terça-feira, 18 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Primeira Homilia: Introdução ao Evangelho de São Mateus




1.           Não precisaríamos, Irmãos, necessitar do auxílio das Escrituras, se nossa vida fosse pura o suficiente: então a graça do Espírito Santo tomaria o lugar de todos os livros. Tudo o que se escreve com tinta sobre papel, o próprio Espírito imprimiria em nossos corações. Mas como decaímos desse benefício, devemos no mínimo nos agarrar à prancha de salvação que nos resta. Aquele primeiro modo de comunicação com Deus valia mais; o próprio Deus no-lo demonstrou por seus atos, não menos do que por suas palavras. Ele falou a Noé, a Abrahão e a seus descendentes, a Jó e Moisés, não por caracteres e letras, mais de modo imediato, por si mesmo; porque a pureza de coração que encontrou neles os tornara suscetíveis dessa graça. Mas o povo judeu caiu depois no abismo de todos os vícios, e então foi necessário que Deus se servisse de palavras e de tábuas, e que ele tratasse com esse povo por meio da escrita.

Deus manteve no Novo Testamento a mesma conduta que adotara no Antigo, e fez com os apóstolos da mesma maneira como fez com os patriarcas. Porque Jesus Cristo não deixou nada por escrito aos seus apóstolos, mas lhes prometeu, ao invés de livros, a graça de seu Espírito Santo: “Ele vos fará recordar de todas as coisas[1]”, disse Ele. Para entender o benefício dessa instrução interior em relação à outra, basta escutar o que Deus disse por intermédio de seu Profeta: “Eu farei um novo Testamento, e escreverei minha lei em suas almas, e a gravarei em seus corações; e assim eles serão todos discípulos de Deus[2]”. São Paulo, sublinhando também a excelência dessa lei do Espírito Santo, disse: “De fato, é evidente que sois uma carta de Cristo, da qual nós fomos o instrumento; carta escrita, não com tinta, mas nas tábuas de carne de vossos corações[3]”.

Mas como, com o passar do tempo, os homens infelizmente de desviaram do caminho reto, uns pela depravação de sua doutrina, outros pela corrupção de suas vidas e de seus costumes, tivemos mais uma vez a necessidade de que Deus nos desse por escrito suas instruções e seus preceitos.

Quão culpados somos! Nossa vida deveria ser de tal modo pura, que sem necessidade de livros nossos corações fossem expostos ao Espírito Santo, como tábuas vivas nas quais fosse escrito tudo o que ele quisesse que aprendêssemos; mas, depois de havermos perdido tão grande honra, e de termos necessidade de que Deus nos desse suas instruções por escrito, sequer nos servimos desse segundo remédio que Ele nos concedeu para a cura de nossas almas! Se já constituiu uma falta termos tornado necessária a Escritura, e de termos deixado de atrair para nós e por nós mesmos a graça do Espírito Santo, que crime não consiste então sequer utilizarmos desse novo auxílio para avançarmos na piedade, em desprezarmos esses escritos divinos, como se fossem coisas vás e inúteis, e em nos expormos a uma condenação ainda maior por causa dessa negligência e desse desdém? Para evitar tal infelicidade, leiamos com cuidado a Escritura, e aprendamos de que modo nos foram dadas, tanto a antiga, como a nova lei.

Vocês abem de que maneira e em que tempo e lugar Deus publicou a antiga lei. Lembram-se de que foi após a ruína dos Egípcios, no deserto, sobre a montanha do Sinai, no meio do fogo e da fumaça que se erguiam dessa montanha, ao som da trombeta, em meio ao brilho dos relâmpagos, ao som do trovão, e depois que Moisés penetrou na escuridão da nuvem. A nova lei não foi promulgada desse modo. Não foi nem no deserto, nem sobre uma montanha, nem no meio da fumaça e da escuridão, em entre as nuvens e as tempestades; mas ela foi dada nas primeiras horas do dia; os discípulos estavam sentados; tudo se passou na tranquilidade e na calma. Os judeus, cuja inteligência era limitada e as paixões desenfreadas, tinham necessidade de um aparato que atingisse os sentidos, de um deserto, de uma montanha, da fumaça, do ruído das trombetas, de todo esse aparato exterior; mas os discípulos, que tinham uma alma mais sublime e mais dócil, e que já se haviam elevado acima das impressões do corpo, não tinham necessidade de todas aquelas coisas. Assim, se o Espírito Santo desceu então com um grande ruído, não foi para os apóstolos que se produziu esse sinal exterior, mas para os judeus, do mesmo como que as línguas de fogo que apareceram concomitantemente. Pois, se mesmo depois de tudo isso, eles ainda ousaram dizer que os apóstolos estavam embriagados, quanto mais não diriam, se não tivessem visto essas maravilhas?

