sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

São João Crisóstomo - Sermão sobre o Pai Nosso



 Mateus 6: 9-13


“Eis como deveis orar: Pai Nosso que estais nos Céus”. Vejam como ele começa por levantar os espíritos, chamando à nossa memória todas as graças que recebemos de Deus. Ao nos ensinar a chamar a Deus “nosso Pai”, ele sublinha com essa simples palavra a libertação dos suplícios eternos, a justificação das almas, a santificação, a redenção, a adoção no número de filhos de Deus, a herança de Sua glória que nos foi prometida, a associação ao Seu Filho único; e, por fim, a efusão do Espírito Santo. Pois é impossível a alguém que não tenha recebido todos esses bens chamar a Deus verdadeiramente de “seu Pai”. Assim é que ele nos atrai para Deus por meio de duas considerações poderosíssimas, tanto pela majestade daquele a quem invocamos, como pela grandeza dos dons que dele recebemos. Quando ele diz que Deus “está nos Céus”, não é no sentido de lançá-lo aos ares e aí circunscrevê-lo; mas é para retirar da terra o espírito daquele que ora e elevá-lo ao céu.

Ele nos ensina ainda a fazermos todas as orações em comum com nossos irmãos. Pois ele não diz: “meu Pai que está nos Céus”, mas “nosso Pai”, a fim de que nossa oração seja geral para todo o corpo da Igreja, e para que cada um não cuide de seu próprio interesse particular, mas do de todos. Ele ainda afasta dessa maneira todas as aversões e inimizades; ele reprime o orgulho, expulsa a inveja, e introduz a caridade nas almas, essa mãe divina de todos os bens. Ele ainda destrói todas as desigualdades e as diferenças de condições e de estados, e equipara admiravelmente o pobre ao rico, o cidadão com o príncipe; porque nos vemos todos unidos nas coisas mais importantes e necessárias, que são as coisas da salvação.

Em que pode nos prejudicar a condição de pobreza de nosso nascimento segundo a carne, se outro nascimento nos une a todos, sem que ninguém tenha vantagens sobre o outro, bem o rico sobre o pobre, nem o mestre sobre o servo; nem o magistrado sobre o cidadão, nem o rei sobre o soldado, nem o filósofo sobre o bárbaro, nem o mais sábio sobre o mais simples e ignorante? Pois Deus torna todos os homens igualmente nobres, porque ele deseja ser chamado igualmente de “Pai” por todos.

Assim, depois de haver apresentado aos seus discípulos a nobreza e a magnitude desse dom de Deus, a igualdade que deve reinar entre eles e a caridade que eles devem ter uns pelos outros, depois de tê-los erguido da terra para elevá-los ao céu, veremos o que ele lhes ordena pedir. É verdade que as primeiras palavras dessa prece parecem ser suficientes para tudo lhes ensinar. Pois é mais do que justo que alguém que chame a Deus de “seu Pai” – e um Pai comum a todos – viva de tal maneira que jamais pareça indigno de tão alta qualidade, e corresponda à excelência desse dom pela santidade de sua vida. Mas Jesus Cristo não se detém aí e acrescenta:

“Santificado seja o vosso nome”. É uma oração digna de um homem que acaba de chamar a Deus “seu Pai”, não ter nada em seu coração senão a glória desse Pai, e desprezar todas as outras coisas em comparação com ele. Pois as palavras “santificado seja” significam “glorificado seja”. Deus possui sua glória, que é sempre plena, sempre infinita, e que permanece para sempre a mesma. E no entanto ele ordena àquele que ora desejar que ele seja ainda honrado pela santidade de nossa vida. É algo que ele já havia dito em outros termos: “Que vossa luz brilhe diante dos homens, para que eles vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está no céu[1]”. Quando os Serafins louvam a Deus, eles não dizem mais do que essas palavras: “Santo, santo, santo”. É por isso que essas palavras: “santificado seja o Vosso nome” significam que ele seja glorificado. É como se disséssemos a Deus: digna-te, se for de Teu agrado, regrar e purificar nossa vida de tal modo que, vendo a nós, todo o mundo Te glorificará. Tal é a perfeição do cristão: ser irrepreensível em todas as suas ações, de tal modo que quem quer que as veja dê a Deus a glória que lhe é devida.

