sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Terceira Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo I, versículos 1 a 16





1.      Eu tinha razão de dizer que essas palavras divinas possuem uma profundidade admirável, pois, depois de tudo o que dissemos, ainda não acabamos de explicar o começo. Vamos hoje tentar terminar o que resta daí.

A questão que temos a tratar é a seguinte: por que o Evangelista fornece a genealogia de Jose, que é estranho ao nascimento do Filho de Deus? Já demos uma razão, mas é preciso acrescentar outra, mais misteriosa e mais oculta. Qual é essa razão? O Evangelista não queria que os judeus conhecessem desde logo o segredo dessa gravidez divina, nem que Jesus Cristo tivesse nascido de uma virgem. Não se perturbem com a aparente estranheza dessa razão, que não é minha; eu só reporto o que recebi de nossos Padres, esses homens ilustres e admiráveis. Se o próprio Jesus Cristo ocultou de início muitas coisas, chamando a si mesmo de “filho do homem”, e nunca declarando ser em tudo igual ao Pai, por que nos espantarmos que ele tenha querido ocultar assim por algum tempo o mistério de seu nascimento, por uma conduta cheia de sabedoria. E por razões muito importantes?

Quais seriam, vocês dirão, essas razões tão importantes? Foi para proteger a Virgem, sua mãe, e defendê-la de uma vergonhosa suspeita. Se os judeus tivessem sabido desde o começo essa maravilha, eles não teriam deixado de interpretá-la maldosamente, e talvez tivessem lapidado a Virgem depois de condená-la por adultério: pois, se sua impudência combatia em Jesus Cristo ações de que eles conheciam os exemplos pelo Antigo testamento; se chamavam de demoníaco Àquele que expulsava os demônios; de inimigo de Deus a quem fazia milagres no dia de sábado, embora o sábado tivesse sido violado sem crime algum, o que não teriam dito ao escutar esse nascimento tão milagroso, uma vez que se apoiavam na autoridade de todos os séculos passados, quando nunca jamais se vira algo semelhante? Se depois de tantos milagres eles não deixavam de chamá-lo de filho de José, como teriam acreditado ser ele filho de uma Virgem, antes daqueles milagres? É por isso que o Evangelista conta a genealogia de José, e reporta que ele desposou a Virgem. Se o próprio José, mesmo sendo santo e justo, precisou de tantas provas para crer nessa maravilha, se foi preciso que um anjo lhe falasse, que ele tivesse revelações durante a noite, que ele tivesse sido assegurado pelo testemunho dos profetas – como os judeus, tão cegos, corruptos e declaradamente contrários a Jesus Cristo, haveriam de se render a essa verdade? Uma maravilha tão rara e tão inédita em toda a antiguidade os teria sem dúvida lançado numa estranha perturbação.

Uma vez convencidos de que Jesus Cristo é o Filho de Deus, não nos espantamos mais com seu nascimento maravilhoso; mas como aqueles que o chamaram de sedutor e inimigo de Deus, não teriam se escandalizado com essa verdade, e não teriam concebido alguma detestável suspeita? É por isso que os apóstolos não se apressaram em anunciar desde logo esse nascimento maravilhoso de Jesus Cristo. Eles estabeleceram fortemente sua ressurreição, fato que estava mais ao alcance dos Judeus, porque esses haviam tudo, anteriormente, exemplos de pessoas ressuscitadas, ainda que de uma maneira bem diferente; mas eles não publicaram de início que Jesus Cristo tivesse nascido de uma virgem. Sua própria mãe não ousou revelar o segredo; pois ela disse a Jesus Cristo, quando o encontrou no templo: “Seu pai e eu o procurávamos[1]”.

Se os judeus tivessem tido qualquer conhecimento desse mistério, eles jamais acreditariam que Jesus Cristo era filho de Davi, e sua incredulidade, a esse respeito, poderia ter tido funestas consequências. Nem os próprios anjos revelaram esse segredo; eles o contaram apenas a José e Maria; e quando eles anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador, eles não disseram de que maneira isso aconteceu.

Mas por que o Evangelho, ao falar de Abrahão, diz que ele gerou Isaac, e que Isaac gerou Jacó, sem dizer uma palavra sobre Esaú, seu irmão, enquanto que, ao falar de Jacó, ele diz expressamente que ele gerou Judá e seus irmãos?

