1.
Eis os que muitos de vocês dizem: “Quando
estamos na igreja e escutamos a palavra de Deus, tocados de compunção, nos
tornamos imediatamente melhores, mas assim que saímos nosso fervor se extingue
e nossa disposição muda por completo”. Haveria um meio de fazer cessar uma
instabilidade tão desagradável? Consideremos em primeiro lugar qual é a causa
disso. De onde provém uma mudança tão rápida e tão grande? Das más frequentações
e das relações com homens pecadores. Vocês não deveriam, apenas saídos da
igreja, se atirar a ocupações que contradizem o que ouviram na igreja; logo que
voltem para casa, devem tomar a Escritura santa e, com sua esposa e filhos,
repassar juntos as instruções que lhes foram dadas, e, depois disso, retomar a
rotina de seus assuntos temporais.
Pois, se vocês evitam ir aos locais de negócios depois de sair do
banho, para não prejudicar os efeitos do banho por causa de uma grande
aplicação, quão mais necessária não será essa precaução quando saem da igreja
para retornar à casa? Mas nós fazemos o contrário e assim perdemos o fruto
dessa divina semente; pois antes que ela tenha tempo de se enraizar em nossa
alma, uma torrente de assuntos a arranca de nossos corações. Então, para que
essa infelicidade não mais aconteça, não tenham pressa, ao sair dessa
assembleia, senão de recolher por meio da meditação das lições salutares e as
piedosas impressões que vocês retiram daí a cada vez.
Seria uma grande ingratidão conceder cinco ou seis dias aos negócios
desse mundo, e recusar um só dia, ou uma parte de um dia, às coisas de Deus. Não
veem vocês que os seus filhos estudam e repetem de manhã até o entardecer as
lições que lhes foram dadas a aprender? Devemos imitá-los nesse ponto, pois, se
não for assim, será em vão que nos reunimos aqui. Isso equivale a colocar água
num vaso furado, e equivale a não termos o mesmo cuidado em conservar a palavra
de Deus em nosso coração, do que temos em guardar o ouro e a prata. Quando um homem
recebe algum dinheiro, ele o coloca com cuidado numa bolsa, e ali coloca seu lacre;
mas nós, depois de havermos escutado palavras infinitamente mais preciosas do
que a prata e as pedrarias, depois que Deus derramou sobre nós os tesouros e as
riquezas de seu espírito, não temos o cuidados de os conservar guardados em
nosso coração, e os perdemos por causa de nossa indiferença, e deixamos que
eles se dissipem ao acaso. Quem poderá ter compaixão de nós, enquanto somos tão
impiedosos conosco mesmos, e nos reduzimos a tão extrema pobreza?
Para impedir essa desordem, imponham a si mesmos, às suas esposas e
filhos, a lei inviolável de consagrar todo o dia de domingo a primeiro escutar,
e depois meditar a palavra de Deus. Essa aplicação os irá dispor a uma melhor compreensão
daquilo que iremos dizer a seguir; vocês nos evitarão assim um grande trabalho,
e ao mesmo tempo retirarão mais proveito de nossas instruções, quando vierem
tendo ainda o espírito cheio daquilo que escutaram anteriormente. Pois é muito
importante, para o bom entendimento do que dizemos, reter com exatidão a
sequência e o encadeamento. Como é impossível dizer tudo num dia, sua memória
deve ajuntar ao que somos forçados a dividir em partes, e fazer com elas uma
grande cadeia; para que vocês possam ver com o olho do espírito toda a Escritura
reunida em si mesma, e como que recolhida num só corpo.
Lembrem-se daquilo que já explicamos sobre o Evangelho, a fim de que
possamos passar ao que nos resta dizer. E eis o assunto de que iremos tratar
hoje.
2.
“Ora, tudo isso se fez para cumprir o que o
Senhor havia dito pelo Profeta[1]”.
O escritor sagrado se exprime da maneira mais digna possível sobre o grande
mistério que ele relata, ao dizer: “Tudo isso se fez”. Esse abismo de amor de Deus,
esse oceano de misericórdia, essas graças inesperadas, essa inversão das leis
da natureza, essa reconciliação de Deus com os homens, esse rebaixamento
Daquele que estava acima de tudo, até o estado mais humilde, a destruição dessa
“muralha de separação[2]”
de que fala São Paulo; todos os obstáculos de nossa salvação inteiramente
retirados, e esse grande número de maravilhas encerradas nesse mistério, todas
essas coisas, ele as abarca de uma só tacada, e as exprime todas com essas
palavras: “Tudo isso se fez para cumprir o que o Senhor havia dito pelo Profeta”.
