1.
O Evangelista divide em três partes todas essas
gerações, para mostrar aos judeus que todas as suas transformações políticas
não os tornou melhores, que sob todos os governos, aristocrático, monárquico,
oligárquico, eles sempre viveram nas mesmas misérias morais, sem que nem seus
juízes, nem seus reis, nem seus sacerdotes tenham podido avançar sequer um
passo no caminho da virtude.
Mas por que na segunda parte ele passa três reis em sequência? Ou por
que na última, não tendo reportado senão doze gerações, ele conta quatorze? Eu
deixarei a vocês resolver a primeira dessas dificuldades. Pois não é necessário
que o faça sempre, a fim de que vocês não se tornem lentos e preguiçosos.
Passarei, portanto, à segunda. Para mim, creio que ele conta o tempo do
cativeiro como uma geração, e o nascimento de Jesus Cristo como outra, pois
tudo o que aproxima Cristo da humanidade é relatado por nosso Evangelista com
especial cuidado. E ele chama para a lembrança desse cativeiro muito a
propósito, para lhes mostrar que eles não saíram melhores daí, e que era
preciso que o próprio Deus viesse habitar entre eles para os corrigir.
Mas, dirão vocês, São Marcos procede de outro modo: ele não fala nada
a respeito da genealogia de Jesus Cristo, e abrevia tudo; por que isso? Creio
que São Mateus escreveu primeiro do que todos, e foi isso que o obrigou a
relatar exatamente essa genealogia, e a se estender bastante ao longo daquilo
que era mais urgente dizer; por sua vez, São Marcos escreveu depois dele, e
naturalmente abreviou aquilo que o outro já relatara em detalhe, e que todo
mundo conhecia. Vocês arguirão talvez que essa razão não impediu São Lucas de
dar a genealogia do Senhor, e mesmo de forma mais longa do que o fez São
Mateus. A isso eu responderei que, tendo sido alertado por São Mateus, ele
assumiu a tarefa de complementar a relação feita por ele. Como cada um imitava
seu mestre, São Marcos reproduziu o laconismo de São Pedro, e São Lucas a
abundância de São Paulo, que flui e se espalha como um grande rio.
2.
Mas por que São Mateus não diz, como os
profetas, no início de seu Evangelho: “Eis a visão que me apareceu[1]”,
ou: “Eis a palavra que o Senhor me dirigiu[2]”?
é porque ele escrevia para pessoas dóceis e cheias de deferência e atenção. De
resto, os próprios milagres davam testemunho de suas palavras, e os cristãos
para os quais ele compôs seu Evangelho já estavam confirmados na fé. Mas os
profetas não faziam tantos milagres, e eram combatidos por muitos falsos
profetas, aos quais os judeus davam mais crédito do que aos verdadeiros. É por
isso que eles se utilizavam desse tipo de abertura em suas falas.
Se eles fizeram milagres em certas ocasiões, foi por causa dos
estrangeiros e dos bárbaros, a fim de aumentar o número de prosélitos, e para
dar uma marca da onipotência de Deus, para que os inimigos de seu povo não
pensassem tê-los vencido pelo poder de seus ídolos. Assim ficou registrado que,
depois dos milagres operados no Egito, muitos egípcios seguiram os israelitas
no deserto. É o que aconteceu na Babilônia depois do milagre da fornalha, ou da
interpretação dos sonhos. Os milagres brilharam enquanto eles estavam no
deserto, como aconteceu conosco durante o estabelecimento do Cristianismo, logo
que saímos do erro para abraçar a lei do Salvador enraizou por todo o universo.
Depois dessas duas épocas, os milagres se tornaram raros, e por assim
dizer esparsos, tanto entre os hebreus como entre os cristãos; assim é que
Josué deteve o sol no meio de seu curso, e Isaías fez com que ele retroagisse.
Novos milagres também surgiram entre nós, por exemplo, em tempos recentes, sob
o imperador Juliano, o mais ímpio de todos os príncipes. Pois quando os hebreus
pretenderam reconstruir o templo de Jerusalém, vimos sair das fundações um fogo
que pôs em fuga os que ali trabalhavam. Quando esse ímpio levou seu furor a
profanar os vasos sagrados, vimos seu tesoureiro e seu tio, que tinha o mesmo
nome que ele, morrer de repente: um foi comido por vermes, e o outro se viu
perfurado no meio do corpo. Vimos rios deixar de correr nesse país, por causa
dos sacrifícios abomináveis que eram feitos. Vimos, enfim, uma fome se
disseminar por toda a terra, ao mesmo tempo em que esse imperador ímpio nela
espalhava suas desordens. Esses foram grandes milagres. Deus costuma fazer
esses prodígios quando o mal se multiplica sobre a terra, quando vê que os seus
estão nas últimas, e que seus inimigos, embriagados com sua prosperidade, os
tiranizam com violência. Então ele costuma se declarar e assinalar seu poder
por meio de milagres, como ele fez na Pérsia em favor dos judeus.
Fica então claro, pelo que dissemos, que não foi sem razão que o
Evangelista dividiu em três partes a lista dos ancestrais de Cristo. Vejam
agora por onde ele começa cada uma das partes, e onde elas terminam. A primeira
começa por Abrahão, e termina com Davi. A segunda começa com Davi e termina na
transmigração da Babilônia; a terceira começa na transmigração da Babilônia e
termina em Jesus Cristo. Embora no começo dessa genealogia ele nomeie Davi e
Abrahão, um em seguida ao outro, ele não deixa de nomeá-los em sua ordem; se
ele os nomeia juntos e à parte dos demais, é porque esses foram dois homens aos
quais Deus especificamente prometeu o Messias.
Mas, uma vez que o Evangelista fala do cativeiro da Babilônia, por que
não menciona ele o do Egito? É porque os judeus já não temiam os egípcios, mas,
ao contrário, tremiam ao simples nome da Babilônia. A servidão no Egito era
coisa muito antiga, mas a da Babilônia era bem recente. De resto, eles não
foram enviados ao Egito por causa de seus pecados, enquanto que foram
transportados à Babilônia em punição pelos seus crimes e sua idolatria.
Se quiséssemos examinar o sentido dos nomes hebraicos, encontraríamos
aí grandes mistérios, que não são de pouca valia ao entendimento do Novo
Testamento, como nos nomes de Abrahão, de Jacó, de Salomão, de Zorobabel,
porque esses nomes foram dados por razões muito importantes. Mas eu vou deixar
passar essas coisas, para não os entediar com longas derivações, e para chegar
a observações mais importantes.
Depois de haver enumerados todos os ancestrais de Jesus Cristo,
chegando a José, ele não o nomeia simplesmente como os outros, mas acrescenta:
“esposo de Maria”, a fim de nos ensinar com essas palavras que foi por causa de
Maria que ele relatou toda a genealogia de José. Mas para que, lendo as
palavras “esposo de Maria”, não se cresse que houvesse Jesus Cristo nascido
pela via comum do matrimônio, vejam como ele preveniu esse pensamento. Vocês
ouviram como ele nos disse o nome do esposo, o da mãe e o da criança; escutem
agora como se passou esse nascimento.
