quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Quinta Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo I, versículos 22, até Capítulo II, versículo 23






1.      Eis os que muitos de vocês dizem: “Quando estamos na igreja e escutamos a palavra de Deus, tocados de compunção, nos tornamos imediatamente melhores, mas assim que saímos nosso fervor se extingue e nossa disposição muda por completo”. Haveria um meio de fazer cessar uma instabilidade tão desagradável? Consideremos em primeiro lugar qual é a causa disso. De onde provém uma mudança tão rápida e tão grande? Das más frequentações e das relações com homens pecadores. Vocês não deveriam, apenas saídos da igreja, se atirar a ocupações que contradizem o que ouviram na igreja; logo que voltem para casa, devem tomar a Escritura santa e, com sua esposa e filhos, repassar juntos as instruções que lhes foram dadas, e, depois disso, retomar a rotina de seus assuntos temporais.

Pois, se vocês evitam ir aos locais de negócios depois de sair do banho, para não prejudicar os efeitos do banho por causa de uma grande aplicação, quão mais necessária não será essa precaução quando saem da igreja para retornar à casa? Mas nós fazemos o contrário e assim perdemos o fruto dessa divina semente; pois antes que ela tenha tempo de se enraizar em nossa alma, uma torrente de assuntos a arranca de nossos corações. Então, para que essa infelicidade não mais aconteça, não tenham pressa, ao sair dessa assembleia, senão de recolher por meio da meditação das lições salutares e as piedosas impressões que vocês retiram daí a cada vez.

Seria uma grande ingratidão conceder cinco ou seis dias aos negócios desse mundo, e recusar um só dia, ou uma parte de um dia, às coisas de Deus. Não veem vocês que os seus filhos estudam e repetem de manhã até o entardecer as lições que lhes foram dadas a aprender? Devemos imitá-los nesse ponto, pois, se não for assim, será em vão que nos reunimos aqui. Isso equivale a colocar água num vaso furado, e equivale a não termos o mesmo cuidado em conservar a palavra de Deus em nosso coração, do que temos em guardar o ouro e a prata. Quando um homem recebe algum dinheiro, ele o coloca com cuidado numa bolsa, e ali coloca seu lacre; mas nós, depois de havermos escutado palavras infinitamente mais preciosas do que a prata e as pedrarias, depois que Deus derramou sobre nós os tesouros e as riquezas de seu espírito, não temos o cuidados de os conservar guardados em nosso coração, e os perdemos por causa de nossa indiferença, e deixamos que eles se dissipem ao acaso. Quem poderá ter compaixão de nós, enquanto somos tão impiedosos conosco mesmos, e nos reduzimos a tão extrema pobreza?

Para impedir essa desordem, imponham a si mesmos, às suas esposas e filhos, a lei inviolável de consagrar todo o dia de domingo a primeiro escutar, e depois meditar a palavra de Deus. Essa aplicação os irá dispor a uma melhor compreensão daquilo que iremos dizer a seguir; vocês nos evitarão assim um grande trabalho, e ao mesmo tempo retirarão mais proveito de nossas instruções, quando vierem tendo ainda o espírito cheio daquilo que escutaram anteriormente. Pois é muito importante, para o bom entendimento do que dizemos, reter com exatidão a sequência e o encadeamento. Como é impossível dizer tudo num dia, sua memória deve ajuntar ao que somos forçados a dividir em partes, e fazer com elas uma grande cadeia; para que vocês possam ver com o olho do espírito toda a Escritura reunida em si mesma, e como que recolhida num só corpo.

Lembrem-se daquilo que já explicamos sobre o Evangelho, a fim de que possamos passar ao que nos resta dizer. E eis o assunto de que iremos tratar hoje.

2.      “Ora, tudo isso se fez para cumprir o que o Senhor havia dito pelo Profeta[1]”. O escritor sagrado se exprime da maneira mais digna possível sobre o grande mistério que ele relata, ao dizer: “Tudo isso se fez”. Esse abismo de amor de Deus, esse oceano de misericórdia, essas graças inesperadas, essa inversão das leis da natureza, essa reconciliação de Deus com os homens, esse rebaixamento Daquele que estava acima de tudo, até o estado mais humilde, a destruição dessa “muralha de separação[2]” de que fala São Paulo; todos os obstáculos de nossa salvação inteiramente retirados, e esse grande número de maravilhas encerradas nesse mistério, todas essas coisas, ele as abarca de uma só tacada, e as exprime todas com essas palavras: “Tudo isso se fez para cumprir o que o Senhor havia dito pelo Profeta”. Não considerem que o que se passa agora, diz ele, seja uma obra cuja ideia é nova nos desígnios de Deus, pois há muito tempo ele a previu e prefigurou; São Paulo irá se aplicar a demonstrá-lo com seus escritos em toda parte.