Não considerem que o que se passa agora, diz ele, seja uma obra cuja ideia é
nova nos desígnios de Deus, pois há muito tempo ele a previu e prefigurou; São
Paulo irá se aplicar a demonstrá-lo com seus escritos em toda parte.
O anjo remeteu José a Isaías, para que, caso ele esquecesse ao
despertar do que ouvira em sonhos, as palavras do Profeta, de cuja leitura ele
se alimentava, o fizessem se lembrar. O anjo não citou as mesmas profecias à
Virgem, porque, não sendo ela então mais do que uma jovem, talvez não as
conhecesse; mas, falando a um homem, e a um homem justo que se dedicava à
leitura dos profetas, ele teve o cuidado de cita seu testemunho. Observem também
o modo como o anjo, antes de citar o Profeta, acrescenta ao nome de “Maria” a
expressão “sua esposa”; e como, depois de invocar a autoridade de Isaías, ele
já não teme dar a ela o nome de “virgem”. Pois José não estaria tão disposto a
crer que Maria fosse virgem e mãe ao mesmo tempo, se o anjo não lhe tivesse
feito ver previamente que Isaías autorizava essa verdade. Mas, para um homem
que meditara longamente o Profeta, a maravilha de uma virgem mãe deixava de ser
estranha para se tornar uma ideia familiar e perfeitamente admissível. Foi,
portanto, para preparar o espírito de José para ouvir esse milagre, que o anjo
apelou primeiro para Isaías.
E ele não se deteve aí, como ele apresentou também o testemunho do
próprio Deus. Pois ele não diz: “Tudo isso se fez para que se cumprisse o que
foi dito por Isaías”, mas “o que foi dito pelo Senhor”. Foi o próprio Deus que
pronunciou o oráculo; Isaías foi apenas sua língua e sua voz. Mas o que disse o
oráculo? “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, a quem será dado o nome
de Emanuel, que significa Deus conosco[3]”.
Por que então, dirão vocês, não lhe foi dado o nome de Emanuel, mas o
de Jesus Cristo? É porque o anjo não disse: “você o chamará”, mas
indefinidamente: “lhe será dado”, ou seja, que as nações lhe darão esse nome,
depois dos acontecimentos. Esse termo de Emanuel define um evento, segundo o
costume da Escritura. E, quando o anjo diz: “Lhe será dado o nome de Emanuel,
que significa Deus conosco”, é como se ele dissesse: os homens verão o Deus vivo
entre eles. Pois, embora Deus tenha sempre estado com eles, não obstante isso
não era de uma maneira visível e sensível, como depois da Encarnação. E se os
judeus se opuserem ao que eu digo aqui, eu os lembrarei que jamais foi dado a
Jesus Cristo um outro nome marcado pelo Profeta, e que significa: “Apressem-se
em tomar os despojos, apressem-se em arrebatar seu butim[4]”.
E o que poderão eles responder? Pois Isaías disse: “Deem-lhe o nome”, porque,
assim que ele nasceu, ele tomou os despojos do demônio, e o Profeta atribui a
ele esse nome como sendo próprio, pelo efeito glorioso do poder que ele teve
desde o nascimento.
Também foi dito que a cidade de Jerusalém seria chamada de “cidade de
justiça, mãe das cidades, a fiel Sião[5]”.
Porém, não vemos em parte alguma que Jerusalém tenha sido chamada de “cidade de
justiça”, pois ela sempre conservou seu primeiro nome; e quando o Profeta disse
que ela traria esse nome, isso foi uma expressão particular para exprimir o
fato de sua conversão ao bem e à justiça. Quando uma ação brilhante assinala
primeiro aquele que a realizou, e que não poderia lhe dar seu próprio nome, é
dado um outro nome que lembra o que foi feito.
Derrotados nesse ponto, os judeus voltam à carga com outro, e se
agarram à virgindade que atribuímos à mãe do Messias, objetando que nem todos
os intérpretes entendem como nós a passagem de Isaías, a qual eles traduzem não
como “uma virgem”, mas como “uma jovem”. A isso nós respondemos que os intérpretes
mais seguros são os Setenta, e que não existe autoridade que se iguale à deles;
todos os demais escreveram depois de jesus Cristo, e são judeus, por
conseguinte suspeitos, porque corromperam maliciosamente muitos trechos, a fim
de obscurecer os Profetas. Ao contrário, os Setenta fizeram sua versão mais de
cem anos antes de Jesus Cristo, e eram muitos juntos; assim é que eles evitaram
a menor sombra de suspeita; seu tempo, seu número e sua união lhes deram uma
autoridade que os outros não poderiam jamais ter.
