sexta-feira, 22 de abril de 2016

Antoine de Sourouge - A ascese da oração



Quando estamos no estado de espírito apropriado, quando nosso coração está cheio de louvor, de amor ao próximo, quando falamos como disse São Lucas, do fundo pleno de nosso coração, orar não é problema; falamos com Deus livremente com palavras que nos são familiares. Mas se tivéssemos que deixar nossa vida de oração à mercê dos nossos humores, sem dúvida rezaríamos de tempos em tempos com fervor e sinceridade, mas durante longos períodos perderíamos todo contato fervoroso com Deus. É uma grande tentação delongar a prece até o momento em que nos sintamos levados a Deus, e considerar que toda prece ou todo impulso a Deus em outros períodos como falta de sinceridade. Mas sabemos por experiência que existem em nós muitos sentimentos que não sentimos a cada instante de nossas vidas; a doença ou o desânimo podem varrê-los do campo da consciência. Mesmo quando amamos profundamente, existem momentos em que não estamos conscientes disso, mesmo sabendo que esse amor vive em nós. O mesmo acontece com relação a Deus: existem causas, internas e externas, que às vezes obscurecem a consciência que temos de crer, de esperar e de amar a Deus. Em tais momentos devemos agir não em função daquilo que sentimos, mas daquilo que sabemos. Devemos ter fé naquilo que nos habita, mesmo que não o percebamos num dado instante. Devemos nos lembrar de que o amor ainda está lá, mesmo que ele não encha nosso coração de alegria ou de inspiração. E devemos nos postar diante de Deus lembrando-nos de que ele não cessa de nos amar, que ele está sempre presente, mesmo que não o sintamos então.

Quando nos sentimos frios e secos, quando nos parece que nossa prece é falsa, pura rotina, que devemos fazer? Seria melhor nos determos até que nossa prece recupere sua vida e seu calor? Mas quando saberemos se o momento chegou? Existe um grande perigo em nos deixarmos seduzir pelo gosto de uma perfeição na prece, da qual estamos tão afastados. Quando nossa prece carece de calor, ao invés de renunciar, devemos renovar com vigor nosso ato de fé, e perseverar nele. Devemos dizer a Deus: “Eu estou nas últimas, já não consigo rezar como se deve, aceite, ó Senhor, essa voz monocórdica e essas palavras que eu pronuncio, e venha em meu auxílio”. Faça da prece uma simples quantidade, se você se sentir impotente para imprimir-lhe qualidade. É certo que vale mais dizer um único Pai Nosso com a consciência de toda a profundidade dessa invocação, do que repetir dize vezes a Prece do Senhor; mas é precisamente isso que somos incapazes de fazer, às vezes. Que nossa prece seja “quantitativa” não significa que pronunciamos mais palavras do que de costume; mas sim que nos atemos à regra de oração que nos fixamos, aceitando o fato de que ela se resuma a uma certa quantidade de palavras repetidas. Como dizem os Padres, o Espírito Santo está sempre presente quando existe oração e, segundo São Paulo, “ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’ senão sob a ação do Espírito Santo[1]”. Quando chegar o momento, é o Espírito Santo que concederá à nossa prece fiel e paciente seu significado e sua profundidade de vida nova. Quando nos colocamos diante de Deus nesses momentos de vazio interior, é preciso usarmos de nossa vontade, orar por convicção senão por sentimento, em nome da fé que sabemos possuir, intelectualmente senão com o coração fervoroso.

Se em tais períodos a prece  nos parece ter um aspecto diferente, não é isso que acontece para Deus; como disse Julienne de Norwich[2]: “Ore no secreto de seu coração, mesmo que você pense que isso não o salvará, pois sempre será proveitoso, mesmo que você não o sinta, mesmo que você não veja, mesmo que você não se creia capaz. Pois na secura e na aridez, na doença e na fraqueza, é então que sua prece agrada [a Deus] mesmo que você pense que ela não o salvará, pois Deus conhece toda oração feita com fé”.

Nos períodos de secura, quando a prece se torna um esforço, nossa principal sustentação é a fidelidade, a determinação; é por um ato de vontade, que inclui essas duas coisas, que nos obrigamos, sem apelar para o sentimento, a nos postar diante de Deus e a falar, simplesmente porque Deus é Deus e nós somos suas criaturas. Seja o que for que experimentemos num momento dado, nossa posição deve permanecer a mesma: Deus continua sendo nosso criador, nosso salvador, nosso Senhor, aquele para quem marchamos, o objeto de nosso desejo e o único que pode preencher totalmente nossa espera.

Talvez pensemos ser indignos de orar, e até que não temos esse direito; isso também é uma tentação. Cada gota d’água, venha de onde vier, de um lago ou do oceano, é purificada ao longo do processo de evaporação; o mesmo acontece com nossa prece que sobe até Deus. Quanto mais nos sentimos abatidos, mais a prece é necessária, e é certamente isso que João de Cronstadt[3] sentiu, num dia em que orava, ameaçado por um demônio que lhe murmurava: “Hipócrita, como ousa orar com esse coração impuro, cheio de pensamentos que eu leio?”. João respondeu: “É justamente porque meu coração está cheio de pensamentos que desgostam e que eu combato, que eu oro a Deus”.