Ora, Jesus Cristo “nasceu da seguinte maneira”. De que nascimento você
nos contará, santo Evangelista, uma vez que já nomeou todos os ancestrais de
Jesus Cristo? Eu desejo, responderá ele, explicar o modo como ele nasceu. Vejam
como ele excita a atenção do leitor: ele vai contar uma coisa nova e extraordinária,
tomando uma precaução e prometendo dizer o modo como ela aconteceu.
Considerem, eu lhes peço, a ordem admirável que ele manteve naquilo
que ele diz. Ele não relata logo de início o modo como Jesus Cristo nasceu.
Antes ele cuida de nos dizer o quanto Jesus estava distante de Abrahão e Davi,
bem como da transmigração da Babilônia, e assim ele adverte o leitor para ter o
cuidado de estimar os tempos, a fim de se convencer que o Cristo de que se está
falando é o mesmo que foi previsto pelos profetas. Depois de contar as gerações
e avaliar pelo tempo que Jesus Cristo é o Messias, o milagre de seu nascimento
se torna mais fácil de acreditar. Como ele devia dizer uma coisa inusitada –
que Jesus Cristo nasceu de uma virgem – antes de chamar a atenção para a contagem
do tempo, ele cobre delicadamente esse mistério chamando José de “esposo de
Maria”. Depois ele divide a série genealógica, e marca o tempo para permitir ao
leitor considerar que Jesus Cristo é o mesmo de quem o patriarca Jacó predisse
o nascimento quando cessasse a raça dos príncipes de Judá, e que o profeta
Daniel também anunciou ao mundo depois daquelas famosas semanas cujo número
especificou. Com efeito, se contarmos os anos transcorridos desde o
restabelecimento de Jerusalém até Jesus Cristo, encontraremos que esse número é
exatamente igual àquele revelado a Daniel[3].
Mas, então, como é que Cristo nasceu?
Diz o Evangelho, que “José, tendo desposado Maria, sua mãe”. Ele não
diz “a Virgem”, mas simplesmente “sua mãe”, para que o que ele tinha a dizer
fosse recebido com mais facilidade. E depois de ter preparado o leitor e
fazendo-o tomar conhecimento de uma coisa comum e ordinária, ele o choca com
uma maravilha surpreendente, dizendo: “Antes que eles tivessem estado juntos,
ela engravidou, tendo concebido pelo Espírito Santo”. Ele não diz que isso foi
antes de ter ela entrado na casa de seu esposo, porque ela já estava lá. O
costume antigo era o de fazer com que as noivas viessem a viver na casa de seus
futuros maridos; é o que se fazia, no mais das vezes. Vemos que os genros de
Lot moravam com seu sogro e suas esposas. Assim, Maria habitava com José, seu
esposo.
3.
Mas por que não concebeu a Virgem antes de que
José a tivesse esposado? Foi, como eu disse, a fim de que esse mistério
permanecesse oculto, e para que a Virgem permanecesse isenta de toda suspeita.
Ademais, quando vemos um homem tão justo, e que teria tudo para ter ciúmes em
semelhante caso, não apenas não rejeitar nem desonrar sua esposa, mas mantê-la
consigo respeitosamente, e, mais ainda, protegê-la durante sua gravidez, temos
que reconhecer que se ele não estivesse convencido de que se tratava de um
mistério do Espírito Santo, ele jamais a teria conservado junto de si, nem lhe
teria prestado toda a assistência que lhe dedicou.
Essa expressão, “ela engravidou”, é perfeitamente escolhida, pois ela
caracteriza uma coisa extraordinária, surpreendente, inesperada. Não tentem ir
além, nesse mistério, e não busquem mais do que eu já disse aqui. Não
perguntem: como pode o Espírito Santo ter operado essa maravilha na Virgem?
Pois, se é impossível explicar o modo como se dá a geração dos homens, mesmo
quando só age a natureza, como poderíamos nós fazê-lo, quando o próprio
Espírito Santo atua, e de uma maneira tão inefável? Da mesma forma, o Evangelista,
para deter nossa curiosidade e cortar rente todas as questões a respeito,
afirma desde logo que foi Ele que operou tal maravilha. Tudo o que eu sei, diz
ele, é que o Espírito Santo operou.
Que os espíritos curiosos se envergonhem aqui da temeridade com a qual
pretendem explicar o nascimento eterno do Filho de Deus. Pois se esse
nascimento temporal que foi provado por mil testemunhos, que foi predito há
tantos séculos, que, segundo a expressão de São João, “foi visto e tocado com o
dedo”, é, não obstante, inefável, quão desmesurada não será a ousadia dos que
ousam sondar com olhos curiosos o abismo profundo da geração divina? É por isso
que tanto o Arcanjo Gabriel como o Evangelista Mateus não puderam dizer outra
coisa senão que se tratou de uma obra unicament4e do Espírito Santo. Nem um nem
outro tentaram explicar como e de que maneira o Espírito Santo realizou essa
grande obra, porque eles sabiam que esse segredo era inteiramente inexplicável.
Mas, depois que o Evangelho ensinou que Jesus Cristo foi concebido
pelo Espírito Santo, não creiam por isso que compreendem todo esse mistério,
ainda restam muitas coisas que nós ignoramos. Pois como podemos entender que um
Deus infinito pôde se encerrar dentro de sua criatura? Como Aquele que a tudo
contém coube no seio de uma mulher? Como pode uma virgem engravidar e dar à
luz, e ainda assim permanecer virgem? De que modo o Espírito Santo formou esse
templo de carne? Por que não tomou ele toda sua carne da Virgem, mas apenas uma
parte, que cresceu e adquiriu sua forma com a idade?
Pois não podemos duvidar que ele tenha nascido da Virgem, a partir do
que diz o Evangelho: “Que nasceu dela”. Também São Paulo diz: “Deus enviou seu
Filho nascido de uma Virgem[4]”,
coisa que cala a boca daqueles que dizem que Jesus Cristo apenas passou pela
Virgem, como por um canal. Pois se fosse assim, que necessidade teria ele de
ser concebido no seio da Virgem? Que teria em comum conosco, se sua carne fosse
inteiramente diferente da dos homens, por não ter sido tomada da mesma massa que
a nossa? Como seria ele da estirpe de Jessé? Como seria ele um broto e uma
flor? Como seria filho do homem? Como seria Maria sua mãe? Como teria ele vindo
da raça de Davi? Como teria ele tomado a forma de um escravo? Como teria o
Verbo se feito carne? Como poderia São Paulo dizer aos Romanos: “Jesus Cristo
nasceu dos judeus segundo a carne, ele a quem Deus elevou acima de tudo[5]”?
