1.
Não precisaríamos, Irmãos, necessitar do auxílio
das Escrituras, se nossa vida fosse pura o suficiente: então a graça do
Espírito Santo tomaria o lugar de todos os livros. Tudo o que se escreve com
tinta sobre papel, o próprio Espírito imprimiria em nossos corações. Mas como
decaímos desse benefício, devemos no mínimo nos agarrar à prancha de salvação
que nos resta. Aquele primeiro modo de comunicação com Deus valia mais; o
próprio Deus no-lo demonstrou por seus atos, não menos do que por suas
palavras. Ele falou a Noé, a Abrahão e a seus descendentes, a Jó e Moisés, não
por caracteres e letras, mais de modo imediato, por si mesmo; porque a pureza
de coração que encontrou neles os tornara suscetíveis dessa graça. Mas o povo
judeu caiu depois no abismo de todos os vícios, e então foi necessário que Deus
se servisse de palavras e de tábuas, e que ele tratasse com esse povo por meio
da escrita.
Deus manteve no Novo Testamento a mesma conduta que adotara no Antigo,
e fez com os apóstolos da mesma maneira como fez com os patriarcas. Porque Jesus
Cristo não deixou nada por escrito aos seus apóstolos, mas lhes prometeu, ao
invés de livros, a graça de seu Espírito Santo: “Ele vos fará recordar de todas
as coisas[1]”,
disse Ele. Para entender o benefício dessa instrução interior em relação à
outra, basta escutar o que Deus disse por intermédio de seu Profeta: “Eu farei
um novo Testamento, e escreverei minha lei em suas almas, e a gravarei em seus
corações; e assim eles serão todos discípulos de Deus[2]”.
São Paulo, sublinhando também a excelência dessa lei do Espírito Santo, disse: “De
fato, é evidente que sois uma carta de Cristo, da qual nós fomos o instrumento;
carta escrita, não com tinta, mas nas tábuas de carne de vossos corações[3]”.
Mas como, com o passar do tempo, os homens infelizmente de desviaram
do caminho reto, uns pela depravação de sua doutrina, outros pela corrupção de
suas vidas e de seus costumes, tivemos mais uma vez a necessidade de que Deus
nos desse por escrito suas instruções e seus preceitos.
Quão culpados somos! Nossa vida deveria ser de tal modo pura, que sem
necessidade de livros nossos corações fossem expostos ao Espírito Santo, como tábuas
vivas nas quais fosse escrito tudo o que ele quisesse que aprendêssemos; mas,
depois de havermos perdido tão grande honra, e de termos necessidade de que
Deus nos desse suas instruções por escrito, sequer nos servimos desse segundo
remédio que Ele nos concedeu para a cura de nossas almas! Se já constituiu uma
falta termos tornado necessária a Escritura, e de termos deixado de atrair para
nós e por nós mesmos a graça do Espírito Santo, que crime não consiste então sequer
utilizarmos desse novo auxílio para avançarmos na piedade, em desprezarmos
esses escritos divinos, como se fossem coisas vás e inúteis, e em nos expormos
a uma condenação ainda maior por causa dessa negligência e desse desdém? Para
evitar tal infelicidade, leiamos com cuidado a Escritura, e aprendamos de que
modo nos foram dadas, tanto a antiga, como a nova lei.
Vocês abem de que maneira e em que tempo e lugar Deus publicou a antiga
lei. Lembram-se de que foi após a ruína dos Egípcios, no deserto, sobre a
montanha do Sinai, no meio do fogo e da fumaça que se erguiam dessa montanha,
ao som da trombeta, em meio ao brilho dos relâmpagos, ao som do trovão, e
depois que Moisés penetrou na escuridão da nuvem. A nova lei não foi promulgada
desse modo. Não foi nem no deserto, nem sobre uma montanha, nem no meio da
fumaça e da escuridão, em entre as nuvens e as tempestades; mas ela foi dada
nas primeiras horas do dia; os discípulos estavam sentados; tudo se passou na
tranquilidade e na calma. Os judeus, cuja inteligência era limitada e as
paixões desenfreadas, tinham necessidade de um aparato que atingisse os
sentidos, de um deserto, de uma montanha, da fumaça, do ruído das trombetas, de
todo esse aparato exterior; mas os discípulos, que tinham uma alma mais sublime
e mais dócil, e que já se haviam elevado acima das impressões do corpo, não tinham
necessidade de todas aquelas coisas. Assim, se o Espírito Santo desceu então
com um grande ruído, não foi para os apóstolos que se produziu esse sinal
exterior, mas para os judeus, do mesmo como que as línguas de fogo que
apareceram concomitantemente. Pois, se mesmo depois de tudo isso, eles ainda
ousaram dizer que os apóstolos estavam embriagados, quanto mais não diriam, se
não tivessem visto essas maravilhas?
