele deseja ser refletido, mas sim no outro ‘eu’, no ‘você’, num ato de comunhão. Ele aspira a encontrar um outro ‘eu’, seja ele quem for, um amigo, qualquer que seja –  não um objeto – que o adote definitivamente, que o confirme, que o veja em sua beleza, que o entenda; numa palavra, que o reflita. Nisso reside o sentido profundo do amor. O narcisismo representa o fracasso do amor, ele consiste no reflexo o ‘eu’ no objeto; o sujeito continua a existir em si mesmo, sem jamais sair de si. O objeto – que paradoxo! – é justamente aquilo que deixa o sujeito no interior de si mesmo, que não o conduz a outrem, de tal modo que a objetividade resulta ser a forma extrema da subjetividade.

 

A sede de conhecer constitui-se no desejo de superar a solidão. O conhecimento consiste numa saída para fora de si, em direção do ‘outro’ e dos outros, uma extraordinária dilatação do ‘eu’ e da consciência, uma vitória sobre a divisão produzida pelo espaço e o tempo. Mas, na medida em que permanece objetivo, o conhecimento não permite se evadir realmente da solidão, porque todo objeto é sempre algo de estranho para o ‘eu’ que, em face disso, permanece recluso em si mesmo. Nenhuma objetivação, seja do conhecimento, seja da natureza, seja da sociedade, pode por fim às contradições trágicas do ‘eu’; o único conhecimento que pode vencer eficazmente a solidão é aquele que se opera sob a perspectiva, não da sociedade, mas da comunhão. Dentro da perspectiva da sociedade, do conhecimento socializado – e, como tal, universalmente válido – conhecer equivale a obter aquilo que é comum, e não a entrar em comunhão.

 

Ontologicamente falando, a solidão é a expressão da nostalgia de Deus, de Deus enquanto sujeito e não enquanto objeto, de Deus enquanto ‘ele’ (Du) e não como ‘mim mesmo’(Ich)[1]. Somente em Deus é possível encontrar aquilo que é capaz de suplantar toda solidão, por meio do que eu posso adquirir o que é, de forma próxima e intimamente, um sentido incomensurável com minha existência. Aquela coisa única à qual eu posso pertencer, e nela confiar plenamente, à qual posso me entregar sem reservas, essa coisa é Deus, e somente Deus. Deus não pode ser um objeto para mim, e a objetificação, a socialização de minhas relações com Deus o torna exterior a mim, faz dele uma autoridade em relação a mim.

 

Podemos dizer que a solidão não é da ordem ontológica do ser, e que ela só existe de forma subjetiva. O que existe subjetivamente não pode ser suplantado senão por um sujeito existente em contato com o fundo do ser, e que não se revela objetivamente, mas subjetivamente. A relação do ‘eu’ com o mundo é dupla. De um lado, ele experimenta o sentimento da solidão, ele se sente estrangeiro no mundo, sente-se apátrida num mundo que não lhe parece ser de todo seu; por outro lado, ao contrário, o ‘eu’ descobre que a história do mundo não é outra coisa do que seu fundamento mais profundo, que tudo o que acontece, acontece a ele pessoalmente, pertence ao seu destino. Da mesma forma como tudo me parece estranho e longínquo, ao contrário, tudo se apresenta a mim como formando parte de minha própria experiência.

 

Pois não é uma contradição, que aquilo que me acontece possa parecer estranho a mim. É porque a sociedade é para mim um objeto, e assim a socialização, a objetivação, a sociedade, não se apresenta como existencial, e a vida na sociedade, a vida que nos projeta nela, é alguma coisa que, embora sendo eu mesmo, me é estranha e não é capaz de dissipar minha solidão. Mas nada é mais importante para o destino do ‘eu’, porque ser precipitado no cotidiano na natureza social é um fato de sua existência interna, é a decadência do ‘eu’, ainda que essa decadência pertença à sua existência. Nesse mundo de desunião, a parte que cabe ao ‘eu’ é precisamente a vida em sociedade. Podemos dizer então, num certo sentido, que a sociedade é interior em relação ao ‘eu’. Carl Gustav Carus pensa que a consciência está ligada ao particular, ao individual, e que o inconsciente, está ligado ao geral, ao supraindividual. Nesse sentido é verdade que, em suas camadas inconscientes o ‘eu’ contém toda a história do mundo e da sociedade, tudo o que a consciência experimenta como sendo estranho e longínquo, porque na consciência o ‘eu’ não revela mais do que uma parte de seu conteúdo.

 

Uma vez arrancado das profundezas da existência e entrando em contato com a sociedade objetificada, o ‘eu’ deve se defender dela como se ela fosse um inimigo. Na sociedade, o homem preserva seu ‘eu’ desempenhando tal ou qual papel, em que ele já não é si-mesmo. Seja qual for a condição social na qual se encontre, ele sempre desempenha um personagem, seja de rei, aristocrata, burguês, homem do mundo, pai de família, revolucionário, funcionário, artista e assim por diante. No cotidiano social, no seio da sociedade objetificada, o ‘eu’ não é o mesmo que em sua existência interior; esse é o tema fundamental da obra artística de Tolstoi. Por isso é tão incômodo cavar até o eu verdadeiro de um homem, retirar dele todos os seus véus. Na sociedade, o homem está sempre em cena, ele se conforma com aquilo que recebe em sua condição social; e, quanto mais compenetrado de seu papel ele se torna, mais difícil é para ele chegar ao seu próprio ‘eu’. Considerado assim, o instinto cênico se torna um dos caminhos da objetificação. O homem vive em muitos mundos simultaneamente, e em cada um ele representa um personagem diferente, ele se objetificar de maneira diferente. Isso foi bem demonstrado por Georg Simmel. O que é especialmente notável é ver que é precisamente a objetificação produzida por ele, na qual ele se aliena de si, e que ele sente como estranha a ele, que provoca nele o sentimento de sua solidão. Parece que o ‘eu’ coloca diante de si sua própria exterioridade.

 

O romantismo, tal como surgiu na história e no espírito europeu, apresenta muito interesse para o problema da solidão do ‘eu’. O romantismo é a expressão do sentimento da solidão, vale dizer, da ruptura entre o objetivo e o subjetivo, ele aparece quando o ‘eu’ se separa da ordem hierárquica objetiva, que parece ser eterna. Ele vem sempre depois do desdobramento, quando a alma sente como estranha a si a ordem hierárquica do objeto, o cosmo de São Tomás de Aquino e de Dante. O ‘eu’ romântico é um ‘eu’ que pressupõe já a cisão entre sujeito e objeto; ele nega pertencer à ordem subjetiva das coisas.

 

Essa cisão foi preparada pelo sistema astronômico de Copérnico, pela filosofia de Descartes e também pela reforma de Lutero. Ela pressupõe novas ideias científicas sobre o universo, novas ideias filosóficas sobre a atividade do ‘eu’ no conhecimento, novas ideias religiosas sobre a transformação na consciência não apareceram imediatamente, mas vieram a surgir apenas depois de diversas repercussões.

 

Quado o mundo objetivo se tornou estranho ao sujeito, quando deixou de haver um cosmo hierárquico no qual o sujeito possuía sua residência orgânica, em que se sentia em casa, o homem começou a buscar uma saída para sua solidão e seu abandono, a buscar para si uma proximidade, uma intimidade com o mundo subjetivo; isso conduziu ao desenvolvimento de uma vida afetiva. O sentimento cósmico dos românticos, seu sentimento panteísta do universo emanavam do sujeito. Seu cosmo não era um dado objetivo, como o cosmo da Idade Média no pensamento escolástico. É justamente por sua subjetividade que as relações românticas com a natureza conduziram à fusão do homem com ela, coisa que as relações objetivas, por serem hierarquizadas, jamais fizeram. Sentindo sua solidão, o ‘eu’ romântico fundia-se com o cosmo.

 

Ainda que o romantismo não tenha encontrado uma saída, ao menos ele se constituiu num momento importante para a libertação do ‘eu’ em relação ao mundo objetificado e socializado. Ele o abriu para o infinito, libertou-o das cadeias que o prendiam ao finito, a um lugar determinado na ordem hierárquica. Sua fraqueza foi – apesar de libertar o ‘eu’ da objetividade, apesar de ter revelado sua potência criativa, a potência da fantasia do ‘eu’ – não tê-lo tornado apto a tomar consciência de sua personalidade, não tê-lo tornado capaz de forjar uma para si. A filosofia romântica não é personalista, nem a individualidade humana constitui uma personalidade. O ‘eu’ se perde num infinito cósmico e nele se dissolve, perdendo sua consistência. A vida afetiva, atingindo talvez pela primeira vez a liberdade de seu desenvolvimento, inundou o mundo inteiro com o ‘eu’; o conhecimento subordinou-se à imaginação criativa.

 

São diversas as formas com as quais o romantismo pode se revestir: existem os que são otimistas ao extremo, com o dogma da inocência da natureza humana e a fusão com a vida do universo; outros são pessimistas ao extremo, com a solidão do ‘eu’, o infortúnio e a trágica sorte do homem. Entretanto, o que o pessimismo acusa, aquilo de que ele é a consciência, não é o estado de pecado em que o homem é mantido por sua natureza, mas sua infelicidade, a tragédia insolúvel do ser.

 

Podemos ainda apresentar o romantismo como uma mudança de horizonte. Durante a infância, os espaços mais restritos, o canto, o quarto, o corredor, o carro, o buraco de uma árvore, constituem um mundo imenso e misterioso. Na consciência dos adultos esse sentimento se enfraquece e quase chega a desaparecer. O universo é menos misterioso para nós do que o canto sombrio ou o corredor para a consciência infantil. Como novidade, o romantismo mostrou o lado misterioso das coisas, ele mudou o horizonte; mas esse horizonte romântico não é capaz de se sustentar, pois ele carrega consigo a dissolução da personalidade no infinito cósmico, ele a afoga no oceano da afetividade. O ‘eu’ deve superar a solidão; mas isso não pode ser feito, nem por maio da objetificação, recaindo na escravidão do mundo dos objetos, nem tampouco pela subjetividade romântica: somente pela conquista da espiritualidade no coração de sua intimidade, confirmando a si mesmo como uma pessoa, que, ao mesmo tempo em que sai de si, ele permanece sendo o mesmo.

 

Podemos, assim, distinguir quatro tipos de relação entre a solidão do ‘eu’ e o instinto social:

 

1.       O homem que ignora sua solidão e é absorvido pela sociedade; esse é o tipo mais elementar e o mais difundido. Nessa condição, o ‘eu’ está plenamente adaptado ao meio social; a consciência está objetificada e socializada ao máximo. O ‘eu’ ainda não viveu a cisão e a solidão. O homem se sente em casa em meio ao cotidiano social, ele pode ocupar aí uma posição elevada, e mesmo eminente. Existe aí apenas uma reserva: o que predomina nesse tipo são os imitadores, homens sem originalidade, medíocres, que vivem de um fundo “comum” transformado em tradição, seja essa conservadora, liberal ou revolucionária.

 

2.      O homem sem experiência da solidão, mas indiferente à sociedade. Nesse caso, ainda, o ‘eu’ está adaptado ao meio social, ele se sente de acordo e em harmonia com a vida coletiva, e sua consciência é socializada; mas ele não partilha dos interesses sociais, ele não mostra nenhuma atividade social, ele é indiferente aos destinos da sociedade e do povo do qual faz parte. Esse é um tipo muito comum. Nele, como no primeiro, está ausente todo conflito; ele se multiplica nas épocas de vida social estável e tem dificuldade em se manter nas épocas revolucionárias, nas épocas de crise.

 

3.      O homem familiarizado com a solidão, mas sem preocupação social. Esse tipo, ou não está, ou está pouco adaptado à vida social; ele é dividido por conflitos, ele não é um tipo que está em harmonia. Sua consciência é pouco socializada e não é levada a se insurgir contra a coletividade ao seu redor, porque isso revelaria um interesse e uma emotividade voltados para a sociedade. Dessa forma, ele se contenta em se isolar do meio social, de proteger sua vida espiritual e criativa. É isso o que faz o poeta lírico, o pensador solitário, o esteta sem raízes. Os homens desse tipo costumam viver sua solidão constituindo pequenas elites. Eles se dobram facilmente, quando o exigem as necessidades de sua existência, aos compromissos com a vida social, porque lhes falta, de modo geral, as crenças e convicções a respeito disso, sendo conservadores em épocas conservadoras, revolucionários nas revoluções, mas indiferentes, tanto ao espírito conservador como ao espírito revolucionário. Não são nem combatentes, nem tomam a frente.

 

4.      Por fim, vem o homem que vive na solidão sem se desinteressar pela sociedade. Esse caso pode parecer à primeira vista muito singular, porque a solidão não parece muito compatível com a sociabilidade. Entretanto, é isso que nos mostra esse tipo profético, do qual os profetas do Antigo Testamento nos oferecem o protótipo eterno. Esse tipo profético não se encontra senão no domínio religioso, porque ele compreende todos os iniciadores, os inovadores, os reformadores, os revolucionários do espírito. O profeta está sempre em conflito com a coletividade religiosa ou social, ele jamais está de acordo com o meio, com a opinião pública. Ele é, como sabemos, sempre mal interpretado, e nele jogam-se pedras. Sendo um profeta religioso, ele está em conflito com o sacerdote, com o pontífice, com a expressão da coletividade religiosa. O profeta sente de uma maneira aguda sua solidão, seu abandono; ele pode estar exposto à perseguição de todos aqueles que o cercam.

 

Pois bem, o que é insustentável é afirmar que o homem de tipo profético seja indiferente em relação à sociedade. Bem ao contrário, ele está inteiramente voltado, e em todas as circunstâncias, para os destinos do povo e da sociedade, para a história, para seu devir pessoal e para o devir do mundo. Ele denuncia os vícios de seu povo e de sua sociedade, ele os julga, mas não cessa de se interessar por seu destino. Ele não se ocupa com sua própria salvação, com seus sentimentos ou estados de consciência; mas ele olha em direção ao reino de Deus, para a perfeição da humanidade, e mesmo de todo o universo. Encontramos esse tipo semelhante a si mesmo fora do domínio religioso, na vida social, no conhecimento que não deixa de ter um elemento profético, e na arte.

 

Desses quatro tipos, a distinção, como acontece com todas as classificações, é bastante relativa; e as relações entre eles não devem ser compreendidas num sentido estático, mas dinâmico. Os dois primeiros têm como característica comum se adaptar ao meio social, enquanto que os dois últimos se opõem a ele. Importa muito compreender que o revolucionário medíocre na ordem social não está menos em harmonia com o meio, que sua consciência pode estar completamente socializada, e que ele ignora os conflitos inseparáveis da solidão.

 

Assim sendo, a reflexão a respeito da solidão me parece ligada àquilo que existe de mais profundo no problema filosófico: ela é o nó ao qual estão ligados os problemas do ‘eu’, da personalidade, da sociedade, da comunhão, do conhecimento; nos seus confins extremos, o problema da solidão se torna o problema da morte. Passar pela morte equivale a passar para a solidão absoluta, romper com o mundo inteiro. A morte é a ruptura com toda a esfera da existência, a interrupção de todas as ligações e de todos os contatos, o isolamento completo. Se, no termo último do mistério da morte, essa ainda fosse partilhada, se o contato ainda se mantivesse com o ‘outro’ e os outros, já não se trataria de morte. O que faz a morte é justamente o fato de que toda ligação, todo contato, são cortados, que a solidão é absoluta. Com a morte, o comércio do homem com o mundo dos objetos chega ao fim.