Vemos, por todas essas provas e por muitas outras, que a carne de Jesus Cristo
foi semelhante à nossa e que ele nasceu de uma mãe virgem; mas não podemos ver
como essas maravilhas aconteceram. Não se metam a penetrar aí, recebam
humildemente o que Deus lhes revela, e não busquem com curiosidade aquilo que
ele lhes oculta.
São Mateus não se contenta em dizer que esse nascimento veio
totalment4e do Espírito Santo, e que ele não foi fruto de um matrimônio
ordinário, mas ele o prova também. Pois, para impedir que se dissesse: como
podemos saber isso? Quem jamais viu ou ouviu coisa semelhante? E, para prevenir
a suspeita de que o discípulo houvesse inventado essa ficção a fim de favorecer
seu mestre, ele faz aparecer José, que prova a verdade desse acontecimento
pelas penas que sofreu, como se dissesse: se vocês não quiserem acreditar em
mim, se meu testemunho lhes é suspeito, ao menos creiam naquele que foi esposo
dessa Virgem: “José, diz ele, seu esposo, sendo justo, etc.”. essa palavra,
“justo”, nesse contexto, caracteriza um homem que tinha todas as virtudes, pois
o termo de Justiça pode às vezes ser tomado em particular e se referir a uma só
virtude, como quando se diz: aquele que não é avaro é justo. Mas ele é mais
geralmente tomado como a perfeição de todas as virtudes. A Escritura santa o
emprega sempre nesse último sentido, como quando afirma que um homem é justo e
verídico: “Eles eram ambos justos diante de Deus[6]”,
diz São Lucas a respeito de Zacarias e Isabel.
4.
José, portanto, “sendo justo”, ou seja, sendo
bom e caridoso, “quis deixar Maria secretamente”. O Evangelho nos faz saber os
pensamentos desse santo homem antes que ele conhecesse esse mistério, a fim de
que não duvidemos do que iria se passar quando ele viesse a conhecê-lo. Se
Maria fosse tal como ele acreditava, ela não mereceria apenas ser abandonada e
desonrada em público, como ainda mereceria ser condenada ao suplício ordenado
pela lei. Entretanto, José protegeu não somente a vida, mas a honra da Virgem;
e, longe de puni-la, ele evitou inclusive desacreditá-la. Tanta sabedoria e
virtude é coisa extraordinária; como estava esse santo distante dessa paixão,
que tiraniza os homens com tanta violência! Pois vocês sabem até onde vai o
sentimento do ciúme. Salomão, que o conhecia perfeitamente, disse: “O ciúme do
marido será cheio de furor, ele não perdoará no dia da vingança[7]”.
E também: “O ciúme é duro como o inferno[8]”.
E nós conhecemos muitas pessoas que preferiam morrer do que ser expostas a
essas suspeitas que dilaceram a alma.
Mas aqui havia mais do que uma simples suspeita, porque a gravidez da
Virgem parecia ser uma prova convincente daquilo que ele temia. Mas ele era tão
puro e isento de paixão, que ele não quis sequer afligir Maria com a menor
coisa. Como, de um lado, ele acreditava violar a lei mantendo-a consigo, e, por
outro, desonrá-la e levá-la a julgamento equivaleria a expô-la à morte, ele não
fez nem uma coisa, nem outra, mas adotou uma postura que já era bem superior à
lei antiga. Era bom que, aproximando-se a graça do Salvador, já aparecessem
muitas marcas de uma perfeição mais elevada. Como quando o sol se ergue, e,
antes mesmo que seus raios se mostrem sobre o horizonte, vemos de longe uma
luminosidade que ilumina uma parte da terra, assim Jesus Cristo, antes de sair
do seio da Virgem, já iluminava o mundo antes de nascer. É por isso que, muito
tampo antes desse nascimento, os profetas fremiam de alegria, as mulheres
previram o futuro, e São João, ainda no seio de sua mãe, saltou num excesso de
felicidade. Tal foi também a origem da virtude sublime que José demonstrou
nessa ocasião. Ele não acusou a Virgem, nem a reprovou em nada: ele se contentou
em se separar dela em segredo.
Estando as coisas nesse pé, o embaraço do santo patriarca chegou ao
extremo, até que o anjo apareceu a ele, dissipando todas essas trevas. Podemos
nos espantar por qual motivo o ano não previu antes a perturbação e os pensamentos
de José, e porque ele não o informou desse mistério senão depois que essa
suspeita penetrara no seu espírito.
Por que o anjo não advertiu logo José, como ele advertiu a Virgem
antes que ela concebesse pelo Espírito Santo? Isso dá azo a uma nova
dificuldade. Pois, se o anjo não revelasse nada a José, por que a Virgem, que
soubera de tudo pelo anjo, não lhe esclareceria os fatos, dissipando todas as
suas dúvidas?
Para resolver essas duas questões, direi que o anjo não apareceu logo
a José para que ele não permanecesse incrédulo, e para que ele não tivesse a
mesma desconfiança de Zacarias. Quando vemos uma coisa com nossos próprios
olhos, é fácil crer; do contrário, não cremos tão facilmente. É por isso que o
anjo não preveniu José, e pela mesma razão Maria permaneceu em silêncio. Ela
achava que não seria acreditada pelo noivo, se ela própria lhe anunciasse uma
coisa tão extraordinária, e temia mesmo irritá-lo, dando causa a ele para
dizer-lhe que tal desculpa pretendia apenas encobrir sua falta. Pois se a
própria Virgem, que seria agraciada com tamanha graça, ela mesma mostrou os
efeitos da fraqueza humana, dizendo ao anjo: “Como poderá isso acontecer, se eu
nunca conheci homem?[9]”,
com mais razão poderia São José duvidar desse mistério, se tivesse sabido por
sua esposa, e no mesmo momento em que se lhe tornara suspeita. Eis porque a
Virgem guardou silêncio, e porque o anjo esperou para rompê-lo quando o tempo
fosse propicio e favorável.
5. Por
que, dirão vocês, Deus não teve a mesma conduta em relação à Virgem, anunciando
a ela esse mistério só depois da concepção? Para protegê-la de uma grave
inquietação e uma grande perturbação. Se o mistério de sua concepção divina
fosse operado nela sem que ela tivesse sido prevenida, imaginem a que extremos
ela não chegaria para escapar à infâmia. Pois essa virgem era admirável, e São
Lucas mostra qual era sua virtude, dizendo que diante da saudação do anjo, ela
não se entregou imediatamente à alegria, e nem acreditou levianamente no que
ele dizia, mas que “ela ficou perturbada, e se perguntava qual o significado
dessa saudação[10]”.
Sim, uma virgem tão pura e santa poderia morrer de arrependimento à
simples vista do opróbrio que a ameaçava. Com efeito, a quem ela poderia fazer
crer que sua gravidez não provinha de outra causa que não do adultério? Foi
então para evitar essa desordem que o anjo veio encontrá-la antes que ela
tivesse concebido Jesus Cristo. Era soberanamente bom que o seio puríssimo no
qual o Criador do mundo haveria de se encarnar não fosse alterado por nenhuma
perturbação, e que a alma daquela que fora escolhida para participar desse
grande mistério conservasse sempre uma paz profunda. Essas são as razões pelas
quais o anjo falo a Maria antes da concepção, e a José apenas quando a gravidez
já ia avançada.