No Antigo testamento, Deus desceu sobre a montanha depois que Moisés subiu nela; mas no Novo Testamento, o Espírito Santo desceu do céu depois que nossa natureza foi elevada até ele como sobre o trono de sua grandeza real. E isso já nos faz ver que o Espírito Santo não é menor do que o Pai, porque a nova lei que ele deu se elevou acima da antiga. Pois as tábuas da segunda aliança são, sem comparação, superiores às da primeira, e sua virtude muito mais nobre e excelente. Os apóstolos não desceram de uma montanha, como Moisés, trazendo tábuas de pedra em suas mãos; eles desceram do Cenáculo de Jerusalém, trazendo o Espírito Santo em seus corações. Eles abrigavam em si um tesouro de ciência, fontes de graças e de dons espirituais que distribuíram por todos os lados; eles saíram a pregar por toda a terra, tornando-se como uma lei viva e como livros espirituais animados pela graça do Espírito Santo. Foi assim que eles começaram por converter a três mil pessoas, e em seguida a cinco mil. E assim eles chegaram a converter todos os povos, e assim Deus se serviu de suas línguas para ele próprio falar aos habitantes da terra.

2.      Foi sob a inspiração desse mesmo Espírito, do qual estava cheio, que São Mateus escreveu todo seu Evangelho. Trata-se daquele Mateus que era publicano, e eu não enrubesço de confessar o que ele era, nem o que haviam sido os demais apóstolos, antes de serem chamados por Cristo. São essas coisas que destacam ainda mais a graça do Espírito Santo neles, e a excelência de sua virtude.

Ele chamou seu livro de “Evangelho”, ou seja, a “boa nova”. Pois ele anunciava a todos, aos maus, aos ímpios, aos inimigos de Deus e aos cegos que se assentavam nas trevas e nas sombras da morte, a libertação das penas, o perdão dos pecados, a justiça, a santificação, a redenção, a adoção dos filhos em Deus, a herança de seu reino e a glória de se tornarem irmãos de seu Filho único.

Poderia haver algo de maior do que essas “novas” que ele apresentava? Um Deus sobre a terra e o homem no céu; um acordo admirável restabelecido em toda a hierarquia dos seres; os anjos cantando com os homens, os homens se associando aos anjos, com as virtudes mais sublimes desses espíritos celestes. Que espetáculo poderia haver maior e mais divino do que ver uma guerra, tão antiga quanto o mundo, cessar de um só golpe; Deus, reconciliado com os homens; o diabo, confundido; os demônios, em fuga; o paraíso aberto e a maldição destruída; o pecado banido, o erro sufocado e a verdade restabelecida; a palavra divina frutificando por toda parte; a vida do céu introduzida na terra; os anjos descendo a toda hora aqui em baixo; as potências e as virtudes familiarizadas com os homens, e a posse desses bens presentes assegurada a nós pela esperança dos bens futuros?

Foi assim com grande razão que foi dado o nome de “Evangelho” a essa história sagrada. Todos os outros escritos que não prometem mais do que a abundância de riquezas, a grandeza do poder, o principado, a glória, as honras, e tudo o mais que os homens creem ser bens, não passavam de vaidade e ilusão. Mas aquilo que os pescadores nos anunciaram foi com razão chamado de “Evangelho”, a “boa nova”, não apenas porque eles nos prometiam bens estáveis, imutáveis e que estão muito acima de nós, mas ainda porque era possível desfrutá-los sem nenhum esforço. Pois não era nem por nossos trabalhos, nem por nossas penas, nem por nossas dores e nossas aflições que poderíamos adquirir esses bens. O simples amor de Deus por nós realizou tudo, e somente dele receberíamos essas graças.

Mas por que, dos doze apóstolos que seguiam a Jesus Cristo, não houve mais do que dois, João e Mateus, que escreveram o Evangelho, juntamente com dois discípulos, Marcos, de São Pedro e Lucas, discípulo de São Paulo? É porque esses homens, esquecidos da vanglória, não consultavam, para agir, senão a simples utilidade.

Mas nesse caso, dirão, não bastaria um único evangelista para dizer tudo? É verdade, mas quando vemos quatro pessoas escrevendo cada qual seu evangelho em tempos e lugares diferentes, sem se reunir ou conferir em conjunto, e não obstante falar como se tivessem uma só boca, essa união de sentimentos e de palavras é uma poderosa prova da verdade.