No Antigo testamento, Deus desceu sobre a montanha depois que Moisés
subiu nela; mas no Novo Testamento, o Espírito Santo desceu do céu depois que
nossa natureza foi elevada até ele como sobre o trono de sua grandeza real. E isso
já nos faz ver que o Espírito Santo não é menor do que o Pai, porque a nova lei
que ele deu se elevou acima da antiga. Pois as tábuas da segunda aliança são,
sem comparação, superiores às da primeira, e sua virtude muito mais nobre e
excelente. Os apóstolos não desceram de uma montanha, como Moisés, trazendo tábuas
de pedra em suas mãos; eles desceram do Cenáculo de Jerusalém, trazendo o
Espírito Santo em seus corações. Eles abrigavam em si um tesouro de ciência,
fontes de graças e de dons espirituais que distribuíram por todos os lados;
eles saíram a pregar por toda a terra, tornando-se como uma lei viva e como
livros espirituais animados pela graça do Espírito Santo. Foi assim que eles
começaram por converter a três mil pessoas, e em seguida a cinco mil. E assim
eles chegaram a converter todos os povos, e assim Deus se serviu de suas
línguas para ele próprio falar aos habitantes da terra.
2.
Foi sob a inspiração desse mesmo Espírito, do qual
estava cheio, que São Mateus escreveu todo seu Evangelho. Trata-se daquele
Mateus que era publicano, e eu não enrubesço de confessar o que ele era, nem o
que haviam sido os demais apóstolos, antes de serem chamados por Cristo. São essas
coisas que destacam ainda mais a graça do Espírito Santo neles, e a excelência
de sua virtude.
Ele chamou seu livro de “Evangelho”, ou seja, a “boa nova”. Pois ele
anunciava a todos, aos maus, aos ímpios, aos inimigos de Deus e aos cegos que
se assentavam nas trevas e nas sombras da morte, a libertação das penas, o perdão
dos pecados, a justiça, a santificação, a redenção, a adoção dos filhos em
Deus, a herança de seu reino e a glória de se tornarem irmãos de seu Filho
único.
Poderia haver algo de maior do que essas “novas” que ele apresentava? Um
Deus sobre a terra e o homem no céu; um acordo admirável restabelecido em toda
a hierarquia dos seres; os anjos cantando com os homens, os homens se associando
aos anjos, com as virtudes mais sublimes desses espíritos celestes. Que espetáculo
poderia haver maior e mais divino do que ver uma guerra, tão antiga quanto o
mundo, cessar de um só golpe; Deus, reconciliado com os homens; o diabo,
confundido; os demônios, em fuga; o paraíso aberto e a maldição destruída; o pecado
banido, o erro sufocado e a verdade restabelecida; a palavra divina
frutificando por toda parte; a vida do céu introduzida na terra; os anjos
descendo a toda hora aqui em baixo; as potências e as virtudes familiarizadas
com os homens, e a posse desses bens presentes assegurada a nós pela esperança
dos bens futuros?
Foi assim com grande razão que foi dado o nome de “Evangelho” a essa
história sagrada. Todos os outros escritos que não prometem mais do que a
abundância de riquezas, a grandeza do poder, o principado, a glória, as honras,
e tudo o mais que os homens creem ser bens, não passavam de vaidade e ilusão. Mas
aquilo que os pescadores nos anunciaram foi com razão chamado de “Evangelho”, a
“boa nova”, não apenas porque eles nos prometiam bens estáveis, imutáveis e que
estão muito acima de nós, mas ainda porque era possível desfrutá-los sem nenhum
esforço. Pois não era nem por nossos trabalhos, nem por nossas penas, nem por
nossas dores e nossas aflições que poderíamos adquirir esses bens. O simples
amor de Deus por nós realizou tudo, e somente dele receberíamos essas graças.
Mas por que, dos doze apóstolos que seguiam a Jesus Cristo, não houve
mais do que dois, João e Mateus, que escreveram o Evangelho, juntamente com
dois discípulos, Marcos, de São Pedro e Lucas, discípulo de São Paulo? É porque
esses homens, esquecidos da vanglória, não consultavam, para agir, senão a
simples utilidade.
Mas nesse caso, dirão, não bastaria um único evangelista para dizer
tudo? É verdade, mas quando vemos quatro pessoas escrevendo cada qual seu
evangelho em tempos e lugares diferentes, sem se reunir ou conferir em
conjunto, e não obstante falar como se tivessem uma só boca, essa união de sentimentos
e de palavras é uma poderosa prova da verdade.