Algumas pessoas pouco inteligentes disseram que existe aí uma
contradição, porque São Lucas diz que foi a Maria, e São Mateus que foi a José
que o anjo anunciou o mistério da Encarnação. Mas elas não percebem que essa
revelação foi feita a um e outro; e essa é uma regra que devemos guardar a
seguir, a fim de conciliar as muitas passagens nas quais os Evangelistas
parecem se contradizer.
Assim é que o anjo veio encontrar José quando esse estava perturbado;
ele esperou para lhe falar pela razão que mencionei, e para ressaltar a
grandeza de sua virtude. Mas o mistério deveria se cumprir, e ao final o anjo
apareceu: “José, diz o Evangelho, estava imerso em pensamentos, quando o anjo
do Senhor lhe apareceu num sonho”. Considerem a moderação desse santo homem!
Não apenas ele não puniu sua esposa, como sequer revelou seus pensamentos
àquela de quem suspeitava. Ele guardou todos esses movimentos em seu coração,
escondendo da própria Virgem seus ressentimentos e suas penas. Pois o Evangelho
não diz que ele quis expulsá-la de sua morada, mas que ele quis deixa-la em
segredo, tão doce e moderado era esse homem.
“Enquanto José estava imerso em pensamentos, o anjo lhe apareceu em
sonhos”. Por que não manifestamente como aos pastores, a Zacarias e à Virgem?
Porque José tinha muita fé, e não necessitava de uma revelação mais clara. Para
a Virgem, em razão das grandes coisas que deveriam ser anunciadas a ela, coisas
muito mais inacreditáveis do que tudo o que foi dito a Zacarias, era preciso
não somente preveni-la antes do cumprimento, como fazer-lhe uma revelação
manifesta. Os pastores, homens grosseiros, precisavam de uma visão clara. Mas
José, que vira a gravidez de Maria, que estava perturbado por suspeitas
incômodas, e pronto para trocar sua dor por alegria, se lhe fosse dada uma
abertura, ele receberia de todo coração a revelação do anjo. O anjo então
aguardou até a suspeita para cumprir sua mensagem, porque essa disposição de
espírito deveria inclinar José a crer mais facilmente no que ele tinha a dizer.
Com efeito, José não revelara suas suspeitas a ninguém, concentrando-as em seu
coração, e então ouviu o anjo lhe falar: não seria essa uma prova indubitável
de que o próprio Deus o enviara, Deus, o único que sonda o fundo dos corações?
Considerem então quão sábia foi essa conduta, porque ela serviu para
mostrar a excelência da virtude de José, para dispô-lo à fé no momento em que
lhe fosse feita a revelação, e para tornar a história evangélica mais crível,
mostrando que José passou por todos os sentimentos que um homem deveria
necessariamente experimentar em semelhante circunstância.
6.
Mas como o anjo o persuadiu? Escutem e admirem
com que sabedoria ele lhe falou: “José, filho de Davi, não tema tomar Maria
como sua esposa”. Primeiro ele nomeia a Davi, de quem o Messias deveria nascer;
de uma só vez ele acalma duas dúvidas fazendo com que se lembrasse, pelo nome
de um de seus ancestrais, da promessa que Deus fizera a todo o povo judeu. De
resto, ele indica o porquê de chamá-lo de “filho de Davi”, acrescentando: “não
tema”. Deus não agiu assim em outra ocasião que nos marca a Escritura. Com
efeito, tendo Abimeleque cultivado em si pensamentos ilícitos a respeito da
esposa de Abrahão, Deus lhe falou de um modo terrível e ameaçador, ainda que
esse príncipe tenha agido por ignorância e sem saber que Sara era esposa de
Abrahão. Mas Deus aqui fala com doçura, pois há uma enorme diferença entre as
coisas que se passavam num e noutro caso, entre a disposição de Abimeleque e a
de José. Pois a disposição de José não merecia reprimenda alguma.
Essas palavras, “não tema”, mostram que ele temia ofender a Deus
conservando consigo uma adúltera, e que sem isso ele jamais pensaria em
deixá-la.
Eu repito, estando José entretido com seus pensamentos mais secretos,
com seus sentimentos mais íntimos, o anjo veio para provar, e para provar
suficientemente, que ele vinha da parte de Deus. Mas quando ele disse: “Não
tema tomar Maria”, por que acrescenta ele: “como sua esposa”? Foi para
justificar a Virgem com uma só palavra, pois ele não daria esse título a uma
adúltera. O termo “esposa” aqui significa “noiva”, assim como a Escritura chama
de genro àqueles que ainda não estão senão nas vésperas do amanhã. Com essas
palavras “tome Maria”, que quis ele dizer? Nada, senão que José mantivesse
Maria em sua casa; pois ele já havia se resolvido a deixá-la. Mantenha, lhe diz
o anjo, sua esposa, a quem você pensa deixar, pois foi Deus que lha deu, e não
seus parentes. Ele a deu não pelos usos ordinários do matrimônio, mas apenas
para permanecer com você, e ele a uniu a você por intermédio de mim, que lhe
falo.
Jesus Cristo confiou sua mãe a José, como mais tarde a recomendaria a
João, seu discípulo. O anjo não mencionou senão obscuramente o que se passava
e, sem falar a José da suspeita que ele havia formulado, ele a destruiu de uma
maneira mais nobre e mais benéfica, tirando esse santo homem de todos os seus
temores e lhe explicando o segredo dessa concepção, mostrando a ele que aquilo
que lhe fazia recear ficar com Maria, e que o levava a deixá-la, deveria ao
contrário, sendo ele justo como era, fazer com que ele a conservasse junto de
si. Não apenas, disse o anjo, ela não fez nada contra a lei de Deus, como ela
concebeu de uma maneira que está acima das leis da natureza. Deixe de lado
todos os seus temores e alegre-se imensamente.
“Pois o que está nela por nascer, vem do Espírito Santo”. Palavras
surpreendentes, e que ultrapassam todos os pensamentos dos homens e todo o
poder da natureza! Como pôde então um homem, que jamais ouvira nada parecido,
crer nessa verdade? É porque o anjo lhe descobriu tudo o que ele ocultava no fundo
de seu coração, tudo o que ele sofria, tudo o que temia, e tudo o que ele
estava determinado a fazer; ora, esse conhecimento tão extraordinário e tão
divino que o anjo tinha dos mais secretos pensamentos de José o levaram a
acreditar. E o anjo não se serviu apenas do passado para assegurar-lhe, mas
também do futuro.