 

O que resta a se perguntar, é se esta solidão é definitiva e eterna, ou se ela não passa de um momento no destino do homem, do mundo, de Deus. Toda a vida do homem deve ser empregada em preparar laços, contatos com os outros homens, com o universo e com Deus, de tal forma que eles possam suplantar a solidão absoluta da morte. Falando propriamente, a morte não deve ser a negação completa do ‘eu’, pois seria mais fácil negar o mundo do que a ele. a morte não deve ser mais do que um momento durante o qual o ‘eu’ se vê completamente isolado, e, pela ruptura de todos os laços e contatos, separado do mundo e de Deus. Todo o paradoxo da morte provém do fato de que esse isolamento, essa ruptura, essa separação resultam da existência em um mundo decaído, na objetificação, na sociedade de nossos dias. As ligações estabelecidas na objetificação conduzem inexoravelmente à morte. Assim, devemos nos interrogar sobre as relações de correlação entre o ‘eu’ e o objeto e entre o ‘eu’ e o ‘você’, devemos abordar o problema da comunicação entre as consciências.

 

 

II

O EU, O VOCÊ, O NÓS E O ISSO

O EU E O OBJETO

A COMUNICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS

 

 

Um filósofo religioso, judeu, Martin Buber, num livro notável, Ich und Du, (Eu e você), estabelece uma distinção fundamental entre IchseinDusein e Essein, o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’. A relação primária entre o ‘eu’ e o ‘você’ é, para ele, a relação entre o homem e Deus. Essa relação é dialógica, ou dialética. O ‘eu’ e o ‘você’ estão em presença um do outro, face a face. O ‘você’ não é um objeto, não é uma coisa para o ‘eu’. Quando ele se transforma em objeto, ele se torna Essein, isso. Podemos dizer também, misturando minha terminologia com a de Buber, que o Essein, ‘isso’, é o resultado da objetificação. Tudo o que é objetificado é Essein, mesmo Deus, objetificado, se torna Essein. O ‘você’ desaparece e já não há encontro possível, não mais face a face. O sujeito na terceira pessoa, ‘ele’, se não for o ‘você’, se torna ‘isso’. Para mim, o ‘você’ jamais pode ser um objeto. Mas tudo é susceptível de se tornar objeto segundo um processo que podemos assistir na vida religiosa. O objeto é ‘isso’, o Es de Buber. Na medida de sua objetificação, a natureza e a sociedade se transformam para nós em ‘isso’; mas a partir do momento em que encontramos um ‘você’ na natureza, o mundo objetivo se evanesce e o mundo da existência se revela a nós. Buber pensa acertadamente que oo ‘eu’ não existe fora de suas relações com o outro, na medida em que esse outro é um ‘você’; mas, para ele, a relação entre o ‘eu’ e o ‘você’ é unicamente aquela do homem para com Deus, aquela que é tratada na Bíblia. A relação entre as consciências humanas, a do ‘eu’ e do ‘você’, a relação entre dois homens, a que envolve a multiplicidade humana, não é estudada por ele. ele não se coloca o problema da metafísica social humana, o problema do ‘nós’.

 

Pois não são apenas o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’ que existem, também o ‘nós’ existe. O ‘nós’ pode se transformar em ‘isso’, como acontece na socialização (que é uma objetificação), como acontece por exemplo no ecumenismo da Igreja, considerada enquanto instituição social. O ‘nós’ objetificado consiste na coletividade social, que é dada a cada um de nós desde fora; mas ele existe também de outra maneira, como comunidade e comunhão de pessoas, na qual cada um é um ‘você’, e não um ‘isso’. A sociedade é o ‘isso’, ela não é um ‘nós’. Quando ela é objetificada, cada um de seus membros é um objeto dentro dela. São os vizinhos, não os próximos, os amigos, porque um amigo jamais é um objeto. Na sociedade existem nações, classes, as diversas camadas sociais, os partidos, os concidadãos, os camaradas, os superiores, mas nunca um ‘eu’, nem um ‘você’; e o ‘nós’ só se encontra aí sob uma forma socializada, descolada da pessoa concreta.

 

Existe um outro modo de comunhão das consciências: sua participação no ‘nós’. O ‘nós’, para o ‘eu’, não é ‘isso’, o objeto, ele não constitui um dado exterior. O ‘nós’ é um conteúdo qualitativo imanente ao ‘eu’, pois todo ‘eu’ envolve sempre uma relação, não apenas com o ‘você’, mas também com a multiplicidade humana. É sobre essa relação que se fundamenta a ideia de Igreja, tomada em sua pureza ontológica, da Igreja não objetificada ou socializada, pertencente à ordem ontológica, pois quando acontece de a Igreja transformar a si própria em objeto, num ‘isso’, o ‘nós’ já não pode conter nada mais de existencial.

 

Com efeito, tanto quanto no ‘eu’, a existência se revela no ‘você’ e no ‘nós’; é apenas no objeto que ela jamais se revela. Freud, apesar de sua ingenuidade filosófica, que às vezes confinava com o materialismo, distingue entre o ‘eu’ e o ‘si’. Existe no homem um fundo impessoal, o ‘si’, que pode sobrepujar o ‘eu’.

 

Essein de Buber em parte corresponde ao das Man de Heidegger, a terceira pessoa determinada. O Essein coincide também com aquilo que eu chamo “mundo da objetificação”, no qual, por sinal, não se resume todo o problema social. O mundo do Dasein, do ser-situado, de Heidegger, é o Mitwelt, o mundo da coexistência com outrem. Mas Heidegger não coloca, nem tampouco aprofunda o problema da sociologia metafísica. Será mais em Karl Jaspers que encontraremos essa questão tratada.

 

Se não apenas o ‘eu’ e o ‘você’, mas também o ‘nós’, são imediatamente dados, não é menos verdade que é o ‘eu’ que é primitivo; mas eu não posso dizer ‘eu’ em anunciar e colocar, por esse mesmo ato, o ‘você’ e o ‘nós’. Entendida assim, a sociabilidade consiste numa propriedade do ‘eu’, constitutiva de sua própria existência íntima. É preciso distinguir radicalmente entre o ‘você’ e o ‘nós’, de um lado, e o ‘não-eu’, de outro, pois, enquanto que o ‘não-eu’ se confunde com a objetificação, o ‘você’ e o ‘nós’ são existenciais. O ‘você’ é um outro ‘eu’, e o ‘nós’ é o próprio conteúdo do ‘eu’. Quanto ao ‘não-eu’, ele é sempre hostil ao ‘eu’, ele constitui sempre uma oposição, um obstáculo ao ‘eu’. No máximo, o ‘eu’ pode enxergar no ‘não-eu’ uma metade, a outra metade do ser, embora não possa encontrar nele a multiplicidade dos demais homens, seus semelhantes, o que é evidente, porque sendo o ‘não-eu’ um objeto e não um ‘você’, nenhum ‘eu’ pode decorrer dele.

 

Até o presente, o problema das relações entre o ‘eu’, o ‘você’, o ‘nós’ e o ‘isso’ não foi colocada com suficiente amplidão na filosofia, que só se preocupou com a questão da realidade do ‘eu’ de outrem e da maneira como ele é conhecido. Será que nos é dada essa realidade do ‘eu’ de outrem, será que a conhecemos? Segundo a teoria antiga, não perceberíamos mais do que o corpo do outro, e seríamos obrigados a inferir, por analogia, a vida de sua alma. Essa teoria é completamente errada e deve ser imediatamente rejeitada. De fato, conhecemos muito mal o corpo do outro, ignoramos por completo o que se passa ali, e não percebemos senão sua superfície, enquanto que a vida psíquica do outro nos é, ao contrário, melhor conhecida, na medida em que a captamos, que nela penetramos de maneira imediata. A intuição da vida mental de um outro ‘eu’ não pode ser negada, porque a intuição não poderia se aplicar a um outro ser ou uma outra existência considerados como objetos, e ela só pode ser possível na medida em que tomamos esse ser ou essa existência como sendo um ‘eu’, como sendo ‘você’. Pois diante de um objeto eu permaneço sempre só, sem poder sair de mim mesmo; ao contrário, na presença de um outro ‘eu’ que seja para mim um ‘você’, eu saio de minha solidão e alcanço uma comunhão. A intuição da vida espiritual de um outro ‘eu’ é uma comunhão com esse ‘eu’.

 

O fato de percebermos o rosto de outrem, e expressão de seus olhos, frequentemente nos entrega o segredo de sua alma. Os olhos, os gestos, as palavras nos fazem conhecer a alma de alguém, melhor do que seu corpo. Conhecemos de fato, e percebemos a vida de outrem, não apenas com o auxílio daquilo que ele nos revela, mas também daquilo que ele nos vela. Esse método para conhecer a outrem por suas reticências chegou a ser objeto de muito abuso em nosso tempo, a partir da descoberta do inconsciente. Sem dúvida, a psicanálise freudiana atesta a possibilidade de conhecer a vida psíquica e não a vida fisiológica de outrem, pois exatamente de seu ponto de vista a libido, a sexualidade, provém, não da vida orgânica, mas da vida espiritual. Também não é menos errado imaginar que o método analítico é o único capaz de nos ensinar profundamente a respeito da vida interior de alguém, em outros termos, a respeito de seu verdadeiro ‘eu’. Quando pretendemos fazer do ‘eu’ um objeto de conhecimento, ele se esconde fundo. Ao contrário, existe uma apreensão imediata da alma do outro; mas ela é afetiva, simpática, erótica, vale dizer: ela é da ordem do amor. Se ela não perfura o mistério do ‘eu’ de outrem, que é impenetrável, não devemos concluir daí, como se faz tantas vezes a partir da realidade desse mistério, a impossibilidade total de conhecer seja lá o que for da alma de outrem.

 

Até hoje, não se prestou muita atenção no problema da comunicação entre consciências. Esse é um dos problemas fundamentais da filosofia. É indispensável distinguir entre comunicação e participação. A participação é real, ela consiste na penetração na realidade primeira. Ao contrário, a comunicação, para a maior parte, não passa de simbólica, ela pressupõe a simbolização, vale dizer, o emprego de signos exteriores capazes de traduzir para fora a realidade interna. O simbolismo próprio às comunicações é precisamente aquilo que, a partir da ordem interior da existência, transparece no mundo objetivo, vale dizer, desunido, desfeito, desmembrado. Nossas artes estão cheias de simbolismo, assim como nosso conhecimento: ao mesmo tempo em que ela trai um estado de desunião, ela estabelece comunicações. Numa certa medida, é graças aos signos e aos símbolos, que conhecemos a vida interior dos outros; mas essas comunicações que se estabelecem na vida humana implicam sempre a desunião, elas pressupõem que não é possível encontrar saída para o mistério da existência; isso se deve ao fato de que elas não possuem mais do que um valor simbólico.

 

Esse é o caso dos costumes, dos hábitos, da imitação, da polidez, da amabilidade. Todas as comunicações que constituem a vida do Estado possuem esse caráter, e elas não pressupõem a menor comunhão entre as pessoas. Em particular, o caráter convencional é próprio a todos os signos que servem às relações pecuniárias, e nas quais a objetificação alcança sua forma mais extrema. Mas o ‘eu’ não se satisfaz em comunicar com os outros apenas por meio da sociedade ou do Estado, pelas instituições, ou seja, por meio de signos convencionais. Ele aspira a algo mais do que uma comunicação, ele deseja uma comunhão com os outros, o que ele quer é deixar seu lugar para aceder a uma existência autêntica. As comunicações convencionais não permitem deixar o mundo dos objetos, elas se mantém em relação com eles; por sua vez, o impulso que nos leva à comunhão conduz, para além da objetificação, à existência real. O simbolismo das comunicações está sempre em proporção aos diferentes graus de objetificação.

 

A comunhão comporta a reciprocidade: não é possível haver comunhão unilateral; no amor não partilhado, não existe comunhão, pois na comunhão o ‘eu’ e o ‘você’ são ambos ativos, enquanto que com o objeto não se pode exigir nenhuma reciprocidade, porque com ele não é possível estabelecer mais do que uma comunicação simbólica.  O ‘eu’ não pode comungar senão com um ‘eu’ que seja, para ele, um ‘você’, e um ‘você’ ativo, para que a comunicação seja bilateral, vale dizer, sobre o plano, não da objetividade, da objetificação, mas da existência. Na medida em que o ‘eu’ não está ligado senão ao objeto, ele permanece só, mesmo na comunicação, e a solidão não pode ser suplantada senão pela comunicação entre pessoas, entre o ‘eu’ e o ‘você’, no interior, não da sociedade objetificada, mas do ‘nós’.

 

A consciência, por sua própria natureza, é social, ela pressupõe que os demais seres humanos existem e que eles estão em relação recíproca, ela implica irmãos em humanidade. Mas é frequente acontecer que ela contrarie a comunhão, deixando o homem em sua solidão, por ter sido socializada, vale dizer, adaptada às comunicações simbólicas que constituem o reino da sociedade, ao invés de se voltar para a realidade da comunhão na existência autêntica. Ao ser socializada, a consciência é entregue à vida coletiva do dia-a-dia. No êxtase místico, como caem todas as barreiras da consciência, desaparece todo obstáculo à união. O homem chega a aspirar ao apagamento de sua consciência a fim de saciar sua sede de comunhão. Na originalidade criativa, pessoal, assim como no êxtase suprapessoal, dissipam-se o cotidiano social, com suas barreiras e normas. Não é que o pensamento pessoal, original, próximo de sua fonte primária, seja a negação da comunidade e da comunhão; ele não nega senão a sujeição do pensamento ao cotidiano social, à sociedade transformada em objeto. O que o pensamento pessoal condena não é a comunidade, mas a generalidade. Jaspers professa com razão que não existe um ‘eu’ sem que haja comunicação com ‘outro’, sem disputa dialética. A partir do momento em que o mundo se degrada na condição de sujeito puro do conhecimento, ele já está objetificado, e o que ele pode obter daí por diante já não será uma comunidade interior, mas apenas uma comunicação, restritiva e fundamentada no geral.

 

Uma vez que a conversão de seja lá o que for em objeto constitui uma evidente racionalização, será na vida afetiva que o ‘eu’ irá melhor se revelar. Ela comporta uma objetificação menor do conhecimento, desde que as emoções não tenham sido socializadas de modo a mascarar a vida interior do ‘eu’. Essas dificuldades não impedem que o conhecimento fundado na comunhão, por meio do qual um ‘eu’ penetra na intimidade de um outro ‘eu’, seja um conhecimento emocional. Seria um erro crer que a comunhão, vitoriosa sobre a solidão, só seja possível de homem para homem, que ela seja reservada à amizade humana. Ela também pode penetrar no reino animal, e até no reino vegetal ou mineral, que possuem também sua existência interna. Podemos, como São Francisco de Assis, comungar com a natureza, com os oceanos, as montanhas, as florestas, os campos, os rios. O exemplo mais notável desse tipo de comunhão afetiva nos é fornecido pelas relações do homem com os cães, verdadeiros amigos do homem. realiza-se uma reconciliação do homem com a natureza alienada e objetificada, na qual o homem reencontra, não mais um objeto, mas um sujeito, um amigo. As relações entre o homem e o cão possuem um valor metafísico, pois, perfurando o objeto, atinge-se a existência autêntica.