“Venha a nós o Vosso reino”. Essa é outra oração de um verdadeiro filho de Deus, que não se agarra às coisas visíveis nem estima os bens presentes, mas que suspira sempre por seu Pai e deseja os bens por vir. Tal é o efeito de uma boa consciência e de uma alma desembaraçada da terra. Esse era o desejo permanente de São Paulo. Era isso que fazia com que ele dissesse: “Nós que recebemos as primícias do Espírito, suspiramos e gememos em nosso íntimo, na espera da adoção divina, da redenção e da libertação de nosso corpo[2]”. Quem se abrasa com esse desejo já não é capaz de valorizar as vantagens desse mundo, nem de se abater por seus males, mas, como se já estivesse no céu, não está mais sujeito a nem uma nem outra dessas desigualdades tão diferentes.

“Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”. Existe uma admirável sequência nessas palavras. Ele nos ordena desejar os bens futuros, e de sempre tender ao céu; mas ele também quer que, enquanto aguardamos esse devir, imitemos sobre a terra a vida dos anjos do céu. Vocês devem, diz ele, desejar o céu e os bens que eu lhes preparei; mas eu lhes ordeno ainda que façam da terra um céu, e que aí vivam, falem e ajam como se já estivessem no céu. Essa é a graça que vocês devem me pedir. Ainda que vocês estejam na terra, devem entretanto se esforçar por viver como essas potências celestes, porque vocês podem estar ainda aqui em baixo e viver como elas. É isso que nos dizem essas palavras de Jesus Cristo. Assim como os anjos no céu obedecem livremente e sempre com o mesmo fervor – porque não são inconstantes, obedecendo numa ocasião e não em outra – submetendo-se sempre e permanecendo perfeitamente submissos, por serem “poderosos em virtude para cumprir as ordens de Deus[3]”, como disse o profeta, concede-nos a mesma graça a nós homens, para que não façamos Sua vontade parcialmente, mas integralmente, e em todas as coisas.

Considerem também como Jesus Cristo nos ensina a sermos humildes, fazendo-nos ver que nossa virtude não depende apenas de nosso trabalho, mas da graça de Deus. Ele ordena aqui a cada fiel que ora, fazê-lo para toda a terra. Pois ele não diz: “seja feita a Vossa vontade”, em mim ou em nós, mas “sobre toda a terra”, a fim de que o erro seja banido dela e que a verdade reine; que o vício seja destruído e que virtude floresça; e que a terra não seja diferente do céu. Pois se Deus chegasse a ser assim obedecido no mundo, ainda que os habitantes do céu sejam muito diferentes dos da terra, a terra tornar-se-ia um céu, e os homens seriam anjos, porque eles viveriam como anjos.

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Como ele acabara de dizer “seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu”, e porque ele falava a homens encerrados numa carne fraca, sujeitos a diversas necessidades e incapazes de usufruir ainda da impassibilidade dos anjos, ele quis nos ordenar que cumpríssemos a vontade de Deus tão perfeitamente como os anjos, mas, ao mesmo tempo ele fez uma concessão à fragilidade de nossa natureza: eu exijo de vocês, nos diz ele, a virtude de meus anjos, mas não sua impassibilidade; a fragilidade da sua natureza é incapaz disso, e ela necessita de um alimento que a sustente.

Mas vejam como ele deseja espiritualidade para nós, mesmo quando ele se refere ao corpo. Pois ele não nos ordena que peçamos riquezas ou prazeres, ou vestes preciosas, nem nada semelhante, mas apenas pão, e o pão de que necessitamos nesse dia que estamos vivendo, sem nos preocuparmos com o de amanhã. “O pão nosso de cada dia”, diz ele. E, não contente com isso, ele acrescenta: “nos dai hoje”, a fim de excluir por completo de nosso espírito a preocupação e a aflição pelo dia de amanhã.  Pois, por que nos atormentarmos por um dia que não temos a certeza de viver? Ele já havia falado a respeito, quando disse: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã”. Pois ele deseja que estejamos sempre vestidos para viagem, e prontos a empreender nosso voo para o céu, não dando ao corpo mais do que a necessidade nos pede.