Mas – dir-se-á – poderíamos aí ver o contrário, uma vez que existem diferenças em muitas coisas. E eu respondo que essas diferenças são precisamente a prova mais forte da veracidade dos evangelistas Pois eles se eles estivessem tão em conformidade uns com os outros e se concordassem até nas menores circunstâncias de tempo e lugar, e até nas expressões empregadas, ouviríamos os inimigos da Igreja dizer que eles foram escritos concertadamente, e que uma conformidade tão exata não poderia ser senão fruto  de um entendimento prévio e de um arranjo inteiramente humano. Mas essas pequenas diferenças que se encontram entre os evangelistas os isentam visivelmente dessa suspeita, e justificam a sinceridade de sua conduta. Se eventualmente eles falaram diferentemente de lugares ou tempos, essa diversidade não prejudica em nada as verdades anunciadas, como esperamos, com a ajuda de Deus, demonstrar a seguir.

Mas rogamos a vocês que notem, no que diz respeito às verdades capitais encerradas na vida da alma e à essência da predicação evangélica, que jamais encontraremos a menor oposição entre os evangelhos. Todos dizem que Deus se fez homem, e que realizou grandes milagres; que foi crucificado e sepultado; que ressuscitou e subiu aos céus; que virá um dia para julgar o mundo; que estabeleceu uma lei santíssima, que em nada contrariou a primeira; que ele era o Filho único de Deus, consubstancial a seu Pai, e outras coisas semelhantes, sobre as quais os evangelistas concordam perfeitamente.

Não devemos nos espantar que eles não tenham relatado as mesmas circunstâncias relativas a alguns milagres, ou se encontramos alguns milagres em uns e outros em outros. Se apenas um evangelista houvesse dito tudo, não precisaria haver mais do que um; e se todos dissessem coisas novas e diferentes, não haveria meio de fazê-los concordar uns com os outros. É por isso que eles dizem coisas que são comuns a todos, a fim de que fosse preciso que houvesse muitos, e a fim de que cada qual pudesse trazer seu próprio testemunho da verdade a respeito dos mesmos fatos.

3.      Essa foi a razão que levou São Lucas a escrever seu evangelho, conforme ele disse: “a fim de que vocês sejam persuadidos da verdade das coisas que lhes ensinamos”, ou seja, a fim de que, vendo tantas pessoas confirmar as mesmas coisas, não possam duvidar delas, e possam ficar perfeitamente assegurados.

Quanto a São João, embora ele não esclareça a causa que o levou a escrever seu evangelho, aprendemos a partir da tradição de nossos pais que também ele teve uma razão para tanto. Como os três outros tinham como objetivo principal descrever Jesus Cristo como homem, tendo primeiramente se detido sobre sua humanidade, e temendo que passasse em silêncio a parte referente à sua divindade, ele resolveu, por um movimento particular de Jesus Cristo, compor seu evangelho com essa finalidade, como é fácil de ver, tanto pelo conjunto da sua obra, como por suas primeiras palavras. Pois ele não começa como os outros, pelo nascimento temporal; ele desde logo se eleva àquela geração divina e eterna, que primeiro o levou a escrever, e que corresponde à sua proposta ao escrever o Evangelho. Por isso ele fala, não apenas no começo, mas ao longo de todo o seu livro, de uma maneira maior e de mais relevo do que os outros.

Quanto a São Mateus, diz-se que ele escreveu a pedido dos judeus que haviam se convertido à fé; esses lhe pediram para deixar por escrito os preceitos que ele lhes havia dado de viva voz, e ele se rendeu aos seus clamores, escrevendo em hebraico seu evangelho. Também São Marcos escreveu o seu no Egito para satisfazer aos apelos de seus discípulos. Escrevendo para os judeus, São Mateus não teve dificuldade em demonstrar que Jesus Cristo descendia da raça de Abrahão e de Davi. Mas São Lucas, que se dirige de um modo geral a todos os homens, foi além, e fez remontar essa geração até Adão. São Mateus começa seu evangelho pela genealogia de Jesus Cristo, porque nada poderia ser mais agradável aos judeus do que lhes dizer que jesus Cristo descendia de Abrahão e de Davi; mas São Lucas antes reporta outras coisas, para só então descer à genealogia de Jesus Cristo[4].