Mas – dir-se-á – poderíamos aí ver o contrário, uma vez que existem
diferenças em muitas coisas. E eu respondo que essas diferenças são
precisamente a prova mais forte da veracidade dos evangelistas Pois eles se eles
estivessem tão em conformidade uns com os outros e se concordassem até nas
menores circunstâncias de tempo e lugar, e até nas expressões empregadas, ouviríamos
os inimigos da Igreja dizer que eles foram escritos concertadamente, e que uma
conformidade tão exata não poderia ser senão fruto de um entendimento prévio e de um arranjo
inteiramente humano. Mas essas pequenas diferenças que se encontram entre os
evangelistas os isentam visivelmente dessa suspeita, e justificam a sinceridade
de sua conduta. Se eventualmente eles falaram diferentemente de lugares ou
tempos, essa diversidade não prejudica em nada as verdades anunciadas, como
esperamos, com a ajuda de Deus, demonstrar a seguir.
Mas rogamos a vocês que notem, no que diz respeito às verdades
capitais encerradas na vida da alma e à essência da predicação evangélica, que
jamais encontraremos a menor oposição entre os evangelhos. Todos dizem que Deus
se fez homem, e que realizou grandes milagres; que foi crucificado e sepultado;
que ressuscitou e subiu aos céus; que virá um dia para julgar o mundo; que
estabeleceu uma lei santíssima, que em nada contrariou a primeira; que ele era
o Filho único de Deus, consubstancial a seu Pai, e outras coisas semelhantes,
sobre as quais os evangelistas concordam perfeitamente.
Não devemos nos espantar que eles não tenham relatado as mesmas circunstâncias
relativas a alguns milagres, ou se encontramos alguns milagres em uns e outros
em outros. Se apenas um evangelista houvesse dito tudo, não precisaria haver
mais do que um; e se todos dissessem coisas novas e diferentes, não haveria
meio de fazê-los concordar uns com os outros. É por isso que eles dizem coisas
que são comuns a todos, a fim de que fosse preciso que houvesse muitos, e a fim
de que cada qual pudesse trazer seu próprio testemunho da verdade a respeito
dos mesmos fatos.
3.
Essa foi a razão que levou São Lucas a escrever
seu evangelho, conforme ele disse: “a fim de que vocês sejam persuadidos da
verdade das coisas que lhes ensinamos”, ou seja, a fim de que, vendo tantas
pessoas confirmar as mesmas coisas, não possam duvidar delas, e possam ficar
perfeitamente assegurados.
Quanto a São João, embora ele não esclareça a causa que o levou a
escrever seu evangelho, aprendemos a partir da tradição de nossos pais que também
ele teve uma razão para tanto. Como os três outros tinham como objetivo
principal descrever Jesus Cristo como homem, tendo primeiramente se detido
sobre sua humanidade, e temendo que passasse em silêncio a parte referente à
sua divindade, ele resolveu, por um movimento particular de Jesus Cristo,
compor seu evangelho com essa finalidade, como é fácil de ver, tanto pelo
conjunto da sua obra, como por suas primeiras palavras. Pois ele não começa
como os outros, pelo nascimento temporal; ele desde logo se eleva àquela
geração divina e eterna, que primeiro o levou a escrever, e que corresponde à
sua proposta ao escrever o Evangelho. Por isso ele fala, não apenas no começo,
mas ao longo de todo o seu livro, de uma maneira maior e de mais relevo do que
os outros.
Quanto a São Mateus, diz-se que ele escreveu a pedido dos judeus que
haviam se convertido à fé; esses lhe pediram para deixar por escrito os
preceitos que ele lhes havia dado de viva voz, e ele se rendeu aos seus
clamores, escrevendo em hebraico seu evangelho. Também São Marcos escreveu o
seu no Egito para satisfazer aos apelos de seus discípulos. Escrevendo para os
judeus, São Mateus não teve dificuldade em demonstrar que Jesus Cristo
descendia da raça de Abrahão e de Davi. Mas São Lucas, que se dirige de um modo
geral a todos os homens, foi além, e fez remontar essa geração até Adão. São Mateus
começa seu evangelho pela genealogia de Jesus Cristo, porque nada poderia ser
mais agradável aos judeus do que lhes dizer que jesus Cristo descendia de
Abrahão e de Davi; mas São Lucas antes reporta outras coisas, para só então descer
à genealogia de Jesus Cristo[4].