3.
Mas ainda que os nossos adversários queiram se
apoiar sobre os novos intérpretes, o que dissemos ainda se mantém, porque a
Escritura normalmente caracteriza uma virgem com a expressão “jovem moça” ou “donzela”,
assim como caracteriza um adolescente com o termo “jovem”; como no Salmo: “Vocês,
moços e vocês, virgens, louvem o Senhor[6]”.
E a Escritura, falando de uma virgem violentada, diz: “Se essa donzela – ou seja,
se essa virgem – elevar sua voz para gritar[7]”.
Mas o que precede aquela passagem do Profeta também confirma o que
dizemos aqui. Pois ele não diz simplesmente: “A virgem conceberá e dará à luz
um filho”, mas ele diz: “O Senhor dará um sinal milagroso”, e logo acrescenta: “a
virgem conceberá”. Se aquela que deverá dar à luz não fosse virgem, ou se não
tivesse concebido senão pela via comum do casamento, onde estaria o prodígio e
o milagre que Deus prometeu? Um prodígio é necessariamente uma coisa
extraordinária; e não podemos dar esse nome a alguma coisa que acontece
normalmente na ordem comum da natureza.
“Então José, despertando de seu sonho, fez o que o anjo do Senhor lhe
havia ordenado, e tomou sua esposa consigo[8]”.
Considerem a obediência desse santo homem, e a docilidade de seu espírito:
vejam a circunspecção e a pureza incorruptível de sua alma. Ainda que ele
pudesse suspeitar da Virgem, ele não quis fazer nada que a desonrasse; e logo
que ele se libertou de sua dúvida, ele já não pensou em deixá-la, mas a reteve
consigo, e se tornou o ministro e como que o dispensador desse mistério.
“Ele tomou sua esposa consigo”. Reparem como o Evangelista chama com
frequência assim a Virgem, porque ele não queria ainda revelar essa maravilha, falando
apenas o suficiente para evitar a suspeita de que Jesus Cristo tivesse nascido
como o resto dos homens.
“E ele não a conheceu até que ela deu à luz seu primeiro filho”. Essa expressão
“até que”, não nos deve fazer crer que José a tenha conhecido depois; mas
apenas que ele não a conhecera antes dessa gravidez divina, e que a mãe de
Jesus permaneceu para sempre virgem. A Escritura costuma se servir dessa expressão
“até que”, sem caracterizar um tempo limitado. Ela fala, quando o corvo saiu da
arca, que “ele não voltou até que a terra tivesse secado[9]”;
entretanto, ele não voltou antes, falando de Deus, ela diz também: “Vocês
existiam desde a eternidade, até a eternidade[10]”,
sem pretender estabelecer limites. Da mesma forma, quando ela anuncia o
nascimento de Jesus Cristo, ela diz: “A justiça se erguerá nos seus dias com
uma abundância de paz até que passe a lua[11]”,
o que não significa que a luz deva cessar de existir depois.
O Evangelista então não se serve dessa expressão senão para evitar
toda suspeita sobre o que se passou antes do nascimento de Jesus Cristo,
deixando a vocês que julguem o que vem a seguir. Ele diz aquilo que vocês não
poderiam ouvir senão dele, ou seja, que Maria permaneceu virgem até o parto;
mas ele deixa para sua conclusão aquilo que não é mais do que uma sequência
clara e como que necessária do que ele disse, a saber, que um homem tão justo
não haveria de evitar pensar em se aproximar daquela que se tornara mãe de modo
tão divino, e que havia sido honrada como uma fecundidade tão milagrosa. Se José
tivesse depois vivido com Maria como sua esposa, e tivesse tido filhos com ela
como alguns ousaram afirmar, por que Jesus Cristo, sobre a cruz, recomendou a
seu discípulo que a tomasse consigo como se não existisse outra pessoa que
pudesse cuidar dela?
Mas de onde vem, dirão vocês, que Tiago e João sejam chamados no
Evangelho de “irmãos de Jesus Cristo[12]”?