 

Sabemos, a partir da teoria de Freud sobre o narcisismo, sobre a qual já dissemos colocar um problema dos mais profundos, que o ‘eu’ se torna aí objeto da libido. O narcisismo consiste num desdobramento do ‘eu’, e é por isso que o ‘eu’ se torna seu próprio objeto, torna-se ele mesmo uma parte do mundo objetificado. O narcisismo não pode ser superado senão com a condição de que o ‘eu’ busque seu próprio reflexo, não mais em si, mas em algum outro ‘eu’. Esse fenômeno do narcisismo se encontra igualmente no domínio do conhecimento.

 

Para Freud, o instinto mais profundo é o da morte; ele pensa assim, porque ignora o mistério da comunhão, da saída do ‘eu’ no ‘você’ e no ‘nós’. O instinto sexual, como tal, não conduz à comunhão e à penetração num outro ‘eu’. Existe nele um elemento demoníaco de destrutivo. Ao contrário, é ele que nos lança no mundo objetificado e nos acorrenta a ele. é por isso que, ao lado do instinto sexual, aparece para Freud o instinto da morte, que não conhecia um terceiro que pudesse ser mais profundo.

 

A evasão para fora do cotidiano social, que desune e prende, por meio da união extática no suprapessoal, traz uma solução ao problema da solidão pela abolição e a negação da personalidade. A máscara nos cultos antigos, por exemplo no culto dionisíaco, simbolizava a vitória sobre a solidão, e a participação no divino. mas o problema da comunicação de ‘eu’ para ‘eu’, de pessoa a pessoa, não deixa de subsistir. Ele não pode ser resolvido a não ser pelo amor, amor erótico e amor amistoso, pois o amor está indissoluvelmente ligado à pessoa e constitui sempre uma saída do ‘eu’ para fora de si em direção a um outro ‘eu’, e não em direção ao impessoal, ao ‘si’ coletivo. Mas o ‘eu’ não é ainda a pessoa. É preciso que ele se torne pessoa: e para isso concorre a comunhão com o ‘você’ e o ‘nós’. A pessoa se afirma na comunhão em que cada qual sai de si e vai na direção do outro.

 

Pois a reserva interior do ‘eu’ só faz expressar seu isolamento, sua solidão. É uma maneira dele se defender contra o mundo objetificado e socializado. O ‘eu’ não pede mais do que se abrir para o ‘você’, mas o que ele encontra, ao invés desse ‘você’, são coisas. E no entanto, se a solidão constitui uma fase no desenvolvimento pelo qual a pessoa toma consciência de si esma, ela deve ser superada; e, como ela não pode sê-lo por meio da objetificação que só gera um mundo impessoal, somos assim levados ao problema da pessoa, que será examinado mais adiante.

 

 

 

 

III

SOLIDÃO E CONHECIMENTO – TRANSCENDÊNCIA

CONHECIMENTO COMO COMUNHÃO

SOLIDÃO E SEXUALIDADE – SOLIDÃO E RELIGIÃO

 

 

É incontestável que o conhecimento chega a suplantar a solidão, porque ele nos faz sair de nós mesmos, do espaço e do tempo – tais como nos são dados – para nos conduzir a outro espaço e outro tempo, e que ele, levando-nos até o ‘outro’, supera o isolamento. O conhecimento é uma das saídas possíveis para a solidão, uma saída para o outro ‘eu’, para mundo, para Deus. Aquele que conhece sai de sua reclusão, deixa de viver unicamente em si e consigo mesmo. Tampouco se pode negar que o conhecimento traz em si uma marca social, que ele permite aos homens comunicar entre si. São evidentemente sociais a comunidade lógica, o aparelho lógico do conhecimento, os conceitos, as normas e as leis, a língua. A língua é o instrumento mais poderoso da constituição da sociedade e o estabelecimento de comunicações entre os homens, mas ela própria está ligada ao pensamento e à elaboração de noções que permitem a instituição de uma comunidade de ordem intelectual entre os homens. Subjaz aos nomes uma verdadeira magia social. Os resultados e as realizações práticas do conhecimento dependem do grau de comunidade entre os homens, de agrupamentos sociais, de sua cooperação laboriosa, em resumo, da maneira como eles superam a solidão. Todos esses fatos colocam, em toda sua complexidade, as relações entre conhecimento e solidão.

 

Se o caráter social do conhecimento caracteriza o estabelecimento de comunicações entre os homens, nem por isso segue-se que ele caracterize também a realização da comunhão, vale dizer, que a solidão seja ontologicamente superada. Pois, uma vez que a socialização é idêntica à objetificação, e que a objetificação do conhecimento mascara o mistério da existência (única forma de suplantar a solidão e estabelecer a comunhão), das duas perspectivas a partir das quais se pode considerar o conhecimento – a da objetificação e a da amizade com um ‘si mesmo’ – somente a segunda é capaz de trazer a cura para a solidão.

 

Assim é que o conhecimento comporta dois aspectos. Seu sentido primário está na relação do conhecedor para com o ser; nesse sentido a solidão é superada quando a participação do conhecedor no mistério da existência é alcançada. O segundo sentido do conhecimento reside nas relações do conhecedor com o ‘outro’, com a multiplicidade dos homens, com a sociedade. Se, desse segundo ponto de vista, se pretender suplantar a solidão por meio da socialização, como essa reflete a queda do ‘eu’ no mundo dos objetos, o sucesso obtido será superficial, e não poderá ser conseguido sem que o sentimento e a consciência de si sejam amortecidos.

 

A comunhão por meio da qual a solidão pode ser superada não se realiza, portanto, senão pela passagem, não do ‘eu’’ ao objeto, mas do ‘eu’ ao ‘você’, tal como operam o amor e a amizade. Isso é inteiramente válido para o conhecimento. Nem o contato do ‘eu’ com o objeto, nem a sociedade podem abolir a solidão. Tal coisa só é possível por meio do ‘você’, pela comunhão no interior de um ‘nós’, e jamais por meio do social. Uma vez que o conhecimento objetificado não trata nunca de outra coisa que não do geral, ele fabrica abstrações e alcança o universal, mas, seja no geral, seja no universal, já não existem o individual, o singular e o pessoal. Ao contrário, no conhecimento visto como comunhão, na medida em que ele permite ao ‘eu’ se unir com o ‘você’, o valor da universalidade dos resultados reside em que eles servem para alcançar o individual, o singular e o pessoal. Não é numa generalidade abstrata, mas no universal concreto, que o individual encontra sua afirmação.

 

Assim sendo, quando o universal e o geral oprimem, negando o particular e o singular, torna-se possível superar a solidão, mas apenas na medida em que se suprime totalmente o ‘eu’, e portanto do ‘você’ (que não é outra coisa do que um ‘outro eu’). Ao contrário, quando o conhecimento é considerado como sendo uma filosofia da existência, ele sempre trata do ‘eu’ e do ‘você’, e é, em essência, personalista. Com efeito, o que importa não é afogar a solidão numa universalidade impessoal, mas sim ultrapassá-la pela personalidade. Ao se libertar do jugo da sociedade, da comunidade lógica socializada, o conhecimento torna o pensamento supralógico.

 

O certo é que superar a solidão consiste sempre em operar uma transcendência do ‘eu’, seja no pensamento, seja na vida emocional. Mas transcender-se em direção ao objeto e ao geral é uma coisa, transcender-se em direção ao ‘você’, ao ‘outro eu’, em direção à existência autêntica, é outra, e totalmente diferente. Certamente existe um valor positivo no ato através do qual o ‘eu’ ultrapassa a si mesmo, se liberta pelo conhecimento do objeto, pela instituição da sociedade, pela elaboração das generalidades e dos conceitos indispensáveis à comunicação – mas o mundo em cujo interior isso se realiza continua a ser um mundo decaído, dividido, acorrentado. Mesmo na generalidade do conhecimento objetificado transparece a luz do Logos, ainda que seja num meio obscurecido, que reflete a servidão do ‘eu’ humano.

 

Assim é que o conhecimento desemboca em contradições e antinomias insuperáveis. Na medida em que ultrapassa a solidão e obtém a comunhão, e enfrenta o tempo, a pessoa e outros tantos problemas, de onde surgem as contradições. A objetificação não suprime essas contradições, ela só o faz em aparência; e elas se multiplicam na mexida mesma do progresso do conhecimento objetificado. Para todas essas contradições, que às vezes se tornam intoleráveis, a solução possui um único nome, que é Deus. Deus significa precisamente a coincidentia oppositurium, para retomarmos a definição genial de Nicolas de Cusa.

 

O conhecimento é conjugal por natureza: ele pressupõe uma dualidade; ele não pode ser produzido, nem somente pelo objeto, nem por uma atividade própria e exclusiva do sujeito. É por isso que a solidão não é suplantada, a menos que, na operação do conhecimento, se realize a união verdadeira, que é a união pelo amor, uma vez que não existe união possível com o geral, sendo a única forma de união aquela que se dá com um ‘outro eu’, com o ‘você’.

 

A essência conjugal do conhecimento é una com sua essência teândrica. No conhecimento, existe a parte do homem e a parte de Deus. A objetificação parece eliminá-las do saber, e substituí-las pela impessoalidade e a generalidade. A dificuldade do conhecimento está em trespassar essa impessoalidade e essa generalidade, para realizar a união conjugal das pessoas. Mas pode acontecer que, sobre a via do conhecimento, o ‘eu’ não consiga banir a solidão, e que ele se ponha a buscar a união por outros caminhos. Por conhecimento, entendo aqui não apenas o conhecimento dos sábios e dos filósofos, estranho à maior parte das pessoas, como também o conhecimento comum, fornecido pela vida de todo dia, que está submetido ao geral e resulta da imitação.

 

Uma das principais causas da solidão humana é o sexo. O homem é um ser sexuado, vale dizer, ele é metade de um ser, um ser cindido, incompleto, que aspira a ser completado. O sexo lesa profundamente o ‘eu’, que é bissexual, que em sua integridade e sua plenitude seria macho e fêmea, ou seja, andrógino. Dessa forma, a primeira maneira de fugir da solidão na comunhão diz respeito à solidão sexual, ao isolamento no sexo; ela aspira à reunião na integridade sexual. Pelo simples fato de sua existência, o sexo é separação, falta, nostalgia, desejo de se abrir ao outro.

 

A união física dos sexos, que encerra o desejo sexual, não basta, por si só, para superar a solidão, e essa pode vir a se mostrar ainda mais violentamente. A união sexual pode inclusive levar à queda do ‘eu’ no mundo objetificado, pois, embora sendo um acontecimento da natureza, a vida sexual remete ao mundo dos objetos. Seu resultado se encontra socializado no casamento e na família. Como fato biológico e social, a sexualidade é objetiva; ora, na objetividade, a solidão não é superada, mas apenas amortecida.

 

É por isso que, embora a união biológica dos sexos e a instituição familiar possam adormecer e apaziguar o sentimento de solidão, eles não podem fazê-lo em definitivo, e existe um verdadeiro demonismo no sexo, que aparece tanto na repressão quanto nas manifestações sexuais. Quando a sexualidade é demoníaca, ela se torna destrutiva e assassina.

 

Somente o amor e a amizade podem trazer ao homem a grande promessa de que a solidão pode ser superada. O amor é precisamente aquilo que suprime a solidão, o que conduz o ‘eu’ ao outro, a reflexão do ‘eu’ no outro e do outro no ‘eu’. É uma comunhão na qual a pessoa se une a outra pessoa. Um amor impessoal, que não se dirija a nenhuma imagem individual, não poderia ser chamado de amor: “amor de vidro”, dizia Vasily Rozanoff. Isso não passa de uma corrupção do Cristianismo. Da mesma forma, a amizade só pode ser personalista, e dessa forma participa igualmente do erótico.

 

Como poderia não existir uma ligação profunda entre a pessoa e o amor, uma vez que o amor é o que faz de mim uma pessoa? Somente pelo amor podemos nos fundir totalmente com o outro, superando a solidão. O conhecimento não é possível, a menos que ele seja amor. Mesmo o que existe de parcial e demoníaco na sexualidade pode conduzir ao amor. Quando a existência humana é lançada no mundo objetivo, o amor se torna trágico e se liga à morte. O mundo objetificado não reconhece o amor autêntico, ele não o ama, só conhece dele o aspecto biológico e social; por seu lado, o amor desconhece das leis do mundo objetivo e social, ele deve romper seus limites a fim de suplantar a solidão; e é por isso que ele está tão intimamente ligado à morte.

 

Somos reconduzidos à mesma dualidade. A comunicação sexual pode se encerrar dentro da sociedade, permanecer dentro dos quadros das instituições sociais, e a objetificação impede a comunhão real, de modo que a solidão persiste; ou, ao contrário, os sexos se unem, não mais da sociedade, mas na comunhão pelo amor, e a solidão é superada; enquanto isso, no mundo objetivo essa união gera um destino trágico e se liga misteriosamente à morte.

 

Dentro dos limites de nosso mundo, o dualismo é insuperável; mas em conexão com ele está o transcendente, que é o princípio da vida autêntica, e que, por franquear os limites da vida enclausurada, permite alcançar uma esfera mais alta. A essência do amor consiste em transcender. O homem é lavado a tal pela força do sentimento contundente de seu abandono, e o mundo congelado dos objetos o faz buscar a outrem e a desejar a reunião. Mas o mistério metafísico da sexualidade é tão grande e profundo q eu, mesmo na extremidade do amor, como no caso de Tristão e Isolda, a solidão e a nostalgia sexuais não são completamente suprimidas. Entre os amantes existe um elemento demoníaco de inimizade. Na sua superação definitiva poderia se realizar a imagem do andrógino perfeito; mas isso implicaria a transfiguração da natureza. O que permanece como verdade é que é no domínio da sexualidade que se revela com mais clareza a necessidade de ultrapassar a solidão.

 

No comunismo, esse problema desaparece. A solidão é definitivamente superada pela dissolução do ‘eu’ pela coletividade pública, pela substituição da consciência coletiva ao ‘eu’ pessoal. A existência do ‘eu’ se objetiva definitivamente e se enraíza no processo do construtivismo social. A vida sexual se submete definitivamente à coletividade, às exigências da construção social. Daí a importância atribuída à eugenia, à mecanização e à tecnificação do sexo: o amor pessoal é totalmente negado. Conta-se com esse sistema de seleção para sufocar a nostalgia sexual e o sentimento de solidão conectado a ela. O erótico é sacrificado em benefício do econômico e do técnico. Encontramos a mesma tentativa no racismo alemão.