O anjo remeteu José a Isaías, para que, caso ele esquecesse ao despertar do que ouvira em sonhos, as palavras do Profeta, de cuja leitura ele se alimentava, o fizessem se lembrar. O anjo não citou as mesmas profecias à Virgem, porque, não sendo ela então mais do que uma jovem, talvez não as conhecesse; mas, falando a um homem, e a um homem justo que se dedicava à leitura dos profetas, ele teve o cuidado de cita seu testemunho. Observem também o modo como o anjo, antes de citar o Profeta, acrescenta ao nome de “Maria” a expressão “sua esposa”; e como, depois de invocar a autoridade de Isaías, ele já não teme dar a ela o nome de “virgem”. Pois José não estaria tão disposto a crer que Maria fosse virgem e mãe ao mesmo tempo, se o anjo não lhe tivesse feito ver previamente que Isaías autorizava essa verdade. Mas, para um homem que meditara longamente o Profeta, a maravilha de uma virgem mãe deixava de ser estranha para se tornar uma ideia familiar e perfeitamente admissível. Foi, portanto, para preparar o espírito de José para ouvir esse milagre, que o anjo apelou primeiro para Isaías.

E ele não se deteve aí, como ele apresentou também o testemunho do próprio Deus. Pois ele não diz: “Tudo isso se fez para que se cumprisse o que foi dito por Isaías”, mas “o que foi dito pelo Senhor”. Foi o próprio Deus que pronunciou o oráculo; Isaías foi apenas sua língua e sua voz. Mas o que disse o oráculo? “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, a quem será dado o nome de Emanuel, que significa Deus conosco[3]”.

Por que então, dirão vocês, não lhe foi dado o nome de Emanuel, mas o de Jesus Cristo? É porque o anjo não disse: “você o chamará”, mas indefinidamente: “lhe será dado”, ou seja, que as nações lhe darão esse nome, depois dos acontecimentos. Esse termo de Emanuel define um evento, segundo o costume da Escritura. E, quando o anjo diz: “Lhe será dado o nome de Emanuel, que significa Deus conosco”, é como se ele dissesse: os homens verão o Deus vivo entre eles. Pois, embora Deus tenha sempre estado com eles, não obstante isso não era de uma maneira visível e sensível, como depois da Encarnação. E se os judeus se opuserem ao que eu digo aqui, eu os lembrarei que jamais foi dado a Jesus Cristo um outro nome marcado pelo Profeta, e que significa: “Apressem-se em tomar os despojos, apressem-se em arrebatar seu butim[4]”. E o que poderão eles responder? Pois Isaías disse: “Deem-lhe o nome”, porque, assim que ele nasceu, ele tomou os despojos do demônio, e o Profeta atribui a ele esse nome como sendo próprio, pelo efeito glorioso do poder que ele teve desde o nascimento.

Também foi dito que a cidade de Jerusalém seria chamada de “cidade de justiça, mãe das cidades, a fiel Sião[5]”. Porém, não vemos em parte alguma que Jerusalém tenha sido chamada de “cidade de justiça”, pois ela sempre conservou seu primeiro nome; e quando o Profeta disse que ela traria esse nome, isso foi uma expressão particular para exprimir o fato de sua conversão ao bem e à justiça. Quando uma ação brilhante assinala primeiro aquele que a realizou, e que não poderia lhe dar seu próprio nome, é dado um outro nome que lembra o que foi feito.