Demonstraremos, portanto, a união e a conformidade desses historiadores sagrados pelo consentimento de toda a terra que recebeu como verdade o que eles escreveram, e também pelo testemunho dos próprios inimigos da verdade. Pois depois deles levantaram-se numerosas heresias, que publicaram dogmas contrários ao Evangelho; algumas receberam de um modo geral tudo o que os evangelistas escreveram, enquanto outros, cortando o que lhes desgostava, seguiram um evangelho mutilado. Se fosse encontrada qualquer contradição no Evangelho, os heréticos que pregavam coisas contrárias o fizeram por não tê-lo recebido inteiro, mas apenas as partes que lhes fossem favoráveis; e os que não receberam senão partes, não poderiam ser refutados por meio das partes não recebidas; tendo sido refutados, foi porque tudo está ligado no Evangelho, e a menor parte mostra uma relação que a liga ao todo. Quando cortamos uma parte de um homem, por pequena que seja, encontramos aí a carne, os ossos, os nervos, as artérias, as veias e o sangue, e podemos julgar, por essa pequena parte, tudo aquilo que encerra nosso corpo. O mesmo acontece com a Escritura. Cada palavra contém todo o seu espírito, e possui uma ligação inseparável com todo o resto.

Se os evangelistas fossem contrários entre si, o Evangelho jamais poderia ter sido recebido; ele teria se autodestruído, segundo o oráculo: “Todo reino dividido será destruído[5]”. Mas o que hoje em dia faz ressaltar a força do Espírito Santo é persuadir assim aos homens de se ligarem com firmeza aos pontos capitais, e às máximas fundamentais do Evangelho, sem se preocupar com as pequenas diferenças que existem nele.

4.      É inútil buscar o lugar no qual cada evangelista escreveu; eu prefiro me dedicar a mostrar nessa predicação que eles não combateram uns aos outros; quando os acusamos por causa dessas pequenas contradições aparentes, parece que pretendemos impor uma lei severa que os obrigasse a se servir sempre das mesmas palavras e das mesmas expressões.

Eu poderia mencionar aqui muitos escritores, muito seguros de sua eloquência e de seu saber, que compuseram livros sobre um mesmo assunto, que não só eram diferentes entre si, como ainda eram inteiramente contrários uns aos outros. Existe uma diferença entre não dizer as mesmas coisas, e dizer coisas totalmente opostas. Mas não me deterei nisso. Deus me livre de buscar a apologia dos santos evangelistas na extravagância de falsos sábios. Não pretendo me servir da mentira para estabelecer a verdade. Limitar-me-ei a perguntar se uma doutrina que fosse contraditória em suas partes teria podido adquirir tamanha autoridade no mundo, se ela teria prevalecido sobre as demais, se, enfim, homens cujos discursos se destruíssem mutuamente, teriam podido adquirir a credibilidade e a admiração de toda a terra. Sabemos, além disso, que haviam muitos testemunhos e inimigos de sua doutrina. Pois eles não escreveram num fim de mundo qualquer, e não ocultaram nada de seus dogmas; eles percorreram as terras e os mares, falando diante de todos os povos; eles liam então, como lemos hoje, esses livros santos na presença de seus inimigos, e, no entanto, sua doutrina jamais feriu ninguém por suas contradições. E não devemos nos espantar com isso, porque a força e a virtude do próprio Deus os acompanhavam por toda parte, permitindo-lhes fazer tudo o que fizeram.

Se não fosse por isso, como um publicano, ou um pescador, homens grosseiros e ignorantes, teriam podido anunciar verdades tão grandes e importantes? Pois eles publicaram e persuadiram com uma certeza maravilhosa mistérios a respeito dos quais os antigos filósofos sequer tinham a menor ideia; e eles os publicaram não apenas enquanto vivos, mas também depois de sua morte; e não a quinze ou vinte pessoas, nem a cem, a mil ou a dez mil, mas a cidades e povos inteiros, a Gregos e bárbaros, sobre os mares e as terras, nos lugares habitados e nos confins dos desertos.

Ademais, eles anunciaram aos homens uma doutrina que se elevava acima da natureza humana. Eles não diziam nada de terrestre, não falavam senão das coisas do céu. Eles pregavam uma vida e um reino de que ninguém jamais ouvira falar. Eles descobriam novas riquezas e uma outra pobreza; outra liberdade, outra servidão; outra vida e outra morte; um novo mundo e um modo de vida totalmente novo; enfim, uma mudança, e como que uma renovação geral de todas as coisas.