 

Isso equivale a tentar resolver por meio da objetificação e da socialização um problema cujo caráter está em nos conduzir para além de toda espécie de objetificação e de socialização, na direção da comunhão e da união existencial. Isso não é novo: entre os Doutores da Igreja, encontramos a mesma negação do amor pessoal, a mesma concepção da vida sexual considerada como uma instituição social. É verdade que, por um de seus aspectos, a sexualidade mergulha na existência interior do ‘eu’, ela se interessa pelo destino do homem e da pessoa, enquanto estrangeiros ao mundo dos objetos, sem, no entanto, jamais deixar de estar num conflito trágico com esse, de estar envolvido no conflito da família e da sociedade. O mesmo acontece com o desejo de autoridade, a necessidade de poder, que precipita o homem no mundo dos objetos e da sociedade, ao mesmo tempo em que é inseparável do destino do homem íntimo. O poder e a autoridade não superam a solidão, porque só podem ser exercidos sobre os objetos; é por isso que o destino de um Júlio César, de um Napoleão, é trágico.

 

Religião significa ligação. É em virtude de sua própria definição que a religião conduz o ‘eu’ a ultrapassar seu isolamento, a sair de si, a se mostrar, a conquistar uma comunidade, uma familiaridade. Por essência, ela está associada ao mistério do ser, ao próprio ser. Mas não é pela religião, diretamente, que a solidão é suplantada, pois a religião não passa de uma relação e, como tal, ela é secundária e transitória: a solidão só pode ser suplantada por Deus. É Nele, precisamente, que ela é ultrapassada, que se obtém a plenitude, que se descobre o sentido da existência. Esquecemo-nos com frequência que é Deus o primeiro e que a religião pode mesmo prejudicar a relação entre Ele e o homem. No interior da religião, tal como ela se revelou na história, na vida social da humanidade, a relação do homem com Deus não é independente da objetificação e da socialização. Com essa religião objetiva e socializada, o sentimento de solidão fica amortecido, em consequência da queda do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade, ainda que esse mundo se chame Igreja; mas ele não é ontologicamente superado.

 

Esse sentimento não pode ser superado a menos que a relação entre o ‘eu’ e Deus seja da ordem da existência íntima, da vida original da Igreja-comunidade, e não da Igreja-sociedade; assim é que encontramos na religião a mesma coisa que vimos a respeito do conhecimento, da vida sexual – em toda partem a mesma dualidade, as duas mesmas perspectivas, a do Espírito e a da natureza, da liberdade e da necessidade, da existência (ou vida primeira) e da objetividade. Certamente, a religião é uma instituição social, ela já é algo de secundário, de objetificado, de projeção no mundo; mas ela é também revelação, a voz de Deus, a encarnação de Deus, e assim ela é primária e independente do mundo dos objetos, do mundo socializado.

 

Isso não quer dizer que, mesmo nesse caso a religião não passe de um acontecimento individual e o privilégio de almas isoladas. Ao contrário, a religião, ao mesmo tempo em que me religa e me une a Deus, é necessariamente o que me religa e me une ao ‘outro’, ao meu próximo – ela é comunidade e comunhão. Essa união revela uma outra ordem além da ordem objetiva da sociedade, onde é cada um por si, onde o próprio Deus é um objeto e não um ‘você’. O mistério do Cristianismo é o mistério da superação do ‘eu’ em Cristo, o Homem-Deus, em sua natureza teândrica, no Corpus Christi. Mas, para superar a solidão, não é bastante confessar de modo formal a fé em Cristo, pertencer formalmente à Igreja, pois nesse caso a superação não é mais do que aparente e superficial, ao invés de se realizar em profundidade. No Cristianismo puramente social, o amor só poderia ter um caráter convencional, simbólico, irreal. A solidão não pode ser efetivamente superada senão pelo amor real, que é o ápice da vida.

 

Acontece que pertencer por pura forma às confissões cristãs significa manter-se num grau de objetificação. O ‘eu’ que não sai de si senão para penetrar no objeto não se liberta de sua solidão, pois não existe realmente, ontologicamente, união com esse objeto, por meio do qual ele realizou sua saída de si. É por isso que, no próprio interior da Igreja, sua solidão ainda pode ser sentida de maneira aguda, contundente, particularmente dolorosa. No interior de uma mesma paróquia, junto com seus correligionários, é possível sentir-se infinitamente só, mais até do que entre homens de credos e convicções diferentes, e manter, com esses correligionários, relações exclusivamente objetivas, não vendo, em cada um deles, mais do que um objeto, e jamais um ’você’. Esse é um estado extremamente doloroso, trágico até, e que atesta a dualidade básica da vida religiosa. Um crescimento da espiritualidade pode trazer um agravamento dessa solidão, pois pode ser acompanhado de uma ruptura total com as relações sociais do mundo objetificado. Essas dolorosas rupturas não podem ser evitadas no caminho do progresso espiritual.

 

Não obstante, é somente sobre o plano espiritual que a solidão pode ser ultrapassada, é apenas na experiência mística, onde todas as coisas estão em mim, e eu nelas. Esse caminho é diametralmente oposto ao da objetificação, que põe em comunicação coisas que são absolutamente extrínsecas, estranhas, sem parentesco algum. Comunicações e relações, mesmo dentro do próprio Cristianismo, apresentam frequentemente um caráter de convenção puramente verbal, retórica, como acontece com a simbólica das comunicações e das relações. Toda a vida da sociedade repousa sobre uma “retórica” imitativa. A isso se opõe a realização da vida verdadeira, espiritual e mística. Sem dúvida, a própria mística pode se tornar retórica e convencional, mas em nenhum caso ela se torna objetificação, ela jamais se rebaixa ao cotidiano social. Mas esse não é seu sentido verdadeiro. Em suas profundezas, a existência humana, minha própria existência, é de ordem espiritual e não pertence ao mudo objetificado da obrigação, ela não tem aí sua raiz. É somente no seio dessa profundidade que a solidão é superada, que ela é posta a nu. Ao contrário, a objetificação final suprime a ansiedade da solidão. Ao reconhecer-se como pertencente ao objeto, à sociedade, o ‘eu’ já não se sente só; mas não existe aí nada que signifique a vitória sobre a solidão, ainda que essa inserção do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade objetificada seja de ordem religiosa, pois esse estado não é experimentado depois, mas antes do despertar da solidão, enquanto revelação das profundezas. É aqui que se reconhece toda a complexidade do problema da solidão, tal como se encontra em todos os domínios, seja do conhecimento, da sexualidade, da vida social ou da vida religiosa.

 

Ao tratar do mal da solidão, expusemos um dos problemas principais da filosofia da existência, concebida como filosofia do destino humano. Solidário a esse problema está o angustiante “mal dos tempos”, que iremos abordar oportunamente.



[1] Cf. Martin Buber: Ich und Du.Nikolai Berdiaev

 

O EU, A SOLIDÃO E A SOCIEDADE

 

I

O EU E A SOLIDÃO

SOLIDÃO E SOCIABILIDADE

 

 

O eu é primitivo: ele não pode ser deduzido a partir de nada, nem pode ser reduzido a nada. Quando digo ‘eu’, não enuncio nem estabeleço nenhuma doutrina filosófica. Eu, esse ‘eu’, não constitui a substância da metafísica ou da religião. O erro do cogito ergo sum está em que Descartes pretendia deduzir a existência do eu a partir de qualquer coisa diferente, deduzi-la do pensamento; mas, na realidade, não é pelo fato de pensar que eu existo, ao contrário, eu penso por que eu existo. O que deveria ser dito não é: “Penso, logo existo”, mas “Eu existo, envolto nas trevas do Infinito, portanto eu penso”. O ‘eu’ é primeiro existente, ele pertence ao domínio da existência.

 

O ‘eu’, antes de toda objetificação, é, por sua natureza existencial, liberdade. Henri-Frédérik Amiel diz justamente que o fundo do ‘eu’ não pode ser feito de objeto. Precisamente por ser o ‘eu’, ele não se encontra entre os objetos do mundo. A partir do momento em que ele se torna objeto, ele deixa de ser o ‘eu’. Ele é, por natureza, inicial e primitivo. Consciente e inconsciente não se opõem senão enquanto suas propriedades. O que vem primeiro, não é, como pensam muitos filósofos, a consciência, mas o ‘eu’ imerso na existência. Quando começamos pela consciência, partimos já de um certo grau de objetificação. Que a consciência do esforço seja, como professa Maine de Biran, a aurora da personalidade, isso sem dúvida possui uma importância considerável, mas não é o que existe de primordial. Dizemos ainda que a consciência de si é uma criação do si. É verdade, mas isso pressupõe a existência de alguma coisa anterior à existência.

 

O surgimento da consciência é um acontecimento extremamente importante no destino do ‘eu’. A consciência divide e isola, mas ela também faz um esforço para reunir e para superar o isolamento. Pois se o ‘eu’ é liberdade, liberdade em primeiro lugar, também é verdade que a consciência aguda do ‘eu’ é inseparável de um sentimento de servidão e de dependência em relação ao ‘não-eu’. Originalmente, o ‘eu’ e o tudo, o tudo e o ‘eu’, não se distinguem; apenas mais tarde descobrimos o ‘não-eu’ e, em contato com ele, o ‘eu’ contrai uma sensibilidade especialmente aguda e dolorosa. A distinção entre o ‘eu’ e o “eu próprio”, entre anima e animus, é já secundária e relativa ao crescimento espiritual do ‘eu’. Assim é que partimos da unidade indiferenciada do ‘eu’ e do mundo, passando pelo dualismo entre o ‘eu’ e o ‘não-eu’, para alcançar a unidade concreta de todo ‘eu’ com o ‘você’, na qual a multiplicidade se conserva, mas transfigurada.

 

A filosofia parte do ‘eu’, não do objeto: ela nasce a partir da dúvida em relação ao objeto. O filósofo não é o homem da consciência coletiva, genérico; ele não poderia partir do estado no qual o ‘eu’ é objetificado na consciência coletiva. Antigamente os homens viviam encerrados num espaço restrito, no qual eles se sentiam bem, onde estavam preservados do sentimento de isolamento. Hoje, em geral, eles começam a viver no universo, no seio da imensidão do mundo, com um horizonte mundial, o que aviva o sentimento de solidão e de abandono. O filósofo sempre viveu no universal, sempre teve por horizonte o mundo inteiro, ele não conhece um círculo restrito; e é por isso, inicialmente, que ele é só, no mesmo grau que o profeta, mas de modo diferente desse. Essa solidão é superada pelo filósofo, mas não pela vida numa consciência coletiva, mas pelo conhecimento. É isso que iremos examinar agora.

 

O ‘eu’ se define, de um modo antinômico, como o imutável prestes a mudar. Ele não poderia mudar no tempo, se atualizar, se não houvesse algum suporte para a mudança, se esse sujeito que muda não permanecesse e persistisse sendo ele mesmo. O ‘eu’ se desdobra sem cessar, muda de feição; mas, em si mesmo, ele permanece sendo ele mesmo, um e único. Ele pode se contrair e se expandir; cada um de nós comporta um ‘eu’ mais estreito e um ‘eu’ mais vasto. Mas o ‘eu’ em si pode ser definido como a unidade permanente sob todas as mudanças, o núcleo extratemporal, que não pode receber nenhuma determinação de outra coisa do que de si próprio. As mudanças experimentadas pelo ‘eu’ podem ser determinadas extrinsecamente; mas ele próprio não pode ser determinado desde fora, pelo ‘não-eu’. Ele só é determinável desde dentro, e responde ativamente a toda ação extrínseca, determinando-se a si próprio.

 

Todo ‘eu’ se parece com todo outro ‘eu’, enquanto puro ‘eu’; mas cada qual só é um, precisamente na medida em que é diferente dos outros. Cada ‘eu’ é um mundo á parte. Que pressupõe a existência dos outros, mas que não se parece, nem se identifica com eles. O que eu chamo de ‘eu’ é unicamente o ‘eu’ não socializado, não objetificado. Minha existência, a existência do ‘eu’ precede sua inserção no mundo; mas ela é inseparável da existência do ‘outro’ e dos outros.

 

A consciência de si é necessariamente a consciência dos outros; em sua natureza metafísica, ela é social. A existência do homem, na medida em que a consideramos como a pura existência do ‘eu’ pressupõe a existência dos demais homens, do mundo, de Deus. O isolamento absoluto do ‘eu’, a suspensão de todo contato com outrem, com um ‘você’, equivale à destruição do ‘eu’ por si próprio. Ele cessa de existir quando, no interior de sua própria existência, não lhe é dada a existência de um outro ‘eu’, de um ‘você’.  Amiel afirma com justeza que a análise de seu ‘eu’ lhe abre uma perspectiva sobre o mistério do mundo. Ao contrário, o ‘eu’ de Fichte não é exatamente um ‘eu’: ele não é individual, mas universal, e não conhece nenhum outro ‘eu’, nenhum ‘você’, mas apenas o ‘não-eu’. O ‘eu’ apreende a si próprio como produto de sua própria atividade; mas essa atividade não é possível senão com a existência, não apenas desse ‘eu’ ativo, mas de alguma coisa e de algum outro; e aquilo a que me refiro aqui não é a existência dos objetos para o ‘eu’, mas é, como veremos a seguir, a existência de um outro ‘eu’, de um outro ‘você’.

 

Naquilo que me constitui enquanto ‘eu’, entram não apenas minha alma, mas meu corpo também. A teoria do dualismo, do paralelismo entre a alma e o corpo, é estéril. Tanto em mim como no outro, o corpo não pertence apenas ao mundo objetivado, mas provém da existência interior; e, tanto em mim como no outro a existência interna não depende somente de sua projeção no mundo, mas ela manifesta a própria intimidade do ser. É precisamente nesse domínio, diferente daquele a que chamamos de vida-no-mundo, que se coloca o problema do ‘eu’ e de suas relações, seja com os outros, seja com o objeto.

 

É surpreendente constatar que o sentimento de existir e, em especial, a consciência de si, envolvem sofrimento e vulnerabilidade, despedaçamento e desdobramento. Esse sofrimento se relaciona com aquilo que certos filósofos, como Simmel, Tillich e Jaspers, chamam de “situação imite do homem”. é verdade que o ‘eu’ é lançado no mundo, que ele habita o mundo, que está submetido à sua ação; entretanto, é verdade também que ele não pertence unicamente ao mundo. Minha vida transcende a si mesma incessantemente; mas esse transcender, na medida em que eu permaneço no mundo. Torna minha existência dolorosa e atormentada. O ‘eu’ não existe senão na medida em que transcende a si próprio, e perece se permanece em si mesmo, sem saída: esse é o enigma fundamental do ‘eu’.

 

Para que continue sendo ele mesmo, duas condições se impõem ao ‘eu’: é preciso que ele se subtraia à objetificação e à socialização do ‘eu’, e é preciso que ele ultrapasse a si próprio; na medida em que for capaz de realizá-lo, pela força de sua existência íntima, ele poderá sair de si para ir ao encontro do ‘outro’ e dos outros, ao ‘você’, a seu próximo, ao mundo de Deus. Não há nada mais repugnante e funesto do que um ‘eu’ que mergulha egoistamente em si mesmo e em seus próprios estados, um ‘eu’ que se esquece dos outros, do mundo, do múltiplo e do todo; em resumo, um ‘eu’ incapaz de transcender a si mesmo. Isso acontece com algumas mulheres histéricas. Somente o poeta lírico tem o poder de lidar com sua ignominia de beleza, porque a criação poética constitui em si uma maneira de transcender.