Derrotados nesse ponto, os judeus voltam à carga com outro, e se agarram à virgindade que atribuímos à mãe do Messias, objetando que nem todos os intérpretes entendem como nós a passagem de Isaías, a qual eles traduzem não como “uma virgem”, mas como “uma jovem”. A isso nós respondemos que os intérpretes mais seguros são os Setenta, e que não existe autoridade que se iguale à deles; todos os demais escreveram depois de jesus Cristo, e são judeus, por conseguinte suspeitos, porque corromperam maliciosamente muitos trechos, a fim de obscurecer os Profetas. Ao contrário, os Setenta fizeram sua versão mais de cem anos antes de Jesus Cristo, e eram muitos juntos; assim é que eles evitaram a menor sombra de suspeita; seu tempo, seu número e sua união lhes deram uma autoridade que os outros não poderiam jamais ter.

3.      Mas ainda que os nossos adversários queiram se apoiar sobre os novos intérpretes, o que dissemos ainda se mantém, porque a Escritura normalmente caracteriza uma virgem com a expressão “jovem moça” ou “donzela”, assim como caracteriza um adolescente com o termo “jovem”; como no Salmo: “Vocês, moços e vocês, virgens, louvem o Senhor[6]”. E a Escritura, falando de uma virgem violentada, diz: “Se essa donzela – ou seja, se essa virgem – elevar sua voz para gritar[7]”.

Mas o que precede aquela passagem do Profeta também confirma o que dizemos aqui. Pois ele não diz simplesmente: “A virgem conceberá e dará à luz um filho”, mas ele diz: “O Senhor dará um sinal milagroso”, e logo acrescenta: “a virgem conceberá”. Se aquela que deverá dar à luz não fosse virgem, ou se não tivesse concebido senão pela via comum do casamento, onde estaria o prodígio e o milagre que Deus prometeu? Um prodígio é necessariamente uma coisa extraordinária; e não podemos dar esse nome a alguma coisa que acontece normalmente na ordem comum da natureza.

“Então José, despertando de seu sonho, fez o que o anjo do Senhor lhe havia ordenado, e tomou sua esposa consigo[8]”. Considerem a obediência desse santo homem, e a docilidade de seu espírito: vejam a circunspecção e a pureza incorruptível de sua alma. Ainda que ele pudesse suspeitar da Virgem, ele não quis fazer nada que a desonrasse; e logo que ele se libertou de sua dúvida, ele já não pensou em deixá-la, mas a reteve consigo, e se tornou o ministro e como que o dispensador desse mistério.

“Ele tomou sua esposa consigo”. Reparem como o Evangelista chama com frequência assim a Virgem, porque ele não queria ainda revelar essa maravilha, falando apenas o suficiente para evitar a suspeita de que Jesus Cristo tivesse nascido como o resto dos homens.

“E ele não a conheceu até que ela deu à luz seu primeiro filho”. Essa expressão “até que”, não nos deve fazer crer que José a tenha conhecido depois; mas apenas que ele não a conhecera antes dessa gravidez divina, e que a mãe de Jesus permaneceu para sempre virgem. A Escritura costuma se servir dessa expressão “até que”, sem caracterizar um tempo limitado. Ela fala, quando o corvo saiu da arca, que “ele não voltou até que a terra tivesse secado[9]”; entretanto, ele não voltou antes, falando de Deus, ela diz também: “Vocês existiam desde a eternidade, até a eternidade[10]”, sem pretender estabelecer limites. Da mesma forma, quando ela anuncia o nascimento de Jesus Cristo, ela diz: “A justiça se erguerá nos seus dias com uma abundância de paz até que passe a lua[11]”, o que não significa que a luz deva cessar de existir depois.

O Evangelista então não se serve dessa expressão senão para evitar toda suspeita sobre o que se passou antes do nascimento de Jesus Cristo, deixando a vocês que julguem o que vem a seguir. Ele diz aquilo que vocês não poderiam ouvir senão dele, ou seja, que Maria permaneceu virgem até o parto; mas ele deixa para sua conclusão aquilo que não é mais do que uma sequência clara e como que necessária do que ele disse, a saber, que um homem tão justo não haveria de evitar pensar em se aproximar daquela que se tornara mãe de modo tão divino, e que havia sido honrada como uma fecundidade tão milagrosa. Se José tivesse depois vivido com Maria como sua esposa, e tivesse tido filhos com ela como alguns ousaram afirmar, por que Jesus Cristo, sobre a cruz, recomendou a seu discípulo que a tomasse consigo como se não existisse outra pessoa que pudesse cuidar dela?