Demonstraremos, portanto, a união e a conformidade desses
historiadores sagrados pelo consentimento de toda a terra que recebeu como
verdade o que eles escreveram, e também pelo testemunho dos próprios inimigos
da verdade. Pois depois deles levantaram-se numerosas heresias, que publicaram
dogmas contrários ao Evangelho; algumas receberam de um modo geral tudo o que
os evangelistas escreveram, enquanto outros, cortando o que lhes desgostava, seguiram
um evangelho mutilado. Se fosse encontrada qualquer contradição no Evangelho,
os heréticos que pregavam coisas contrárias o fizeram por não tê-lo recebido
inteiro, mas apenas as partes que lhes fossem favoráveis; e os que não
receberam senão partes, não poderiam ser refutados por meio das partes não
recebidas; tendo sido refutados, foi porque tudo está ligado no Evangelho, e a
menor parte mostra uma relação que a liga ao todo. Quando cortamos uma parte de
um homem, por pequena que seja, encontramos aí a carne, os ossos, os nervos, as
artérias, as veias e o sangue, e podemos julgar, por essa pequena parte, tudo
aquilo que encerra nosso corpo. O mesmo acontece com a Escritura. Cada palavra
contém todo o seu espírito, e possui uma ligação inseparável com todo o resto.
Se os evangelistas fossem contrários entre si, o Evangelho jamais poderia
ter sido recebido; ele teria se autodestruído, segundo o oráculo: “Todo reino
dividido será destruído[5]”.
Mas o que hoje em dia faz ressaltar a força do Espírito Santo é persuadir assim
aos homens de se ligarem com firmeza aos pontos capitais, e às máximas
fundamentais do Evangelho, sem se preocupar com as pequenas diferenças que
existem nele.
4.
É inútil buscar o lugar no qual cada evangelista
escreveu; eu prefiro me dedicar a mostrar nessa predicação que eles não
combateram uns aos outros; quando os acusamos por causa dessas pequenas
contradições aparentes, parece que pretendemos impor uma lei severa que os obrigasse
a se servir sempre das mesmas palavras e das mesmas expressões.
Eu poderia mencionar aqui muitos escritores, muito seguros de sua eloquência
e de seu saber, que compuseram livros sobre um mesmo assunto, que não só eram
diferentes entre si, como ainda eram inteiramente contrários uns aos outros. Existe
uma diferença entre não dizer as mesmas coisas, e dizer coisas totalmente
opostas. Mas não me deterei nisso. Deus me livre de buscar a apologia dos
santos evangelistas na extravagância de falsos sábios. Não pretendo me servir
da mentira para estabelecer a verdade. Limitar-me-ei a perguntar se uma
doutrina que fosse contraditória em suas partes teria podido adquirir tamanha
autoridade no mundo, se ela teria prevalecido sobre as demais, se, enfim,
homens cujos discursos se destruíssem mutuamente, teriam podido adquirir a
credibilidade e a admiração de toda a terra. Sabemos, além disso, que haviam
muitos testemunhos e inimigos de sua doutrina. Pois eles não escreveram num fim
de mundo qualquer, e não ocultaram nada de seus dogmas; eles percorreram as
terras e os mares, falando diante de todos os povos; eles liam então, como
lemos hoje, esses livros santos na presença de seus inimigos, e, no entanto,
sua doutrina jamais feriu ninguém por suas contradições. E não devemos nos espantar
com isso, porque a força e a virtude do próprio Deus os acompanhavam por toda
parte, permitindo-lhes fazer tudo o que fizeram.
Se não fosse por isso, como um publicano, ou um pescador, homens
grosseiros e ignorantes, teriam podido anunciar verdades tão grandes e
importantes? Pois eles publicaram e persuadiram com uma certeza maravilhosa
mistérios a respeito dos quais os antigos filósofos sequer tinham a menor
ideia; e eles os publicaram não apenas enquanto vivos, mas também depois de sua
morte; e não a quinze ou vinte pessoas, nem a cem, a mil ou a dez mil, mas a
cidades e povos inteiros, a Gregos e bárbaros, sobre os mares e as terras, nos
lugares habitados e nos confins dos desertos.
Ademais, eles anunciaram aos homens uma doutrina que se elevava acima
da natureza humana. Eles não diziam nada de terrestre, não falavam senão das
coisas do céu. Eles pregavam uma vida e um reino de que ninguém jamais ouvira
falar. Eles descobriam novas riquezas e uma outra pobreza; outra liberdade,
outra servidão; outra vida e outra morte; um novo mundo e um modo de vida
totalmente novo; enfim, uma mudança, e como que uma renovação geral de todas as
coisas.