 

A reflexão que esclarece mais profundamente toda a existência do ‘eu’ é a reflexão sobre a solidão, tão pouco estudada até o presente com um espírito filosófico – ainda que o próprio conhecimento, com sua ambiguidade, pudesse considerar interessante a solidão, permitindo que ela seja superada de tal sorte que seria essa justamente a maneira de obtenção da luz interior. Na medida em que o ‘eu’ não é capaz de dizer ‘nós’, ele experimenta um sentimento agudo, lancinante de solidão. É no coração dessa fase de solidão que nasce a personalidade, ao tomar consciência de si mesma. A massa da humanidade, que vive na inocência primitiva, de uma vida coletiva, genérica, ignora esse sentimento de solidão; ao contrário, esse último acompanha o esforço para sair dessa vida da espécie e nascer para a personalidade. É quando estou só, quando me sinto só, de modo agudo e doloroso, que eu experimento minha personalidade, minha originalidade, minha singularidade, minha irreversibilidade, minha diferença em relação a seja lá quem for, ou a seja lá o que for, nesse mundo. No agudo extremo desse sentimento de solidão, tudo parece se tornar para mim estranho e heterogêneo. Eu já não me sinto comigo, em meu país natal; nesse mundo que me parece estranho eu não me sinto na pátria de meu espírito.

 

Esse sentimento de degredo da alma no mundo para o qual ela foi enviada se exprime na concepção órfica original da alma.

 

Lentamente ela nasce nesse mundo, consumida por um desejo maravilhoso;

E as tristes canções dessa terra não podem substituir para ela a música celeste.

(Lermontov)

 

 

Na medida em que não me sinto eu mesmo, na medida em que não me encontro no mundo de minha própria existência, na medida em que sinto os homens com se pertencessem a um outro mundo que não é o meu, tanto o mundo como os homens se tornam objetos para mim, e passam a fazer parte de um mundo objetificado, ao qual eu me sinto, mais do que ligado, acorrentado. O mundo objetificado não é capaz de me tirar de minha solidão. Diante do objeto, diante de qualquer objeto, quaisquer que sejam os laços que o prendam a mim, o ‘eu’ permanece sempre só. Essa é uma verdade fundamental.

 

No seio de minha solidão, na minha existência encerrada em si mesma, eu não me limito a sentir e reconhecer com acuidade minha personalidade, minha originalidade e minha singularidade; ao contrário, eu experimento a nostalgia de uma fuga para fora de minha solidão, a nostalgia da comunhão, não com um objeto, mas com o ‘outro’, o ‘você’, o ‘nós’. O ‘eu’ tem sede de sair de sua reclusão ensimesmada, para se dirigir a um outro ‘eu’; mas ao mesmo tempo ele permanece em guarda, pois ele vê com apreensão um encontro que pode fazê-lo experimentar a brutalidade de um objeto.

 

O homem possui um direito sagrado à solidão e à salvaguarda de sua vida íntima. Seria errôneo confundir solidão com solipsismo; ao contrário, não pode haver solidão que não implique a existência do ‘outro’ e dos outros, assim como a existência do mundo estranho e objetificado. Não é tanto em sua existência própria que o ‘eu’ é solitário, quanto em face e no meio dos outros, no mundo onde ele se encontra alienado. A solidão absoluta não é concebível, ela só pode ser relativa à existência dos outros e do ‘outro’.

 

Se absoluta, a solidão seria o inferno e não o não-ser: como tal, ela não pode ser pensada positivamente, e não seria mais do que uma negação. Se relativa, a solidão constitui uma enfermidade, colocada sob um sinal negativo; mas ela não é só isso, pois ela deve também ser considerada como positiva quando manifesta uma condição mais elevada do ‘eu’, erguendo-se acima do mundo comum, genérico e objetificado. Nesse caso, ela nos separa, não de Deus e do mundo de Deus, mas do lufa-lufa social de todo dia, que em si mesmo não passa de um mundo degenerado. Ela nos revela assim o crescimento da alma.

 

Quando se afasta da banalidade cotidiana e social, o ‘eu’ busca uma existência mais profunda, uma existência autêntica. Ele experimenta como que um ritmo alternativo que o faz oscilar entre a ação cotidiana e integrada à sociedade, e a solidão. Quando Kierkgaard expressou o pensamento de que o Absoluto é o que desune e não o que une, isso só está correto com a condição de considerar a união e a desunião no mundo social do cotidiano. O espaço e o tempo, condições do mundo dos objetos, provocam ao mesmo tempo a solidão e a ilusão de superar a solidão; eles conduzem, seja à desunião entre os homens, seja à sua união, não na existência real, numa comunhão verdadeira, mas apenas na objetividade, que é a matéria cotidiana do social. Nada é mais importante para o ‘eu’ do que o fato de se mover no espaço e no tempo. Sair fora dos dados do espaço e do tempo implica de certo modo escapar de uma solidão fixa, estabilizada. Ora, a solidão pressupõe sempre uma necessidade, uma nostalgia de comunhão. Quando eu me reconheço como uma pessoa, quando desejo realizar em mim a personalidade, eu tenho que reconhecer ao mesmo tempo a impossibilidade de permanecer confinado em mim mesmo, e também toda a dificuldade que experimento em deixar a mim para ir ao encontro do ‘outro’ e de outrem.

 

A solidão é sempre, num certo sentido, um fenômeno social: ela pressupõe sempre a consciência de uma conexão com o ‘outro’, com o ser estrangeiro. A mais cruel das solidões é a solidão dentro da sociedade, vale dizer, a solidão por excelência. É somente no mundo e na sociedade, ou seja, no mundo dos objetos, no mundo objetificado, que a solidão é possível. Na medida em que não saímos do ‘eu’ senão para encontrar o ‘não-eu’ – o mundo objetivo – não superamos, em absoluto, a solidão. A cada instante, sem cessar, o ser solitário realiza esse movimento; entretanto, sua solidão, longe de se atenuar, cresce sempre e sempre. Essa é uma verdade indiscutível, a de que nenhum objeto e capaz de remediar a solidão.

 

Essa não pode ser suplantada senão no plano da existência, no contato do ‘eu’, não com o ‘não-eu’, mas com o ‘você’ que é também um ‘eu’, ou seja, mediante o encontro, não com um objeto, mas com um sujeito. Uma vez separado da vida coletiva original, e depois de haver experimentado o mal da consciência, do desdobramento, da solidão, o ‘eu’ já não pode adquirir a integridade, a harmonia, a comunidade com o ‘outro’, por meio de um retorno à vida coletiva no mundo objetivo. Ele precisa sair do mundo dos objetos: nenhuma relação com um objeto é capaz de realizar a comunidade e a comunhão. A solidão é uma contradição. Segundo Kierkegaard, o trágico está na contradição na qual se sofre, e o cômico, na contradição na qual não se sofre. A solidão é trágica: o ‘eu’ tenta suplantar esse trágico, mas ao mesmo tempo não cessa de experimentar a impossibilidade disso; daí nasce uma contradição dolorosa entre a impossibilidade de suplantar o trágico da condição, e a necessidade de fazê-lo.

 

Existem muitos caminhos pelos quais o ‘eu’ se esforça para vencer a solidão: o do conhecimento, o da vida sexual, o do amor e da amizade, o da vida social, o dos atos morais, o da arte, e assim por diante. Seria inexato pretender que a solidão não diminua com isso; mas não é possível sustentar que ela seja definitivamente superada; porque todos esses caminhos conduzem à objetificação, e o ‘eu’, ao invés de atingir um outro ‘eu’, um ‘você’, no ato da comunhão interior, não encontra mais do que o objeto, a sociedade.

 

A solidão não é uma experiência simples e uniforme. Ela existe em diversas formas e diferentes graus. É notável que eventos sociais como a disputa, a luta, mesmo o ódio, permitem muitas vezes superar ou diminuir o sentimento de solidão. Mas, depois, ela se mostra ainda mas grave. Pode acontecer também que a solidão seja sentida como efeito da incompreensão, da infidelidade do reflexo enviado a mim pelo outro. No seio do ‘eu’ vive a necessidade profunda de ser exatamente refletido pelo ‘outro’, de receber sua própria afirmação e confirmação. O ‘eu’ aspira a ser entendido, a ser visto. O narcisismo provém de profundezas insuspeitas: ele está ligado à própria essência do ‘eu’. O ‘eu’ se vê no espelho e busca seu reflexo na água, a fim de confirmar sua existência no ‘outro’; mas, na realidade, não é no espelho nem na água que ele deseja ser refletido, mas sim no outro ‘eu’, no ‘você’, num ato de comunhão. Ele aspira a encontrar um outro ‘eu’, seja ele quem for, um amigo, qualquer que seja –  não um objeto – que o adote definitivamente, que o confirme, que o veja em sua beleza, que o entenda; numa palavra, que o reflita. Nisso reside o sentido profundo do amor. O narcisismo representa o fracasso do amor, ele consiste no reflexo o ‘eu’ no objeto; o sujeito continua a existir em si mesmo, sem jamais sair de si. O objeto – que paradoxo! – é justamente aquilo que deixa o sujeito no interior de si mesmo, que não o conduz a outrem, de tal modo que a objetividade resulta ser a forma extrema da subjetividade.

 

A sede de conhecer constitui-se no desejo de superar a solidão. O conhecimento consiste numa saída para fora de si, em direção do ‘outro’ e dos outros, uma extraordinária dilatação do ‘eu’ e da consciência, uma vitória sobre a divisão produzida pelo espaço e o tempo. Mas, na medida em que permanece objetivo, o conhecimento não permite se evadir realmente da solidão, porque todo objeto é sempre algo de estranho para o ‘eu’ que, em face disso, permanece recluso em si mesmo. Nenhuma objetivação, seja do conhecimento, seja da natureza, seja da sociedade, pode por fim às contradições trágicas do ‘eu’; o único conhecimento que pode vencer eficazmente a solidão é aquele que se opera sob a perspectiva, não da sociedade, mas da comunhão. Dentro da perspectiva da sociedade, do conhecimento socializado – e, como tal, universalmente válido – conhecer equivale a obter aquilo que é comum, e não a entrar em comunhão.

 

Ontologicamente falando, a solidão é a expressão da nostalgia de Deus, de Deus enquanto sujeito e não enquanto objeto, de Deus enquanto ‘ele’ (Du) e não como ‘mim mesmo’(Ich)[1]. Somente em Deus é possível encontrar aquilo que é capaz de suplantar toda solidão, por meio do que eu posso adquirir o que é, de forma próxima e intimamente, um sentido incomensurável com minha existência. Aquela coisa única à qual eu posso pertencer, e nela confiar plenamente, à qual posso me entregar sem reservas, essa coisa é Deus, e somente Deus. Deus não pode ser um objeto para mim, e a objetificação, a socialização de minhas relações com Deus o torna exterior a mim, faz dele uma autoridade em relação a mim.

 

Podemos dizer que a solidão não é da ordem ontológica do ser, e que ela só existe de forma subjetiva. O que existe subjetivamente não pode ser suplantado senão por um sujeito existente em contato com o fundo do ser, e que não se revela objetivamente, mas subjetivamente. A relação do ‘eu’ com o mundo é dupla. De um lado, ele experimenta o sentimento da solidão, ele se sente estrangeiro no mundo, sente-se apátrida num mundo que não lhe parece ser de todo seu; por outro lado, ao contrário, o ‘eu’ descobre que a história do mundo não é outra coisa do que seu fundamento mais profundo, que tudo o que acontece, acontece a ele pessoalmente, pertence ao seu destino. Da mesma forma como tudo me parece estranho e longínquo, ao contrário, tudo se apresenta a mim como formando parte de minha própria experiência.

 

Pois não é uma contradição, que aquilo que me acontece possa parecer estranho a mim. É porque a sociedade é para mim um objeto, e assim a socialização, a objetivação, a sociedade, não se apresenta como existencial, e a vida na sociedade, a vida que nos projeta nela, é alguma coisa que, embora sendo eu mesmo, me é estranha e não é capaz de dissipar minha solidão. Mas nada é mais importante para o destino do ‘eu’, porque ser precipitado no cotidiano na natureza social é um fato de sua existência interna, é a decadência do ‘eu’, ainda que essa decadência pertença à sua existência. Nesse mundo de desunião, a parte que cabe ao ‘eu’ é precisamente a vida em sociedade. Podemos dizer então, num certo sentido, que a sociedade é interior em relação ao ‘eu’. Carl Gustav Carus pensa que a consciência está ligada ao particular, ao individual, e que o inconsciente, está ligado ao geral, ao supraindividual. Nesse sentido é verdade que, em suas camadas inconscientes o ‘eu’ contém toda a história do mundo e da sociedade, tudo o que a consciência experimenta como sendo estranho e longínquo, porque na consciência o ‘eu’ não revela mais do que uma parte de seu conteúdo.

 

Uma vez arrancado das profundezas da existência e entrando em contato com a sociedade objetificada, o ‘eu’ deve se defender dela como se ela fosse um inimigo. Na sociedade, o homem preserva seu ‘eu’ desempenhando tal ou qual papel, em que ele já não é si-mesmo. Seja qual for a condição social na qual se encontre, ele sempre desempenha um personagem, seja de rei, aristocrata, burguês, homem do mundo, pai de família, revolucionário, funcionário, artista e assim por diante. No cotidiano social, no seio da sociedade objetificada, o ‘eu’ não é o mesmo que em sua existência interior; esse é o tema fundamental da obra artística de Tolstoi. Por isso é tão incômodo cavar até o eu verdadeiro de um homem, retirar dele todos os seus véus. Na sociedade, o homem está sempre em cena, ele se conforma com aquilo que recebe em sua condição social; e, quanto mais compenetrado de seu papel ele se torna, mais difícil é para ele chegar ao seu próprio ‘eu’. Considerado assim, o instinto cênico se torna um dos caminhos da objetificação. O homem vive em muitos mundos simultaneamente, e em cada um ele representa um personagem diferente, ele se objetificar de maneira diferente. Isso foi bem demonstrado por Georg Simmel. O que é especialmente notável é ver que é precisamente a objetificação produzida por ele, na qual ele se aliena de si, e que ele sente como estranha a ele, que provoca nele o sentimento de sua solidão. Parece que o ‘eu’ coloca diante de si sua própria exterioridade.

 

O romantismo, tal como surgiu na história e no espírito europeu, apresenta muito interesse para o problema da solidão do ‘eu’. O romantismo é a expressão do sentimento da solidão, vale dizer, da ruptura entre o objetivo e o subjetivo, ele aparece quando o ‘eu’ se separa da ordem hierárquica objetiva, que parece ser eterna. Ele vem sempre depois do desdobramento, quando a alma sente como estranha a si a ordem hierárquica do objeto, o cosmo de São Tomás de Aquino e de Dante. O ‘eu’ romântico é um ‘eu’ que pressupõe já a cisão entre sujeito e objeto; ele nega pertencer à ordem subjetiva das coisas.