“Ela dará à luz um filho, disse ele, a quem você dará o nome de
Jesus”. Pois, embora essa criança tenha sido concebida pelo Espírito Santo, não
pense que você está dispensado de cuidar dela, e de servir a ela em todas as
coisas. Pois, embora você seja estranho a esse nascimento, e que Maria
permaneça sempre perfeitamente virgem, eu lhe dou em relação à criança a
qualidade de pai, em tudo o que não ferir a de virgem, e eu lhe dou o poder de
dar-lhe o nome. Será você que lhe dará seu nome; e, ainda que ele não seja seu
filho, você não deixará de ter por ele a afeição e o cuidado de um pai. É por
essa razão que eu lhe permito dar-lhe o nome, a fim de que você se uma mais
estreitamente a essa criança.
E para impedir que isso faça crer que José fosse verdadeiramente seu
pai, vejam o que se segue, e com que exatidão o anjo lhe fala: “Ela dará à
luz”. Ele não diz que ela dará à luz por causa dele, mas diz indeterminadamente
que ela dará à luz, porque ela não dará à luz Jesus Cristo por causa de José,
mas por todos os homens.
7.
Pela mesma razão o anjo traz do céu a José o
nome que ele deverá dar à criança; ele mostra assim o quão admirável viria a
ser Aquele a quem o próprio Deus cuidou de nomear. E o nome que ele lhe deu não
é um nome comum, mas um nome que encerra como que em um tesouro a soma de todos
os bens. É por isso que o anjo interpreta o nome, para excitar ainda a fé de
José pela esperança dos grandes bens que ele lhe promete. Pois o homem se volta
naturalmente para aquilo que lhe agrada, e crê naquilo que deseja.
Depois que o anjo, para persuadir José, se serviu do presente, do
passado e do futuro, e da glória infinita prevista para a criança, ele ainda
selou todo o dito pelo testemunho dos profetas. Mas ele o fez preceder do
anúncio dos grandes bens que esse nascimento deveria trazer ao mundo. E quais
são esses bens? Trata-se da reconciliação dos homens com Deus, e a destruição
do pecado.
“Porque ele salvará seu povo de seus pecados”. Essa graça que ele
promete é uma graça bastante nova. Ele não promete apaziguar as guerras,
derrotar os bárbaros e os inimigos visíveis: ele promete destruir e curar o
pecado, cuja ferida foi sempre incurável para todos os homens
Mas, dirão vocês, por que essa expressão, “seu povo”? Será que essa
graça não se estende a todas as nações? Mas foi para não causar um espanto
desmedido; de resto, esse termo, se o virmos com cuidado, compreende também
todas as nações da terra. Pois não são apenas os judeus que constituem o povo
de Jesus Cristo, mas todos os que vêm a ele e que conhecem seu nome. Observem
ainda como o anjo prenuncia a grandeza de Jesus Cristo, dizendo que “ele
salvará seu povo de seus pecados”. Isso equivale a declarar expressamente que a
criança de que ele falava não seria um rei da terra, mas um Rei do céu, e que
se tratava ali de um Filho de Deus, porque só a Deus cabe redimir os pecados.
Portanto, uma vez que Deus nos cumulou com tão grandes graças, vivamos
de modo a jamais desonrarmos tamanho dom. pois se mesmo antes de termos
recebido um favor tão inefável já merecíamos ser punidos por nossos pecados,
quanto mais não mereceremos agora, que o recebemos? Eu não digo isso a vocês
sem motivo. Eu o digo, porque vejo muitos que vivem de uma maneira mais
relaxada depois do batismo do que quem nem chegou a recebê-lo, e que não
mostram ser cristãos por nenhum sinal. Não conseguimos distinguir, nem nas
assembleias públicas, nem na própria Igreja, o fiel daquele que não o é. Só o
que distingue uns dos outros é que, no momento de celebrar os santos mistérios,
uns são retirados do templo, enquanto outros permanecem. Mas não deveria ser o
lugar, mas a vida de cada um, a mostrar quem ele é.
As dignidades do mundo se fazem reconhecer por sinais exteriores; mas
os sinais daquilo que somos, nós cristãos, devem vir da alma e do fundo do
coração. Um fiel deve fazer ver o que ele é, não pela simples participação nas
coisas santas, mas pela santidade e a renovação de sua vida. É preciso que o
cristão, segundo o Evangelho, seja a luz e o sal do mundo. Mas se vocês não
conseguem iluminar nem a si próprios, e se não impedem sua própria corrupção,
como poderei eu julgar que são cristãos? Será por terem sido regenerados pelas
águas sagradas do batismo? Isso os torna ainda mais culpados. Pois quanto mais
excelente é o que receberam, mais isso atrairá suplícios sobre aqueles cuja
vida não corresponder à dignidade de tão alto dom. é preciso que um cristão
mostre o que ele é, não só pelo que recebeu de Deus, mas ainda por aquilo que
ele oferece de si a Deus. É preciso que sua virtude brilhe no exterior por seu
modo de andar, pelo seu olhar, por sua discrição, por suas palavras.
Eu lhes digo isso para que sejamos temperantes em todas as coisas, não
para agradar os homens, mas para edificá-los. Mas quando eu procuro em vocês as
marcas daquilo que são, eu as encontro contrárias. Se eu julgar pelo lugar, eu
os vejo passar os dias nos espetáculos, no circo, no teatro, nas assembleias
públicas e na companhia de pessoas corruptas. Se eu considero seu exterior, eu
vejo risos imoderados, efusões de alegria semelhantes às das mulheres perdidas.
Se me detenho sobre seus hábitos, não consigo diferenciá-los dos hábitos dos
comediantes. Se eu julgá-los pelos que os seguem, não vejo senão aduladores e
pessoas voluptuosas. Se eu examino suas palavras, não vejo nelas nada de útil,
de sério, nada que lembre aquilo que somos. E se eu julgo pela sua mesa, é aí
que eu encontro os maiores motivos para acusá-los;
8.
O que me resta para reconhecê-los como cristãos,
se que tudo o que vocês mostram ilustra o contrário? Mas que digo eu,
chamando-os cristãos? Sequer sei se são homens. Pois, se vocês são, como diz a
Escritura, recalcitrantes como asnos, se são agitados como touros novos, se
correm atrás das mulheres como cavalos atrás das éguas, se são ávidos e gulosos
como ursos, se engordam como burricos, se são rancorosos como camelos,
predadores como lobos, coléricos como serpentes, se picam como escorpiões,
dissimulam como raposas, se estão cheios de veneno e fúria como a áspide e a
víbora, enfim, se são maus como o demônio, e se deleitam em fazer uma guerra
cruel contra seus irmãos – como posso colocá-los no status de homens, uma vez
que não distingo em vocês os traços e os caracteres da natureza dos homens?
Eu tento distinguir um cristão de um catecúmeno, mas ainda tenho
dificuldades em distinguir um homem de um animal. Que posso eu dizer do que
vocês são? Devo classificá-los como animais? Os animais não possuem nenhum
vício que não lhes seja particular; mas vocês parecem ter todos os vícios, e
assim superam em irracionalidade a todos os animais. Eu poderia chamá-los de
demônios! Mas o demônio não é escravo, nem da intemperança no comer, nem das
riquezas. Assim, se vocês se colocam abaixo dos animais e dos demônios, como
posso chamá-los de homens, e, se vocês não merecem ser chamados de homens, como
poderei chamá-los de cristãos?