Eles estavam bem distantes de um Platão, que traçou a ideia dessa
república ridícula, ou de um Zenon, ou desses outros filósofos que compuseram
projetos de governo e de repúblicas, e que pretenderam se arvorar em
legisladores dos povos. Não é preciso mais do que ler esses autores para ver
que foi o demônio, esse tirano das almas, esse inimigo da castidade e de todas
as virtudes, que os inspirou, e que espalhou tão profundas trevas em seus
espíritos para assim confundir a ordem das coisas. Pois se considerarmos essa
comunidade de mulheres que eles pretenderam introduzir; esses espetáculos
públicos vergonhosos de jovens nuas; esses casamentos clandestinos que eles
autorizavam; e essa inversão universal de tudo o que existe de mais natural e
de mais justo que existe no mundo; que mais podemos dizer senão que todas essas
máximas foram invenções do demônio, que com elas tentava destruir as leis mais
invioláveis da natureza? E certamente todas essas coisas que eles sustentavam
são tão contrárias a ela, que ela testemunha isso não só recusando-se a
ouvi-las, como invalidando-as. E entretanto aqueles filósofos tinham então a total
liberdade de publicar essas máximas, sem temer perseguições nem perigos; e eles
se esforçaram para insinuá-las nos espíritos, adornando-as com os mais belos
ornamentos da eloquência.
Ao contrário, o Evangelho, que não foi pregado senão por pescadores
perseguidos por todo o mundo, tratados como escravos e expostos a todos os
perigos, foi logo abraçado com profundo respeito por sábios e por ignorantes,
por homens livres e por escravos, por guerreiros e príncipes; numa palavra, por
gregos e pelos povos mais bárbaros.
5.
Não podemos dizer que tenha sido pela simplicidade
e pelo pretenso caráter terreno da doutrina dos apóstolos que fez com que ela
tenha sido recebida tão facilmente por todo o mundo, porque, ao contrário, ela
é infinitamente mais sublime do que todos os sistemas dos filósofos. Nem a
ideia, nem o próprio nome da virgindade, ou da pobreza cristã, do jejum e de
outros pontos mais elevados de nossa moral, jamais estiveram, seja no cérebro,
seja nos lábios de um sequer dentre os sábios do paganismo, tanto eles estavam
afastados daqueles primeiros doutores do cristianismo, os quais não condenavam
apenas as más ações e os maus desejos, mas ainda os olhares impudicos, as
palavras desonestas, os risos imoderados, e que estendiam sua solicitude até
regrar as menores coisas, como a continência exterior, o caminhar, o tom da
voz, e que propagaram por toda a terra a planta sagrada da virgindade. Eles
inspiraram aos homens os sentimentos por Deus e pelas coisas do céu, coisas que
nenhum daqueles sábios jamais suspeitou existirem.
Com efeito, como aqueles adoradores de serpentes, de monstros e dos
animais mais vis e mais horríveis, seriam capazes de compreender tais verdades?
No entanto, essas máximas tão relevantes que os apóstolos anunciaram foram
recebidas e abraçadas com amor por todo o gênero humano; elas floresceram e se
multiplicaram dia a dia, enquanto que as ideias vãs daqueles filósofos se esvaíam
a cada dia e desapareciam com a facilidade de teias de aranha, porque eram
obras dos demônios.
Além da impudicícia que os desonra, esses escritos eram ainda envoltos
em tantas e tais obscuridades e trevas, que não se podia entendê-los sem grande
trabalho. Existe coisa mais ridícula do que encher, como eles faziam, volumes
inteiros para explicar o que é a justiça, e de confundir e fazer desaparecer o
tema tratado sob as ondas transbordantes de uma irrefreável verborragia? Ainda
que houvesse lá qualquer coisa de bom, essa prolixidade desmedida a tornaria inútil
para regulamentar a vida dos homens. Pois, se um trabalhador, um pedreiro ou um
marinheiro, ou qualquer outro artesão que ganha a vida com seu trabalho,
quisesse aprender com essas pessoas o que é a justiça, seria preciso que ele
deixasse sua arte e as suas ocupações mais necessárias; e assim, depois de
passar muitos anos sem nada fazer, ele descobriria que, para aprender a bem
viver, ele correria o risco de morrer de fome.
Nada de semelhante existe nos preceitos do Evangelho. Nele, Jesus Cristo
nos ensina o que é justo, honesto, útil e, de forma geral, todas as virtudes,
em pouquíssimas palavras, claras e inteligíveis por todo o mundo, como quando
ele disse: “Toda a lei e os profetas consistem nesses dois mandamentos[6]”,
ou seja, no amor a Deus e ao próximo. Ou quando ele nos dá essa regra: “Façam
aos outros o que querem que façam a vocês; pois esse é o resumo da lei e dos profetas[7]”.
Não existe trabalhador, nem escravo, nem a mulher mais simples, nem criança,
nem pessoa quase desprovida de espírito, que não compreenda essas máximas sem
nenhum esforço; essa clareza é a marca, e como que o caráter da verdade.