 

Essa cisão foi preparada pelo sistema astronômico de Copérnico, pela filosofia de Descartes e também pela reforma de Lutero. Ela pressupõe novas ideias científicas sobre o universo, novas ideias filosóficas sobre a atividade do ‘eu’ no conhecimento, novas ideias religiosas sobre a transformação na consciência não apareceram imediatamente, mas vieram a surgir apenas depois de diversas repercussões.

 

Quado o mundo objetivo se tornou estranho ao sujeito, quando deixou de haver um cosmo hierárquico no qual o sujeito possuía sua residência orgânica, em que se sentia em casa, o homem começou a buscar uma saída para sua solidão e seu abandono, a buscar para si uma proximidade, uma intimidade com o mundo subjetivo; isso conduziu ao desenvolvimento de uma vida afetiva. O sentimento cósmico dos românticos, seu sentimento panteísta do universo emanavam do sujeito. Seu cosmo não era um dado objetivo, como o cosmo da Idade Média no pensamento escolástico. É justamente por sua subjetividade que as relações românticas com a natureza conduziram à fusão do homem com ela, coisa que as relações objetivas, por serem hierarquizadas, jamais fizeram. Sentindo sua solidão, o ‘eu’ romântico fundia-se com o cosmo.

 

Ainda que o romantismo não tenha encontrado uma saída, ao menos ele se constituiu num momento importante para a libertação do ‘eu’ em relação ao mundo objetificado e socializado. Ele o abriu para o infinito, libertou-o das cadeias que o prendiam ao finito, a um lugar determinado na ordem hierárquica. Sua fraqueza foi – apesar de libertar o ‘eu’ da objetividade, apesar de ter revelado sua potência criativa, a potência da fantasia do ‘eu’ – não tê-lo tornado apto a tomar consciência de sua personalidade, não tê-lo tornado capaz de forjar uma para si. A filosofia romântica não é personalista, nem a individualidade humana constitui uma personalidade. O ‘eu’ se perde num infinito cósmico e nele se dissolve, perdendo sua consistência. A vida afetiva, atingindo talvez pela primeira vez a liberdade de seu desenvolvimento, inundou o mundo inteiro com o ‘eu’; o conhecimento subordinou-se à imaginação criativa.

 

São diversas as formas com as quais o romantismo pode se revestir: existem os que são otimistas ao extremo, com o dogma da inocência da natureza humana e a fusão com a vida do universo; outros são pessimistas ao extremo, com a solidão do ‘eu’, o infortúnio e a trágica sorte do homem. Entretanto, o que o pessimismo acusa, aquilo de que ele é a consciência, não é o estado de pecado em que o homem é mantido por sua natureza, mas sua infelicidade, a tragédia insolúvel do ser.

 

Podemos ainda apresentar o romantismo como uma mudança de horizonte. Durante a infância, os espaços mais restritos, o canto, o quarto, o corredor, o carro, o buraco de uma árvore, constituem um mundo imenso e misterioso. Na consciência dos adultos esse sentimento se enfraquece e quase chega a desaparecer. O universo é menos misterioso para nós do que o canto sombrio ou o corredor para a consciência infantil. Como novidade, o romantismo mostrou o lado misterioso das coisas, ele mudou o horizonte; mas esse horizonte romântico não é capaz de se sustentar, pois ele carrega consigo a dissolução da personalidade no infinito cósmico, ele a afoga no oceano da afetividade. O ‘eu’ deve superar a solidão; mas isso não pode ser feito, nem por maio da objetificação, recaindo na escravidão do mundo dos objetos, nem tampouco pela subjetividade romântica: somente pela conquista da espiritualidade no coração de sua intimidade, confirmando a si mesmo como uma pessoa, que, ao mesmo tempo em que sai de si, ele permanece sendo o mesmo.

 

Podemos, assim, distinguir quatro tipos de relação entre a solidão do ‘eu’ e o instinto social:

 

1.       O homem que ignora sua solidão e é absorvido pela sociedade; esse é o tipo mais elementar e o mais difundido. Nessa condição, o ‘eu’ está plenamente adaptado ao meio social; a consciência está objetificada e socializada ao máximo. O ‘eu’ ainda não viveu a cisão e a solidão. O homem se sente em casa em meio ao cotidiano social, ele pode ocupar aí uma posição elevada, e mesmo eminente. Existe aí apenas uma reserva: o que predomina nesse tipo são os imitadores, homens sem originalidade, medíocres, que vivem de um fundo “comum” transformado em tradição, seja essa conservadora, liberal ou revolucionária.

 

2.      O homem sem experiência da solidão, mas indiferente à sociedade. Nesse caso, ainda, o ‘eu’ está adaptado ao meio social, ele se sente de acordo e em harmonia com a vida coletiva, e sua consciência é socializada; mas ele não partilha dos interesses sociais, ele não mostra nenhuma atividade social, ele é indiferente aos destinos da sociedade e do povo do qual faz parte. Esse é um tipo muito comum. Nele, como no primeiro, está ausente todo conflito; ele se multiplica nas épocas de vida social estável e tem dificuldade em se manter nas épocas revolucionárias, nas épocas de crise.

 

3.      O homem familiarizado com a solidão, mas sem preocupação social. Esse tipo, ou não está, ou está pouco adaptado à vida social; ele é dividido por conflitos, ele não é um tipo que está em harmonia. Sua consciência é pouco socializada e não é levada a se insurgir contra a coletividade ao seu redor, porque isso revelaria um interesse e uma emotividade voltados para a sociedade. Dessa forma, ele se contenta em se isolar do meio social, de proteger sua vida espiritual e criativa. É isso o que faz o poeta lírico, o pensador solitário, o esteta sem raízes. Os homens desse tipo costumam viver sua solidão constituindo pequenas elites. Eles se dobram facilmente, quando o exigem as necessidades de sua existência, aos compromissos com a vida social, porque lhes falta, de modo geral, as crenças e convicções a respeito disso, sendo conservadores em épocas conservadoras, revolucionários nas revoluções, mas indiferentes, tanto ao espírito conservador como ao espírito revolucionário. Não são nem combatentes, nem tomam a frente.

 

4.      Por fim, vem o homem que vive na solidão sem se desinteressar pela sociedade. Esse caso pode parecer à primeira vista muito singular, porque a solidão não parece muito compatível com a sociabilidade. Entretanto, é isso que nos mostra esse tipo profético, do qual os profetas do Antigo Testamento nos oferecem o protótipo eterno. Esse tipo profético não se encontra senão no domínio religioso, porque ele compreende todos os iniciadores, os inovadores, os reformadores, os revolucionários do espírito. O profeta está sempre em conflito com a coletividade religiosa ou social, ele jamais está de acordo com o meio, com a opinião pública. Ele é, como sabemos, sempre mal interpretado, e nele jogam-se pedras. Sendo um profeta religioso, ele está em conflito com o sacerdote, com o pontífice, com a expressão da coletividade religiosa. O profeta sente de uma maneira aguda sua solidão, seu abandono; ele pode estar exposto à perseguição de todos aqueles que o cercam.

 

Pois bem, o que é insustentável é afirmar que o homem de tipo profético seja indiferente em relação à sociedade. Bem ao contrário, ele está inteiramente voltado, e em todas as circunstâncias, para os destinos do povo e da sociedade, para a história, para seu devir pessoal e para o devir do mundo. Ele denuncia os vícios de seu povo e de sua sociedade, ele os julga, mas não cessa de se interessar por seu destino. Ele não se ocupa com sua própria salvação, com seus sentimentos ou estados de consciência; mas ele olha em direção ao reino de Deus, para a perfeição da humanidade, e mesmo de todo o universo. Encontramos esse tipo semelhante a si mesmo fora do domínio religioso, na vida social, no conhecimento que não deixa de ter um elemento profético, e na arte.

 

Desses quatro tipos, a distinção, como acontece com todas as classificações, é bastante relativa; e as relações entre eles não devem ser compreendidas num sentido estático, mas dinâmico. Os dois primeiros têm como característica comum se adaptar ao meio social, enquanto que os dois últimos se opõem a ele. Importa muito compreender que o revolucionário medíocre na ordem social não está menos em harmonia com o meio, que sua consciência pode estar completamente socializada, e que ele ignora os conflitos inseparáveis da solidão.

 

Assim sendo, a reflexão a respeito da solidão me parece ligada àquilo que existe de mais profundo no problema filosófico: ela é o nó ao qual estão ligados os problemas do ‘eu’, da personalidade, da sociedade, da comunhão, do conhecimento; nos seus confins extremos, o problema da solidão se torna o problema da morte. Passar pela morte equivale a passar para a solidão absoluta, romper com o mundo inteiro. A morte é a ruptura com toda a esfera da existência, a interrupção de todas as ligações e de todos os contatos, o isolamento completo. Se, no termo último do mistério da morte, essa ainda fosse partilhada, se o contato ainda se mantivesse com o ‘outro’ e os outros, já não se trataria de morte. O que faz a morte é justamente o fato de que toda ligação, todo contato, são cortados, que a solidão é absoluta. Com a morte, o comércio do homem com o mundo dos objetos chega ao fim.

 

O que resta a se perguntar, é se esta solidão é definitiva e eterna, ou se ela não passa de um momento no destino do homem, do mundo, de Deus. Toda a vida do homem deve ser empregada em preparar laços, contatos com os outros homens, com o universo e com Deus, de tal forma que eles possam suplantar a solidão absoluta da morte. Falando propriamente, a morte não deve ser a negação completa do ‘eu’, pois seria mais fácil negar o mundo do que a ele. a morte não deve ser mais do que um momento durante o qual o ‘eu’ se vê completamente isolado, e, pela ruptura de todos os laços e contatos, separado do mundo e de Deus. Todo o paradoxo da morte provém do fato de que esse isolamento, essa ruptura, essa separação resultam da existência em um mundo decaído, na objetificação, na sociedade de nossos dias. As ligações estabelecidas na objetificação conduzem inexoravelmente à morte. Assim, devemos nos interrogar sobre as relações de correlação entre o ‘eu’ e o objeto e entre o ‘eu’ e o ‘você’, devemos abordar o problema da comunicação entre as consciências.

 

 

II

O EU, O VOCÊ, O NÓS E O ISSO

O EU E O OBJETO

A COMUNICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS

 

 

Um filósofo religioso, judeu, Martin Buber, num livro notável, Ich und Du, (Eu e você), estabelece uma distinção fundamental entre IchseinDusein e Essein, o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’. A relação primária entre o ‘eu’ e o ‘você’ é, para ele, a relação entre o homem e Deus. Essa relação é dialógica, ou dialética. O ‘eu’ e o ‘você’ estão em presença um do outro, face a face. O ‘você’ não é um objeto, não é uma coisa para o ‘eu’. Quando ele se transforma em objeto, ele se torna Essein, isso. Podemos dizer também, misturando minha terminologia com a de Buber, que o Essein, ‘isso’, é o resultado da objetificação. Tudo o que é objetificado é Essein, mesmo Deus, objetificado, se torna Essein. O ‘você’ desaparece e já não há encontro possível, não mais face a face. O sujeito na terceira pessoa, ‘ele’, se não for o ‘você’, se torna ‘isso’. Para mim, o ‘você’ jamais pode ser um objeto. Mas tudo é susceptível de se tornar objeto segundo um processo que podemos assistir na vida religiosa. O objeto é ‘isso’, o Es de Buber. Na medida de sua objetificação, a natureza e a sociedade se transformam para nós em ‘isso’; mas a partir do momento em que encontramos um ‘você’ na natureza, o mundo objetivo se evanesce e o mundo da existência se revela a nós. Buber pensa acertadamente que oo ‘eu’ não existe fora de suas relações com o outro, na medida em que esse outro é um ‘você’; mas, para ele, a relação entre o ‘eu’ e o ‘você’ é unicamente aquela do homem para com Deus, aquela que é tratada na Bíblia. A relação entre as consciências humanas, a do ‘eu’ e do ‘você’, a relação entre dois homens, a que envolve a multiplicidade humana, não é estudada por ele. ele não se coloca o problema da metafísica social humana, o problema do ‘nós’.

 

Pois não são apenas o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’ que existem, também o ‘nós’ existe. O ‘nós’ pode se transformar em ‘isso’, como acontece na socialização (que é uma objetificação), como acontece por exemplo no ecumenismo da Igreja, considerada enquanto instituição social. O ‘nós’ objetificado consiste na coletividade social, que é dada a cada um de nós desde fora; mas ele existe também de outra maneira, como comunidade e comunhão de pessoas, na qual cada um é um ‘você’, e não um ‘isso’. A sociedade é o ‘isso’, ela não é um ‘nós’. Quando ela é objetificada, cada um de seus membros é um objeto dentro dela. São os vizinhos, não os próximos, os amigos, porque um amigo jamais é um objeto. Na sociedade existem nações, classes, as diversas camadas sociais, os partidos, os concidadãos, os camaradas, os superiores, mas nunca um ‘eu’, nem um ‘você’; e o ‘nós’ só se encontra aí sob uma forma socializada, descolada da pessoa concreta.

 

Existe um outro modo de comunhão das consciências: sua participação no ‘nós’. O ‘nós’, para o ‘eu’, não é ‘isso’, o objeto, ele não constitui um dado exterior. O ‘nós’ é um conteúdo qualitativo imanente ao ‘eu’, pois todo ‘eu’ envolve sempre uma relação, não apenas com o ‘você’, mas também com a multiplicidade humana. É sobre essa relação que se fundamenta a ideia de Igreja, tomada em sua pureza ontológica, da Igreja não objetificada ou socializada, pertencente à ordem ontológica, pois quando acontece de a Igreja transformar a si própria em objeto, num ‘isso’, o ‘nós’ já não pode conter nada mais de existencial.

 

Com efeito, tanto quanto no ‘eu’, a existência se revela no ‘você’ e no ‘nós’; é apenas no objeto que ela jamais se revela. Freud, apesar de sua ingenuidade filosófica, que às vezes confinava com o materialismo, distingue entre o ‘eu’ e o ‘si’. Existe no homem um fundo impessoal, o ‘si’, que pode sobrepujar o ‘eu’.

 

Essein de Buber em parte corresponde ao das Man de Heidegger, a terceira pessoa determinada. O Essein coincide também com aquilo que eu chamo “mundo da objetificação”, no qual, por sinal, não se resume todo o problema social. O mundo do Dasein, do ser-situado, de Heidegger, é o Mitwelt, o mundo da coexistência com outrem. Mas Heidegger não coloca, nem tampouco aprofunda o problema da sociologia metafísica. Será mais em Karl Jaspers que encontraremos essa questão tratada.

 

Se não apenas o ‘eu’ e o ‘você’, mas também o ‘nós’, são imediatamente dados, não é menos verdade que é o ‘eu’ que é primitivo; mas eu não posso dizer ‘eu’ em anunciar e colocar, por esse mesmo ato, o ‘você’ e o ‘nós’. Entendida assim, a sociabilidade consiste numa propriedade do ‘eu’, constitutiva de sua própria existência íntima. É preciso distinguir radicalmente entre o ‘você’ e o ‘nós’, de um lado, e o ‘não-eu’, de outro, pois, enquanto que o ‘não-eu’ se confunde com a objetificação, o ‘você’ e o ‘nós’ são existenciais. O ‘você’ é um outro ‘eu’, e o ‘nós’ é o próprio conteúdo do ‘eu’. Quanto ao ‘não-eu’, ele é sempre hostil ao ‘eu’, ele constitui sempre uma oposição, um obstáculo ao ‘eu’. No máximo, o ‘eu’ pode enxergar no ‘não-eu’ uma metade, a outra metade do ser, embora não possa encontrar nele a multiplicidade dos demais homens, seus semelhantes, o que é evidente, porque sendo o ‘não-eu’ um objeto e não um ‘você’, nenhum ‘eu’ pode decorrer dele.