Alguns dizem que é porque Esaú e os de sua raça foram maus, mas eu creio que essa não é uma boa razão; se fosse, por que, logo depois, são nomeadas mulheres que foram famosas por sua desonra? Parece-me que o Evangelista quis aumentar a glória de Jesus Cristo por um efeito de contraste, pela pequenez e a vulgaridade de seus ancestrais, mais do que pela sua glória; pois ninguém é mais glorioso do que Aquele que é infinitamente grande, e que voluntariamente se rebaixou até tal ponto.

Por que o Evangelista não diz nada de Esaú e de sua raça? É porque os sarracenos, os ismaelitas, os árabes e todos os demais povos descendentes dele não possuem nada em comum com os israelitas. É por isso que São Mateus nada diz deles, para passar mais rapidamente aos que entraram na genealogia de Jesus Cristo, e que pertenciam ao povo judeu. Então ele diz: “Jacó gerou Judá e seus irmãos”, palavras que indicam a raça dos judeus.

2.      “Judá gerou Fares e Zara, de Tamar”. Que faz você, santo Evangelista, ao nos reportar essa história, fazendo-nos lembrar de um incesto? Mas, dirá ele, com que se espantam vocês? Se eu reportasse a genealogia de um simples homem, eu poderia dissimular alguma coisa; mas, como estamos falando do mistério de Deus encarnado, não apenas não devemos calar sobre essas coisas, como ainda devemos glorificá-las, porque elas fazem sobressair ainda mais sua bondade e seu poder, porque ele veio, não para evitar nossa ignomínia, mas para apagá-la. A mesma coisa vemos em seu nascimento e em sua morte; sua morte seria menos admirável sem a cruz, que foi um instrumento infame, mas cuja infâmia fez com que brilhasse ainda mais a bondade Daquele que não teve receio de enfrentá-la por amor aos homens; da mesma forma, o que devemos admirar em seu nascimento, não é apenas o fato de que ele tenha tomado um corpo e se feito homem, mas ainda que ele se dignou descender de antepassados como esses que vimos, sem se envergonhar por causa dos males próprios à humanidade.

Ele queria nos declarar em alto e bom som que ele não desprezava nossas baixezas, e nos ensinar ao mesmo tempo que não devemos enrubescer por causa dos vícios e defeitos de nossos parentes, mas sim não pensar em outra coisa que não seja nos tornarmos virtuosos. Pois quem é virtuoso não recebe nenhum desdouro por causa da obscuridade ou da infâmia de seu nascimento, ainda que tenha nascido de uma mãe estrangeira ou de uma mulher impudica. Pois se o fornicador convertido não precisa mais se envergonhar de sua vida passada, bem menos nos envergonharemos das desordens de nossos antepassados, desde que apaguemos com nossa virtude a vergonha de nosso nascimento.

Mas Jesus Cristo não quis apenas nos dar essa instrução, ele quis também reprimir o orgulho dos judeus; pois esse povo, negligenciando a verdadeira nobreza da alma, tinha sem cessar o nome de Abrahão em seus lábios, como se a virtude de seus pais fosse justificação para seus vícios. Jesus Cristo começa por destruir esse erro, e os ensina a não se apoiarem sobre a virtude de outros, mas apenas sobre a própria virtude. Ele queria ainda fazê-los ver que seus pais eram viciosos, e que o próprio Judá, o patriarca de quem eles tiraram seu nome, caíra num grande crime, porque Tamar, nomeada em seguida a ele, levantou-se contra ele e reprovou-lhe sua impudicícia. Também Davi teve seu filho Salomão com uma mulher com a qual havia cometido adultério.

Assim, se esses grandes homens nem sempre cumpriram a lei de Deus, seus descendentes, menos bons do que eles, estavam bem mais longe de o fazer. E, se ninguém jamais cumpriu a lei com perfeição, todos pecaram, e a vinda de Jesus Cristo era inteiramente necessária.

Foi também com esse objetivo que o Evangelho nomeia os doze patriarcas, a fim de abater o orgulho que os judeus extraíam da nobreza de seus ancestrais; pois muitos desses patriarcas eram nascidos de mães escravas. Entretanto, a diferença entre as mães não causou diferença entre os filhos, e todos foram igualmente patriarcas e príncipes de suas tribos. Essa igualdade foi desde o início um privilégio da Igreja. Pois essa é a vantagem dos cristãos, ou seja, a nobreza que extraímos do próprio Deus: quer sejamos livres, quer escravos, temos direito às mesmas graças. Na cidade de Cristo, não se considera outra coisa que não a boa vontade e a nobreza da alma.