É o que a experiência nos permite ver. Todo o mundo não apenas
compreende essas regras divinas, como as tem inclusive praticado, seja nas
cidades, seja nos desertos ou no alto das montanhas. É aí que podemos ver os
coros dos anjos revestidos de corpos, e a vida do céu florescer sobre a terra. Foram
pescadores que nos ensinaram essa divina filosofia. Eles não precisaram, para
tanto, cultivar os homens desde a infância, segundo o costume daqueles
filósofos, nem limitaram o estudo da virtude a um determinado número de anos;
ao contrário, eles prescreveram regras para todas as idades. A maneira de
instruir dos filósofos não passa de um jogo de crianças, enquanto que a nossa é
obra da própria verdade. O lugar que nossos santos doutores escolheram como
escola é o céu, e o próprio Deus é o mestre da arte que eles nos ensinam, e o
legislador das leis que eles promulgaram. O prêmio que nos é proposto nessa
academia celeste não consiste num ramo de oliveira ou numa coroa de louros, nem
na honra de ser alimentado às expensas do público, ou numa estátua de bronze,
coisas demasiado vãs e baixas; mas é a alegria de desfrutar no céu de uma vida
sem fim, de se tornar filho de Deus, de se associar ao coro dos anjos, de
assistir diante do trono de Deus e de habitar eternamente com Jesus Cristo. Os príncipes
dessa república são pescadores, publicanos, fabricantes de tendas, que não
viveram apenas uma pequena quantidade de anos, mas que estão vivos por toda a
eternidade, e que podem auxiliar ainda seus imitadores e seus discípulos, e sustentá-los
mesmo depois de sua morte.
6.
Nessa república não se guerreia contra os
homens, mas contra os demônios e as potências espirituais. É por isso q eu ela
não tem como chefe, nesses combates invisíveis, nem um homem, nem um anjo, mas
o próprio Deus. Também as armas desses soldados são diferentes das armas daqui
de baixo. Elas não são constituídas de peles de animais, nem de ferro, mas da
verdade, da fé, da justiça e das demais virtudes.
Assim sendo, como esse livro que nos propomos explicar contém as leis
dessa divina república, ouçamos com cuidado a São Mateus, que dela fala
claramente – ou antes, escutemos falar Jesus Cristo, que é seu legislador, pela
boca de seu santo evangelista. Apliquemo-nos a essas divinas instruções, a fim
de podermos ser um dia contados entre seus felizes cidadãos, que se tornaram
ilustres por seguirem suas leis, e que adquiriram coroas imortais.
Muitos acreditam que esse livro é fácil, e que somente os Profetas são
difíceis; mas esse sentimento pertence aos que não conhecem com bastante
profundidade os mistérios do Evangelho. É por isso que eu peço a vocês que me
sigam com cuidado, para que entremos juntos nesse vasto mar das verdades
evangélicas sob a conduta de Jesus Cristo, que nos servirá de guia. A fim de
que vocês compreendam melhor minhas explicações, eu os lhes peço fortemente,
conforme meu costume, que primeiro leiam em particular a passagem da santa Escritura
que eu irei explicar. Assim a leitura servirá de preparação ao ensinamento,
como aconteceu ao Eunuco de que falam os Atos, e facilitará a nós a realização
de nossa tarefa. No nosso caminho as perguntas vão se multiplicar umas sobre as
outras. Considerem de que forma, desde a entrada do Evangelho, ele apresenta
dificuldades a esclarecer! Primeiramente, de onde vem que se faça Jesus Cristo descender
da genealogia de José, que sabemos não ser seu pai?
Em segundo lugar, como podemos saber que o Salvador vem da estirpe de
Davi, uma vez que os antepassados de Maria, sua mãe, são inteiramente
desconhecidos, e que essa genealogia do Evangelho não parte do lado de Maria?
Em terceiro lugar, por que o Evangelho relata a genealogia de José,
que é completamente estranha ao nascimento de Jesus Cristo, sem se dar ao
trabalho de buscar os pais e avós da Virgem, de quem ele era filho?
Por que, inventariando essa genealogia de homens, encontramos aí
algumas mulheres?
Por que, tendo nomeado algumas, não foram todas nomeadas? E por que,
deixando de lado as mais santas, como Sara e Rebeca, e outras semelhantes, não
são nomeadas senão aquelas conhecidas por algum vício, como a fornicação, o
adultério, os casamentos ilegítimos, ou pela qualidade de serem estrangeiras e
bárbaras em relação ao povo de Deus? Pois o evangelista fala de Ruth, da mulher
de Urias, e de Tamar, das quais uma era estrangeira, outra impudica e a outra
incestuosa, que pretendeu conceber de seu sogro, não segundo a lei do casamento,
mas por uma surpresa que ela fez disfarçada de cortesã. Todo mundo sabe quem
foi a mulher de Urias, e do adultério que ela cometeu com Davi. E, no entanto,
o Evangelho, deixando de lado as outras mulheres, não fala senão dessas nessa
genealogia. Não teria sido razoável, se se quisesse falar das mulheres,
nomeá-las todas, ou, se fosse para nomear apenas algumas, escolher as que
fossem mais recomendáveis por sua virtude, do que aquelas que eram descritas
pelo desregramento de suas vidas?