Eles estavam bem distantes de um Platão, que traçou a ideia dessa república ridícula, ou de um Zenon, ou desses outros filósofos que compuseram projetos de governo e de repúblicas, e que pretenderam se arvorar em legisladores dos povos. Não é preciso mais do que ler esses autores para ver que foi o demônio, esse tirano das almas, esse inimigo da castidade e de todas as virtudes, que os inspirou, e que espalhou tão profundas trevas em seus espíritos para assim confundir a ordem das coisas. Pois se considerarmos essa comunidade de mulheres que eles pretenderam introduzir; esses espetáculos públicos vergonhosos de jovens nuas; esses casamentos clandestinos que eles autorizavam; e essa inversão universal de tudo o que existe de mais natural e de mais justo que existe no mundo; que mais podemos dizer senão que todas essas máximas foram invenções do demônio, que com elas tentava destruir as leis mais invioláveis da natureza? E certamente todas essas coisas que eles sustentavam são tão contrárias a ela, que ela testemunha isso não só recusando-se a ouvi-las, como invalidando-as. E entretanto aqueles filósofos tinham então a total liberdade de publicar essas máximas, sem temer perseguições nem perigos; e eles se esforçaram para insinuá-las nos espíritos, adornando-as com os mais belos ornamentos da eloquência.

Ao contrário, o Evangelho, que não foi pregado senão por pescadores perseguidos por todo o mundo, tratados como escravos e expostos a todos os perigos, foi logo abraçado com profundo respeito por sábios e por ignorantes, por homens livres e por escravos, por guerreiros e príncipes; numa palavra, por gregos e pelos povos mais bárbaros.

5.        Não podemos dizer que tenha sido pela simplicidade e pelo pretenso caráter terreno da doutrina dos apóstolos que fez com que ela tenha sido recebida tão facilmente por todo o mundo, porque, ao contrário, ela é infinitamente mais sublime do que todos os sistemas dos filósofos. Nem a ideia, nem o próprio nome da virgindade, ou da pobreza cristã, do jejum e de outros pontos mais elevados de nossa moral, jamais estiveram, seja no cérebro, seja nos lábios de um sequer dentre os sábios do paganismo, tanto eles estavam afastados daqueles primeiros doutores do cristianismo, os quais não condenavam apenas as más ações e os maus desejos, mas ainda os olhares impudicos, as palavras desonestas, os risos imoderados, e que estendiam sua solicitude até regrar as menores coisas, como a continência exterior, o caminhar, o tom da voz, e que propagaram por toda a terra a planta sagrada da virgindade. Eles inspiraram aos homens os sentimentos por Deus e pelas coisas do céu, coisas que nenhum daqueles sábios jamais suspeitou existirem.

Com efeito, como aqueles adoradores de serpentes, de monstros e dos animais mais vis e mais horríveis, seriam capazes de compreender tais verdades? No entanto, essas máximas tão relevantes que os apóstolos anunciaram foram recebidas e abraçadas com amor por todo o gênero humano; elas floresceram e se multiplicaram dia a dia, enquanto que as ideias vãs daqueles filósofos se esvaíam a cada dia e desapareciam com a facilidade de teias de aranha, porque eram obras dos demônios.

Além da impudicícia que os desonra, esses escritos eram ainda envoltos em tantas e tais obscuridades e trevas, que não se podia entendê-los sem grande trabalho. Existe coisa mais ridícula do que encher, como eles faziam, volumes inteiros para explicar o que é a justiça, e de confundir e fazer desaparecer o tema tratado sob as ondas transbordantes de uma irrefreável verborragia? Ainda que houvesse lá qualquer coisa de bom, essa prolixidade desmedida a tornaria inútil para regulamentar a vida dos homens. Pois, se um trabalhador, um pedreiro ou um marinheiro, ou qualquer outro artesão que ganha a vida com seu trabalho, quisesse aprender com essas pessoas o que é a justiça, seria preciso que ele deixasse sua arte e as suas ocupações mais necessárias; e assim, depois de passar muitos anos sem nada fazer, ele descobriria que, para aprender a bem viver, ele correria o risco de morrer de fome.

Nada de semelhante existe nos preceitos do Evangelho. Nele, Jesus Cristo nos ensina o que é justo, honesto, útil e, de forma geral, todas as virtudes, em pouquíssimas palavras, claras e inteligíveis por todo o mundo, como quando ele disse: “Toda a lei e os profetas consistem nesses dois mandamentos[6]”, ou seja, no amor a Deus e ao próximo. Ou quando ele nos dá essa regra: “Façam aos outros o que querem que façam a vocês; pois esse é o resumo da lei e dos profetas[7]”. Não existe trabalhador, nem escravo, nem a mulher mais simples, nem criança, nem pessoa quase desprovida de espírito, que não compreenda essas máximas sem nenhum esforço; essa clareza é a marca, e como que o caráter da verdade.