Eles eram chamados de irmãos de Jesus da mesma maneira como José era chamado de
esposo de Maria. Deus quis recobrir com muitos véus esse grande mistério, a fim
de que essa gravidez divina permanecesse oculta por muito tempo. É por isso que
o próprio São João chama a si mesmo de irmão do Senhor em seu Evangelho, quando
diz: “Seus irmãos não creram nele[13]”.
Mas os que não creram nele então foram depois caracterizados pela grandeza de
sua fé. Pois quando São Paulo subiu a Jerusalém, para conferir com os demais
apóstolos as verdades que ele pregava, ele veio em primeiro lugar em procura de
Tiago, cuja virtude era tão grande que ele mereceu ser o primeiro bispo de
Jerusalém. Diz-se que ele negligenciava seu corpo a tal ponto que todos os seus
membros eram como que mortos, e que ele se ajoelhava e se prosternava na terra
para fazer a oração de tal maneira que sua testa e seus joelhos ficaram
endurecidos como a pele de um camelo.
Foi ele também que, quando São Paulo subiu novamente a Jerusalém, lhe
falou com tanta prudência, e lhe disse: “Você sabe, meu irmão, que multidão de
judeus se converteu à fé de Jesus Cristo[14]”.
Tamanha era assim sua prudência e seu zelo, ou antes, o poder de Jesus Cristo. Os
que tanto murmuravam contra Jesus Cristo quando ainda vivo o admiraram depois
de sua morte, até morrerem por ele com alegria; que marca visível de sua
ressurreição! Ele reservou de propósito para depois de sua morte esses grandes
efeitos de seu poder, para se servir deles como uma prova indubitável daquilo
que ele era. Pois se nós esquecemos, depois da morte, daqueles mesmos a quem
tanto admiramos em vida, como é possível que aqueles que haviam desprezado
Jesus Cristo durante sua vida, o tenham visto como um Deus depois de sua morte,
se ele não passasse de um puro homem? Como eles se deixariam imolar por ele, se
não tivessem provas seguras de sua ressurreição?
4.
Eu lhes digo isso, irmãos, não para lhes causar
uma admiração estéril, mas para que vocês imitem essa constância, essa firmeza,
essa justiça, a fim de que ninguém desespere de si mesmo, por negligente que
tenha sido até agora, e que, segundo a graça de Deus, ninguém ponha sua
confiança senão na santidade de sua vida. Se de nada serviu aos apóstolos estarem
unidos a Jesus Cristo por laços de pátria, de casa e de parentesco, a menos que
fossem recomendáveis por sua virtude, como seríamos nós desculpados de nos
gabar de ter irmãos e próximos virtuosos sem nos darmos ao trabalho de
imitá-los?
É essa mesma verdade que Davi insinua ao dizer: “Não é o irmão que liberta,
é o homem que libertará[15]”.
Ainda que Moisés, Samuel ou Jeremias orassem por seus parentes, eles não seriam
atendidos. Vejam o que Deus disse a Jeremias: “Não ore mais por esse povo,
porque eu não o escutarei mais[16]”.
Não se espantem com isso, santo profeta, Moisés ou Samuel, de não serem
atendidos pelo Senhor ao rezarem pelos pecadores obstinados, pois foi ele
próprio que o declarou. As súplicas de Ezequiel nada conseguiram, e lhe foi
respondido como a vocês: “Ainda que Noé, Jó e Daniel se apresentasse diante de
mim, eles não salvariam seus filhos e filhas[17]”.
Ainda que o patriarca Abrahão orasse por aqueles que permaneciam voluntariamente
no vício, e que tornavam suas enfermidades incuráveis, Deus desviaria sua face,
e não escutaria suas preces. Fizesse Daniel a mesma coisa, e Deus lhe
responderia: “Não chore por Saul”. Ainda que alguém orasse inoportunamente por
sua própria irmã, Deus lhe diria, como a Moisés: “Se seu pai lhe cuspisse na
cara, não ficaria ela coberta de confusão?[18]”.
Não nos apoiemos preguiçosamente sobre os méritos dos outros. É verdade
que as preces dos santos têm muita força, mas apenas quando acrescentamos a
elas nossas penitências, e mudamos de vida. Sem isso, o próprio Moisés, que
havia libertado seu irmão e seiscentos mil homens da cólera de Deus, não teve
poder para libertar sua irmã, embora seu pecado fosse muito menor. Ela só havia
murmurado contra seu irmão Moisés, mas o crime dos outros constituís uma
impiedade contra o próprio Deus. Eu deixarei que vocês examinem a conduta de
Moisés nesse encontro, e passarei a outros assuntos mais difíceis. Pois, por
que falar de sua irmã, quando o próprio Moisés, esse grande condutor do povo de
Deus, não pôde obter aquilo que desejava, e que depois de mil trabalhos e mil
penas, depois de um governo de quarenta anos, Deus lhe recusou entrar na terra
prometida?