Mas de onde vem, dirão vocês, que Tiago e João sejam chamados no Evangelho de “irmãos de Jesus Cristo[12]”? Eles eram chamados de irmãos de Jesus da mesma maneira como José era chamado de esposo de Maria. Deus quis recobrir com muitos véus esse grande mistério, a fim de que essa gravidez divina permanecesse oculta por muito tempo. É por isso que o próprio São João chama a si mesmo de irmão do Senhor em seu Evangelho, quando diz: “Seus irmãos não creram nele[13]”. Mas os que não creram nele então foram depois caracterizados pela grandeza de sua fé. Pois quando São Paulo subiu a Jerusalém, para conferir com os demais apóstolos as verdades que ele pregava, ele veio em primeiro lugar em procura de Tiago, cuja virtude era tão grande que ele mereceu ser o primeiro bispo de Jerusalém. Diz-se que ele negligenciava seu corpo a tal ponto que todos os seus membros eram como que mortos, e que ele se ajoelhava e se prosternava na terra para fazer a oração de tal maneira que sua testa e seus joelhos ficaram endurecidos como a pele de um camelo.

Foi ele também que, quando São Paulo subiu novamente a Jerusalém, lhe falou com tanta prudência, e lhe disse: “Você sabe, meu irmão, que multidão de judeus se converteu à fé de Jesus Cristo[14]”. Tamanha era assim sua prudência e seu zelo, ou antes, o poder de Jesus Cristo. Os que tanto murmuravam contra Jesus Cristo quando ainda vivo o admiraram depois de sua morte, até morrerem por ele com alegria; que marca visível de sua ressurreição! Ele reservou de propósito para depois de sua morte esses grandes efeitos de seu poder, para se servir deles como uma prova indubitável daquilo que ele era. Pois se nós esquecemos, depois da morte, daqueles mesmos a quem tanto admiramos em vida, como é possível que aqueles que haviam desprezado Jesus Cristo durante sua vida, o tenham visto como um Deus depois de sua morte, se ele não passasse de um puro homem? Como eles se deixariam imolar por ele, se não tivessem provas seguras de sua ressurreição?

4.      Eu lhes digo isso, irmãos, não para lhes causar uma admiração estéril, mas para que vocês imitem essa constância, essa firmeza, essa justiça, a fim de que ninguém desespere de si mesmo, por negligente que tenha sido até agora, e que, segundo a graça de Deus, ninguém ponha sua confiança senão na santidade de sua vida. Se de nada serviu aos apóstolos estarem unidos a Jesus Cristo por laços de pátria, de casa e de parentesco, a menos que fossem recomendáveis por sua virtude, como seríamos nós desculpados de nos gabar de ter irmãos e próximos virtuosos sem nos darmos ao trabalho de imitá-los?

É essa mesma verdade que Davi insinua ao dizer: “Não é o irmão que liberta, é o homem que libertará[15]”. Ainda que Moisés, Samuel ou Jeremias orassem por seus parentes, eles não seriam atendidos. Vejam o que Deus disse a Jeremias: “Não ore mais por esse povo, porque eu não o escutarei mais[16]”. Não se espantem com isso, santo profeta, Moisés ou Samuel, de não serem atendidos pelo Senhor ao rezarem pelos pecadores obstinados, pois foi ele próprio que o declarou. As súplicas de Ezequiel nada conseguiram, e lhe foi respondido como a vocês: “Ainda que Noé, Jó e Daniel se apresentasse diante de mim, eles não salvariam seus filhos e filhas[17]”. Ainda que o patriarca Abrahão orasse por aqueles que permaneciam voluntariamente no vício, e que tornavam suas enfermidades incuráveis, Deus desviaria sua face, e não escutaria suas preces. Fizesse Daniel a mesma coisa, e Deus lhe responderia: “Não chore por Saul”. Ainda que alguém orasse inoportunamente por sua própria irmã, Deus lhe diria, como a Moisés: “Se seu pai lhe cuspisse na cara, não ficaria ela coberta de confusão?[18]”.