É o que a experiência nos permite ver. Todo o mundo não apenas compreende essas regras divinas, como as tem inclusive praticado, seja nas cidades, seja nos desertos ou no alto das montanhas. É aí que podemos ver os coros dos anjos revestidos de corpos, e a vida do céu florescer sobre a terra. Foram pescadores que nos ensinaram essa divina filosofia. Eles não precisaram, para tanto, cultivar os homens desde a infância, segundo o costume daqueles filósofos, nem limitaram o estudo da virtude a um determinado número de anos; ao contrário, eles prescreveram regras para todas as idades. A maneira de instruir dos filósofos não passa de um jogo de crianças, enquanto que a nossa é obra da própria verdade. O lugar que nossos santos doutores escolheram como escola é o céu, e o próprio Deus é o mestre da arte que eles nos ensinam, e o legislador das leis que eles promulgaram. O prêmio que nos é proposto nessa academia celeste não consiste num ramo de oliveira ou numa coroa de louros, nem na honra de ser alimentado às expensas do público, ou numa estátua de bronze, coisas demasiado vãs e baixas; mas é a alegria de desfrutar no céu de uma vida sem fim, de se tornar filho de Deus, de se associar ao coro dos anjos, de assistir diante do trono de Deus e de habitar eternamente com Jesus Cristo. Os príncipes dessa república são pescadores, publicanos, fabricantes de tendas, que não viveram apenas uma pequena quantidade de anos, mas que estão vivos por toda a eternidade, e que podem auxiliar ainda seus imitadores e seus discípulos, e sustentá-los mesmo depois de sua morte.

6.      Nessa república não se guerreia contra os homens, mas contra os demônios e as potências espirituais. É por isso q eu ela não tem como chefe, nesses combates invisíveis, nem um homem, nem um anjo, mas o próprio Deus. Também as armas desses soldados são diferentes das armas daqui de baixo. Elas não são constituídas de peles de animais, nem de ferro, mas da verdade, da fé, da justiça e das demais virtudes.

Assim sendo, como esse livro que nos propomos explicar contém as leis dessa divina república, ouçamos com cuidado a São Mateus, que dela fala claramente – ou antes, escutemos falar Jesus Cristo, que é seu legislador, pela boca de seu santo evangelista. Apliquemo-nos a essas divinas instruções, a fim de podermos ser um dia contados entre seus felizes cidadãos, que se tornaram ilustres por seguirem suas leis, e que adquiriram coroas imortais.

Muitos acreditam que esse livro é fácil, e que somente os Profetas são difíceis; mas esse sentimento pertence aos que não conhecem com bastante profundidade os mistérios do Evangelho. É por isso que eu peço a vocês que me sigam com cuidado, para que entremos juntos nesse vasto mar das verdades evangélicas sob a conduta de Jesus Cristo, que nos servirá de guia. A fim de que vocês compreendam melhor minhas explicações, eu os lhes peço fortemente, conforme meu costume, que primeiro leiam em particular a passagem da santa Escritura que eu irei explicar. Assim a leitura servirá de preparação ao ensinamento, como aconteceu ao Eunuco de que falam os Atos, e facilitará a nós a realização de nossa tarefa. No nosso caminho as perguntas vão se multiplicar umas sobre as outras. Considerem de que forma, desde a entrada do Evangelho, ele apresenta dificuldades a esclarecer! Primeiramente, de onde vem que se faça Jesus Cristo descender da genealogia de José, que sabemos não ser seu pai?

Em segundo lugar, como podemos saber que o Salvador vem da estirpe de Davi, uma vez que os antepassados de Maria, sua mãe, são inteiramente desconhecidos, e que essa genealogia do Evangelho não parte do lado de Maria?

Em terceiro lugar, por que o Evangelho relata a genealogia de José, que é completamente estranha ao nascimento de Jesus Cristo, sem se dar ao trabalho de buscar os pais e avós da Virgem, de quem ele era filho?

Por que, inventariando essa genealogia de homens, encontramos aí algumas mulheres?