É fácil, assim perceber como esse começo é difícil, ainda que ele
pareça claro a todos, e mesmo supérfluo a muitos, que não veem aí mais do que
uma lista com alguns nomes próprios.
Devemos ainda procurar porque essa genealogia passa por cima de três reis:
se se disser que foi por causa de sua impiedade, não deveríamos também eliminar
muitos outros que foram igualmente maus como eles?
Nos perguntamos também por que, embora São Mateus diga expressamente
que a genealogia de Cristo até Abrahão contém três séries, cada qual com quatorze
gerações, esse número fique incompleto na terceira série dessa sequência?
Nos perguntamos, enfim, por que São Lucas e São Mateus, tendo ambos
feito a genealogia de Jesus Cristo, o primeiro não reporte os mesmos nomes, e
inclusive reporte muitos mais do que São Mateus; em outros termos, por que São
Mateus marca menos nomes, e nomes diferentes daqueles citados por São Lucas,
embora ambos sigam a genealogia de Jesus Cristo até José?
Compreendam, portanto, que será preciso aplicação para esclarecer
essas coisas, porque ela será necessária inclusive para discernir aquilo que
necessita ser esclarecido. Pois não é pequeno o benefício de bem discernir o
que é duvidoso e o que pode dar lugar a dificuldades.
Por exemplo, indagaremos ainda: por que Isabel, sendo da tribo de
Levi, é chamada de prima da santa Virgem?
7.
Mas, para não oprimirmos sua memória, vamos
terminar por aqui esse discurso. As questões que nos propusemos a resolver
bastarão para estimular seu ardor. Se as respostas lhes interessarem, dependerá
de vocês conhecê-las, seguindo nossas conversações. Pois se eu vir em vocês um
desejo verdadeiro de instrução, eu darei livre curso a satisfazê-los
respondendo a essas questões. Mas se eu encontrar em vocês indiferença e
frieza, eu esconderei as dificuldades e as respostas que poderia dar, porque a
lei de Deus me proíbe de “entregar as coisas santas aos cães e atirar pérolas
aos porcos, para que eles não as pisoteiem[8]”.
Mas, dirão vocês, quem poderá querer pisotear tais pérolas? São
aqueles que não as creem preciosas, e que não têm por elas a estima que elas
merecem. E quem é tão infeliz, dirão vocês, a ponto de não as apreciar, de não as
preferir a tudo? São os que dedicam a elas menos ardor do que mostram
assistindo as comédias infames e os espetáculos diabólicos. Pois vemos a muitos
que passam assim dias inteiros, que colocam em desordem os assuntos de suas
famílias para satisfazer a esse tipo de paixão, que nada perdem daquilo que aí
escutam e que conservam preciosamente em sua memória aquilo que pode por a
perder e destruir suas almas. E quando essas mesmas pessoas estão na Igreja,
onde o próprio Deus lhes fala, elas não conseguem permanecer aí um momento sem
se tornarem impacientes. É por isso que nossas vidas, que deveriam ser
totalmente celestes, nada têm em comum com o céu, e por isso somos cristãos
apenas no nome e na aparência.
É por isso q eu Deus nos ameaça com o inferno, não para nos lançar
nele, mas para nos preservar dele por meio dessas ameaças, conduzindo-nos para
que fujamos desses costumes detestáveis. Porém, nós fazemos o contrário daquilo
que ele deseja. Ouvimos que ele nos ameaça com o inferno, mas corremos todo o
dia em direção aquilo que nos levará para lá, que nos trará a danação. Deus nos
ordena não somente escutá-lo, como também fazer o que ele nos diz; e não temos
sequer paciência para ouvi-lo. Como, então faríamos o que ele nos ordena, se
não podemos sequer suportar o que ele nos fala, se nos desgostamos, se nos
impacientamos, se não somos capazes de lhe dar sequer um quarto de hora de
nosso tempo?