 

Até o presente, o problema das relações entre o ‘eu’, o ‘você’, o ‘nós’ e o ‘isso’ não foi colocada com suficiente amplidão na filosofia, que só se preocupou com a questão da realidade do ‘eu’ de outrem e da maneira como ele é conhecido. Será que nos é dada essa realidade do ‘eu’ de outrem, será que a conhecemos? Segundo a teoria antiga, não perceberíamos mais do que o corpo do outro, e seríamos obrigados a inferir, por analogia, a vida de sua alma. Essa teoria é completamente errada e deve ser imediatamente rejeitada. De fato, conhecemos muito mal o corpo do outro, ignoramos por completo o que se passa ali, e não percebemos senão sua superfície, enquanto que a vida psíquica do outro nos é, ao contrário, melhor conhecida, na medida em que a captamos, que nela penetramos de maneira imediata. A intuição da vida mental de um outro ‘eu’ não pode ser negada, porque a intuição não poderia se aplicar a um outro ser ou uma outra existência considerados como objetos, e ela só pode ser possível na medida em que tomamos esse ser ou essa existência como sendo um ‘eu’, como sendo ‘você’. Pois diante de um objeto eu permaneço sempre só, sem poder sair de mim mesmo; ao contrário, na presença de um outro ‘eu’ que seja para mim um ‘você’, eu saio de minha solidão e alcanço uma comunhão. A intuição da vida espiritual de um outro ‘eu’ é uma comunhão com esse ‘eu’.

 

O fato de percebermos o rosto de outrem, e expressão de seus olhos, frequentemente nos entrega o segredo de sua alma. Os olhos, os gestos, as palavras nos fazem conhecer a alma de alguém, melhor do que seu corpo. Conhecemos de fato, e percebemos a vida de outrem, não apenas com o auxílio daquilo que ele nos revela, mas também daquilo que ele nos vela. Esse método para conhecer a outrem por suas reticências chegou a ser objeto de muito abuso em nosso tempo, a partir da descoberta do inconsciente. Sem dúvida, a psicanálise freudiana atesta a possibilidade de conhecer a vida psíquica e não a vida fisiológica de outrem, pois exatamente de seu ponto de vista a libido, a sexualidade, provém, não da vida orgânica, mas da vida espiritual. Também não é menos errado imaginar que o método analítico é o único capaz de nos ensinar profundamente a respeito da vida interior de alguém, em outros termos, a respeito de seu verdadeiro ‘eu’. Quando pretendemos fazer do ‘eu’ um objeto de conhecimento, ele se esconde fundo. Ao contrário, existe uma apreensão imediata da alma do outro; mas ela é afetiva, simpática, erótica, vale dizer: ela é da ordem do amor. Se ela não perfura o mistério do ‘eu’ de outrem, que é impenetrável, não devemos concluir daí, como se faz tantas vezes a partir da realidade desse mistério, a impossibilidade total de conhecer seja lá o que for da alma de outrem.

 

Até hoje, não se prestou muita atenção no problema da comunicação entre consciências. Esse é um dos problemas fundamentais da filosofia. É indispensável distinguir entre comunicação e participação. A participação é real, ela consiste na penetração na realidade primeira. Ao contrário, a comunicação, para a maior parte, não passa de simbólica, ela pressupõe a simbolização, vale dizer, o emprego de signos exteriores capazes de traduzir para fora a realidade interna. O simbolismo próprio às comunicações é precisamente aquilo que, a partir da ordem interior da existência, transparece no mundo objetivo, vale dizer, desunido, desfeito, desmembrado. Nossas artes estão cheias de simbolismo, assim como nosso conhecimento: ao mesmo tempo em que ela trai um estado de desunião, ela estabelece comunicações. Numa certa medida, é graças aos signos e aos símbolos, que conhecemos a vida interior dos outros; mas essas comunicações que se estabelecem na vida humana implicam sempre a desunião, elas pressupõem que não é possível encontrar saída para o mistério da existência; isso se deve ao fato de que elas não possuem mais do que um valor simbólico.

 

Esse é o caso dos costumes, dos hábitos, da imitação, da polidez, da amabilidade. Todas as comunicações que constituem a vida do Estado possuem esse caráter, e elas não pressupõem a menor comunhão entre as pessoas. Em particular, o caráter convencional é próprio a todos os signos que servem às relações pecuniárias, e nas quais a objetificação alcança sua forma mais extrema. Mas o ‘eu’ não se satisfaz em comunicar com os outros apenas por meio da sociedade ou do Estado, pelas instituições, ou seja, por meio de signos convencionais. Ele aspira a algo mais do que uma comunicação, ele deseja uma comunhão com os outros, o que ele quer é deixar seu lugar para aceder a uma existência autêntica. As comunicações convencionais não permitem deixar o mundo dos objetos, elas se mantém em relação com eles; por sua vez, o impulso que nos leva à comunhão conduz, para além da objetificação, à existência real. O simbolismo das comunicações está sempre em proporção aos diferentes graus de objetificação.

 

A comunhão comporta a reciprocidade: não é possível haver comunhão unilateral; no amor não partilhado, não existe comunhão, pois na comunhão o ‘eu’ e o ‘você’ são ambos ativos, enquanto que com o objeto não se pode exigir nenhuma reciprocidade, porque com ele não é possível estabelecer mais do que uma comunicação simbólica.  O ‘eu’ não pode comungar senão com um ‘eu’ que seja, para ele, um ‘você’, e um ‘você’ ativo, para que a comunicação seja bilateral, vale dizer, sobre o plano, não da objetividade, da objetificação, mas da existência. Na medida em que o ‘eu’ não está ligado senão ao objeto, ele permanece só, mesmo na comunicação, e a solidão não pode ser suplantada senão pela comunicação entre pessoas, entre o ‘eu’ e o ‘você’, no interior, não da sociedade objetificada, mas do ‘nós’.

 

A consciência, por sua própria natureza, é social, ela pressupõe que os demais seres humanos existem e que eles estão em relação recíproca, ela implica irmãos em humanidade. Mas é frequente acontecer que ela contrarie a comunhão, deixando o homem em sua solidão, por ter sido socializada, vale dizer, adaptada às comunicações simbólicas que constituem o reino da sociedade, ao invés de se voltar para a realidade da comunhão na existência autêntica. Ao ser socializada, a consciência é entregue à vida coletiva do dia-a-dia. No êxtase místico, como caem todas as barreiras da consciência, desaparece todo obstáculo à união. O homem chega a aspirar ao apagamento de sua consciência a fim de saciar sua sede de comunhão. Na originalidade criativa, pessoal, assim como no êxtase suprapessoal, dissipam-se o cotidiano social, com suas barreiras e normas. Não é que o pensamento pessoal, original, próximo de sua fonte primária, seja a negação da comunidade e da comunhão; ele não nega senão a sujeição do pensamento ao cotidiano social, à sociedade transformada em objeto. O que o pensamento pessoal condena não é a comunidade, mas a generalidade. Jaspers professa com razão que não existe um ‘eu’ sem que haja comunicação com ‘outro’, sem disputa dialética. A partir do momento em que o mundo se degrada na condição de sujeito puro do conhecimento, ele já está objetificado, e o que ele pode obter daí por diante já não será uma comunidade interior, mas apenas uma comunicação, restritiva e fundamentada no geral.

 

Uma vez que a conversão de seja lá o que for em objeto constitui uma evidente racionalização, será na vida afetiva que o ‘eu’ irá melhor se revelar. Ela comporta uma objetificação menor do conhecimento, desde que as emoções não tenham sido socializadas de modo a mascarar a vida interior do ‘eu’. Essas dificuldades não impedem que o conhecimento fundado na comunhão, por meio do qual um ‘eu’ penetra na intimidade de um outro ‘eu’, seja um conhecimento emocional. Seria um erro crer que a comunhão, vitoriosa sobre a solidão, só seja possível de homem para homem, que ela seja reservada à amizade humana. Ela também pode penetrar no reino animal, e até no reino vegetal ou mineral, que possuem também sua existência interna. Podemos, como São Francisco de Assis, comungar com a natureza, com os oceanos, as montanhas, as florestas, os campos, os rios. O exemplo mais notável desse tipo de comunhão afetiva nos é fornecido pelas relações do homem com os cães, verdadeiros amigos do homem. realiza-se uma reconciliação do homem com a natureza alienada e objetificada, na qual o homem reencontra, não mais um objeto, mas um sujeito, um amigo. As relações entre o homem e o cão possuem um valor metafísico, pois, perfurando o objeto, atinge-se a existência autêntica.

 

Sabemos, a partir da teoria de Freud sobre o narcisismo, sobre a qual já dissemos colocar um problema dos mais profundos, que o ‘eu’ se torna aí objeto da libido. O narcisismo consiste num desdobramento do ‘eu’, e é por isso que o ‘eu’ se torna seu próprio objeto, torna-se ele mesmo uma parte do mundo objetificado. O narcisismo não pode ser superado senão com a condição de que o ‘eu’ busque seu próprio reflexo, não mais em si, mas em algum outro ‘eu’. Esse fenômeno do narcisismo se encontra igualmente no domínio do conhecimento.

 

Para Freud, o instinto mais profundo é o da morte; ele pensa assim, porque ignora o mistério da comunhão, da saída do ‘eu’ no ‘você’ e no ‘nós’. O instinto sexual, como tal, não conduz à comunhão e à penetração num outro ‘eu’. Existe nele um elemento demoníaco de destrutivo. Ao contrário, é ele que nos lança no mundo objetificado e nos acorrenta a ele. é por isso que, ao lado do instinto sexual, aparece para Freud o instinto da morte, que não conhecia um terceiro que pudesse ser mais profundo.

 

A evasão para fora do cotidiano social, que desune e prende, por meio da união extática no suprapessoal, traz uma solução ao problema da solidão pela abolição e a negação da personalidade. A máscara nos cultos antigos, por exemplo no culto dionisíaco, simbolizava a vitória sobre a solidão, e a participação no divino. mas o problema da comunicação de ‘eu’ para ‘eu’, de pessoa a pessoa, não deixa de subsistir. Ele não pode ser resolvido a não ser pelo amor, amor erótico e amor amistoso, pois o amor está indissoluvelmente ligado à pessoa e constitui sempre uma saída do ‘eu’ para fora de si em direção a um outro ‘eu’, e não em direção ao impessoal, ao ‘si’ coletivo. Mas o ‘eu’ não é ainda a pessoa. É preciso que ele se torne pessoa: e para isso concorre a comunhão com o ‘você’ e o ‘nós’. A pessoa se afirma na comunhão em que cada qual sai de si e vai na direção do outro.

 

Pois a reserva interior do ‘eu’ só faz expressar seu isolamento, sua solidão. É uma maneira dele se defender contra o mundo objetificado e socializado. O ‘eu’ não pede mais do que se abrir para o ‘você’, mas o que ele encontra, ao invés desse ‘você’, são coisas. E no entanto, se a solidão constitui uma fase no desenvolvimento pelo qual a pessoa toma consciência de si esma, ela deve ser superada; e, como ela não pode sê-lo por meio da objetificação que só gera um mundo impessoal, somos assim levados ao problema da pessoa, que será examinado mais adiante.

 

 

 

 

III

SOLIDÃO E CONHECIMENTO – TRANSCENDÊNCIA

CONHECIMENTO COMO COMUNHÃO

SOLIDÃO E SEXUALIDADE – SOLIDÃO E RELIGIÃO

 

 

É incontestável que o conhecimento chega a suplantar a solidão, porque ele nos faz sair de nós mesmos, do espaço e do tempo – tais como nos são dados – para nos conduzir a outro espaço e outro tempo, e que ele, levando-nos até o ‘outro’, supera o isolamento. O conhecimento é uma das saídas possíveis para a solidão, uma saída para o outro ‘eu’, para mundo, para Deus. Aquele que conhece sai de sua reclusão, deixa de viver unicamente em si e consigo mesmo. Tampouco se pode negar que o conhecimento traz em si uma marca social, que ele permite aos homens comunicar entre si. São evidentemente sociais a comunidade lógica, o aparelho lógico do conhecimento, os conceitos, as normas e as leis, a língua. A língua é o instrumento mais poderoso da constituição da sociedade e o estabelecimento de comunicações entre os homens, mas ela própria está ligada ao pensamento e à elaboração de noções que permitem a instituição de uma comunidade de ordem intelectual entre os homens. Subjaz aos nomes uma verdadeira magia social. Os resultados e as realizações práticas do conhecimento dependem do grau de comunidade entre os homens, de agrupamentos sociais, de sua cooperação laboriosa, em resumo, da maneira como eles superam a solidão. Todos esses fatos colocam, em toda sua complexidade, as relações entre conhecimento e solidão.

 

Se o caráter social do conhecimento caracteriza o estabelecimento de comunicações entre os homens, nem por isso segue-se que ele caracterize também a realização da comunhão, vale dizer, que a solidão seja ontologicamente superada. Pois, uma vez que a socialização é idêntica à objetificação, e que a objetificação do conhecimento mascara o mistério da existência (única forma de suplantar a solidão e estabelecer a comunhão), das duas perspectivas a partir das quais se pode considerar o conhecimento – a da objetificação e a da amizade com um ‘si mesmo’ – somente a segunda é capaz de trazer a cura para a solidão.

 

Assim é que o conhecimento comporta dois aspectos. Seu sentido primário está na relação do conhecedor para com o ser; nesse sentido a solidão é superada quando a participação do conhecedor no mistério da existência é alcançada. O segundo sentido do conhecimento reside nas relações do conhecedor com o ‘outro’, com a multiplicidade dos homens, com a sociedade. Se, desse segundo ponto de vista, se pretender suplantar a solidão por meio da socialização, como essa reflete a queda do ‘eu’ no mundo dos objetos, o sucesso obtido será superficial, e não poderá ser conseguido sem que o sentimento e a consciência de si sejam amortecidos.

 

A comunhão por meio da qual a solidão pode ser superada não se realiza, portanto, senão pela passagem, não do ‘eu’’ ao objeto, mas do ‘eu’ ao ‘você’, tal como operam o amor e a amizade. Isso é inteiramente válido para o conhecimento. Nem o contato do ‘eu’ com o objeto, nem a sociedade podem abolir a solidão. Tal coisa só é possível por meio do ‘você’, pela comunhão no interior de um ‘nós’, e jamais por meio do social. Uma vez que o conhecimento objetificado não trata nunca de outra coisa que não do geral, ele fabrica abstrações e alcança o universal, mas, seja no geral, seja no universal, já não existem o individual, o singular e o pessoal. Ao contrário, no conhecimento visto como comunhão, na medida em que ele permite ao ‘eu’ se unir com o ‘você’, o valor da universalidade dos resultados reside em que eles servem para alcançar o individual, o singular e o pessoal. Não é numa generalidade abstrata, mas no universal concreto, que o individual encontra sua afirmação.