Por que, tendo nomeado algumas, não foram todas nomeadas? E por que, deixando de lado as mais santas, como Sara e Rebeca, e outras semelhantes, não são nomeadas senão aquelas conhecidas por algum vício, como a fornicação, o adultério, os casamentos ilegítimos, ou pela qualidade de serem estrangeiras e bárbaras em relação ao povo de Deus? Pois o evangelista fala de Ruth, da mulher de Urias, e de Tamar, das quais uma era estrangeira, outra impudica e a outra incestuosa, que pretendeu conceber de seu sogro, não segundo a lei do casamento, mas por uma surpresa que ela fez disfarçada de cortesã. Todo mundo sabe quem foi a mulher de Urias, e do adultério que ela cometeu com Davi. E, no entanto, o Evangelho, deixando de lado as outras mulheres, não fala senão dessas nessa genealogia. Não teria sido razoável, se se quisesse falar das mulheres, nomeá-las todas, ou, se fosse para nomear apenas algumas, escolher as que fossem mais recomendáveis por sua virtude, do que aquelas que eram descritas pelo desregramento de suas vidas?

É fácil, assim perceber como esse começo é difícil, ainda que ele pareça claro a todos, e mesmo supérfluo a muitos, que não veem aí mais do que uma lista com alguns nomes próprios.

Devemos ainda procurar porque essa genealogia passa por cima de três reis: se se disser que foi por causa de sua impiedade, não deveríamos também eliminar muitos outros que foram igualmente maus como eles?

Nos perguntamos também por que, embora São Mateus diga expressamente que a genealogia de Cristo até Abrahão contém três séries, cada qual com quatorze gerações, esse número fique incompleto na terceira série dessa sequência?

Nos perguntamos, enfim, por que São Lucas e São Mateus, tendo ambos feito a genealogia de Jesus Cristo, o primeiro não reporte os mesmos nomes, e inclusive reporte muitos mais do que São Mateus; em outros termos, por que São Mateus marca menos nomes, e nomes diferentes daqueles citados por São Lucas, embora ambos sigam a genealogia de Jesus Cristo até José?

Compreendam, portanto, que será preciso aplicação para esclarecer essas coisas, porque ela será necessária inclusive para discernir aquilo que necessita ser esclarecido. Pois não é pequeno o benefício de bem discernir o que é duvidoso e o que pode dar lugar a dificuldades.

Por exemplo, indagaremos ainda: por que Isabel, sendo da tribo de Levi, é chamada de prima da santa Virgem?

7.      Mas, para não oprimirmos sua memória, vamos terminar por aqui esse discurso. As questões que nos propusemos a resolver bastarão para estimular seu ardor. Se as respostas lhes interessarem, dependerá de vocês conhecê-las, seguindo nossas conversações. Pois se eu vir em vocês um desejo verdadeiro de instrução, eu darei livre curso a satisfazê-los respondendo a essas questões. Mas se eu encontrar em vocês indiferença e frieza, eu esconderei as dificuldades e as respostas que poderia dar, porque a lei de Deus me proíbe de “entregar as coisas santas aos cães e atirar pérolas aos porcos, para que eles não as pisoteiem[8]”.

Mas, dirão vocês, quem poderá querer pisotear tais pérolas? São aqueles que não as creem preciosas, e que não têm por elas a estima que elas merecem. E quem é tão infeliz, dirão vocês, a ponto de não as apreciar, de não as preferir a tudo? São os que dedicam a elas menos ardor do que mostram assistindo as comédias infames e os espetáculos diabólicos. Pois vemos a muitos que passam assim dias inteiros, que colocam em desordem os assuntos de suas famílias para satisfazer a esse tipo de paixão, que nada perdem daquilo que aí escutam e que conservam preciosamente em sua memória aquilo que pode por a perder e destruir suas almas. E quando essas mesmas pessoas estão na Igreja, onde o próprio Deus lhes fala, elas não conseguem permanecer aí um momento sem se tornarem impacientes. É por isso que nossas vidas, que deveriam ser totalmente celestes, nada têm em comum com o céu, e por isso somos cristãos apenas no nome e na aparência.

É por isso q eu Deus nos ameaça com o inferno, não para nos lançar nele, mas para nos preservar dele por meio dessas ameaças, conduzindo-nos para que fujamos desses costumes detestáveis. Porém, nós fazemos o contrário daquilo que ele deseja. Ouvimos que ele nos ameaça com o inferno, mas corremos todo o dia em direção aquilo que nos levará para lá, que nos trará a danação. Deus nos ordena não somente escutá-lo, como também fazer o que ele nos diz; e não temos sequer paciência para ouvi-lo. Como, então faríamos o que ele nos ordena, se não podemos sequer suportar o que ele nos fala, se nos desgostamos, se nos impacientamos, se não somos capazes de lhe dar sequer um quarto de hora de nosso tempo?