Qual foi a razão dessa conduta? É porque essa graça, que foi feita a Moisés,
não teria sido vantajosa para todo o povo, e poderia se tornar uma ocasião de
queda e ruína para um grande número de judeus. Porque, de depois de terem sido
libertos da escravidão do Egito, eles deixaram a Deus para seguir Moisés, a
quem viam como o único autor de todas as graças, se ele ainda por cima os
tivesse introduzido na terra prometida, a quanta impiedade não seriam eles
ainda levados? Foi por esse motivo que Deus quis inclusive esconder deles o seu
sepulcro.
Também Samuel salvou mais de uma vez o povo judeu, mas não pôde salvar
Saul da cólera de Deus. Jeremias não pôde fazer nada pelo povo judeu, embora
tenha salvado a outros. Daniel foi capaz de livrar da morte os sábios da
Babilônia, mas não pôde livrar os judeus da servidão. Esse profeta conseguiu
libertar uns, mas não pôde libertar outros; e vemos no Evangelho que um mesmo
homem pôde se libertar por um tempo, mas não pôde em outro; aquele que devia
dez mil talentos obteve primeiro a remissão de sua dívida, e a perdeu em
seguida. O outro, ao contrário, tendo perdido de início, se salvou depois, como
o filho pródigo que, depois de haver dissipado os bens do seu pai, voltou a ele
e obteve o perdão por sua falta.
Assim, se formos negligentes e preguiçosos, os outros não poderão nos
socorrer; mas se nos vigiarmos, nós mesmos nos socorreremos, e ainda melhor do
que o poderão fazer os outros. Deus prefere conceder sua graça às preces que
lhe fazemos nós mesmos, do que àquelas que outros fazem por nós, porque a
própria aplicação que demonstramos em nosso esforço por desviar sua cólera faz
com que nos aproximemos dele com mais confiança, e faz com que regremos nossa
vida com mais cuidado. É assim que se fez misericórdia à Cananéia, assim foi
curada Madalena, assim o santo ladrão entrou no paraíso, sem que nenhum
mediador orasse por eles.
5.
Eu lhes
digo isso, irmãos, não para que deixem de orar aos santos, mas para que vocês
não se abandonem à negligência, e que, permanecendo em si mesmos como num sono
profundo, se contentem em encarregar os demais do cuidado com sua salvação. Quando
Jesus Cristo disse “Façam amigos[19]”,
ele não ficou por aí, mas acrescentou: com os bens que vocês adquiriram
injustamente, a fim de que vocês possam concorrer por si mesmos à obra de sua
salvação. Pois com isso ele não está recomendando que a esmola, que é
admirável, entre numa conta exata e rigorosa, desde que nos retiremos de nossa
iniquidade. Me parece que ele quer dizer: até hoje vocês adquiriram bens por
maus caminhos, mas agora empreguem-nos em boas obras. O que ajuntaram com suas
injustiças, distribuam segundo a justiça.
Será alguma grande virtude dar o que não é nosso? Mas Deus, no amor
extremo que tem pelos homens, leva a sua condescendência até o ponto de nos
prometer grandes bens, se os utilizarmos dessa maneira.
Mas nossa insensibilidade é tão grande, que sequer damos de esmola um
bem adquirido injustamente, e que, depois de havermos roubado milhões, damos
uma pequeniníssima parte disso e nos consideramos quites com tudo. Vocês esqueceram-se
do que disse São Paulo: “quem semeia pouco, colherá pouco[20]”?
então, por que vocês semeiam com parcimônia? Semear com abundância não significa
perder, mas ganhar; não equivale a distribuir, mas a ajuntar. Depois da
semente, a colheita; com a semente, a multiplicação.