Quando, durante uma conversa, nossas palavras não obtêm a atenção das
pessoas presentes, nós ficamos ofendidos como se fosse uma injúria, por vãs que
sejam as coisas que estamos dizendo; e acreditamos que Deus não ficará
ofendido, quando as grandes verdades que
eles nos anuncia nos deixam indiferentes, quando nosso espírito vaga alhures,
quando não nos dignamos sequer a nos aplicarmos a elas? Sentimos prazer em
escutar pessoas que viveram viajando, que sabem e reportam exatamente a
distância, a situação, a grandeza, os lugares públicos e os portos das cidades
que visitaram; e nós, que somos viajantes nessa vida, e que caminhamos para o
céu, não nos damos ao trabalho de saber o quanto ainda estamos afastados de nosso
objetivo. Se pensássemos isso, talvez nos apressássemos em chegar lá. Mas se
negligenciamos o caminho que conduz a Deus, estaremos infinitamente mais distantes
de nosso objetivo do que está a terra do céu; mas se nos apressarmos em ir a
essa cidade bem-aventurada, logo nos veremos às suas portas; pois seu
distanciamento não provém da distância entre lugares, mas da desproporção de
nossa conduta e de nossa vida.
Vocês cuidam de se tornar hábeis na história desse mundo, de conhecer
seu passado e seu presente. Vocês se lembram dos reis sob cujas ordens portaram
armas, dos oficiais que os comandaram, dos jogos públicos que aconteceram, dos
gladiadores que neles combateram, dos que receberam os prêmios, e de cem outras
coisas que não lhes dizem respeito, mas não dedicam o menor pensamento em
considerar quem é o príncipe dessa cidade celeste, em quem são os que aí ocupam
o primeiro, o segundo e o terceiro lugar, como cada qual combateu e por quais ações
são eles assinalados. Enfim, vocês não têm paciência para escutar o que lhes
propõem as leis dessa cidade santa. Depois de tudo isso, como ousam vocês
esperar usufruir um dia desses bens supremos, uma vez que vocês não se dignam
nem a escutar agora aqueles que lhes falam?
Façamos então, ao menos por hoje, irmãos, o que até agora
negligenciamos fazer. Uma vez que a misericórdia de Deus nos faz esperar entrar
um dia nessa cidade toda de ouro, aprendamos quais são seus fundamentos, quais
suas portas, todas feitas de pérolas e diamantes. Temos um excelente guia, que
é São Mateus, e recebemos hoje a permissão para entrar pela porta que ele nos
abre. Redobremos nossa atenção para que ele, percebendo que algum de nós o
escuta com displicência, não nos expulse dessa cidade celeste.
Pois essa cidade, meus irmãos, é verdadeiramente real e magnífica, ela
não é como as cidades aqui de baixo, divididas em ruas, palácios e praças. Ela é
inteira o palácio de seu Rei. Abramos então as portas de nossas almas, abramos
o ouvido de nossos corações, e, prestes a entrar nessa cidade eterna, adoremos
com temor o rei que nela reina. Quem quiser contemplar suas maravilhas pode ficar
atemorizado no início, porque suas portas ainda nos estão fechadas; mas quando
as virmos abertas, ou seja, quando descobrirmos os mistérios que nos propusemos,
veremos então o esplendor que brilha lá dentro. Esse bem-aventurado publicano
os conduzirá pelos olhos do espírito, e ele promete que lhes mostrará tudo. Ele
lhes fará ver onde fica o trono do Rei, quem são os soldados que o cercam, onde
estão os anjos e os arcanjos, qual lugar está destinado aos novos cidadãos
dessa cidade, por quais caminhos se chega a ela, quais as honras que são
devidas aos que ocupam o primeiro, o segundo e o terceiro lugar, e quais são as
diferentes dignidades, seja no senado, seja no povo dessa cidade divina.
É por isso que não entraremos ali com ruído e tumulto, mas com respeito
e um silêncio dignos desses grandes mistérios. Se entramos em silêncio quando
são lidas as mensagens do rei numa assembleia pública, quanto mais em silêncio
devemos estar quando são relatados, não as ordens de um príncipe da terra, mas
os oráculos do Rei do céu? Se agirmos dessa maneira, o próprio Espírito Santo
nos conduzirá, por sua graça, até dentro do palácio e até o trono do Rei, para
aí desfrutarmos dos bens infinitos, pela
graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem se deve o reino, o
poder e a glória, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, agora e sempre, e
pelos séculos dos séculos. Amém.
[1]
João 14: 26.
[2] Jeremias
31: 33.
[3]
II Coríntios 3: 3. Cf. João 6: 45 - “Está escrito nos Profetas: ‘Todos os
homens serão instruídos por Deus’. Todo aquele que escuta o Pai e recebe sua instrução
vem a mim.”
[4]
Cf. Lucas 3: 23-38.
[5]
Lucas 11: 17.
[6]
Mateus 22: 40.
[7]
Mateus 6: 12.
[8]
Mateus 7: 6.
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