E como um cristão não se torna impecável apenas pelo Batismo, Jesus Cristo nos dá aqui mostras de sua ternura, prescrevendo-nos essa oração para favorecer-nos com a bondade de Deus e pedir-lhe o perdão por nossos pecados.

“Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Vejam até onde chega o excesso de amor que Deus dedica aos homens. Ele ainda considera dignos de perdão aqueles que o ofendem mesmo depois de terem sido libertos de tantos males, e de haver recebido tão inefáveis graças. Pois essa oração foi feita para os fiéis, como nos mostra o costume da Igreja, desde a primeira palavra, pois uma pessoa que não foi batizada não pode chamar a Deus de “seu Pai”. Assim sendo, se essa oração é para os fiéis, e se eles pedem a Deus o perdão pelos seus pecados, é visível que Deus não nos recusa, mesmo depois do Batismo, o remédio da penitência. Se ele não quisesse nos persuadir dessa verdade, ele não nos teria prescrito essa oração. Mas, ao falar de nosso pecados e nos ordenando que lhe peçamos perdão, ele nos mostra o meio de obtê-lo por uma via fácil, que consiste em perdoar as dívidas aos nossos devedores; é claro que ele quis nos mostrar com isso que os pecados podem ainda ser apagados depois do Batismo, e é para nos convencer disso que ele nos ordena orar dessa maneira. Fazendo com que nos lembremos de nossos pecados, ele nos inspira sentimentos de humildade. E ordenando-nos que perdoemos aos outros, ele apaga de nosso espírito a lembrança das injúrias. Prometendo-nos perdoar nossas faltas, ele alimenta nossas esperanças. E tornando-nos imitadores de sua doçura e de sua bondade inefável, ele nos eleva ao cúmulo da sabedoria.

Mas eis aqui algo extremamente importante: ao encerrar em cada uma dessas demandas toda a perfeição cristã, já estava implícita por isso mesmo a obrigação de perdoar as injúrias. Com efeito, como o resumo de toda virtude está contido nessa frase: “santificado seja o Vosso nome”; ou nessa outra: “seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu”; ou no favor que ele nos concede em chamar a Deus de “nosso Pai”, podemos dizer que todas essas virtudes encerram também a obrigação de esquecer as injúrias que recebemos de nossos irmãos. E no entretanto ele não se contenta com essa recomendação implícita, e para mostrar como lhe é caro esse preceito, ele fez dela um artigo expresso da prece que nos prescreveu, e, tendo-a completado, é esse o único que ele irá repetir em outra ocasião, quando nos assegurar que “se perdoardes aos homens os males que eles vos fizeram, vosso Pai que está no céu também vos perdoará. Mas, se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não vos perdoará os males que houverdes feito[4]”.  

Assim é que Deus faz com que nosso fim dependa de nós, e ele nos torna mestres da sentença que ele pronunciará um dia. Pois a fim de que, por mais irracionais que vocês sejam, vocês não possam se lamentar de seja lá o que for do juízo que Deus irá pronunciar, ele deseja que, mesmo culpados, vocês sejam os mestres de suas sentenças. Do mesmo modo como vocês julgarão eu os julgarei, e se vocês perdoarem a um homem como vocês, eu prometo perdoá-los também. E no entanto Deus está igualando duas coisas bem desiguais. Pois vocês perdoam apenas porque necessitam ser perdoados; mas Deus concede a graça sem obrigação nenhuma. Vocês perdoam como servidor a quem é como vocês mesmos são; mas Deus perdoa como um mestre perdoa seu escravo. Vocês concedem a graça, porque estão carregados de pecados; Deus concede a graça por ser ele a própria santidade, e incapaz da menor falta.

E eis ainda aqui mais uma grande prova de sua bondade. Pois ele poderia tranquilamente perdoar os seus pecados; mas ao fazê-lo na mesma proporção em que vocês perdoam aos outros, ele concede a vocês mil ocasiões de exercer a doçura e a caridade. Ele dá espaço para que vocês extingam a cólera e sufoquem em seus corações tudo o que poderia haver de brutal e desumano, e os ensina assim a que se unam estreitamente aos seus irmãos, que com vocês

Depois disso, sob que desculpa vocês pretendem se esconder? Dirão que seu irmão os maltratou sem motivo? Isso está implícito, pois lhes foi ordenado perdoá-lo. Se houvesse justiça naquilo que ele fez, também não haveria pecado. É, portanto, sua injustiça, é seu pecado q eu vocês são chamados a perdoar, do mesmo modo como é por pecados semelhantes, e por muitos outros e maiores, que vocês pedem a Deus que os perdoe. Mas antes mesmo de lhes conceder o perdão ele lhes concede essa graça, ordenando a vocês que o peçam desse modo, e ensinando a vocês a serem doces e caridosos para com seus irmãos. Assim, ele lhes promete ainda uma enorme recompensa, assegurando a vocês que ele não pedirá conta dos seus pecados.