Quer se trate da Prece de Jesus ou de qualquer outra fórmula de oração, as pessoas costumam dizer: que direito tenho eu de fazê-lo? Como posso fazer minhas tais palavras? Quando dizemos preces que foram redigidas por santos, por homens de oração, e que são fruto de sua experiência, podemos estar certos de que, se estivermos suficientemente atentos, suas palavras se tornarão nossas, desfrutaremos dos mesmos sentimentos que os animaram e eles nos remodelarão pela graça de Deus, que responde aos nossos esforços. Com a Prece de Jesus a situação é, num sentido, mais simples, porque quanto pior for nossa situação, mais facilmente nos persuadiremos de que, diante de Deus, não podemos dizer senão kyrie eleison, “tem piedade”.

Com mais frequência do que ousamos confessar, oramos esperando alguma misteriosa iluminação, esperando que algo nos aconteça, que iremos conhecer alguma experiência apaixonante. Isso é um erro, o mesmo tipo de erro que cometemos frequentemente em relação aos demais, e que pode facilmente destruir uma relação. Abordamos uma pessoa e esperamos determinada reação; então, se não acontece reação alguma, ou se não é a que esperávamos, nos decepcionamos, ou passamos ao largo da realidade da resposta. Quando oramos, devemos nos lembrar de que o Senhor, que nos permite aproximarmos livremente dele, é igualmente livre em relação a nós; isso não significa que a liberdade que ele toma seja arbitrária, como o é a nossa, que nos torna amáveis ou desagradáveis segundo nosso humor; isso significa que ele não está obrigado a se revelar a nós apenas porque estamos ali e voltamos nosso olhar para ele. É muito importante lembrarmo-nos de que tanto Deus como nós somos livres para irmos ou não um ao encontro do outro; e essa liberdade é de uma importância capital, pois ela é característica de uma verdadeira relação pessoal.

Uma jovem, depois de um período de sua vida de oração no qual Deus parecia espantosamente próximo e familiar, subitamente perdeu contato com ele. Porém, mais do que a dor de havê-lo perdido, ela temia a tentação de escapar dessa ausência de Deus inventando uma falsa presença dele; pois a ausência e a presença reais de Deus são as melhores provas de sua realidade e do caráter concreto da relação implicada na prece.

Assim devemos também estar prontos para oferecer nossa oração e a receber aquilo que agradar a Deus. Esse é o princípio básico da vida ascética. Na luta para manter nosso olhar voltado para Deus e para combater tudo o que existe de opaco em nós, tudo o que nos impede de olhar na direção de Deus, não podemos ser nem totalmente ativos nem totalmente passivos. Não podemos ser ativos no sentido que, quando nos agitamos e fazemos esforços, não podemos nos içar até os céus ou fazer com que Deus desça até nós. Mas também não podemos permanecer passivos, e ficar plantados sem agir, pois Deus não nos trata como objetos; não haveria relação verdadeira se fôssemos simplesmente manipulados por ele.

A atitude ascética é feita de vigilância, da vigilância do soldado que, durante a noite, se faz tão silencioso quanto pode, tão atento e consciente quanto possível, de tudo o que se passa ao seu redor, e pronto para reagir correta e rapidamente a qualquer coisa que sobrevenha. De certo modo, ele permanece inativo, porque está ali em pé e nada faz; mas, de outro lado, ele é intensamente ativo, pois está acordado e totalmente concentrado. Ele escuta e observa com uma percepção aguda, pronto para tudo.

Exatamente o mesmo acontece na vida interior. Devemos nos colocar na presença de Deus no mais completo silêncio, concentrados, lúcidos e em paz. É possível que esperemos por horas, ou mais ainda, mas chegará o momento em que nossa vigilância será recompensada, pois algo haverá de acontecer. Mas, repetimos, se estivermos vigilantes, é para tudo o que puder nos acontecer, e não em relação a um evento específico. Devemos estar prontos para receber de Deus qualquer coisa que eles nos enviar. Depois de havermos orado por um certo tempo, se sentirmos um pouco de calor, teremos a tentação de voltar a Deus no dia seguinte esperando o mesmo resultado. Se ontem oramos com calor e lágrimas, com contrição ou com alegria, voltaremos à presença de Deus esperando ter de novo a mesma experiência, e, muitas vezes, por esperarmos ter com Deus o mesmo contato que ontem, perdemos o contato com ele hoje.

A aproximação de Deus pode suscitar em nós atitudes diversas; pode ser a alegria, o terror, a contrição e muitas outras ainda. Devemos lembrar de que o que vamos perceber hoje é uma coisa desconhecida para nós, porque o Deus que encontramos ontem não é o mesmo que irá se revelar a nós amanhã.

Extraído do livro do Metropolita Antoine Bloom de Sourouge, Prière vivante, 1971



[1] I Coríntios 12: 3.
[2] Mística inglesa que viveu entre 1342 e 1416, considerada santa pela Igreja Anglicana.
[3] Santo russo ortodoxo, que viveu entre 1829 e 1908.

Nenhum comentário:

Postar um comentário