3.      Além dessas razões, existe ainda uma outra. Pois não foi sem motivo que, depois de haver dito: “Judá gerou Fares”, o Evangelista acrescenta: “e Zara”. Pareceria inútil, depois de haver mencionado Fares (de quem Jesus descendia), falar ainda de Zara. Por que ele o fez? Eis a razão. Quando Tamar deu à luz essas duas crianças, Zara colocou primeiro a mão para fora, e a parteira colocou nela um cordão vermelho, para saber qual dos dois era o mais velho. Mas Zara logo retirou seu braço e voltou ao ventre materno, e Fares saiu primeiro, seguido logo após por Zara. Ao ver o que acontecera, a parteira disse a Fares: “Por que você cortou a cerca?”. Vejam as imagens e os enigmas de nossos mistérios: não foi sem um grave motivo que Deus ressaltou essas particularidades na Escritura. Sem isso seria indigno da majestade dessa história, reportar as palavras de uma parteira e especificar as circunstâncias – que um passou a mão primeiro, embora tenha saído depois de seu irmão.

O que significa esse enigma? Pois tudo é misterioso, inclusive o próprio nome dessa criança. Pois Fares significa “separação e divisão”. Vemos que nos é mostrado um evento extraordinário. Não é algo natural, que a criança que passou a mão primeiro a tenha retirado assim que recebeu o cordão. Isso contraia toda a ordem e a razão da natureza. Seria natural que o primeiro passasse a mão e que o outro o seguisse para sair; mas que ele retirasse a mão para o outro passar, já não é uma lei da natureza, mas a lei de Deus e de sua graça, que estava presente nessas crianças e que mostrava nelas uma imagem das coisas futuras.

Os que examinaram com mais cuidado essa história, apontaram que essas duas crianças figuravam dois povos, os judeus e os gentios. E, para que compreendamos que o último desses dois povos brilhou antes do primeiro, uma das crianças fez sair sua mão sem deixar ver todo o seu corpo, e só apareceu por inteiro depois de seu irmão sair. Foi o que aconteceu a um e outro desses povos. Pois a Igreja, depois de ter começado a brilhar nos tempos de Abrahão, se deteve na metade de seu caminho para deixar passar todo o povo judeu e todas as suas cerimônias; e esse novo povo apareceu a seguir com todas as suas leis e suas santas máximas. É por isso que a parteira disse: “Por que você cortou a cerca?”. Pois a lei veio e como que dividiu e recortou esse povo livre que a antecedera. Pois a Escritura costuma chamar a lei pelo nome de “cerca”: “Você destruiu a cerca, disse Davi, e todos os que passaram pelo caminho arruinaram a vinha[2]”. Em outra passagem: “Ele a rodeou com uma cerca[3]”. E São Paulo diz: “Jesus Cristo rompeu a cerca e a muralha de separação[4]”.

4.      Entretanto, outros entendem essas palavras: “Por que você cortou a cerca?”, como se referindo ao povo novo, porque ele veio depois da lei e a destruiu. Vocês veem assim que não foi sem um grande mistério que o Evangelista nos recordou essa história de Judá.

Pelas mesmas razões ele se refere à história de Ruth e de Raab, uma estrangeira e outra prostituta, para nos assegurar que Jesus Cristo desceu do céu para nos curar de todos os males. Pois ele veio a esse mundo para ser seu médico, e não para ser juiz dos homens. Então, assim como alguns patriarcas desposaram prostitutas, também Jesus Cristo se uniu a nós e desposou a natureza humana, que estava prostituída por todos os vícios. Os profetas disseram muitas vezes que Deus desposar a sinagoga, mas que ela sempre foi ingrata por tamanho benefício, enquanto que a Igreja, uma vez libertada da corrupção de seus pais, se ligou indissoluvelmente ao seu esposo.