Mas o que é ainda mais deplorável, é que, estando num estado tão
funesto, não somos capazes sequer de compreender quanto é repulsiva e desforme
nossa alma. Quando vocês se penteiam, têm o cuidado de que o cabelo fique
absolutamente em ordem. Vocês consultam o espelho, pedem a opinião dos que
estão presentes e do próprio cabelereiro, para saber se tudo está bem ajustado,
e, mesmo sendo velhos, vocês não enrubescem de ser levianos e ardentes nessas
tolas paixões, como adolescentes. E, mesmo quando nossa alma se mostra tão
desfigurada e desforme quanto os monstros das fábulas, tão medonhas como uma
Sila ou uma quimera, não nos preocupamos absolutamente com isso. E, no entanto,
a alma possui seu próprio espelho, tanto quanto o corpo, e um espelho muito
mais claro e benéfico. Ele não mostra apenas nossa repulsa, como mostra também
o modo de mudá-la, se o quisermos, em rara beleza.
Esse espelho, meus irmãos, é a memória dos Santos, a história de suas
vidas bem-aventuradas, a leitura da santa Escritura, e a lei de Deus. Se vocês
se aplicarem a considerar a imagem desses santos homens, vocês logo
reconhecerão a feiura de suas almas, e, uma vez que a tenham reconhecido, já
não precisarão mais desse espelho para se livrar dela. Esse é o poder do uso
que fazemos dele, e essa a facilidade com que ele nos permite nossa conversão.
Que ninguém mais permaneça nesse estado animal. Pois, se o servidor
não tem o direito de entrar na casa do pai, como poderá sequer se aproximar da
porta aquele que se tornou como um animal? Mas que digo eu, daquele que se
tornou como um animal? Esse tipo de pessoa é pior do que os animais. Os
animais, ainda que naturalmente ferozes, podem ser domesticados pelos
artifícios dos homens, mas vocês, que os tornaram dóceis (de selvagens que
eram), que desculpa terão a apresentar, uma vez que se despojaram da doçura que
lhes era natural, para se revestir da crueldade dos animais, depois que
forçaram os animais a deixar sua crueldade natural para imitar a docilidade dos
homens?
Vocês domesticam o leão, e o tornam tratável; mas vocês mesmos se
tornam mais furiosos e intratáveis do que o leão. Esse animal tem dois grandes
obstáculos para ser domesticado: um, por ser irracional, e outro, por ser cheio
de furor. Mas a habilidade que Deus lhes deu faz com que vocês encontrem o meio
de torná-lo dócil, e de forçar sua natureza própria. Então, como é possível que
vocês, que se fazem mestres da natureza dos animais, traiam a si próprios, à
sua natureza e à sua razão? Se eu lhes entregar um homem qualquer para ser
domesticado, não estarei lhes pedindo nada de difícil, ainda que vocês possam
dizer que não são donos da vontade de outrem, e que aquilo que eu lhes peço não
depende de vocês. Mas aqui eu peço que vocês domestiquem sua própria natureza,
e que a dominem.
9.
Que desculpa restará a vocês, que ardiloso
pretexto apresentarão, vocês que de certo modo obrigam um leão a se tornar
homem, ao mesmo tempo em que não se preocupam em, sendo homens, se comportarem
como leões? A ele vocês dão o que a natureza lhe recusou, e negam a si próprios
o que a natureza lhes deu. Vocês elevam as bestas ferozes à dignidade do homem,
e descem de seu próprio trono, para se rebaixarem ao estado de animais.
Considerem a cólera como um animal feroz, e tentem domesticá-la por
meio da doçura, com o mesmo cuidado com que outros domesticam leões. Essa
paixão tem seus dentes e unhas, com os quais está armada; se não for
domesticada, fará tudo em pedaços. O leão e a víbora não despedaçam tantas
entranhas quanto a cólera com suas unhas de ferro. Ela não tiraniza apenas o
corpo, mas passa à alma, atacando o que ela possui de mais são, corrompendo
nela tudo o que é puro, paralisando sua força e tornando-a inútil a tudo. Se
aqueles que têm as entranhas corroídas de vermes não podem sequer respirar,
como poderemos nós formar algum pensamento santo e generosos, enquanto
entretemos em nós essa paixão, que, como uma víbora cruel, nos corrói o
coração?
Qual será o meio, dirão vocês, para
expulsar de nós essa besta cruel? É beber a poção capaz de matar, dentro de
nós, todos esses vermes e serpentes. Que poção é essa, responderão vocês, e
como poderá ela possuir tanta força? É o sangue precioso do Salvador, se o
tomarmos com santa confiança. Pois não existe doença que não ceda a esse
remédio.
Mas devemos acrescentar o amor e a prática da palavra de Deus, com o
cuidado de darmos esmolas. É com esses remédios que faremos morrer todas essas
paixões que envenenam a alma. É assim que viveremos verdadeiramente, ao passo
que agora mal nos diferenciamos dos mortos. Pois é impossível que nossa alma
viva enquanto esses vícios viverem em nós. Trabalhemos, portanto, sem descanso,
para sufocá-los. Pois se não nos apressarmos em fazê-los morrer aqui, eles nos
farão morrer no outro mundo e mesmo antes de nossa morte, e nos farão sofrer
mil males.
Cada uma dessas paixões é cruel, violenta e insaciável, e nos devora
todos os dias sem nos dar descanso. Seus dentes, como diz a Escritura, são os
dentes de um leão, e ainda mais cruéis. O Leão abandona sua presa quando está
saciado, mas essas paixões não se saciam jamais e não deixam jamais a quem
começaram a devorar, até que o tenham tornado semelhante a um demônio. Elas
possuem tamanho domínio sobre seus escravos, que exigem deles a mesma sujeição
que São Paulo tinha voluntariamente por Jesus Cristo, desprezando, por ele, o
inferno e o céu. Quando um homem é possuído pelo amor das belezas carnais, ou
pelas riquezas e a glória, ele se ri do inferno e despreza o céu para não fazer
senão o que sua paixão lhe ordena.
Depois disso, poderemos duvidar daquilo que São Paulo disse sobre a
violência do amor que ele tinha por Jesus Cristo? Pois, se existem pessoas que
servem a suas paixões com igual violência, porque diremos que é inacreditável o
ardor que o santo Apóstolo testemunhava pelo serviço do Salvador do mundo? E de
onde vem que nosso amor por Jesus Cristo seja tão fraco, senão do fato que
esgotamos toda a força de nossas almas nessas paixões vãs, que arrebatamos os
bens dos outros, que somos avaros e escravos da vanglória, que é a última e
mais desprezível de todas as servidões? Enquanto vocês estiverem possuídos por
essa paixão, por mais que os estimem grandes e ilustres, vocês não estarão um
milímetro acima do último dos homens. Sua grandeza, ao contrário, será sua
confusão e sua vergonha. Esses aduladores que se apressam louvá-los, se
aproveitam de vocês na medida mesma que vocês amam seus elogios. Assim,
buscando se elevar, vocês descem até o ridículo. Pois o amor à vanglória é uma
coisa má e blasfema por si só.