Não nos apoiemos preguiçosamente sobre os méritos dos outros. É verdade que as preces dos santos têm muita força, mas apenas quando acrescentamos a elas nossas penitências, e mudamos de vida. Sem isso, o próprio Moisés, que havia libertado seu irmão e seiscentos mil homens da cólera de Deus, não teve poder para libertar sua irmã, embora seu pecado fosse muito menor. Ela só havia murmurado contra seu irmão Moisés, mas o crime dos outros constituís uma impiedade contra o próprio Deus. Eu deixarei que vocês examinem a conduta de Moisés nesse encontro, e passarei a outros assuntos mais difíceis. Pois, por que falar de sua irmã, quando o próprio Moisés, esse grande condutor do povo de Deus, não pôde obter aquilo que desejava, e que depois de mil trabalhos e mil penas, depois de um governo de quarenta anos, Deus lhe recusou entrar na terra prometida?

Qual foi a razão dessa conduta? É porque essa graça, que foi feita a Moisés, não teria sido vantajosa para todo o povo, e poderia se tornar uma ocasião de queda e ruína para um grande número de judeus. Porque, de depois de terem sido libertos da escravidão do Egito, eles deixaram a Deus para seguir Moisés, a quem viam como o único autor de todas as graças, se ele ainda por cima os tivesse introduzido na terra prometida, a quanta impiedade não seriam eles ainda levados? Foi por esse motivo que Deus quis inclusive esconder deles o seu sepulcro.

Também Samuel salvou mais de uma vez o povo judeu, mas não pôde salvar Saul da cólera de Deus. Jeremias não pôde fazer nada pelo povo judeu, embora tenha salvado a outros. Daniel foi capaz de livrar da morte os sábios da Babilônia, mas não pôde livrar os judeus da servidão. Esse profeta conseguiu libertar uns, mas não pôde libertar outros; e vemos no Evangelho que um mesmo homem pôde se libertar por um tempo, mas não pôde em outro; aquele que devia dez mil talentos obteve primeiro a remissão de sua dívida, e a perdeu em seguida. O outro, ao contrário, tendo perdido de início, se salvou depois, como o filho pródigo que, depois de haver dissipado os bens do seu pai, voltou a ele e obteve o perdão por sua falta.

Assim, se formos negligentes e preguiçosos, os outros não poderão nos socorrer; mas se nos vigiarmos, nós mesmos nos socorreremos, e ainda melhor do que o poderão fazer os outros. Deus prefere conceder sua graça às preces que lhe fazemos nós mesmos, do que àquelas que outros fazem por nós, porque a própria aplicação que demonstramos em nosso esforço por desviar sua cólera faz com que nos aproximemos dele com mais confiança, e faz com que regremos nossa vida com mais cuidado. É assim que se fez misericórdia à Cananéia, assim foi curada Madalena, assim o santo ladrão entrou no paraíso, sem que nenhum mediador orasse por eles.

5.       Eu lhes digo isso, irmãos, não para que deixem de orar aos santos, mas para que vocês não se abandonem à negligência, e que, permanecendo em si mesmos como num sono profundo, se contentem em encarregar os demais do cuidado com sua salvação. Quando Jesus Cristo disse “Façam amigos[19]”, ele não ficou por aí, mas acrescentou: com os bens que vocês adquiriram injustamente, a fim de que vocês possam concorrer por si mesmos à obra de sua salvação. Pois com isso ele não está recomendando que a esmola, que é admirável, entre numa conta exata e rigorosa, desde que nos retiremos de nossa iniquidade. Me parece que ele quer dizer: até hoje vocês adquiriram bens por maus caminhos, mas agora empreguem-nos em boas obras. O que ajuntaram com suas injustiças, distribuam segundo a justiça.

Será alguma grande virtude dar o que não é nosso? Mas Deus, no amor extremo que tem pelos homens, leva a sua condescendência até o ponto de nos prometer grandes bens, se os utilizarmos dessa maneira.

Mas nossa insensibilidade é tão grande, que sequer damos de esmola um bem adquirido injustamente, e que, depois de havermos roubado milhões, damos uma pequeniníssima parte disso e nos consideramos quites com tudo. Vocês esqueceram-se do que disse São Paulo: “quem semeia pouco, colherá pouco[20]”? então, por que vocês semeiam com parcimônia? Semear com abundância não significa perder, mas ganhar; não equivale a distribuir, mas a ajuntar. Depois da semente, a colheita; com a semente, a multiplicação.