Considerem agora em Ruth uma imagem do que deveria acontecer. Ela era estrangeira, e estava no limite da indigência. No entanto, Booz não desprezou nem sua inferioridade, nem sua pobreza, assim como Jesus Cristo tomou a Igreja, embora estrangeira e pobre, para desposá-la e fazê-la participar de todos os seus bens. Mas assim como Ruth não foi honrada por essa aliança, senão depois de deixar seu pai, de renunciar ao seu país e desprezar sua casa, sua raça e todos os seus parentes, também a Igreja não se tornou agradável ao Esposo, senão depois de deixar sua primeira vida e todo o desregramento de seus pais. É por isso que o profeta disse: “Esqueça seu povo e a casa de seu pai, e o Rei amará sua beleza[5]”. É o que fez Ruth, e o que a tornou, como a Igreja, mãe de reis. Pois foi dessa raça que saiu Davi.

 O Evangelista, para assim confundir os judeus e lhes ensinar a não ser soberbos, nomeia aqui essas mulheres impudicas ou estrangeiras, e lhes faz ver que mesmo Davi descendia de Ruth, e que esse grande rei não se envergonhava disso. Assim, meus irmãos, nenhum homem merece reprovação ou elogio pela virtude ou pelo desregramento de seus pais. Não são essas coisas que podem nos elevar ou nos rebaixar. Mas, se me for permitido fazer um paradoxo, eu direi que o mais ilustre, o mais virtuoso, é o que nasceu de pais que não o eram de modo algum.

Que ninguém extraia vaidade da glória de seus ancestrais; ao contrário, lançando um olhar sobre a genealogia do Salvador, sufoque todos os pensamentos de orgulho e não se glorifique senão de suas próprias virtudes; ou melhor, que não se glorifique absolutamente, pois foi assim que o fariseu se tornou pior do que o publicano. Se vocês quiserem que sua virtude seja grande, não a tenham em muita estima, e então ela será verdadeiramente grande. Tentem não fazer nada, e então farão tudo.

Pois, se mesmo sendo pecadores somos justificados, desde que não consideremos sê-lo (como vemos pelo exemplo do publicano), quão mais agradáveis seremos a Deus se, sendo justos, nos consideremos pecadores? Se a humildade justifica o pecador, ainda que nele isso represente mais uma confissão de sua indignidade do que uma humildade verdadeira, quão mais poderosa não será ela para o justo? Não percam o fruto dos seus trabalhos. Não inutilizem seus esforços; não se exponham a ficar sem recompensas, depois de percorrer uma jornada tão longa. Deus conhece melhor do que vocês o bem que fizeram. Ainda que vocês não ofereçam mais do que um copo d’água, ele não o desprezará. Ele conta a menor esmola, até mesmo um suspiro. Ele recebe tudo, se lembra de tudo, e prepara para vocês uma grande recompensa.

Por que então vocês ficam contando exatamente suas boas obras? Por que falam dela com tanta frequência? Ignoram que se vocês louvarem a si próprios, Deus não os louvará? E que se ao contrário vocês chorarem por si mesmos, como sendo indignos de compaixão, ele não deixará de publicar seus louvores a vocês? Ele não irá diminuir o fruto dos seus trabalhos. Diminuir, eu disse? Ele faz tudo, ele arranja tudo de modo a coroá-los até pelas menores coisas, e     ele busca todos os meios para livrá-los do inferno.

5.      É por isso que, mesmo que vocês comecem a trabalhar na última hora, ele não deixará de lhes dar a recompensa inteira: “Ainda que não haja entre vocês ninguém que contribua para sua salvação, mesmo assim eu lhes concederei a graça por mim mesmo, disse o Senhor, a fim de que meu nome não seja blasfemado”. Um suspiro, uma lágrima que vocês deixem escapar, ele logo a toma e se utiliza dela para curá-los.

Evitemos, sobretudo, nos elevar com sentimentos de orgulho. Lembremo-nos de que somos servidores inúteis, para que Deus nos torne dignos de servi-lo. Se vocês pensam ser bons servidores, vocês se tornarão inúteis, ainda que sejam bons. Se se considerarem maus servidores, se tornarão bons, ainda que inúteis. É por isso que é preciso esquecermos nossas boas obras.