 

Assim sendo, quando o universal e o geral oprimem, negando o particular e o singular, torna-se possível superar a solidão, mas apenas na medida em que se suprime totalmente o ‘eu’, e portanto do ‘você’ (que não é outra coisa do que um ‘outro eu’). Ao contrário, quando o conhecimento é considerado como sendo uma filosofia da existência, ele sempre trata do ‘eu’ e do ‘você’, e é, em essência, personalista. Com efeito, o que importa não é afogar a solidão numa universalidade impessoal, mas sim ultrapassá-la pela personalidade. Ao se libertar do jugo da sociedade, da comunidade lógica socializada, o conhecimento torna o pensamento supralógico.

 

O certo é que superar a solidão consiste sempre em operar uma transcendência do ‘eu’, seja no pensamento, seja na vida emocional. Mas transcender-se em direção ao objeto e ao geral é uma coisa, transcender-se em direção ao ‘você’, ao ‘outro eu’, em direção à existência autêntica, é outra, e totalmente diferente. Certamente existe um valor positivo no ato através do qual o ‘eu’ ultrapassa a si mesmo, se liberta pelo conhecimento do objeto, pela instituição da sociedade, pela elaboração das generalidades e dos conceitos indispensáveis à comunicação – mas o mundo em cujo interior isso se realiza continua a ser um mundo decaído, dividido, acorrentado. Mesmo na generalidade do conhecimento objetificado transparece a luz do Logos, ainda que seja num meio obscurecido, que reflete a servidão do ‘eu’ humano.

 

Assim é que o conhecimento desemboca em contradições e antinomias insuperáveis. Na medida em que ultrapassa a solidão e obtém a comunhão, e enfrenta o tempo, a pessoa e outros tantos problemas, de onde surgem as contradições. A objetificação não suprime essas contradições, ela só o faz em aparência; e elas se multiplicam na mexida mesma do progresso do conhecimento objetificado. Para todas essas contradições, que às vezes se tornam intoleráveis, a solução possui um único nome, que é Deus. Deus significa precisamente a coincidentia oppositurium, para retomarmos a definição genial de Nicolas de Cusa.

 

O conhecimento é conjugal por natureza: ele pressupõe uma dualidade; ele não pode ser produzido, nem somente pelo objeto, nem por uma atividade própria e exclusiva do sujeito. É por isso que a solidão não é suplantada, a menos que, na operação do conhecimento, se realize a união verdadeira, que é a união pelo amor, uma vez que não existe união possível com o geral, sendo a única forma de união aquela que se dá com um ‘outro eu’, com o ‘você’.

 

A essência conjugal do conhecimento é una com sua essência teândrica. No conhecimento, existe a parte do homem e a parte de Deus. A objetificação parece eliminá-las do saber, e substituí-las pela impessoalidade e a generalidade. A dificuldade do conhecimento está em trespassar essa impessoalidade e essa generalidade, para realizar a união conjugal das pessoas. Mas pode acontecer que, sobre a via do conhecimento, o ‘eu’ não consiga banir a solidão, e que ele se ponha a buscar a união por outros caminhos. Por conhecimento, entendo aqui não apenas o conhecimento dos sábios e dos filósofos, estranho à maior parte das pessoas, como também o conhecimento comum, fornecido pela vida de todo dia, que está submetido ao geral e resulta da imitação.

 

Uma das principais causas da solidão humana é o sexo. O homem é um ser sexuado, vale dizer, ele é metade de um ser, um ser cindido, incompleto, que aspira a ser completado. O sexo lesa profundamente o ‘eu’, que é bissexual, que em sua integridade e sua plenitude seria macho e fêmea, ou seja, andrógino. Dessa forma, a primeira maneira de fugir da solidão na comunhão diz respeito à solidão sexual, ao isolamento no sexo; ela aspira à reunião na integridade sexual. Pelo simples fato de sua existência, o sexo é separação, falta, nostalgia, desejo de se abrir ao outro.

 

A união física dos sexos, que encerra o desejo sexual, não basta, por si só, para superar a solidão, e essa pode vir a se mostrar ainda mais violentamente. A união sexual pode inclusive levar à queda do ‘eu’ no mundo objetificado, pois, embora sendo um acontecimento da natureza, a vida sexual remete ao mundo dos objetos. Seu resultado se encontra socializado no casamento e na família. Como fato biológico e social, a sexualidade é objetiva; ora, na objetividade, a solidão não é superada, mas apenas amortecida.

 

É por isso que, embora a união biológica dos sexos e a instituição familiar possam adormecer e apaziguar o sentimento de solidão, eles não podem fazê-lo em definitivo, e existe um verdadeiro demonismo no sexo, que aparece tanto na repressão quanto nas manifestações sexuais. Quando a sexualidade é demoníaca, ela se torna destrutiva e assassina.

 

Somente o amor e a amizade podem trazer ao homem a grande promessa de que a solidão pode ser superada. O amor é precisamente aquilo que suprime a solidão, o que conduz o ‘eu’ ao outro, a reflexão do ‘eu’ no outro e do outro no ‘eu’. É uma comunhão na qual a pessoa se une a outra pessoa. Um amor impessoal, que não se dirija a nenhuma imagem individual, não poderia ser chamado de amor: “amor de vidro”, dizia Vasily Rozanoff. Isso não passa de uma corrupção do Cristianismo. Da mesma forma, a amizade só pode ser personalista, e dessa forma participa igualmente do erótico.

 

Como poderia não existir uma ligação profunda entre a pessoa e o amor, uma vez que o amor é o que faz de mim uma pessoa? Somente pelo amor podemos nos fundir totalmente com o outro, superando a solidão. O conhecimento não é possível, a menos que ele seja amor. Mesmo o que existe de parcial e demoníaco na sexualidade pode conduzir ao amor. Quando a existência humana é lançada no mundo objetivo, o amor se torna trágico e se liga à morte. O mundo objetificado não reconhece o amor autêntico, ele não o ama, só conhece dele o aspecto biológico e social; por seu lado, o amor desconhece das leis do mundo objetivo e social, ele deve romper seus limites a fim de suplantar a solidão; e é por isso que ele está tão intimamente ligado à morte.

 

Somos reconduzidos à mesma dualidade. A comunicação sexual pode se encerrar dentro da sociedade, permanecer dentro dos quadros das instituições sociais, e a objetificação impede a comunhão real, de modo que a solidão persiste; ou, ao contrário, os sexos se unem, não mais da sociedade, mas na comunhão pelo amor, e a solidão é superada; enquanto isso, no mundo objetivo essa união gera um destino trágico e se liga misteriosamente à morte.

 

Dentro dos limites de nosso mundo, o dualismo é insuperável; mas em conexão com ele está o transcendente, que é o princípio da vida autêntica, e que, por franquear os limites da vida enclausurada, permite alcançar uma esfera mais alta. A essência do amor consiste em transcender. O homem é lavado a tal pela força do sentimento contundente de seu abandono, e o mundo congelado dos objetos o faz buscar a outrem e a desejar a reunião. Mas o mistério metafísico da sexualidade é tão grande e profundo q eu, mesmo na extremidade do amor, como no caso de Tristão e Isolda, a solidão e a nostalgia sexuais não são completamente suprimidas. Entre os amantes existe um elemento demoníaco de inimizade. Na sua superação definitiva poderia se realizar a imagem do andrógino perfeito; mas isso implicaria a transfiguração da natureza. O que permanece como verdade é que é no domínio da sexualidade que se revela com mais clareza a necessidade de ultrapassar a solidão.

 

No comunismo, esse problema desaparece. A solidão é definitivamente superada pela dissolução do ‘eu’ pela coletividade pública, pela substituição da consciência coletiva ao ‘eu’ pessoal. A existência do ‘eu’ se objetiva definitivamente e se enraíza no processo do construtivismo social. A vida sexual se submete definitivamente à coletividade, às exigências da construção social. Daí a importância atribuída à eugenia, à mecanização e à tecnificação do sexo: o amor pessoal é totalmente negado. Conta-se com esse sistema de seleção para sufocar a nostalgia sexual e o sentimento de solidão conectado a ela. O erótico é sacrificado em benefício do econômico e do técnico. Encontramos a mesma tentativa no racismo alemão.

 

Isso equivale a tentar resolver por meio da objetificação e da socialização um problema cujo caráter está em nos conduzir para além de toda espécie de objetificação e de socialização, na direção da comunhão e da união existencial. Isso não é novo: entre os Doutores da Igreja, encontramos a mesma negação do amor pessoal, a mesma concepção da vida sexual considerada como uma instituição social. É verdade que, por um de seus aspectos, a sexualidade mergulha na existência interior do ‘eu’, ela se interessa pelo destino do homem e da pessoa, enquanto estrangeiros ao mundo dos objetos, sem, no entanto, jamais deixar de estar num conflito trágico com esse, de estar envolvido no conflito da família e da sociedade. O mesmo acontece com o desejo de autoridade, a necessidade de poder, que precipita o homem no mundo dos objetos e da sociedade, ao mesmo tempo em que é inseparável do destino do homem íntimo. O poder e a autoridade não superam a solidão, porque só podem ser exercidos sobre os objetos; é por isso que o destino de um Júlio César, de um Napoleão, é trágico.

 

Religião significa ligação. É em virtude de sua própria definição que a religião conduz o ‘eu’ a ultrapassar seu isolamento, a sair de si, a se mostrar, a conquistar uma comunidade, uma familiaridade. Por essência, ela está associada ao mistério do ser, ao próprio ser. Mas não é pela religião, diretamente, que a solidão é suplantada, pois a religião não passa de uma relação e, como tal, ela é secundária e transitória: a solidão só pode ser suplantada por Deus. É Nele, precisamente, que ela é ultrapassada, que se obtém a plenitude, que se descobre o sentido da existência. Esquecemo-nos com frequência que é Deus o primeiro e que a religião pode mesmo prejudicar a relação entre Ele e o homem. No interior da religião, tal como ela se revelou na história, na vida social da humanidade, a relação do homem com Deus não é independente da objetificação e da socialização. Com essa religião objetiva e socializada, o sentimento de solidão fica amortecido, em consequência da queda do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade, ainda que esse mundo se chame Igreja; mas ele não é ontologicamente superado.

 

Esse sentimento não pode ser superado a menos que a relação entre o ‘eu’ e Deus seja da ordem da existência íntima, da vida original da Igreja-comunidade, e não da Igreja-sociedade; assim é que encontramos na religião a mesma coisa que vimos a respeito do conhecimento, da vida sexual – em toda partem a mesma dualidade, as duas mesmas perspectivas, a do Espírito e a da natureza, da liberdade e da necessidade, da existência (ou vida primeira) e da objetividade. Certamente, a religião é uma instituição social, ela já é algo de secundário, de objetificado, de projeção no mundo; mas ela é também revelação, a voz de Deus, a encarnação de Deus, e assim ela é primária e independente do mundo dos objetos, do mundo socializado.

 

Isso não quer dizer que, mesmo nesse caso a religião não passe de um acontecimento individual e o privilégio de almas isoladas. Ao contrário, a religião, ao mesmo tempo em que me religa e me une a Deus, é necessariamente o que me religa e me une ao ‘outro’, ao meu próximo – ela é comunidade e comunhão. Essa união revela uma outra ordem além da ordem objetiva da sociedade, onde é cada um por si, onde o próprio Deus é um objeto e não um ‘você’. O mistério do Cristianismo é o mistério da superação do ‘eu’ em Cristo, o Homem-Deus, em sua natureza teândrica, no Corpus Christi. Mas, para superar a solidão, não é bastante confessar de modo formal a fé em Cristo, pertencer formalmente à Igreja, pois nesse caso a superação não é mais do que aparente e superficial, ao invés de se realizar em profundidade. No Cristianismo puramente social, o amor só poderia ter um caráter convencional, simbólico, irreal. A solidão não pode ser efetivamente superada senão pelo amor real, que é o ápice da vida.

 

Acontece que pertencer por pura forma às confissões cristãs significa manter-se num grau de objetificação. O ‘eu’ que não sai de si senão para penetrar no objeto não se liberta de sua solidão, pois não existe realmente, ontologicamente, união com esse objeto, por meio do qual ele realizou sua saída de si. É por isso que, no próprio interior da Igreja, sua solidão ainda pode ser sentida de maneira aguda, contundente, particularmente dolorosa. No interior de uma mesma paróquia, junto com seus correligionários, é possível sentir-se infinitamente só, mais até do que entre homens de credos e convicções diferentes, e manter, com esses correligionários, relações exclusivamente objetivas, não vendo, em cada um deles, mais do que um objeto, e jamais um ’você’. Esse é um estado extremamente doloroso, trágico até, e que atesta a dualidade básica da vida religiosa. Um crescimento da espiritualidade pode trazer um agravamento dessa solidão, pois pode ser acompanhado de uma ruptura total com as relações sociais do mundo objetificado. Essas dolorosas rupturas não podem ser evitadas no caminho do progresso espiritual.

 

Não obstante, é somente sobre o plano espiritual que a solidão pode ser ultrapassada, é apenas na experiência mística, onde todas as coisas estão em mim, e eu nelas. Esse caminho é diametralmente oposto ao da objetificação, que põe em comunicação coisas que são absolutamente extrínsecas, estranhas, sem parentesco algum. Comunicações e relações, mesmo dentro do próprio Cristianismo, apresentam frequentemente um caráter de convenção puramente verbal, retórica, como acontece com a simbólica das comunicações e das relações. Toda a vida da sociedade repousa sobre uma “retórica” imitativa. A isso se opõe a realização da vida verdadeira, espiritual e mística. Sem dúvida, a própria mística pode se tornar retórica e convencional, mas em nenhum caso ela se torna objetificação, ela jamais se rebaixa ao cotidiano social. Mas esse não é seu sentido verdadeiro. Em suas profundezas, a existência humana, minha própria existência, é de ordem espiritual e não pertence ao mudo objetificado da obrigação, ela não tem aí sua raiz. É somente no seio dessa profundidade que a solidão é superada, que ela é posta a nu. Ao contrário, a objetificação final suprime a ansiedade da solidão. Ao reconhecer-se como pertencente ao objeto, à sociedade, o ‘eu’ já não se sente só; mas não existe aí nada que signifique a vitória sobre a solidão, ainda que essa inserção do ‘eu’ no mundo dos objetos e da sociedade objetificada seja de ordem religiosa, pois esse estado não é experimentado depois, mas antes do despertar da solidão, enquanto revelação das profundezas. É aqui que se reconhece toda a complexidade do problema da solidão, tal como se encontra em todos os domínios, seja do conhecimento, da sexualidade, da vida social ou da vida religiosa.

 

Ao tratar do mal da solidão, expusemos um dos problemas principais da filosofia da existência, concebida como filosofia do destino humano. Solidário a esse problema está o angustiante “mal dos tempos”, que iremos abordar oportunamente.



[1] Cf. Martin Buber: Ich und Du.

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