Se vocês tivessem para cultivar uma boa terra que pudesse render
muito, vocês não se contentariam em plantar apenas o trigo que possuem, mas
ainda emprestariam para semear o máximo possível, e considerariam que, numa ocasião
assim, economizar seria perder. Mas quando vocês têm a cultivar não a terra,
mas o céu, que não está sujeito a nenhuma variação de estações, e que
infalivelmente rende com juros aquilo que lhe é confiado, vocês hesitam, tremem
e não compreendem que economizar é perder, e dispensar é ganhar. Distribuam, a
fim de reunir; não juntem por juntar; percam para conservar, e prodiguem a fim
de ganhar.
Se for preciso conservar seus bens, não se encarreguem disso vocês
mesmos, pois isso seria perder tudo; deixem a Deus em depósito e ninguém lhes
poderá tomar. Não façam com que seu dinheiro valorize por vocês próprios, não
tentem fazê-lo dar proventos, mas emprestem a maior parte do capital Àquele que
não tem necessidade de nada e que, não obstante, está em necessidade por causa
de vocês. Deem Àquele que alimenta todas as coisas, mas que passa fome para que
vocês não morram de fome. Deem Àquele que se fez pobre que enriquecê-los. Pratiquem
essa usura que lhes trará não a morte, mas a vida. A usura mesmo leva ao
inferno, mas essa conduz ao paraíso. Uma é feito da avareza, outra da virtude;
uma provém da crueldade, a outra da caridade.
Que desculpa nos restará, se rejeitarmos tamanho ganho, tão vantajoso,
tão seguro, tão favorável, isento de constrangimento, de apreensão, de reprovação
e de perigo, para buscarmos outro, tão vil, tão vergonhoso, frágil e incerto,
no qual encontraremos infalivelmente nossa danação eterna? Pois não existe nada
mais infame nem mais cruel do que a usura terrestre. O usurário trafica com a
infelicidade dos outros. Ele enriquece com sua pobreza; ele exige seus
interesses, como se fossem devidos à sua caridade. Ele é impiedoso, mas não
quer parecer. Ele parece querer ajudar o pobre, e o oprime; sob uma aparência
de humanidade, ele cava cada vez mais o abismo sob os passos de seu irmão. Ele lhe
estende uma mão, e com a outra o empurra no precipício. Ele se oferece para
socorrer, mas, ao contrário de conduzi-lo a um porto, o atira contra os recifes,
e o despedaça nos rochedos.
Mas, me perguntarão vocês, o que poderei fazer? Deverei dar um
dinheiro que ganhei, e que me é necessário, a fim de beneficiar a outrem, sem
retirar para mim nenhum benefício? Não foi isso que eu disse. Eu quero que
todos se beneficiem, o máximo possível, além do que desejam. Quero que, ao
invés de ouro, vocês adquiram o próprio céu. Por que vocês haveriam de buscar
uma pobreza tão extrema, agarrando-se à terra, e preferindo um pequeno ganho a
tão grandes recompensas? Isso não equivale a ignorar a verdadeira maneira de
enriquecer? Quando Deus lhes promete, em
lugar de um pouco de dinheiro, todos os bens do céu, e vocês lhe pedem ao
contrário, que não lhes dê o céu, mas um pouco de dinheiro, o que é isso, senão
pedir que os deixem sempre na pobreza? Ao contrário, quem quer se tornar
verdadeiramente rico, prefere os grandes bens aos pequenos; os certos aos
incertos, os celestes aos terrestres; os incorruptíveis aos perecíveis; e assim
se torna digno de possuir tanto uns como outros. Pois quem prefere a terra ao
céu, perderá ambos, mas quem prefere o céu à terra, desfrutará dos dois, e de
uma maneira incomparavelmente mais estável e feliz. Desprezemos, portanto, os
bens presentes, e não aspiremos senão aos bens por vir, para assim desfrutar
dos bens presentes e dos futuros, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor
Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder, pelos séculos dos séculos.
Amém.
[1]
Mateus 1: 23.
[2]
Efésios 2: 14.
[3] Isaías
7: 14.
[4]
Isaías 8: 3.
[5]
Isaías 1: 26.
[6] Salmo
148: 12.
[7] Deuteronômio
22: 27.
[8]
Mateus 1: 24.
[9]
Gênesis 3: 4.
[10]
Salmo 89: 2.
[11]
Salmo 71: 7.
[12] Mateus
13: 55.
[13]
João 7: 5.
[14]
Atos 21: 20.
[15]
Salmo 48: 8.
[16]
Jeremias 2: 14.
[17]
Ezequiel 14: 14.
[18]
Números 12: 14.
[19]
Lucas 16: 9.
[20] I
Coríntios 9: 6.
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