Mas, dirão vocês, como é possível fazer isso? Como podemos ignorar o que sabemos? Ora! Vocês ofendem a Deus todos os dias, e depois disso tudo vocês se divertem e riem, tão bem sabem esquecer os numerosos pecados cometidos, e agora são incapazes de esquecer o pouco bem que fizeram? O temor dos julgamentos de Deus deveria nos tocar bem mais do que sua complacência por alguma boa obra. Mas o que acontece é o contrário. Ofendemos a Deus todos os dias e não fazemos a menor reflexão, e se damos a um pobre a menor coisinha, já estamos prontos a publicá-lo por toda parte. Isso é loucura, certamente, é dissipar as riquezas espirituais ao invés de ajuntá-las.

O esquecimento das boas obras é seu tesouro e sua guarda mais segura. Quando portamos publicamente ouro e vestes preciosas, convidamos os ladrões a buscar meio para nos roubar; mas quando conservamos essas coisas ocultas em casa, ali as conservamos em segurança. O mesmo acontece com a riqueza das virtudes. Se as guardamos todo o tempo em nossa memória, primeiro irritamos a Deus, e depois armamos nosso inimigo contra nós e os convidamos a nos roubar; mas se elas são conhecidas somente Daquele que deve conhecê-las, as possuiremos em plena segurança.

Não exponham as riquezas de suas virtudes, para que não lhes sejam arrebatadas, e para que não lhes aconteça como o fariseu, que tinha nos lábios o tesouro de suas boas obras e que assim deu ao demônio a ocasião para roubá-las. Ele só falava de suas virtudes com ações de graça, e as agradecia todas a Deus, e mesmo assim isso não o salvou. Pois não se tratava ali de render graças a Deus, mas de buscar a própria glória, de insultar os demais, de se erguer acima deles. Se vocês derem graças a Deus, não pensem em agradar senão a ele; não procurem ser conhecidos pelos homens; não julguem o próximo; de outro modo, sua ação de graças não será verdadeira.

Querem ver um modelo admirável de reconhecimento das benesses de Deus? Escutem esses três jovens no meio da fornalha: “Nós pecamos, diziam eles, e cometemos iniquidades; mas o Senhor é justo, em tudo o que faz, e porque fez cair esses males sobre nós por um efeito da sua justiça[6]”. Sim, confessar a Deus nossos pecados é render graças a Deus, bem como reconhecermo-nos dignos de todos os suplícios, e sofrê-los como se merecêssemos ainda mais. É nisso que consiste a ação de graças.

Estejamos atentos, meus irmãos, para não contarmos vantagens a nosso respeito, porque essa vaidade nos torna odiosos aos homens e abomináveis a Deus. Que nossas palavras sejam tão mais humildes quanto maiores forem nossas ações; e essa modéstia atrairá sobre nós a estima dos homens e a glória do próprio Deus; melhor ainda, não apenas a glória de Deus, como suas infinitas recompensas. Reconheçam que é a graça de Deus que os salva, e Deus agirá como se fosse seu devedor, recompensando não apenas suas boas obras, como também esse humilde reconhecimento.

Quando realizamos boas obras, Deus não nos concede recompensa senão pelo que fizemos; mas quando cremos não termos feito nada, atraímos uma recompensa ainda maior do que por todas as virtudes. Pois a simples humildade não é menos considerável do que as maiores obras, porque elas só são grandes por casa dela, e sem a humildade elas não são nada. Nós mesmos, quando temos servidores, não os estimamos senão quando eles nos servem de boa vontade, crendo nada haver feito de bom. Se vocês quiserem que o bem que fazem seja de verdade grande, acreditem que ele é nada, e ele será grande.

Foi com esse sentimento que o centurião disse: “Eu não sou digno de que o Senhor entre em minha casa[7]”. Foi por causa dessa humildade que ele se tornou digno e mereceu ser preferido por Jesus Cristo a todos os judeus. Assim é que São Paulo disse: “Eu não sou digno de ser chamado de apóstolo[8]”, e é por isso que ele mereceu ser o primeiro dentre todos. Da mesma forma, São João disse: “Eu não sou digno de desatar-lhe o nó das sandálias[9]”, e com isso ele mereceu se tornar amigo do esposo, e essa mesma mão que ele acreditava não ser digna de tocar suas sandálias, Cristo quis que ele a pousasse sobre sua própria cabeça. Assim São Pedro disse: “Afaste-se de mim, Senhor, pois sou pecador[10]”, e se tornou um fundamento da Igreja.