Se vocês tivessem para cultivar uma boa terra que pudesse render muito, vocês não se contentariam em plantar apenas o trigo que possuem, mas ainda emprestariam para semear o máximo possível, e considerariam que, numa ocasião assim, economizar seria perder. Mas quando vocês têm a cultivar não a terra, mas o céu, que não está sujeito a nenhuma variação de estações, e que infalivelmente rende com juros aquilo que lhe é confiado, vocês hesitam, tremem e não compreendem que economizar é perder, e dispensar é ganhar. Distribuam, a fim de reunir; não juntem por juntar; percam para conservar, e prodiguem a fim de ganhar.

Se for preciso conservar seus bens, não se encarreguem disso vocês mesmos, pois isso seria perder tudo; deixem a Deus em depósito e ninguém lhes poderá tomar. Não façam com que seu dinheiro valorize por vocês próprios, não tentem fazê-lo dar proventos, mas emprestem a maior parte do capital Àquele que não tem necessidade de nada e que, não obstante, está em necessidade por causa de vocês. Deem Àquele que alimenta todas as coisas, mas que passa fome para que vocês não morram de fome. Deem Àquele que se fez pobre que enriquecê-los. Pratiquem essa usura que lhes trará não a morte, mas a vida. A usura mesmo leva ao inferno, mas essa conduz ao paraíso. Uma é feito da avareza, outra da virtude; uma provém da crueldade, a outra da caridade.

Que desculpa nos restará, se rejeitarmos tamanho ganho, tão vantajoso, tão seguro, tão favorável, isento de constrangimento, de apreensão, de reprovação e de perigo, para buscarmos outro, tão vil, tão vergonhoso, frágil e incerto, no qual encontraremos infalivelmente nossa danação eterna? Pois não existe nada mais infame nem mais cruel do que a usura terrestre. O usurário trafica com a infelicidade dos outros. Ele enriquece com sua pobreza; ele exige seus interesses, como se fossem devidos à sua caridade. Ele é impiedoso, mas não quer parecer. Ele parece querer ajudar o pobre, e o oprime; sob uma aparência de humanidade, ele cava cada vez mais o abismo sob os passos de seu irmão. Ele lhe estende uma mão, e com a outra o empurra no precipício. Ele se oferece para socorrer, mas, ao contrário de conduzi-lo a um porto, o atira contra os recifes, e o despedaça nos rochedos.

Mas, me perguntarão vocês, o que poderei fazer? Deverei dar um dinheiro que ganhei, e que me é necessário, a fim de beneficiar a outrem, sem retirar para mim nenhum benefício? Não foi isso que eu disse. Eu quero que todos se beneficiem, o máximo possível, além do que desejam. Quero que, ao invés de ouro, vocês adquiram o próprio céu. Por que vocês haveriam de buscar uma pobreza tão extrema, agarrando-se à terra, e preferindo um pequeno ganho a tão grandes recompensas? Isso não equivale a ignorar a verdadeira maneira de enriquecer?  Quando Deus lhes promete, em lugar de um pouco de dinheiro, todos os bens do céu, e vocês lhe pedem ao contrário, que não lhes dê o céu, mas um pouco de dinheiro, o que é isso, senão pedir que os deixem sempre na pobreza? Ao contrário, quem quer se tornar verdadeiramente rico, prefere os grandes bens aos pequenos; os certos aos incertos, os celestes aos terrestres; os incorruptíveis aos perecíveis; e assim se torna digno de possuir tanto uns como outros. Pois quem prefere a terra ao céu, perderá ambos, mas quem prefere o céu à terra, desfrutará dos dois, e de uma maneira incomparavelmente mais estável e feliz. Desprezemos, portanto, os bens presentes, e não aspiremos senão aos bens por vir, para assim desfrutar dos bens presentes e dos futuros, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder, pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Mateus 1: 23.
[2] Efésios 2: 14.
[3] Isaías 7: 14.
[4] Isaías 8: 3.
[5] Isaías 1: 26.
[6] Salmo 148: 12.
[7] Deuteronômio 22: 27.
[8] Mateus 1: 24.
[9] Gênesis 3: 4.
[10] Salmo 89: 2.
[11] Salmo 71: 7.
[12] Mateus 13: 55.
[13] João 7: 5.
[14] Atos 21: 20.
[15] Salmo 48: 8.
[16] Jeremias 2: 14.
[17] Ezequiel 14: 14.
[18] Números 12: 14.
[19] Lucas 16: 9.
[20] I Coríntios 9: 6.

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