10. Assim,
se louvamos e adulamos um homem que se gaba de sua impudicícia, nos tornamos
mais criminosos por causa desses elogios, do que ele próprio que comete tais
brutalidades; e quando louvamos aqueles que buscam a glória, não os tornamos
mais louváveis, mas nos tornamos mais culpados do que eles.
Por que vocês buscam com tanta paixão aquilo que produz um efeito
contrário ao que vocês desejam? Se vocês quiserem possuir a glória,
desprezem-na e se tornarão verdadeiramente dignos de glória. Por que, sendo
cristãos, vocês entram no estado do rei Nabucodonosor, do qual fala a
Escritura? Esse príncipe fez erguer uma grande estátua para si. Ele imaginava
que essa figura vã seria sua honra, e, embora ele estivesse vivo e essa imagem
estivesse morta, ele acreditou que aquela coisa que não possuía vida daria
glória a ele, que vivia. Quem não ficará admirado com tanta extravagância e
loucura? Quanto mais ele queria se elevar, mais se rebaixava. Ele colocou sua
confiança numa coisa inanimada e sem alma, mais do que em si próprio, que era
vivo e animado. Ele pretendeu divinizar a madeira e o ouro, e se tornou ainda
mais ridículo na medida em que imaginava adquirir mais estima por meio dessa
matéria vil exterior a ele, do que por sua própria virtude e pelo mérito de sua
vida. É como se um homem se visse como mais estimável por possuir uma grande
casa com uma escada magnífica, do que por aquilo que ele é como homem.
Muitos, ainda hoje, imitam esse príncipe. Ele queria se fazer estimar
por meio de uma estátua, enquanto esses pretendem se destacar por suas roupas,
por seus cavalos, por suas carruagens soberbas, ou por suas casas com
magníficas colunas. Pois, tendo perdido a glória própria à dignidade de homens,
eles buscam de todos os lados uma glória miserável digna do maior desprezo.
Não foi assim que aqueles três generosos servidores de Deus buscaram
se diminuir naqueles tempos. Eles se agarraram à honra verdadeira; jovens,
estrangeiros, cativos, escravos e sem que nada possuíssem, eles não deixaram de
ser mais gloriosos do que aqueles que estavam no cume das honras e dos bens do
mundo. Todas as riquezas de Nabucodonosor, sua estátua, seus governadores de províncias,
seus oficiais, suas tropas guerreiras inumeráveis, enfim, tudo o que ele
poderia possuir em verdade ou em aparência, não o tornaram tão grande quanto
ele queria. E àqueles três jovens, que nada possuíam dessas coisas, bastou-lhes
sua virtude, e, por pobres que fossem, se tornaram, vis a vis com esse príncipe
enfeitado de púrpura e com seu diadema, como a luz do sol em relação a uma
pedra sem brilho algum.
Aqueles jovens cativos e escravos admiráveis foram conduzidos diante
de todo o mundo. Eles foram apresentados diante do rei, que fez acender diante
de seus olhos uma fornalha espantosa. Tudo o que havia de maior no reino, os
governadores, os generais, os sátrapas, e todo o aparelhamento do diabo se
encontrava ali. O som das trombetas e dos clarins, e de todos os instrumentos
de música sacudia o ar e os ouvidos, de todos os lados. A fornalha foi acesa e
suas chamas subiram até as nuvens. Tudo estava repleto de terror e tremor,
somente aqueles três jovens permaneceram intrépidos. Eles se riram daquele
aparelho trágico como se fosse um brinquedo de crianças. Eles mostraram uma
coragem e uma humildade admiráveis. E falando com aquele príncipe com uma voz
que se elevava acima do barulho das trombetas, eles lhe disseram: “Saiba, ó rei
– eles o chamaram assim, embora ele fosse um tirano, porque seu objetivo não
era o de dizer-lhe palavras injuriosas, mas apenas dar-lhe provas de sua
piedade; por isso eles não fizeram um discurso longo, mas usaram poucas
palavras – existe um Deus no céu, e ele pode nos livrar de suas mãos[11]”.
Por que você tenta nos assustar com essas tropas tão numerosas, com essa
fornalha ardente, com essas espadas que nos ameaçam e com esses guardas que nos
cercam? O Deus a quem adoramos está acima de tudo isso, e ele tudo pode.
Mas, como eles sabiam que Deus também poderia permitir que fossem
queimados, e temendo passar por mentirosos caso isso acontecesse, eles
acrescentaram: “E ainda que Deus não queira nos tirar de suas mãos, saiba, ó
rei, que ainda assim não adoraremos o seu deus[12]”.
11. Se
eles tivessem dito: se Deus não quiser nos libertar, será por causa dos nossos
pecados, esses ímpios não teriam acreditado neles. É por isso que eles não
disseram mais nada então; mas eles o fizeram dentro da fornalha, quando
confessaram e repetiam sem cessar que haviam pecado, e que estavam sendo
punidos por seus pecados. Diante do rei eles não disseram nada parecido, mas
simplesmente declararam que se tivessem que ser queimados, não trairiam sua
religião. Pois eles não buscavam sua recompensa, mas a tudo faziam por amor a
Deus. E, no entanto, eles estavam em servidão, eles gemiam em seu cativeiro, e
não desfrutavam de nenhuma doçura da vida: eles haviam perdido seu país, sua
liberdade e todos os seus bens.
E não digam que eles eram honrados na corte daquele príncipe. Pois,
santos e justos como eram. Teriam preferido mil vezes mendigar seu pão em seu
país, e ter a alegria de adorar a Deus em seu templo, do que ser honrados no
meio desses bárbaros. Eles diziam, como Davi: “Prefiro ser abjeto e vil na casa
de Deus, do que habitar na tenda dos pecadores. Um só dia, meu Deus, vale mais
em teu templo, do que mil dias em outra parte[13]”.
Eles teriam preferido cem vezes ser os últimos no povo de Deus, do que reinar
na Babilônia. Eles demonstraram sobejamente isso pelo que disseram na fornalha,
onde eles testemunharam que morar naquele país lhes era insuportável. Pois
qualquer honra que pudessem lhes ser dadas na mansão daquele príncipe não lhes
tiraria a dor de ver seus irmãos nos últimos degraus da infelicidade. E é
próprio dos santos jamais preferir a glória e a honra, ou qualquer outra coisa,
à salvação e ao benefício de seus irmãos.