De quais suplícios seremos dignos então, se, depois de Deus ter colocado nossa salvação em nosso poder, traímos a nós mesmos e nos perdemos voluntariamente? Como podemos ousar pedir a Deus que seja doce e indulgente para conosco, se, num assunto que depende apenas de nós, nos mostramos tão cruéis e desumanos contra nós mesmos?

“E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, porque a Vós pertencem o reino, o poder e a glória, pelos séculos dos séculos. Amém”. Nada mais adequado para nos fazer ver nossa baixeza e a abater nossa presunção, do que essas palavras que nos ensinam a não fugir dos combates, mas também a não nos atirarmos a eles confiando apenas em nós mesmos. É assim que será mais gloriosa nossa vitória, e mais vergonhosa para o demônio sua derrota. Pois, se somos forçados a combater, façamo-lo com firmeza e vigor; mas quando não somos chamados, devemos nos manter em repouso, aguardando o momento do combate, a fim de mostrarmos tanto a humildade como a coragem. Essa expressão “do mal” significa também “do maligno”, o espírito mau, e Jesus Cristo nos exorta a ter contra ele uma inimizade irreconciliável. Mas ele também nos ensona que ele não é mau por natureza; pois a maldade não é natural da criatura, mas ela provém da escolha da vontade. Jesus Cristo o chama definitivamente “o maligno”, porque ele de fato o é, no mais alto grau; e como, sem ter recebido de nós a menor injúria, ele nos guerreia sem trégua, o Senhor não nos faz dizer: “livrai-nos dos malvados”, mas “do maligno”, a fim de que não tenhamos ódio contra nossos irmãos nos males que sofremos, mas para que votemos toda nossa raiva contra esse espírito de maldade, autor e princípio verdadeiro de todos os males.

Depois de nos ter estimulado ao combate com a lembrança desse inimigo, ele nos exorta a fugir da preguiça e da negligência, e nos encoraja mais uma vez, levantando nossos espírito com a apresentação do rei a quem servimos, e nos fazendo ver que ele é o mais poderoso de todos: “Pois a Vós pertencem o reino, o poder e a glória”. Ora, se o poder pertence a Deus, nada há o que temer, pois ninguém é capaz de resistir-lhe, nem lhe tomar o poder supremo. Quando ele diz “Vosso é o reino”, ele nos faz ver que esse mesmo inimigo que nos ataca lhe está submetido, e que, se ele nos guerreia, é porque Deus tolera que seja assim. Ele pertence ao número dos seus escravos, ainda que condenado e reprovado por ele, e por mais furioso que seja, ele não ousaria atacar um homem, se não tivesse recebido esse poder de Deus. Ora, que digo eu, que ele não ousaria atacar um homem? Ele não ousou sequer entrar dentro dos porcos, sem antes ter recebido a permissão de Jesus Cristo; como ele não ousou tocar nos bois e nas ovelhas desse santo homem Jó, senão depois que Deus lhe concedeu esse poder. E Ainda que vocês fossem mil vezes mais fracos do que são, se forem justos, podem ter toda confiança servindo a tão grande rei, um rei que pode fazer por vocês qualquer coisa que ele queira.

“A Vós pertence a glória pelos séculos dos séculos. Amém”. Deus não apenas os liberta dos seus males, como ele ainda pode lhes conceder a glória. Como seu poder é infinito, sua glória é inefável, e ambas se estenderão por todos os séculos. Vejam, assim, quantas coisas ele nos propõe para nos estimular ao combate, e para nos inspirar firmeza e confiança.


[1] Mateus 5: 15.
[2] Romanos 8: 23.
[3] Salmo 102: 20.
[4] Mateus 6: 14-15

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