Quando, durante uma conversa, nossas palavras não obtêm a atenção das pessoas presentes, nós ficamos ofendidos como se fosse uma injúria, por vãs que sejam as coisas que estamos dizendo; e acreditamos que Deus não ficará ofendido, quando as  grandes verdades que eles nos anuncia nos deixam indiferentes, quando nosso espírito vaga alhures, quando não nos dignamos sequer a nos aplicarmos a elas? Sentimos prazer em escutar pessoas que viveram viajando, que sabem e reportam exatamente a distância, a situação, a grandeza, os lugares públicos e os portos das cidades que visitaram; e nós, que somos viajantes nessa vida, e que caminhamos para o céu, não nos damos ao trabalho de saber o quanto ainda estamos afastados de nosso objetivo. Se pensássemos isso, talvez nos apressássemos em chegar lá. Mas se negligenciamos o caminho que conduz a Deus, estaremos infinitamente mais distantes de nosso objetivo do que está a terra do céu; mas se nos apressarmos em ir a essa cidade bem-aventurada, logo nos veremos às suas portas; pois seu distanciamento não provém da distância entre lugares, mas da desproporção de nossa conduta e de nossa vida.

Vocês cuidam de se tornar hábeis na história desse mundo, de conhecer seu passado e seu presente. Vocês se lembram dos reis sob cujas ordens portaram armas, dos oficiais que os comandaram, dos jogos públicos que aconteceram, dos gladiadores que neles combateram, dos que receberam os prêmios, e de cem outras coisas que não lhes dizem respeito, mas não dedicam o menor pensamento em considerar quem é o príncipe dessa cidade celeste, em quem são os que aí ocupam o primeiro, o segundo e o terceiro lugar, como cada qual combateu e por quais ações são eles assinalados. Enfim, vocês não têm paciência para escutar o que lhes propõem as leis dessa cidade santa. Depois de tudo isso, como ousam vocês esperar usufruir um dia desses bens supremos, uma vez que vocês não se dignam nem a escutar agora aqueles que lhes falam?

Façamos então, ao menos por hoje, irmãos, o que até agora negligenciamos fazer. Uma vez que a misericórdia de Deus nos faz esperar entrar um dia nessa cidade toda de ouro, aprendamos quais são seus fundamentos, quais suas portas, todas feitas de pérolas e diamantes. Temos um excelente guia, que é São Mateus, e recebemos hoje a permissão para entrar pela porta que ele nos abre. Redobremos nossa atenção para que ele, percebendo que algum de nós o escuta com displicência, não nos expulse dessa cidade celeste.

Pois essa cidade, meus irmãos, é verdadeiramente real e magnífica, ela não é como as cidades aqui de baixo, divididas em ruas, palácios e praças. Ela é inteira o palácio de seu Rei. Abramos então as portas de nossas almas, abramos o ouvido de nossos corações, e, prestes a entrar nessa cidade eterna, adoremos com temor o rei que nela reina. Quem quiser contemplar suas maravilhas pode ficar atemorizado no início, porque suas portas ainda nos estão fechadas; mas quando as virmos abertas, ou seja, quando descobrirmos os mistérios que nos propusemos, veremos então o esplendor que brilha lá dentro. Esse bem-aventurado publicano os conduzirá pelos olhos do espírito, e ele promete que lhes mostrará tudo. Ele lhes fará ver onde fica o trono do Rei, quem são os soldados que o cercam, onde estão os anjos e os arcanjos, qual lugar está destinado aos novos cidadãos dessa cidade, por quais caminhos se chega a ela, quais as honras que são devidas aos que ocupam o primeiro, o segundo e o terceiro lugar, e quais são as diferentes dignidades, seja no senado, seja no povo dessa cidade divina.

É por isso que não entraremos ali com ruído e tumulto, mas com respeito e um silêncio dignos desses grandes mistérios. Se entramos em silêncio quando são lidas as mensagens do rei numa assembleia pública, quanto mais em silêncio devemos estar quando são relatados, não as ordens de um príncipe da terra, mas os oráculos do Rei do céu? Se agirmos dessa maneira, o próprio Espírito Santo nos conduzirá, por sua graça, até dentro do palácio e até o trono do Rei, para aí  desfrutarmos dos bens infinitos, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem se deve o reino, o poder e a glória, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.


[1] João 14: 26.
[2] Jeremias 31: 33.
[3] II Coríntios 3: 3. Cf. João 6: 45 - “Está escrito nos Profetas: ‘Todos os homens serão instruídos por Deus’. Todo aquele que escuta o Pai e recebe sua instrução vem a mim.”
[4] Cf. Lucas 3: 23-38.
[5] Lucas 11: 17.
[6] Mateus 22: 40.
[7] Mateus 6: 12.
[8] Mateus 7: 6.

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