Pois nada agrada tanto a Deus como quando nos colocamos no nível dos maiores pecadores. Nisso reside o princípio de toda a sabedoria. Quem tem o coração contrito e quebrantado, não será tocado pela vanglória ou a inveja, nem pela cólera contra seu próximo, nem por qualquer outra paixão que seja. É como quando um homem quebra o braço e se torna incapaz de qualquer esforço por não conseguir erguer o braço; também nosso coração, verdadeiramente contrito e humilhado, não se erguerá por mais violentamente espicaçado que seja pelas paixões. Pois, se quem chora uma perda temporária se torna insensível a todas as paixões da alma, quanto mais aquele que chora por seus pecados, não desfrutará esse da paz e da tranquilidade da virtude?

Mas, dirão vocês, quem é capaz de dobrar seu coração a esse ponto? Escutem a Davi, em quem essa virtude brilhou com seu mais vivo esplendor. Vejam até onde chegou a contrição de seu coração! Depois de ter feito tantas ações excelentes, quando foi expulso de sua casa e de sua cidade, achando-se até em perigo de vida, ao ver um homem vil e desprezível que o insultava e cobria de injúrias, não apenas não lhe dirigiu nenhuma palavra violenta, como ainda deteve um de seus capitães que iria matá-lo, dizendo: “Deixe que fale, pois foi o Senhor que lhe ordenou[11]”. Os sacerdotes se ofereceram para acompanhá-lo aonde fosse em sua fuga com a arca, mas ele não o permitiu,  dizendo-lhes: “Levem a arca de Deus à cidade, e coloquem-na em seu lugar; se eu encontrar graça perante o Senhor, e se ele me libertar dos males que me oprimem, eu poderei rever seu tabernáculo; mas se ele me disser: não quero mais você, eis que estou pronto, e que ele me trate como lhe agradar[12]”.

Não estamos também diante do cúmulo da virtude nessa moderação que ele mostrou em relação a Saul, não uma ou duas vezes, mas muitas? Pois ele já se elevara acima de toda a lei antiga, e se aproximava da perfeição apostólica. Por isso ele concordava com tudo o que lhe vinha de parte de Deus, sem perguntar o porquê de coisa alguma, sem ter outro cuidado que não o de obedecer à vontade divina e segui-la em tudo. Quando, depois de realizar tantas ações ilustres, ele viu seu filho Absalão, esse tirano cruel, esse parricida, esse assassino de seu irmão, esse insolente furioso, que pretendia fazer-se rei em seu lugar, ele não se abalou com tão rude provação: se for da vontade de Deus que eu seja expulso, que me torne errante e fugitivo, e que meu filho seja honrado, eu o farei de todo coração, e darei graças ao meu Deus por essa multidão de males que me oprime.

Ele era bem diferente desses homens temerários até a afronta contra a majestade divina, os quais, sem possuir a menor parte dos méritos desse santo rei, se irritam com a menor contrariedade, sobretudo quando veem os outros prosperar, e perdem suas almas explodindo em mil blasfêmias. Davi, ao contrário, no meio de tantos males, nos mostra uma doçura, uma moderação e uma paciência admiráveis, coisas que fizeram com que Deus dissesse: “Eu encontrei Davi, filho de Jessé, um homem segundo meu coração[13]”. Devemos imitar essa disposição de Davi. Ainda que soframos, soframos com coragem, para recebermos, antes da recompensa que nos foi prometida, o fruto de nossa humildade, segundo as palavras de Jesus Cristo: “Aprendam comigo, que sou doce e humilde de coração, e encontrarão o repouso de suas almas[14]”. Para desfrutar desse repouso nesse mundo e no outro, tenhamos o cuidado de gravar profundamente em nossos corações essa santa humildade, que é a mãe de todas as virtudes. Assim desfrutaremos de uma calma contínua em meio às tempestades dessa vida, e chegaremos enfim a esse porto de eternidade, pela graça e misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o reino por todos os séculos dos séculos. Amém.



[1] Lucas 2: 48.
[2] Salmo 79: 13.
[3] Mateus 21: 33.
[4] Efésios 2: 14.
[5] Salmo 44: 41.
[6] Daniel 3: 28.
[7] Mateus 8: 8.
[8] I Coríntios 15: 9.
[9] Lucas 3: 16.
[10] Lucas 5: 8.
[11] II Reis 19: 6.
[12] II Reis 15: 25.
[13] Atos 22.
[14] Mateus 2: 26.

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