Considerem então o modo como esses santos, quando estavam no meio das
chamas, oravam por todo o povo, enquanto que nós esquecemos, nós, de orar por
nossos irmãos, quando estamos num estado muito mais tranquilo. Ao interpretar o
sonho do rei, eles não pensaram em seus interesses, mas no bem dos outros, pois
eles mostraram o quanto desprezavam a morte. Eles se ofereceram para dobrar a cólera
de Deus em todas as ocasiões, e, não crendo ser merecedores por si mesmos,
recorriam aos méritos de seus pais, e diziam não poder oferecer a Deus senão
“um espírito contrito e um coração humilhado[14]”.
Imitemos, caros irmãos, a esses jovens. Existe ainda hoje uma estátua
de outro que o demônio nos obriga a adorar, e é o amor ao dinheiro: mas nós
devemos permanecer firmes. Que o ruído das trombetas, o concerto dos
instrumentos, que nem a atração desses bens enganadores possam nos tocar. Ainda
que tenhamos que cair na fornalha da pobreza, entremos nela ao invés de adorar
esse ídolo, e descobriremos que suas chamas se tornam um orvalho refrescante.
Não tenham medo da pobreza, ainda que nós a chamemos de fornalha. Pois,
atirados à fornalha, aqueles jovens se tornaram mais puros e brilhantes; ao
contrário, as chamas que dali saíam consumiram aqueles que haviam adorado o
ídolo.
Tudo se passou então ao mesmo tempo e visivelmente; mas Deus ainda
hoje realiza essas coisas parcialmente, e reserva o restante para a outra vida.
Os que preferem sofrer na fornalha da pobreza a ser idólatras das riquezas, já
brilham aqui em baixo, mas brilharão ainda mais no céu; ao contrário, aqueles
que ajuntam riquezas de iniquidade, sofrerão então os maiores suplícios. Lázaro
saiu dessa fornalha tão brilhante como aqueles três jovens. E o rico malvado,
que estava entre os que adoravam o ídolo, foi condenado ao fogo eterno.
O que aconteceu aos três jovens não passou de uma imagem do futuro.
Assim como, atirados na fornalha, eles não experimentaram nenhum mal, e dela
saiu um fogo que devorou os que estavam fora, assim os santos passam sem dor
pela fornalha da pobreza, e se tornam até mais brilhantes, ao passo que a chama
se lançará sobre os idólatras da riqueza com mais violência que os animais mais
selvagens, arrastando-os ao abismo do fogo eterno.
Se alguém não crer no inferno, que lance um olhar sobre a fornalha da
Babilônia. Que a crença nas coisas passadas o ajude a acreditar naquelas que
estão por vir, e que não tema a fornalha na qual o pobre está sendo provado,
mas aquela onde os pecados serão punidos. Na primeira, não existe senão paz e
orvalho; na última, chamas e dor. Os anjos estão na primeira para diminuir o
ardor, e os demônios na segunda para tornar o fogo ainda mais ardente.
12. Que
os ricos escutem isso, eles que acendem a fornalha da pobreza, para nela
consumir os pobres. Os pobres não encontrarão nela nada que os prejudique,
porque Deus os fará provar da doçura do orvalho celeste, mas os ricos serão
presa das chamas que eles acenderam com suas próprias mãos. O anjo desceu para
aliviar aqueles jovens. Da mesma forma, tentemos aliviar os que estão na
fornalha da pobreza. Que nossas esmolas sejam para eles como um orvalho
refrescante. Afastemos deles as chamas que nos cercam, a fim de podermos
participar da coroa que Deus lhes prepara. É assim que mereceremos afastar de
nós o fogo do inferno, por meio dessa palavra que Jesus Cristo nos dirá: “Eu
tive fome, e vocês me alimentaram[15]”,
as quais, no último dia, será para nós um orvalho divino a nos refrescar em
meio às chamas.
Vamos com nossas esmolas até o fundo dessa fornalha. Ali veremos esses
pobres do Evangelho que caminham em meio às chamas. Veremos aí um prodígio
novo, um homem que, no meio do fogo da indigência, canta hinos a Deus e lhe
rende ações de graças, e que, pressionado pela miséria mais extrema, não abre a
boca senão para louvá-Lo. Pois os que sofrem sua pobreza em ação de graças são
iguais em mérito àqueles três santos jovens, pois a pobreza é mais terrível e queima
mais do que o próprio fogo. Mas o fogo não queimou aqueles jovens, ele consumiu
apenas suas cadeias assim que eles começaram a louvar a Deus; da mesma forma,
se, quando vocês caírem na pobreza, vocês derem graças, suas cadeias serão
queimadas, e o fogo que os cerca se extinguirá. E, se ele não se extinguir, ele
se transformará, por um milagre ainda maior, num orvalho, como aconteceu então,
porque, sem que o fogo houvesse sido extinto, os três jovens não deixaram de
sentir um frescor agradável, que os impediu de queimar. É o que vemos nos
pobres do Evangelho, que encontram mais repouso em sua pobreza do que os ricos
em toda a sua riqueza.
Não fiquemos perto dessa fornalha sem entrar nela, considerando sem
compaixão as necessidades dos pobres, a fim de não sermos envolvidos na
desgraça sofrida pelos ministros do príncipe. Se vocês descerem ao fundo desses
fogos, eles não o tocarão mais do que àqueles três jovens; mas se, olhando do
alto, vocês desprezarem os que sofrem, vocês serão engolidos. Desçam, portanto,
a essa fornalha para não serem queimados. Não fiquem do lado de fora, com medo
que as chamas os ataquem. Se vocês estiverem com os pobres, elas não os queimarão,
mas se se distanciarem deles, elas os devorarão.
Não se afastem daqueles que sofrem nessas chamas, e quando o demônio
ordenar que sejam lançados na fornalha os que se recusam a adorar o ouro, não
estejam entre aqueles que atiram os outros lá dentro, mas no meio dos que são
atirados, a fim de estar também entre os que serão salvos, e não entre os que
serão queimados; pois não há orvalho mais abundante, nem mais doce, do que o
desligamento das riquezas e a companhia dos pobres. Os mais ricos dentre os
homens são aqueles que pisoteiam o amor às riquezas; como aqueles santos jovens
se tornaram, pelo desdém com que trataram o rei, mais gloriosos do que o
próprio rei. Se vocês desprezarem tudo o que existe nesse mundo, vocês se
tornarão maiores do que o mundo, como outrora foram os santos, dos quais o
mundo não era digno. Desprezem todos os bens daqui de baixo, para se tornarem
dignos dos bens do céu. Pois é assim que vocês serão grandes nessa vida e
felizes na outra, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a
quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
[1]
Isaías 1: 1.
[2]
Jeremias 2: 1.
[3]
Daniel 8: 14.
[4]
Gálatas 4: 4.
[5]
Romanos 9: 5.
[6]
Lucas 1: 6.
[7]
Provérbios 6: 34.
[8]
Cânticos 8: 6.
[9]
Lucas 1: 34.
[10]
Lucas 1: 29.
[11]
Daniel 3: 17.
[12]
Daniel 3: 18.
[13]
Salmo 83: 11.
[14]
Daniel 3: 39.
[15]
Mateus 25: 35.
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